Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1521/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
CO-ARGUIDO
PRISÃO PREVENTIVA
INDÍCIOS
Data do Acordão: 05/31/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: PORTARIA 1223-A/1991,DE 30 DE DEZEMBRO E ARTº.S 125º, 127º, 202º, 204º E 264º DO C. PROCESSO PENAL
Sumário: 1. A competência territorial do tribunal determina-se de harmonia com as regras constantes do Código de Processo Penal, sendo irrelevante para o efeito o disposto na Portaria nº. 1223-A/1991, de 30 de Dezembro, que se limita a estabelecer as regras aplicáveis à numeração e identificação dos processos crime.
2. As declarações de um co-arguido, em conjugação com os restantes elementos, podem ser livremente valoradas para fazer prova contra os outros, de acordo com o disposto nos artigos 125º e 127º do Código de Processo Penal.

3. Com a expressão “fortes indícios”, constante do artigo 202º do Código de Processo Penal, quer inculcar-se a ideia de factos de relevo bastantes para se concluir que o arguido vai ser acusado e, com toda a probabilidade, vai ser condenado.

4. Os requisitos, taxativamente enumerados no artigo 204º do Código de Processo Penal para ser decretada a prisão preventiva, são alternativos e não cumulativos.

Decisão Texto Integral: Acordam , em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

Relatório

Por despacho de 13/14 de Janeiro de 2006 , proferido nos autos de Inquérito n.º 33/05.0JBLSB , ( folhas 878 a 913 deste processo de recurso ) , que correm nos Serviços do Ministério Público , após interrogatório judicial , o Mmº Juiz de Instrução Criminal no Círculo Judicial de Leiria decretou a prisão preventiva do arguido A... , ali devidamente identificado.

Inconformado com o despacho judicial que lhe aplicou a medida de prisão preventiva dele interpôs recurso o arguido A..., concluindo na sua motivação:
(…)

Colhidos os vistos , cumpre decidir.

Fundamentação
(…)

*
*

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , o Ac. do STJ de 19-6-96 , no BMJ 458º , pág. 98 ).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos , face às conclusões da motivação do recorrente A... as questões a decidir são as seguintes :
- se tendo o processo sido aberto em Lisboa , como se vê da respectiva notação, a competência é do Ministério Público de Lisboa, pelo que ao ser “trazido” para Leiria ocorreu desaforamento , que afecta imediatamente a competência do juiz de instrução, ofende o disposto no art.32.º, n.º 9 da C.R.P. e constitui nulidade insanável á luz do disposto no art.119.º, al. e) do C.P.P.;
- se não serem comunicados ao arguido/recorrente nem os motivos concretos e objectivos da detenção nem as provas que a fundamentam , permitindo exercer a sua defesa , foi violado pelo Ex.mo JIC o disposto no art.141.º, n.ºs 1 e 4 do C.P.P., nos art.s 20.º, n.º 4, 27.º, n.ºs 1 e 4, 28.º, n.º 1 e 32.º , n.º 1 da Constituição da República e os art.s 5.º,n.ºs 1, 2 e 4, 6.º , n.ºs 1 e 3 al. a) e b) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ; e
- se não se verificam os pressupostos da aplicação da medida de prisão preventiva ao recorrente , uma vez que não existem indícios da prática dos crimes que lhe são imputados, nem estão preenchidos os requisitos gerais consagrados no art.204.º do Código de Processo Penal, pelo que aquela medida deverá ser revogada e substituída pela obrigação de apresentação semanal na esquadra de polícia da sua residência.
Passemos ao conhecimento da primeira questão.
O art.32.º, n.º 9 da Constituição da República Portuguesa estabelece que « nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.» .
Esta disposição constitucional garante o princípio do juiz natural , que tem por finalidade evitar a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a julgamento.
As normas , tanto orgânicas como processuais , têm de conter normas que permitam determinar antecipadamente o tribunal que deve intervir em cada caso, em atenção a critérios objectivos; não é pois admissível que a norma autorize a determinação do tribunal a posteriori ou discricionariamente . – cfr. Prof.s Figueiredo Dias , Direito Processual Penal, I,, pág.321 e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 1993, pág. 50.
O recorrente A... defende que a Portaria n.º 1223-A/1991 , de 30 de Dezembro , contém regras essenciais do princípio do juiz natural e procura , entre outros aspectos , prevenir o desaforamento. Tendo o presente processo de inquérito o n.º 33/05.0JSLB, tal significa que foi autuado em Lisboa, onde recebeu o NUIPC. Se tivesse havido uma denúncia de um crime em Leiria , teria sido aberto obrigatoriamente um processo em Leiria , nos termos dos art.s 241.º, 247.º, 248.º, 262.º, n.º2 e 263.º do C.P.P.. Nada justifica que o processo tenha sido “trazido” para Leiria , porque a competência é do Ministério Público de Lisboa , nos termos do art.264.º do C.P.P..
Vejamos.
A Portaria n.º 1223-A/1991 , de 30 de Dezembro, estabelece , nomeadamente, o seguinte:
« 1. A presente portaria define as regras aplicáveis à identificação dos processos crime.
2. O sistema estabelecido visa permitir a individualização de cada processo , desde a notícia do crime ao arquivo, de forma unívoca, quer para quem nele tenha intervenção quer para terceiros, através da atribuição de um número único identificador de processo crime ( NUIPC).».
No preâmbulo da Portaria consigna-se que a instituição de um número único identificador de processo crime ( NUICP) resulta da ideia de facilitar a relação entre os cidadãos e o sistema de justiça criminal , pois o processo crime corre termos por diferentes entidades, tribunais e órgãos de polícia criminal que, utilizando critérios autónomos para a individualização dos processos , provocam grandes dificuldades e frequentes confusões na referenciação de cada processo.
A Portaria n.º 1223-A/1991 quis definir , e definiu nos seus vários números , as regras aplicáveis à identificação dos processos crime , de modo a evitar a existência de vários critérios para a individualização dos processos e duplicação de registos no serviço em que se encontram.
Não estava nos seus objectivos descritos no preâmbulo , nem resulta minimamente da letra da Portaria que esta tivesse em vista estabelecer regras essenciais do princípio do juiz natural , procurando prevenir o desaforamento.
A competência do Ministério Público para a direcção do inquérito resulta , em primeira linha , do Código de Processo Penal .
O Ministério Público adquire notícia do crime por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia ( art.241.º do C.P.P.).
O Ministério Público procede ou manda proceder ao registo de todas as denúncias que forem transmitidas ( art.247.º, n.º1 do C.P.P.).
Os órgãos de polícia criminal que tiverem notícia de um crime , por conhecimento próprio ou mediante denúncia, transmitem-na ao Ministério Público no mais curto prazo. ( art.248.º, n.º1 do C.P.P.).
Ressalvadas as excepções previstas no Código de Processo Penal, ou seja , quanto aos crimes semi-públicos e particulares , em que o exercício da acção penal está dependente de queixa ou de acusação particular, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito ( art.262.º, n.º2 do C.P.P.).
A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público , assistido pelos órgãos de polícia criminal, que actuam sob a directa orientação daquele e na sua dependência funcional ( art.263.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.P.).
No mesmo sentido do ora exposto , estatui a Lei n.º 21/2000 , de 10 de Agosto, que os órgãos de polícia criminal , logo que tomem conhecimento de qualquer crime , comunicam o facto ao Ministério Público no mais curto prazo, sem prejuízo de , no âmbito do despacho de natureza genérica no n.º4 do artigo 270.º do Código de Processo Penal , deverem iniciar de imediato a investigação e , em todos os casos, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova ( art.2.º, n.º2 ). Os órgãos de polícia criminal actuam no processo sob a direcção e na dependência funcional da autoridade judiciária competente, sem prejuízo da respectiva organização hierárquica. ( art.2.º, n.º3).
A regra da competência para a realização do inquérito pelo Ministério Público consta do art.264.º, do Código de Processo Penal , que estatui , designadamente , o seguinte:
« 1. É competente para a realização do inquérito o Ministério Público que exercer funções no local em que o crime tiver sido cometido.».
2. Enquanto não for conhecido o local em que o crime for cometido , a competência pertence ao Ministério Público que exercer funções no local em que primeiro tiver havido notícia do crime.
4. Independentemente do disposto nos números anteriores , qualquer magistrado ou agente do Ministério Público procede , em caso de urgência ou de perigo na demora , a actos de inquérito, nomeadamente de detenção , de interrogatório e , em geral , de aquisição e conservação de meios de prova.
5. É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 24.º a 30.º.».
“ O disposto neste artigo representa afloramento das regras gerais sobre competência para o julgamento, aplicadas ao inquérito com as adaptações decorrentes desta fase, da imprecisão que os factos nesta fase apresentam , e ainda da urgência na realização de diligências cuja utilidade se pode perder.”- Cons. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado, 9ª edição ,pág. 505.
A competência do Ministério Público para a realização do inquérito resulta , pois , da observância das regras do art.264.º do C.P.P e não do local onde primeiro foi atribuído o NUICP.
No presente caso , resulta de folhas 3 dos autos de recurso , que a Directoria Nacional da P.J. , que tem sede em Lisboa e tem entre os seus órgãos a DCCB ( art.s 21.º, n.º 1 e 25.º, n.º1 , al. b) do DL n.º 275-A/2000 , de 9-11) recebeu uma informação de um individuo que não se quis identificar , comunicando que A... e B... eram os principais elementos de uma poderosa , extensa e bem financiada rede que actua de forma continua e organizada no tráfico de pessoas e do auxílio à imigração ilegal, introduzindo regularmente no território nacional e europeu um elevado número de brasileiras para a indústria do sexo, que exploram em bares do grupo ou cedem a grupos mais pequenos , encontrando-se nesse momento a preparar a instalação de mais um bar próximo da sua residência em Leiria.
O inquérito foi aberto pela D.C.C.B. da P.J. , em face da notícia da existência de crimes públicos , sendo que na “informação” não há qualquer referência a Lisboa.
A única referência , na “informação” que relata a denúncia recebida pela Directoria da P.J., é à cidade de Leiria , onde dois dos denunciados preparavam actos que se integram na criminalidade continua e organizada descrita , a qual cabe na competência reservada de investigação da P.J. , ( art.s 4.º, al. p) da Lei n.º 21/2000 e 5.º, n.ºs 2 al. p) do DL n.º 275-A/2000).
Da informação resultou o registo como inquérito pela D.C.C.B. - registo n.º 33/05.0JLSB - do presente processo , que foi mandado comunicar , para conhecimento e registo, ao DIAP de Leiria ( folhas 5 a 7 do processo de recurso).
A comunicação efectuada pela foi recebida e , segundo refere o Ministério Público na resposta ao recurso , recebeu em Leiria o registo com o n.º 134756, mantendo o NUIPC .
Sendo apontada na “informação” que determinou a abertura do inquérito a cidade de Leiria como o lugar concreto da continuação da prática sucessiva e reiterada de crimes de associação criminosa e de auxilio à imigração ilegal que o A... e B... levariam a cabo , sem que seja feita menção a outro local dessa actividade , o Ministério Público de Leiria apresenta-se como o competente para a direcção do inquérito , e não o da Comarca de Lisboa.
A comunicação da denúncia dos crimes pela D.C.C.B. da PJ ao Ministério Público da Comarca de Leiria e consequente direcção do inquérito pelo Magistrado do MºPº de Leiria , que primeiro teve assim notícia dos crimes , não viola as normas apontadas pelo recorrente nas conclusões da motivação do recurso , nem configura uma situação de desaforamento do inquérito.
Assim , o despacho recorrido na parte em que decidiu que o Ministério Público da Comarca de Leiria era competente para a direcção do inquérito não merece censura.
O recorrente A... alega nas conclusões da motivação do recurso que a competência do Ministério Público afecta imediatamente a competência do Juiz de instrução.
Efectivamente , a prática pelo juiz de instrução na fase de inquérito de actos que atingem direitos , liberdades e garantias , depende do impulso do Ministério Público titular do processo , cabendo , exclusivamente , a este órgão o juízo sobre a sua oportunidade e a primeira avaliação da sua necessidade. Designadamente para aplicação de medidas de coacção (o art.194.º, n.º1 do C.P.P. ).
Tendo o arguido A... sido detido por mandado do Ministério Público de Leiria , na sequência do seu despacho de 14 de Dezembro de 2005 , porquanto existiriam indícios da prática dos factos ali descritos , pelos quais teria cometido , em co-autoria , um crime de associação criminosa, p.e p. pelo art.299.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal , um crime de auxílio à imigração ilegal ,p.e p. pelo art.134-A do REPSAE , um crime de angariação de mão de obra ilegal, p. e p. pelo art.136-A do REPSAE, e um crime de lenocínio, p. e p. pelo art.170.º, n.º1 do Código Penal , era ao Juiz de Instrução de Leiria que competia ser apresentado o arguido para proceder ao 1º interrogatório judicial e eventual aplicação de medidas de coacção.
Do despacho do Ministério Público que ordenou a detenção não resulta concretizado o local onde se terá consumado o crime de associação criminosa , isto é , onde foi promovido ou fundado o grupo , sendo que os factos criminosos que indiciariamente imputa ao arguido A... se repartem por diferentes comarcas ( folhas 547 a 561 deste processo de recurso).
O local da fundação ou promoção da associação criminosa não tem de coincidir, e pode não coincidir , com o local onde tiveram lugar mais acções policiais ou onde os arguidos mais desenvolvem a sua actividade. Também para a consumação deste crime não é necessária a prática efectiva dos crimes pela associação tidos em vista.
Após interrogar os arguidos – e na sequência de requerimento do ora recorrente A... pedindo a declaração de incompetência do Tribunal e do Ministério Público de Leiria e sua a libertação – o Ex.mo JIC de Leiria declarou que o crime a que cabe pena mais grave é o de associação criminosa, pelo que este será o determinante da competência do Tribunal nos termos do art.28.º, al. a) do C.P.P. .
Frisando que a investigação ainda não se encontra concluída e que não existem nos autos elementos que permitam afirmar um local concreto do País como o da promoção ou fundação da associação , considerou , face à conjugação do disposto nos art.s 19.º, n.º1 , 21.º, n.º2 , 28.º, al. a) e 264.º, n.º5 do C.P.P. , que o Tribunal de Leiria era o competente , como Tribunal da área onde primeiro se teve conhecimento do crime.
Correndo o inquérito sob a direcção do Ministério Público de Leiria , que aqui o registou em face da transmissão da comunicação do crime pela D.C.C.B. da PJ , e não se tendo apurado ainda suficientemente nas investigações iniciadas o local concreto do País da promoção ou fundação da associação criminosa que se veio indiciariamente a confirmar existir , o Tribunal da Relação nada tem a censurar a última parte da decisão recorrida em que o Tribunal de Leiria se tem como competente , nesta altura do inquérito , para proceder aos necessários actos jurisdicionais , sendo que tal posição não ofende o princípio do juiz natural consagrado no art.32.º, n.º 9 da C.R.P. , nem integra a nulidade insanável a que alude o disposto no art.119.º, al. e) do C.P.P..
Este preceito processual comina com nulidade insanável “ a violação das regras de competência do Tribunal , sem prejuízo do disposto no art.32.º, n.º 2” ( este relativo à incompetência territorial).
A incompetência territorial do Tribunal de Instrução de Leiria , caso existisse e fosse declarada no final do interrogatório do arguido - e no caso não existiu -, não configurava um caso de nulidade insanável , nem teria os fins pretendidos pelo recorrente.
O Tribunal incompetente limita-se a enviar o processo para o tribunal declarado competente. Antes , porém , não deve deixar de praticar os actos urgentes, nomeadamente a aplicação das medidas de coacção exigidas. Estas medidas aplicadas mantêm a sua eficácia até serem convalidadas ou infirmadas pelo tribunal competente. - art.33.º do Código de Processo Penal.
Pelo exposto improcede a primeira questão.
Passemos agora ao conhecimento da segunda questão.
O art.141.º, do Código de Processo Penal estatui , nomeadamente, o seguinte:
« 1. O arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução , no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção , logo que lhe for presente com a indicação dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam.
4. Seguidamente , o juiz informa o arguido dos direitos referidos no artigo 61.º, n.º1, explicando-lhos se isso parecer necessário , conhece dos motivos da detenção , comunica-lhos e expõe-lhe os factos que lhe são imputados.».
Este preceito processual, como o recorrente menciona, deve interpretar-se em conformidade com o disposto nos art.s 28.º, n.º1 e 32.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa.
Da conjugação destes preceitos resulta que o juiz, no prazo máximo de 48 horas ,deve conhecer das causas da detenção do arguido e comunicá-las a este , dando-lhe oportunidade de defesa.
Do art.32.º, n.º5 da C.R.P. resulta que « o processo criminal tem estrutura acusatória , estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.».
Acerca dos factos e elementos probatórios que devem ser comunicados em primeiro interrogatório ao arguido detido , o Tribunal Constitucional , no seu acórdão n.º 416/2003 ( DR , II Série, de 6 de Abril de 2004 ) , decidiu “ julgar inconstitucional , por violação dos artigos 28.º, n.º1 e 32.º, n.º1 , da CPP, a norma do n.º4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que , no decurso do interrogatório de arguido detido, a « exposição dos factos que lhe são imputados» pode consistir na formulação de perguntas gerais e abstractas , sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática desses crimes nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa.”
Com critério orientador em matéria da comunicação dos factos mencionou ali o Tribunal Constitucional , que “ a comunicação dos factos deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância juridico-criminal , por forma a que lhe seja dada «oportunidade de defesa» ( art.28.º, n.º 1 da C.R.P.).”. Numa situação em que os factos se prolongaram supostamente ao longo de um ano , com prática reiterada de actos , não é exigível uma exaustiva pormenorização , com indicação precisa de datas de cada um desses actos , do conteúdo concreto de cada um deles ou da respectiva duração , mas é indispensável que se dê ao arguido conhecimento das circunstâncias essenciais à sua defesa.
Quanto à comunicação dos elementos probatórios , menciona-se no mesmo acórdão do Tribunal Constitucional que “… vedando a lei , sempre e em qualquer caso, o acesso aos autos, haverá violação dos princípios do contraditório e do acesso aos tribunais , não se garantindo ao reú todas as garantias de defesa previstas e asseguradas pelo art.32.º, n.º1 da Constituição.”. Isto só não deverá ser assim se houver razões ponderosas que impeçam , por força de uma avaliação concreta das circunstâncias do caso, a autorização de acesso aos autos dado os riscos ligados a tal acesso, nomeadamente quanto a actividades probatórias ainda não concluídas respeitantes aos factos ilícitos investigados, não se traduzindo , em tal caso, a recusa de acesso – em despacho fundamentado – em restrição excessiva dados os diferentes interesses e valores em jogo.”.
Posto isto , vejamos se , como defende o arguido/recorrente , este não foi confrontado com os factos e elementos de prova que levaram o Ex.mo JIC a concluir da sua indiciação pela prática dos crimes imputados.
O arguido A... foi detido para 1º interrogatório judicial na sequência de despacho do Ministério Público de 14 de Dezembro de 2005 , constante de folhas 547 a 561 deste processo de recurso.
Uma cópia desse despacho que determinou a detenção foi entregue aos arguidos aquando da detenção dos mesmos , com os mandados de detenção ( folhas 1378 ) - o que o arguido A... não impugna .
O despacho do M.P. que determinou a detenção dos arguidos concretiza razoavelmente as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos imputados aos vários arguidos, com menção concreta da sua actividade na organização , nomeadamente a do arguido A... , a quem face à existência de fortes indícios se imputam a prática , em co-autoria material , de um crime de associação criminosa , p. e p. pelo artigo 299.º, nºs. 1 e 3, do Cód. Penal (CP), de um crime de auxílio à imigração ilegal, p. e p. pelo artigo 134.º-A, n.º 2, do REPSAE; de um crime de angariação de mão-de-obra ilegal, p. e p. pelo artigo 136.º-A, nºs. 1 e 2, do mesmo Regime e de um crime de lenocínio p. o p. pelo artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal .
Consta do auto de 1º interrogatório , que se iniciou a 9 de Janeiro de 2006 ( folhas 732 a 744 do processo de recurso) , que em conformidade com o disposto no art.141.º, n.º 4 do CPP o Mmº Juiz informou o arguido dos direitos e deveres processuais constantes do art.61.º do CPP, e expôs-lhe « os factos que lhe são imputados , os motivos da sua detenção , genericamente as provas contra si reunidas – com o respeito pelo segredo de justiça e eficácia da investigação nesta fase processual ( parâmetro constitucional do núcleo mínimo do direito , liberdade e garantia “ oportunidade de defesa”, por refracção normativa do disposto no art.28.º, n.º1 , parte final da CRP)…».
O arguido prestou declarações em 10 de Janeiro de 2006 ( folhas 760 a 768 do processo de recurso) tendo se pronunciado , com razoável desenvolvimento sobre , nomeadamente , a sua
ligação aos co-arguidos e aos estabelecimentos D... e E... , sobre como se processa a vinda para os estabelecimentos nocturnos de bailarinas , de nacionalidade brasileira e de leste , que aí e em outros estabelecimentos quando chegam a Portugal.
Após interrogatório do arguido A... - do Ministério Público ter usado da palavra e antes da decisão sobre aplicação das medidas de coacção pelo Ex.mo JIC - veio o mesmo veio o mesmo referir , em requerimento junto aos autos , que os factos que lhe foram expostos não são suficientes para o indiciar pela prática de qualquer dos tipos de crime que lhe são imputados , e que se louva nas alegações do arguido antecedente no que se refere à arguição de inconstitucionalidade , fundada no impedimento do contraditório , por não invocação dos factos.
Desta tomada de posição do arguido A... após o interrogatório judicial , efectuada em termos genéricos , parece decorrer que não lhe foram comunicados os factos que lhe são imputados, que nada lhe terá sido dito sobre as das causas da detenção , daí que não teria tido oportunidade de se defender.
O Ministério Público , na acta de 12 de Janeiro de 2006 , ao responder a esta e outras questões suscitadas por alguns dos arguidos , disse que aos mesmos foi dado conhecimento do conjunto factual que preenche os crimes que lhe foram atribuídos.
Também no despacho recorrido , acima transcrito , o Ex.mo J.I.C. declara expressamente que foram expostos aos arguidos os factos que lhe são imputados e subsumíveis aos crimes de que se encontram acusados, pois foi-lhes referido , designadamente , o enquadramento temporal e espacial em que os factos ocorreram , os locais e as suas circunstâncias , tendo sido confrontado designadamente com a identificação dos nomes de diversas mulheres recrutadas.
Vejamos.
Uma questão é o arguido A... considerar que os factos que lhe foram referidos no interrogatório judicial não preenchem a prática de qualquer dos crimes que lhes foram imputados; outra diferente é o arguido não ter sido confrontado com os factos que constavam já do despacho do Ministério Público que determinou a sua detenção e que são sensivelmente os mesmos que o Ex.mo JIC indicou no despacho recorrido como indiciariamente praticados pelo arguido/recorrente.
A posição do recorrente , salvo o devido respeito , não é consentânea com as declarações por si prestadas no interrogatório judicial onde se deixa claramente antever que respondeu a factos concretos que lhe foram colocados sobre a angariação , entrada e permanência de mulheres estrangeiras que trabalhavam como bailarinas nos ditos estabelecimentos e que constavam já do despacho do Ministério Público que determinou a sua detenção. Delas se denota que o arguido sabe concretamente das situações que está a falar .
As declarações do arguido incidem, justamente , sobre o essencial dos factos que lhe são imputados como integradores dos crimes em causa.
Deste modo , o Tribunal da Relação concluí que o Ex.mo JIC , aquando do 1º interrogatório judicial , comunicou ao arguido A... os factos essenciais á sua defesa.
Quanto à não comunicação dos elementos probatórios , a que o arguido/recorrente faz referência , importa começar por fazer notar que o Ex.mo JIC no auto de 1º interrogatório , a 9 de Janeiro de 2006 , declarou que expôs àquele “ genericamente as provas contra si reunidas”.
No já aludido requerimento do arguido apresentado após a promoção do Ministério Público sobre medidas de coacção , o mesmo refere que não lhe foram apresentadas provas.
O modo como se expressa deixa entender que não lhe comunicaram quaisquer provas que sustentam os factos ; o que é natural , uma vez que defendeu que não conhece os factos que lhe imputaram que justifiquem a aplicação da medida coactiva proposta pelo Ministério Público.
Posição diferente e oposta teve o Ministério Público na resposta dada a essa questão como resulta da acta de 12 de Janeiro de 2006, que mencionou que as questões colocadas aos arguidos foram acompanhadas da revelação do conteúdo de meios de prova.
Também o Ex.mo JIC, no despacho recorrido acima transcrito, diz que os arguidos e designadamente o ora recorrente A... foi confrontado com alguns dos meios de prova constantes dos autos , nomeadamente com o teor de sessões de intercepção telefónicas, como uma referente a uma conversa com C... , relativas ao processo de recrutamento no estrangeiro das mulheres em causa e foi confrontado com a identificação dos nomes de diversas mulheres recrutadas .
A não exposição pormenorizada dos meios de prova é ali assumida e justificada pelo Ex.mo JIC com a “ vastidão e extensão dos elementos constantes dos autos” , acrescentando que “ foi dada a possibilidade aos arguidos de em face de determinados factos concretos poder aceder a meios de defesa” , pois que foram “confrontados com questões acompanhadas da revelação do conteúdo dos meios de prova”.
A extensão e vastidão dos meios de prova e prova junta aos autos é uma evidência que resulta da simples análise da certidão junta a este processo de recurso, pelo que a justificação para a não comunicação pormenorizada dos elementos probatórios ao arguido é razoável.
O arguido continua a dizer que não lhe foram comunicadas quaisquer provas dos factos que indiciem a prática dos crimes imputados.
Da leitura das actas de interrogatório judicial e do modo como o arguido responde nas suas declarações , designadamente iniciando variadas frases com termos como “confirma” ou “ não tem ideia de ter dito” determinados factos concretos, cremos resultar que efectivamente , e ao contrário do que menciona o recorrente , foram comunicados a este não só os factos essenciais para a sua defesa que lhe eram imputados pelo Ministério Público aquando da sua detenção, mas ainda , embora genericamente as provas contra si reunidas , e algumas em concreto , nomeadamente o teor de sessões telefónicas .
O Tribunal da Relação considera assim que o interrogatório judicial não violou o disposto nos art.s 141.º,n.ºs 1 e 4 do C.P.P. artºs 20.º,4, 27.º, 1 e 4, 28.º,1 e 32.º ,1 da C.R.P. e art.s 5.º,1,2 e 4, 6.º 1 e 3 al. a) e b) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Quanto à pretensão do recorrente de não poderem ser valoradas pelo Ex.mo JIC as declarações dos co-arguidos para extrair a conclusões que tirou no despacho recorrido , por a tal obstar o disposto no art.133.º, n.º 1 , al. a) do C.P.P. , a mesma não pode proceder.
Esse preceito prevê o impedimento dos arguidos a depor como testemunhas enquanto mantiverem essa qualidade. Ora , os outros arguidos ouvidos nos autos foram ouvidos nessa qualidade , e não como testemunhas, pelo que não tem razão de ser a invocação do disposto no art.133.º, n.º 1 , al. a) do C.P.P., para obstar à valoração das suas declarações. As declarações de co-arguidos podem ser valoradas livremente em conjugação com as restantes provas juntas aos aos autos , de acordo com o disposto nos art.s 125 e 127.º do C.P.P..
Passemos , agora , à última questão objecto do recurso.
O art.27.º , n.ºs 1 e 2 , da Constituição da Republica Portuguesa consagra o direito à liberdade física das pessoas , formulando o principio de que « ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade , a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.».
Exceptua-se deste princípio , a privação da liberdade pelo tempo e nas condições que a lei determinar , nomeadamente , no caso de « prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos. » ( art.27.º, n.º 3 , al. b) da C.R.P.
Em reforço do mesmo princípio , o n.º2 do art. 28.º da C.R.P. estatui que « A prisão preventiva tem natureza excepcional , não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.».
O Código de Processo Penal , no seu Livro IV , dá tradução àqueles ditames constitucionais , estabelecendo , no seu Titulo I , as disposições gerais relativas à aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial e , no seu Titulo II , nomeadamente , as concretas medidas de coacção admissíveis , as condições da sua aplicação , de revogação , alteração e extinção .
O art.191.º , n.º1 do C.P.P. , inserido no seu Livro IV , Titulo I , consagra o principio da legalidade e da tipicidade das medidas e coacção , do mesmo passo que afirma o principio da necessidade , ao estipular que só exigências processuais de natureza cautelar podem limitar , total ou parcialmente , a liberdade das pessoas .
O art.193.º , n.º 1 do C.P.P. estabelece , por sua vez , os princípios da adequação das medidas às exigências cautelares e , da proporcionalidade à gravidade do crime e das sanções hipoteticamente aplicáveis .
O carácter subsidiário da prisão preventiva é acentuado no art. 193.º do C.P.P. , ao mencionar-se no seu n.º2 , que “A prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.”.
Reafirmando este carácter excepcional e subsidiário da prisão , o art. 202 .º do Código de Processo Penal estabelece , nomeadamente :
« 1. Se considerar inadequadas ou insuficientes , no caso , as medidas referidas nos artigos anteriores , o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando :
a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos ; (...)».
Condição necessária à aplicação da prisão preventiva é , pois , a inadequação ou insuficiência das seguintes medidas de coacção : termo de identidade e residência (art.196.º) ; caução ( art.197.º) ; obrigação de apresentação periódica ( art.198.º) ; suspensão do exercício de funções , de profissão e de direitos (art.199.º) ; proibição de permanência , ausência e de contactos ( art.200.º) ; e obrigação de permanência na habitação (art. 201.º).
Como bem observa o Prof. Germano Marques da Silva , « a lei estabelece uma certa progressão da gravidade das diversas medidas cuja diversa gravidade deve ser sempre tida em conta pelo juiz no momento da escolha da que julgue mais idónea a salvaguardar as exigências cautelares de cada caso.» - Cfr. “Curso de Processo Penal”, II, ed. Verbo , 1993 , pág. 219.
Com a expressão “fortes indícios” quer-se inculcar a ideia de factos de relevo , bastantes para se concluir que o arguido vai ser acusado e com toda a probabilidade vai ser condenado .
A aplicação da medida de prisão preventiva - que é a mais gravosa das medidas de coacção - como da generalidade das medidas de coacção depende , para além dos requisitos especiais da própria medida , da verificação , em concreto , de requisitos ou condições gerais enunciados no art. 204.º do Código de Processo Penal , ou seja :
« a) Fuga ou perigo de fuga ;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e , nomeadamente , perigo para a aquisição , conservação ou veracidade da prova ; ou
c) Perigo , em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido , de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa .» .
Estes requisitos ou condições gerais enumerados taxativamente nas alíneas a) , b) e c) do art. 204.º do C.P.P. , são alternativos , bastando que exista algum deles para que , conjuntamente com os especiais previstos na medida de coacção , essa medida possa ser aplicada . Cfr. Cons. Maia Gonçalves , in “Código de Processo Penal anotado”, 9ª ed. , pág. 427., e Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques , in “Código de Processo Penal anotado”, I Vol. , 2ª ed. , pág. 1004.
Os crimes em causa imputados ao arguido no despacho recorrido são de natureza dolosa, o que pressupõe a representação do facto pelo agente e a actuação do mesmo com vontade de o realizar, directa, necessária ou eventualmente (art.14º do Código Penal).
No presente caso , compulsado o teor do processo de recurso , nomeadamente os relatos de diligências externas da PJ com informações de vigilâncias constantes de folhas 10 a 18, 43 a 50, 73 a 78, 92 a 97 , 101 a 103, 133, 134, 164, 165, 201, 202, 229 a 231, 265, 266, 2881, 282, 293 a 302, 335 a 341 e 444 a 448 , as transcrições das gravações telefónicas , os autos de busca e apreensão e os depoimentos das testemunhas inquiridas de folhas 671 a 675 e 680 a 713 , consideramos que existem fortes indícios da prática em co-autoria , pelo arguido A... , dos factos dados como indiciados no despacho recorrido.
Os indícios quanto ao crime de lenocínio, p e p. pelo artigo 170.º, n.º1 , do Código Penal, não são tidos como fortes no despacho recorrido. Mas não deixam efectivamente de haver indícios de nos estabelecimentos , de algum modo controlados pelo arguido através de várias sociedades comerciais , se facilitar o exercício da prostituição.
Resultando dos factos fortemente indiciados existir uma associação , com um escritório , dirigida designadamente pelo arguido A... , que se dedica ao auxílio à imigração ilegal , favorecendo e facilitando a entrada e permanência de cidadãs estrangeiras em território nacional com vistos de turismo , através de determinados modos de actuação bem descritos no despacho recorrido, e que para aqui se deslocam angariadas com intenção lucrativa e sem visto de trabalho para desenvolver trabalhos de índole sexual em estabelecimentos nocturnos de diversas sociedades comerciais, o Tribunal da Relação conclui que de momento estão preenchidos todos os elementos constitutivos dos crimes imputados ao arguido , tal como resulta do despacho recorrido.
Qualquer dos imputados crime é punível com pena de prisão superior a 3 anos de prisão.
Como requisitos gerias enunciados no art.204.º do Código de Processo Penal , mencionou o despacho recorrido ao decretar a prisão preventiva a existência de perigo de continuação de actividade criminosa; perigo de perturbação do inquérito , para a aquisição e conservação da prova; e perigo de fuga para se eximir à acção da justiça.
O perigo de continuação de actividade criminosa encontra-se ligado à personalidade do arguido e às circunstancias do crime .
O Ex.mo JIC considera a existência deste perigo em face dos grandes proveitos económicos que o arguido vem obtendo da actividade criminosa descrita do nível de vida que esta lhe proporciona.
O arguido/recorrente considera que a sua actividade nada tem de criminoso, pois os angariadores das “bailarinas” estrangeiras são “agentes artísticos” e a entrada e permanência destas no território nacional é apenas para fazer um “casting”, não se deslocando elas para Portugal para trabalhar , nem as mesmas aqui trabalhariam sem o respectivo visto de trabalho.
Refere o mesmo nas conclusões da motivação que “ está preso” à gestão dos estabelecimentos em causa , que não pode abandonar, pois tal implicaria a perda de tudo o que tem.
Já vimos que a conduta do arguido , ao contrário do por ele defendido , não tem este objectivo e viola bens jurídico-criminais.
O arguido , ao mencionar , contra as provas juntas aos autos , que a sua conduta descrita no despacho recorrido não é criminosa e que tem a pretensão de manter , em liberdade , a gestão de estabelecimentos nocturnos ( XCV e XCVI ) , em que são colocadas a trabalhar ilegalmente mulheres estrangeiras e que permite ao mesmo elevado nível de vida , permite concluir que existe o perigo do mesmo , naquela situação , continuar a sua actividade criminosa.
Quanto ao segundo destes perigos importa realçar que é nas fases preliminares do processo , em especial no inquérito , quando ainda estão em recolha os meios de prova , que o perigo de perturbação é maior.
O arguido em plena liberdade pode efectivamente perturbar o inquérito através das mais variadas actividades , como a criação de factos novos , a destruição de documentos , o suborno ou atemorização das testemunhas.
O Ex.mo JIC entendeu no despacho recorrido que o perigo de perturbação do inquérito por parte do arguido A... é real e concreto através da intimidação , por si ou através de terceiros , de testemunhas já inquiridas ou a inquirir, indicando para o efeito, nomeadamente, a intimidação que resulta das sessões 11936 e 11028 do alvo 27071.
Efectivamente , tal como o Ex.mo JIC , entende o Tribunal da Relação que , em face da personalidade do arguido que resulta dos factos indiciados nos autos , existe um sério perigo do arguido A... , em plena liberdade, perturbar o inquérito.
Quanto à verificação do perigo de fuga, esta é uma condição de aplicação de medida de coacção que visa acautelar a presença do arguido no decurso do processo e a execução da decisão final.
A este respeito e seguindo o ensinamento do Prof. Cavaleiro de Ferreira ( Curso de Processo Penal , vol. III , pág.418 ) , que temos ainda como actual , diremos que « não é de exagerar , ampliando-o , o perigo de fuga. É um perigo real , mas relativo; pode o arguido ausentar-se para o estrangeiro ou esconder-se em território nacional . Mas a coordenação internacional da repressão criminal e o instituto da extradição tornam cada vez menos seguro a fuga, que aliás não está à disposição de todos. Por outro lado , a vida secreta do arguido que se oculta da justiça por crimes menos graves acarreta normalmente um castigo maior que a própria pena, e dificilmente por isso será incentivo eficaz para a fuga.”.
A decisão recorrida considera que existe perigo de fuga do arguido por este possuir elevada mobilidade , admitindo o mesmo 3 deslocações ao Brasil , e ter contactos com angariadores de mulheres em diversos países, a que acrescenta uma grande capacidade económica.
Dos autos resulta que o arguido A... tem , realmente , uma elevada capacidade económica que lhe permitiria ocultar-se com alguma segurança ; deslocou-se algumas vezes ao Brasil, como se descreve no despacho recorrido e , por outro lado , não resulta dos autos que tenha sido desmantelado o apoio logístico que a organização tinha nos diversos países estrangeiros mencionados no mesmo despacho.
Conjugando o exposto com a gravidade dos crimes indiciados e das sanções que lhe podem vir a ser aplicadas, o Tribunal da Relação conclui que no caso existe perigo de fuga.
A prisão preventiva é , nestas circunstâncias , tal como justificou o Tribunal a quo no despacho recorrido , a medida cautelar adequada às circunstâncias do caso , pelo que improcede o recurso.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A..., e manter do despacho recorrido.
Custas pelo recorrente , fixando-se em 7 UCs a taxa de justiça .

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Coimbra ,