Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
48/09.0GTGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: NOTAÇÃO TÉCNICA
FALSIFICAÇÃO
USO DE DOCUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO ALHEIA
Data do Acordão: 04/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 258º E 261º, DO C. PENAL
Sumário: Conduzir um veículo automóvel pesado de mercadorias, tendo-se introduzido, previamente, no respectivo aparelho tacográfico digital, um disco diagrama (cartão tacográfico) em nome de outra pessoa, não integra o crime de falsificação de notação técnica, nem o crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p., respectivamente, pelos art.ºs 258º e 261º, do C. Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                                  

I. Relatório                                                                             

No âmbito dos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) registados sob o n.º 48/09.0GTGRD, do Tribunal Judicial de Celorico da Beira, Secção Única, por sentença de 13/10/2010, o arguido PR... foi condenado, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258.º, n.º 1, al. c), e n.º 2, por referência ao artigo 255.º, al. a), ambos do C. Penal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 7 euros, perfazendo um total de 840 euros.                                                              ****

O Ministério Público, não se conformando, parcialmente, com a citada Decisão, veio, em 2/11/2010, interpor recurso, defendendo a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que condene, também, o arguido pela prática do crime de uso de documento de identificação alheio que lhe vinha imputado, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:

1. Por sentença proferida nos presentes autos, foi o arguido PR... condenado pela prática de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258.º, n.º 1, al. c) e n.º 2, do C. Penal, e absolvido da prática do crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 261.º, n.º 1, do C. Penal, de que vinha acusado.

            2. O tribunal a quo considerou, para o efeito, que há lugar apenas à punição do arguido pelo crime de falsificação de notação técnica o qual surge como crime fim, ficando, então, afastada, por via da subsidiariedade, a punição do crime de uso de documento de identificação alheio como crime meio, pelo que a punição, nestes casos, em concurso efectivo redundaria numa dupla punição do mesmo facto.

            3. A nossa discordância relativamente à sentença recorrida diz respeito ao concurso de crimes, por entendermos que o arguido deve ser condenado pela prática, em concurso efectivo, dos crimes de falsificação de notação técnica e uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 258.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do C. Penal, e artigo 261.º, n.º 1, ambos do C. Penal.

            4. A determinação da existência de uma unidade ou pluralidade criminal de infracções na conduta de um agente será determinada em função do número de valorações que no mundo jurídico-criminal correspondem a uma certa actividade, ou seja, aplicando critério jurídico e não naturalístico.

            5. Entendemos que o legislador penal, com a revisão introduzida ao Código Penal através da Lei 59/2007, de 4 de Setembro, pretendeu punir o uso de documento alheio de forma mais abrangente ao introduzir a expressão “com intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”.

            6. Com a punição do uso de documento de identificação alheio protege-se o bem jurídico da segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório.

            7. Enquanto que, com a punição do crime de falsificação de notação técnica, tutela-se o interesse da segurança e credibilidade da informação fornecida exclusivamente por aparelhos técnicos prosseguido pelo Estado.

            8. O crime de uso de documento de identificação alheio só é punível com o uso efectivo de um documento de identificação alheio.

            9. Propugnamos que o legislador penal quis punir, de forma autónoma, duas condutas em separado e de forma autónoma: uma com o uso desse documento de identificação alheio e outra com a falsificação da notação técnica por constarem dados falsos que não correspondem à verdade juridicamente relevante.

            10. In casu, não se verifica qualquer relação de subsidiariedade entre o crime de uso de documento de identificação alheio e o crime de falsificação da notação técnica.

            11. O sentido de ilicitude na conduta do arguido praticada, tendo em conta a factualidade dada como provada, insere-se num quadro de uma duplicidade de ilicitude, uma vez que, por um lado, usou o documento de identificação, o cartão tacográfico, que não lhe pertencia, e, por outro lado, a notação técnica emitida encontra-se revestida de falsidade por conter dados jurídicos que não correspondem à verdade, nomeadamente os dados registados quanto à identificação do condutor do veículo em causa.

            12. O legislador quis punir estes dois ilícitos de forma autónoma por se verificar aqui uma duplicidade de ilicitude nesta conduta complexa perpetrada pelo arguido, atendendo, desde logo, à relevância jurídico-penal do documento de identificação alheio.

            13. O documento de identificação ou de viagem é um conceito penal com assaz relevância, definindo-o o artigo 255.º, al. c), e, nesta medida, o simples uso deste documento por pessoa diferente do seu titular constitui já um ilícito penal. O crime de falsificação de notação técnica é punido já por outra razão de política criminal, tendo em conta o bem jurídico subjacente a essa punição.

            14. Assim sendo, pelo supra exposto, e salvo o devido respeito por diferente entendimento, entendemos que o arguido deve ser punido pelo crime de uso de documento de identificação alheio para além do crime de falsificação de notação técnica, por se verificar uma relação de concurso efectivo entre eles, numa pena única determinada ao abrigo do artigo 77.º, do C. Penal.   

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O arguido não respondeu ao recurso.

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O recurso foi, em 3/12/2010, admitido.

Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, em 21/12/2010, no qual defendeu que o recurso merece provimento, acompanhando integralmente o alegado em 1ª instância.

Cumpriu-se o artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo o arguido exercido o seu direito de resposta.

 Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II. Decisão Recorrida (com relevo para o recurso):

“(…)

II – FUNDAMENTAÇÃO:

II.1 – FACTOS PROVADOS:
1. No dia … de 2009, pelas 22.45h, na área de serviço de …, na auto-estrada n.º … sentido Viseu-Guarda, área desta comarca, o arguido conduzia o veículo pesado de mercadorias formado pelo tractor coma a matrícula …, pertencente à empresa “ ….” e pelo semi-reboque de matrícula …, pertencente à empresa “…”, quando foi mandado parar e fiscalizado numa operação levada a cabo pelo Destacamento de Trânsito da GNR.
2. Nessa altura, os agentes da BNR-DT efectuaram a impressão do registo da actividade diária efectuada através do aparelho digital de controlo – tacógrafo -, com o objectivo de verificarem os períodos de condução.
3. Aí, constatou-se que a folha do tacógrafo efectuava o registo em nome de FN... e não do arguido.
4. No dia 2/10/2009, às 06h50,, em lugar não concretamente apurado, o arguido introduziu no aparelho tacógrafo digital do veículo … o cartão tacográfico n.º …, pertencente a FN..., titular da carta de condução n. … .
5. Assim, os dados registados no aparelho tacográfico digital, onde ficam anotadas as indicações referentes à velocidade de circulação do veículo e ao tempo de duração da viagem, informavam que aquele estava a ser conduzido por FN... e não pelo arguido, como efectivamente acontecia.
6. Entre os dias 2 e 4 de Outubro de 2009, FN... encontrava-se no estrangeiro, exercendo a sua actividade profissional de motorista do veículo de matrícula … .
7. Aliás, analisados os registos das folhas de tacógrafo dos veículos … e …, FN...  encontrava-se a conduzir dois veículos, em certos períodos horários, nos dias 10, 16, 17 e 23 de Setembro de 2009 e 2 a 4 de Outubro de 2009, sendo certo que o cartão tacográfico pertencente a FN… foi sempre utilizado no veículo … .
8. O tacógrafo é um dispositivo electo-mecânico totalmente automático, com ligação à caixa de velocidades do veículo, que efectua medições de velocidade e de tempo de circulação que depois imprime, sob a forma de gráfico, numa folha de registo.
9. O gráfico assim elaborado pelo tacógrafo fornece às entidades fiscalizadoras do trânsito as indicações que lhes permitem controlar as velocidades praticadas pelo condutor do veículo no percurso efectuado e o tempo decorrido entre cada período obrigatório de repouso bem como as eventuais infracções às imposições legais nessas matérias.
10.  Em consequência da alteração do cartão tacográfico, o tacógrafo passa a indicar na folha de registo uma identificação distinta do condutor, o que permite a condução por tempo indeterminado, dependente da vontade do condutor, já que, ao voltar a introduzir o seu cartão tacográfico, fará com que se inicie um novo registo de condução (como se, até aquele momento, se encontrasse parado).
11.  Operando pelo modo e com os efeitos supra descritos sobre as informações registadas na folha de viagem, aquele sistema permitia ao arguido circular por tempos superiores aos legalmente permitidos sem ser detectado pelas entidades fiscalizadoras do trânsito.
12.  Ao agir da forma descrita, o arguido sabia que estava a manipular o funcionamento do tacógrafo, o que pretendia, e que com esse procedimento estava a lançar na folha de registo informações que não corrrespondiam à realidade sobre a identificação do respectivo condutor e tempo de circulação do veículo.
13.  Com a actuação supra descrita, visou o arguido circular por períodos mais dilatados do que os legalmente previstos, bem sabendo que com a sua conduta abalava a confiança e a credibilidade que é suposto depositar nos dados electromagneticamente registados pelo tacógrafo, confiança e credibilidade essas tuteladas pelo Estado português.
14.  Ao actuar da forma descrita, utilizando um cartão de identificação alheio, o arguido agiu ainda vom intenção de se furtar à actuação fiscalizadora do Estado e, deste modo, conseguir conduzir por períodos indeterminados de tempo, o que sabia não ser permitido.
15.  O arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
16.  O arguido é motorista, mora com a mulher, que é empregada de escritório, e duas filhas menores de 9 e 3 anos, em casa própria da qual paga cerca de 300 euros mensais de prestação, auferindo ele entre 600 e 700 euros mensais, e ela cerca de 650 euros mensais.
17.  O arguido completou o 6.º ano d escolaridade.
18.  O arguido não tem antecedentes criminais.
(…)

II.4 – ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS PROVADOS:

Vem o arguido acusado da prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258.º, n.º 1, al. c) e n.º 2, por referência ao artigo 255.º, al. a), ambos do C. Penal, e um crime de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo artigo 261.º, n.º 1, do C. Penal.

Do crime de falsificação de notação técnica:

Dispõe a al. c), do n.º 1, do artigo 258.º, do C. Penal, que é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa aquele que, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, fizer constar falsamente de notação técnica facto juridicamente relevante.

Já o n.º 2 do mesmo artigo equipara à falsificação de notação técnica a acção perturbadora sobre aparelhos técnicos ou automáticos por meio da qual se influenciem os resultados da notação.

O bem jurídico protegido pela norma é a segurança e credibilidade na informação fornecida exclusivamente por aparelhos técnicos.

(…)

Ora, no caso, a conduta do arguido consistiu na introdução, no tacógrafo digital do veículo pesado de matrícula …, de um cartão digital que identifica o condutor do veículo que não era o seu, mas sim de outro condutor, desta forma interferindo no funcionamento do aparelho em causa e provocando que o mesmo, de forma totalmente automática, gerasse notação técnica – o relatório que dele se retira – onde constava que era outra pessoa o condutor do veículo em causa.

Tal facto afigura-se como juridicamente relevante, na medida em que permite ao condutor do veículo, passado que seja um determinado período, retirar aquele cartão e introduzir o seu, logrando assim conduzir o veículo para além dos tempos permitidos por lei e furtando-se, desse modo, ao registo de factos que integram a previsão de normas contra-ordenacionais relativas aos tempos máximos de condução seguida permitidos por lei e duração de pausas obrigatórias para descanso, previstas no DL n.º 272/89, de 19/08.

Por sua vez, tal possibilidade de conduzir por períodos superiores aos legalmente protegidos, sendo ilegítima, desde logo porque alvo de previsão em tipos contra-ordenacionais, constitui sempre um benefício para aquele que retira lucro da exploração do veículo em causa, pois utiliza o mesmo por mais tempo sem necessidade de contratar um motorista adicional para conduzir enquanto o outro descansa.

(…)

Do crime de uso de documento de identificação alheio:

(…)

Dispõe o n.º 1, do artigo 261.º, do C. Penal, que quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar ou encobrir outro crime, utilizar documento de identificação ou de viagem emitido a favor de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

O bem jurídico protegido pela norma é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório.

(…)

No caso, provou-se que o arguido introduziu de forma intencional no tacógrafo da viatura … o cartão tacográfico pertencente a FN....

(…)

Com efeito, a utilização do cartão visou, no caso, exclusivamente, permitir a execução do crime de falsificação de notação técnica, pois foi precisamente tal acto que permitiu ao arguido fazer constar da notação técnica gerada automaticamente pelo tacógrafo o facto falso e juridicamente relevante de que era FN… e não ele quem conduzia o veículo …, no período que precedeu a sua fiscalização.

Assim, se dúvidas não restam quanto ao preenchimento da previsão legal de ambas as normas, há que verificar se o concurso entre as mesmas é efectivo ou meramente legal.

Do Concurso:

Nos termos do artigo 30.º, n.º 1, do C. Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

(…)

Assim, quanto à regra da especialidade, um dos tipos aplicáveis (lex specialis) incorpora os elementos essenciais de um outro tipo aplicável (lex generalis), acrescendo elementos suplementares ou especiais referentes ao facto ou ao próprio agente. Assim, e dentro do princípio que a lei especial derroga a lei geral, só deve aplicar-se o tipo especial.

Relativamente à regra da consunção, o preenchimento de um tipo legal (mais grave) inclui o preenchimento de um outro tipo legal (menos grave), devendo a maior ou menor gravidade ser encontrada na especificidade do caso concreto.

(…)

Ora, enquanto no tipo legal do crime de falsificação de notação técnica o bem jurídico protegido é a segurança e credibilidade da informação fornecida exclusivamente por aparelhos técnicos, no de uso de documento de identificação ou de viagem alheio é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório, o que, à partida, pela comparação dos bens jurídicos violados, como acima se referiu, parece afastar a verificação de um mero concurso de normas.

Sucede que, na revisão do Código Penal operada pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, o legislador introduziu no tipo do crime de uso de documento alheio como, aliás, também no de falsificação, a expressão “com intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”.

Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, a propósito do crime de falsificação para onde remete no comentário ao crime de uso de documento alheio, “o legislador deixou claro que a acção típica (…) pode ser querida exclusivamente com a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir um crime, sendo este elemento subjectivo típico parte constitutiva do próprio ilícito subjectivo e não um factor de agravação (…). Sendo assim, a punição nestes casos em concurso efectivo redundaria numa dupla punição do mesmo facto. A conclusão é inelutável, em face da opção de política criminal do legislador: o concurso é meramente aparente, sendo a punição do crime instrumento de falsificação subsidiária da punição do crime fim”.

Assim, in casu, verificando-se que há lugar à punição pelo crime de falsificação de notação técnica (crime fim), fica, então, afastada, por via da assinalada subsidiariedade, a punição do crime de uso de documento alheio (crime meio), pelo que se condenará o arguido pela prática do primeiro, absolvendo-o da prática do último.

(…)”

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III. Apreciação do Recurso:

De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».  

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), uma questão vem colocada pelo recorrente à apreciação deste tribunal:

- Saber se deve o arguido, além de ter sido condenado pela prática de um crime de falsificação de notação técnica, ser, também, condenado pela prática de um crime de uso de documento de identificação alheio, em concurso real.

                                                            ****

Liminarmente, deixemos claro, com o maior respeito por quem defenda posição contrária (ver recente Acórdão deste TRC, de 23/3/2011, relatado pelo Excelentíssimo Senhor Desembargador Paulo Guerra, Processo n.º 14/10.2GTGRD.C1), que a questão do concurso de crimes não se coloca.

Vejamos.

É certo que não foi concretamente posta em causa, pelo recorrente, a incriminação definida pelo tribunal a quo.                                                                                                                      Seja como for, não pode, nem deve este Tribunal da Relação dispensar-se de reexaminar a correcção da subsunção jurídica, perante uma situação em que se nos afigura manifesta a inexistência dos crimes imputados ao arguido e pelos quais pretende, agora, o recorrente a respectiva condenação.   

Pois bem, o arguido não praticou o crime de falsificação de notação técnica.

Como já vimos, entendeu o tribunal a quo, no caso sub judice, inserir os factos praticados pelo recorrente na previsão típica do ilícito do artigo 258.º, n.º 1, al. c) e n.º 2, do Código Penal.                                                                                                                                  Dispõe este normativo:                                                                                               «1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo:                                                                             a) Fabricar notação técnica falsa;
b) Falsificar ou alterar notação técnica;
c) Ficar constar falsamente de notação técnica facto juridicamente relevante; ou
d) Fizer uso de notação técnica a que se referem as alíneas anteriores, falsificada por outra pessoa;                                                                                                                      é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.                                              2. É equiparável à falsificação de notação técnica a acção perturbadora sobre aparelhos técnicos ou automáticos por meio da qual se influenciem os resultados da notação.
3. A tentativa é punível.
4. É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 256.º».                         Nesta matéria, acompanhamos, na íntegra, o Acórdão deste TRC, de 16/7/2008, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, Processo n.º 88/05.8GTVIS.C1, no qual pode ser lido o seguinte:                                                                                                 “O artigo 255.º, al. b) do Código Penal define nestes termos o conceito de “notação técnica”: «a notação de um valor, de um peso ou de uma medida, de um estado ou do decurso de um acontecimento, feita através de aparelho técnico que actua, total ou parcialmente, de forma automática, que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas os resultados e se destina à prova de facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua realização quer posteriormente» (o negrito pertence-nos).                                                                        Como sucede com o documento, não é o objecto material onde se realiza a notação técnica o relevante no domínio jurídico-penal; «o que importa para efeitos do crime de falsificação de notação técnica é a interferência em qualquer processo automático de notação que acabe por dar origem a um registo de notação falsa de um valor, de um peso, de uma medida, de um decurso de acontecimento e, por conseguinte, de uma notação técnica falsa. Aquela notação constitui a prova de um facto juridicamente relevante que devido à manipulação do processo automático está desvirtuada»[1].                                                     O crime de notação técnica tem em vista a protecção de um específico bem jurídico-criminal, qual seja a autenticidade do modo de produção automática da notação.            Como adverte Helena Moniz, «não se trata da veracidade ou a autenticidade do conteúdo da notação; o que se pretende é a “protecção da exactidão formal” garantindo que a produção da notação é “livre” de qualquer manipulação humana»[2].                                             O objecto da acção típica no crime de falsificação de notação técnica é o objecto material que, total ou parcialmente, de forma automática, criou o registo técnico relevante. No específico domínio da al. c) do n.º 1 do artigo 258.º do Código Penal, para a existência do crime é indispensável que se verifique, de forma automática, através de um aparelho técnico, o registo de um valor falso, de um peso falso, de uma medida falsa ou de um decurso falso de um acontecimento, devendo a notação técnica assim produzida ser adequada objectivamente para ter efeitos probatórios ou algum tipo de relevância jurídica.   No que tange à previsão do n.º 2 do artigo 258.º, para que o crime ocorra é indispensável a acção perturbadora sobre um aparelho técnico ou automático e uma actuação posterior do agente para desencadear a produção da notação, constituindo tentativa a acção de manipulação do aparelho técnico quando a notação decorre automaticamente daquela acção[3].                                                                                                                         Ora, no caso em apreciação, o arguido TP... conduzia o veículo automóvel pesado de mercadorias de matrícula 47-89-PQ, ostentando o tacógrafo um disco diagrama em nome do arguido JR....                                                                                     
O referido disco foi preenchido e assinado pelo arguido JR..., numa localidade sita em Espanha, a pedido do arguido TP..., para que este pudesse chegar ao seu destino (Aveiro) sem efectuar um período de descanso, porquanto naquela localidade, o arguido TP... já tinha registadas 6:55 horas de condução.                 
Definidos, nos termos expostos, os elementos típicos do texto-norma do artigo 258.º do Código Penal, não nos oferece qualquer dúvida que a factualidade provada, descrita supra, não é constitutiva do crime de falsificação de notação técnica.                                                     Na realidade, nenhuma acção de interferência se verificou no processo de registo do tacógrafo do veículo conduzido pelo arguido TP..., nem ocorreu, consequentemente, através da manipulação desse aparelho, a produção de notação falsa das horas de condução.                                                                                                      A acção dos arguidos, porventura relevante no âmbito do regime contra-ordenacional, no caso de se apurar que o arguido TP... excedeu o período de condução legalmente admitido, é, no entanto, atípica no domínio penal, rectius, para a perfectibilidade do crime de falsificação de notação técnica.                                                                                     Tem, pois, o recorrente de ser absolvido deste crime, absolvição que é extensível ao arguido TP..., visto o disposto no artigo 402.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal.”                                                                                                                             Na sequência da transcrição que acaba de ser efectuada, salientemos que o enfoque, a propósito do crime ora em causa, deve partir, justamente, da actividade desenvolvida pelo arguido, isto é, tem que ser analisado se este, através de algum engenho e arte, interferiu no processamento automático do aparelho, de modo a este ver adulterado o respectivo registo.                                                                                         Pois bem, temos de convir que o arguido não manipulou, não alterou, de nenhuma forma, o processamento automático do aparelho, já que este continuou a registar, em absoluta normalidade o percurso da viatura.                                                                        Por outras palavras, a conduta do arguido não afectou, em nada, o funcionamento do aparelho.                                                                                                                          Estamos perante uma mera desconformidade entre o condutor real da viatura e o cartão introduzido no aparelho e não face a um desvirtuamento da operacionalidade automática deste.
Como tal, o comportamento do arguido não assume relevância criminal.
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E o arguido, também, não praticou o crime de uso de documento de identificação alheia.

Será o cartão tacógrafo mencionado nos autos um verdadeiro documento de identificação para os efeitos da alínea c), do artigo 255º, do C. Penal?

Estatui o artigo 261º, do C. Penal que:

«1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, utilizar documento de identificação ou de viagem emitido a favor de outra pessoa, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

2 - Na mesma pena incorre quem, com intenção de tornar possível o facto descrito no número anterior, facultar documento de identificação ou de viagem a pessoa a favor de quem não foi emitido».

Por seu lado, a alínea definitória c), do artigo 255º, do C. Penal consagra o seguinte:

«c) Documento de identificação ou de viagem - o cartão de cidadão, o bilhete de identidade, o passaporte, o visto, a autorização ou título de residência, a carta de condução, o boletim de nascimento, a cédula ou outros certificados ou atestados a que a lei atribui força de identificação das pessoas, ou do seu estado ou situação profissional, donde possam resultar direitos ou vantagens, designadamente no que toca a subsistência, aboletamento, deslocação, assistência, saúde ou meios de ganhar a vida ou de melhorar o seu nível».

Por sua vez, a definição do cartão tacográfico consta do Decreto-Lei n.º 169/09, de 31 de Julho [diploma que define o regime contra-ordenacional aplicável ao incumprimento das regras relativas à instalação e uso do tacógrafo estabelecidas no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, alterado pelo Regulamento (CE) n.º 2135/98, do Conselho, de 24 de Setembro, e pelo Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março], mais propriamente do seu artigo 2.º, alínea b), onde se refere que se trata de um “cartão com memória destinado à utilização com o aparelho de controlo e que permite determinar a identidade do titular, armazenar e transferir dados destinados, segundo o respectivo titular, ao condutor, á empresa detentora do veículo, ao centro de ensaio e às entidades de controlo”.

Estamos, pois, a falar de um documento emitido pelo IMTT, sem dúvida de identificação, que é imprescindível para a condução de veículos equipados com tacógrafos digitais. 

Ora, ninguém coloca em causa que este cartão de condutor, pessoal e intransmissível, permite, em exclusivo, aceder à condução de veículos equipados com tacógrafo digital.

Mas daí não se pode retirar que se integra na definição de documento prevista no artigo 255.º, alínea c), do Código Penal.

Há vários tipos de identificação. Pensemos, por exemplo, na identificação fiscal, na identificação respeitante ao cartão de utente de saúde, nos passes sociais, nos cartões que demonstram o estatuto profissional de um cidadão.

Acontece que o âmbito de aplicação do artigo 261.º não abarca todos os tipos de identificação, uma vez que contempla só aqueles que constam da noção constante da al. c), do artigo 255.º, do C. Penal.

E esta não engloba o cartão tacográfico.

Se bem repararmos, o artigo está dirigido a documentos que se prendem com o conceito elevado de cidadania e não com aqueles que respeitam, sem mais, a uma actividade profissional e ao registo de determinados actos a ela inerentes.

Saliente-se, até, que o artigo 255.º, al. c), do C. Penal, ao mencionar a “situação profissional”, refere expressamente “certificados ou atestados” e “donde possam resultar direitos ou vantagens, designadamente,…”.

Não é feita qualquer alusão a cartões.

Não pode ser outra a interpretação a dar ao preceito, sob pena de esquecermos o carácter subsidiário ou fragmentário do direito penal, pois, se por aí seguirmos, estaremos a alargar o campo de aplicação da norma e a postergar um efectivo critério limitador da intervenção daquele.

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            IV. Decisão:

Termos em que se julga improcedente o recurso, indo o arguido, face ao acima exposto, absolvido da prática dos dois crimes pelos quais foi acusado.

Sem custas.

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José Eduardo Martins
Isabel Valongo


[1] Cfr. Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 671.
[2] Idem, pág. 702.
[3] Helena Moniz, ibidem, pág. 707.