Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
422/08.9TBSCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: SERVIDÃO
ACÇÃO NEGATÓRIA
ÓNUS DA PROVA
POSSE
Data do Acordão: 01/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SANTA COMBA DÃO 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.342, 343 Nº1, 346, 1261, 1263, 1287, 1305, 1550 DO CC, 4 Nº2 A) CPC
Sumário: I –Na acção negatória de servidão, o autor só carece de provar a sua propriedade, competindo ao réu a prova da constituição da servidão.

II – Demonstrada pelo réu a existência da servidão ( os respectivos factos são relativamente a ele constitutivos), é ao autor quem tem de provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito.

III – A constituição da posse pressupõe a prática reiterada de actos materiais sobre a coisa, exercida com carácter duradouro, susceptível de revelar intensidade e/ou permanência, não bastando actos fugazes, ocasionais ou casuais.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

A...., B...., C.... e mulher D....., vieram propor acção declarativa com processo na forma sumária contra E....e mulher, F.... e G...., pedindo que sejam os Réus condenados a reconhecerem o direito de propriedade da herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de H..., cujos Autores são os únicos herdeiros do mesmo, sobre o prédio de pinhal sito no lugar de ......, freguesia de ......, concelho de ......, inscrito na referida freguesia sob o artigo 000......º, e que não assiste qualquer direito aos Réus de, sobre o mencionado prédio, de forma subterrânea ou a descoberto, introduzirem ou fazerem passar qualquer tubo ou outro material para condução e aproveitamento de águas, que não lhes assiste qualquer direito de servidão sobre aquele prédio, não tendo os Réus qualquer direito de passagem, de pé, de carro e tractor sobre o mesmo, e os Réus condenados a retirarem o tubo de PVC que introduziram no prédio pertencente à Herança em causa, bem como a absterem-se de passar ou fazer trânsito de pé e/ou com gado sobre o mesmo.

Alegam para o efeito os Autores que o identificado prédio confina com os prédios inscritos na matriz predial rústica sob os artigos 111......º e 222......º, também da freguesia de ......, que há alguns anos são possuídos pela Ré G... e explorados pelos seus pais, tendo aqueles constatado que em meados do ano transacto – em relação à data da propositura da acção – a existência no prédio da Herança, e sem que sobre ele aos Réus assista qualquer direito de transporte de águas, de um tubo em PVC proveniente de uma nascente dos segundos identificados prédios, tendo as obras e o encanamento do dito tubo sido realizados às ocultas e sem conhecimento dos Autores. Referem ainda que os mesmos Réus abusivamente e sem autorização dos Autores, têm efectuado trânsito e pé e de tractor sobre o prédio da Herança, sem que lhes assista qualquer direito de passagem sobre o mesmo.

Citados, contestaram os Réus, que admitiram a colocação do tubo de PVC, mas referindo que a mesma foi antecedida de autorização, há cerca de dez anos, pelo autor da herança. Alegam ainda que, para acederem aos seus prédios, sempre iniciaram a travessia pelo prédio da Herança, no sentido sul - norte, flectindo depois para nascente, e não pelo caminho que os Autores mencionam na sua petição inicial, há mais de vinte anos, à vista de toda a gente, de forma pacífica e sem que alguém jamais se haja oposto a tal passagem.

Foi proferido despacho saneador, seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, que não sofreu reclamação.

Realizado o julgamento, veio oportunamente a ser proferida decisão que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou os Réus:

a) “A reconhecerem que não lhes assiste qualquer direito de sobre o prédio da herança, indicado em 2. dos factos provados, e de forma subterrânea ou a descoberto, introduzirem ou fazerem passar qualquer tubo ou outro material para condução e aproveitamento de águas que nascem nos prédios descritos em 4. e 9. dos factos provados;

b) A retirar o tubo PVC que introduziram no referido prédio da herança”,

c) Julgando improcedentes, por não provados, os demais pedidos formulados pelos Autores,

tendo as custas sido fixadas na proporção de metade para Autores e Réus.

Por não se conformar com tal decisão, na parte em que ficaram vencidos, dela interpuseram os Autores recurso de apelação para este Tribunal da Relação, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

- “A ACÇÃO É DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA ESPECIALMENTE COMPETINDO AO RÉU A PROVA DOS FACTOS CONSTITUTIVOS DO DIREITO A QUE SE ARROGA (…);

- A RÉ CONTESTANTE NÃO ALEGOU QUALQUER FACTO CONDUCENTES À DEMONSTRAÇÃO DA AQUISIÇÃO 00 PRÉDIO (AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA OU TRANSLA1WA) NEM ALEGOU QUALQUER TITULO DE ONDE A MESMA SE PRESUMISSE;

- (…) NEM PROVARAM COMO ADQUIRIRAM A POSSE DO PRÉDIO, NEM SE TENDO ASSENTE O SEU INICIO;

- ASSIM, O TRIBUNAL NÃO PODE TER POR PROVADA A ACESSÃO NA POSSE (ART. 1256° DO C. CIVIL)…;

- A RÉ COMO LHE COMPETIA, NÃO ALEGOU QUAISQUER SINAIS DE ONDE SE INFERISSE, INEQUIVOCAMENTE, A PASSAGEM DE PÉ, DE CARRO OU TRACTOR;

- NÃO DEFINIU UM CAMINHO, A SUA LOCALIZAÇÃO, EXTENSÃO E PROJECÇÃO E OS SINAIS DE PASSAGEM NO LEITO (TERRA BATIDA, TRILHOS, ETC) QUE FOSSEM VISÍVEIS E PERMANENTES DE FORMA A ATESTAR QUALQUER SERVIDÃO;

- A AUSÊNCIA DE ALEGAÇÃO NÃO PODE SER SUPRIDA POR QUALQUER CONSIDERAÇÃO OU VIZUALIZAÇÃO DE QUALQUER PERCURSO EM SEDE DE INSPECÇÃO JUDICIAL E ILUSTRADO A FLS. 64 SOB PENA DE VIOLAÇÃO DO PRINCIPIO DO DISPO5ITIVO, NOS TERMOS DO ART.664°DOC.P.CIVIL;

-A POSSE RELEVANTE DEVE SER PÚBLICA. PACÍFICA. ININTERRUPTA E CONTÍNUA. POIS SÓ UMA PRÁTICA REITERADA DOS ACTOS MATERIAIS PODE CONDUZIR A SUA AQUISIÇÃO NOS TERMOS DO ART.° 1263° AL C) DO C. CIVIL;

- PERANTE A FACTUALIDADE PROVADA NA RESPOSTA AOS QUESITOS 5° E 9° A ALTERNÂNCIA DA UTILIZAÇÃO INCULCA MAIS UMA ACTUAÇÃO DE VIZINHANÇA E MERA TOLERÂNCIA PESSOAL E MENOS UMA RELAÇÃO (REAL) DE SERVENTIA;

- DEU-SE COMO PROVADA UMA POSSE PÚBLICA, MAS APENAS SEM OPOSIÇÃO DOS AA;

- ERA MISTER DEMONSTRAR UMA POSSE CONSTITUÍDA SEM OPOSIÇÃO DE UM NÚCLEO DE PESSOAS OU INTERESSADOS, NÃO SE PODENDO CONCLUIR QUE SE PROVOU UMA POSSE PACÍFICA, QUE NÃO O FOI, ACABANDO OS AA. POR PROPOR A ACÇÃO;

- (…) APENAS SE APUROU QUE, NA AUSÊNCIA DE DOCUMENTO COMPROVATIVO DA DATA DE AQUISIÇÃO DO PRÉDIO PELOS RR., A MESMA (POSSE) OCORREU HÁ CERCA DE 12 /14 ANOS (À DATA DO JULGAMENTO) E NÃO À DATA DA CITAÇÃO;

- E O TRIBUNAL NÃO PODE TER DADO COMOPROVADO O LAPSO DE TEMPO DE 15 ANOS E A BOA-FÉ;

- OS RR. NADA ALEGARAM QUANTO AO ELEMENTO INTENCIONAL, OU SEJA, O INTUITO DE FAZEREM A PASSAGEM COM A CONVICÇÃO DE EXERCEREM UM DIREITO DE SERVIDÃO (ANIMUS POSSIDERE);

- A SENTENÇA NÃO PODIA TER DADO COMO PROVADA A EXISTÊNCIA DA SERVIDÃO DE PASSAGEM E A ACÇÃO DEVERIA TER SIDO JULGADA TOTALMENTE PROCEDENTE.

Não foram apresentadas contra - alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente se, face à matéria dada como comprovada, devia ser reconhecido que aos Réus não assiste qualquer direito sobre o prédio da herança representada pelos Autores, designadamente direito de servidão de passagem, condenando-se estes a absterem-se de passar ou fazer trânsito a pé ou de carro sobre aquele prédio.

III. FUNDAMENTO DE FACTO

Pela primeira instância foram julgados provados os seguintes factos, que não foram objecto de impugnação por via do presente recurso:

1. No dia 28 de Fevereiro de 2005 faleceu, intestado, H......, no estado de casado com a autora A...., em primeira e únicas núpcias de ambos, tendo deixado como únicos herdeiros a sua mulher e os autores filhos C...... e B...... – al. a) dos factos assentes.

2. A herança aberta por óbito de H...... ainda se encontra ilíquida e indivisa, fazendo parte do acervo hereditário o prédio de pinhal, sito no lugar de ......, freguesia de ......, Concelho de ......, o qual se encontra inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 000...... – al. b) dos factos assentes.

3. Por si e pelos seus maiores de quem houveram, têm os autores limpado o mato, apanhado a caruma e resinado os pinheiros no referido prédio, há mais de 40 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de forma contínua, sem intenção de prejudicar ou lesar direitos de outrem e na convicção de exercerem um verdadeiro direito de propriedade – al. c) dos factos assentes.

4. A norte do prédio dos autores e a confinar com este, a ré G... (adiante 2ª ré) é possuidora de um terreno de cultura e pinhal e mato, sito aos ......, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 111......º da freguesia de ......, o qual é, há já alguns anos, explorado e granjeado pelos réus E......e mulher F...... (1ºs réus) – al. d) dos factos assentes.

5. Os réus introduziram subterraneamente, ao longo do prédio da herança referida em 2., um tubo de PVC com a largura aproximada de polegada e meia – al. e) dos factos assentes.

6. O referido tubo provém de uma nascente de águas existente nos prédios dos réus, atravessa-o e entra depois no prédio dos autores, a sul, a uma profundidade de 1,50m/ 2,00m, durante cerca de 40 metros, percorrendo sobre outros prédios a distância de cerca de 150m até atingir a estrada pública de ......, ...... – al. f) dos factos assentes.

7. Depois, continua até atingir a casa e os terrenos dos réus localizados para sudoeste do prédio dos autores, por onde conduzem as águas daquela nascente, para as aproveitarem em casa e na agricultura –al. g) dos factos assentes.

8. Os réus têm feito trânsito a pé e tractor pelo prédio dos autores, conduzindo ovelhas e outro gado, iniciando a travessia no sentido sul - norte e depois flectindo para nascente, atravessando também o prédio confinante de I..... até atingir o prédio possuído pelos réus – al. h) dos factos assentes.

9. A norte do prédio dos autores e a confinar com este, a 2ª ré é ainda possuidora de um outro prédio de cultura e mato, sito à ......, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 222...... da freguesia de ......, o qual é também explorado pelos 1ºs réus – resposta ao quesito 1.

10. As obras e o encanamento subterrâneo do tubo PVC foram feitos sem a permissão dos autores mas com a autorização de H......, autor da herança – resposta aos quesitos 2. e 6.

11. Os autores apenas tiveram conhecimento da existência do tubo em meados de 2007 - resposta ao quesito 3.

12. Os réus atravessam o prédio dos autores sem autorização destes – resposta ao quesito 4.

13. O acesso aos prédios dos réus era feito, por vezes, por caminhos que, provindo de nascente, se dirigem para norte dos mesmos – resposta ao quesito 5.

14. O tubo PVC foi colocado há cerca de 10 anos – resposta ao quesito 8.

15. A 2ª ré, bem como o anterior proprietário, na pessoa do seu rendeiro, utilizavam, por vezes e há mais de 20 anos, a travessia pelo caminho referido em H) para acederem à sua propriedade – resposta ao quesito 9.

16. A travessia era feita à vista de toda a gente e sem oposição aos autores – resposta ao quesito 10.

           

            IV. FUNDAMENTO DE DIREITO

Defendem essencialmente os apelantes que, tal como foi por eles proposta, a presente acção se configura como de simples apreciação negativa, o que pressupõe que, nos termos do disposto no artigo 343º, nº1 do Código Civil, incumba aos Réus a demonstração dos factos constitutivos da servidão que aqueles negam que onere o prédio da Herança que representam, ónus que os mesmos não satisfizeram, pelo que se impunha também nessa parte a procedência da acção.

Nos termos do disposto no artigo 4º, nº2, a) do Código de Processo Civil, as acções declarativas de simples apreciação têm por fim “…obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto”.

Segundo Castro Mendes,[3] nas acções de simples apreciação negativa importa apreciar duas situações distintas: quando réu previamente se arroga titular de um direito, competindo-lhe então a prova dos elementos constitutivos desse mesmo direito, de acordo com a regra contida no artigo 343º, nº1 do Código Civil, cabendo ao autor a alegação e prova da arrogância daquele. Trata-se, neste caso, de acção “do tipo a que os antigos chamavam provocatio ad agendum (ou acção de jactância ou de provocação): coloca outra pessoa (mas sibi imputet, pela sua arrogância) em situação semelhante à do autor, com o ónus e risco de fundamentar o seu direito”. Nestas circunstâncias, o autor pode limitar-se a negar o facto ou o direito, “…não invocando qualquer fundamento - antes empurrando para o réu o ónus de precisar o que impugna nessa negação e o seu fundamento e prová-lo”, situação aplicável, entre outras, às acções de impugnação de escritura de justificação notarial.

Nos casos em que não existe, por parte do réu, essa prévia arrogância, cabe ao autor alegar e provar o fundamento possível, determinado, da relação ou facto por si negado, bem como a inexistência ou ineficácia desse fundamento.

Anselmo de Castro[4], depois de elucidar que “a interposição da ac­ção de mera apreciação requer um real interesse em agir, consubstanciado num estado de incerteza objectiva que possa comprometer o valor ou a ne­gociabilidade da própria relação jurídica”, ou seja, “há-de tratar-se (…), para que haja esse interesse em agir qualificado, de relações jurídicas actuais, embora que sujeitas a condição suspensiva, ou do desenvolvimento de consequências futuras de relações existentes”, tendo por objecto “um facto prejudicial de relações jurídicas já existentes ou dum facto que sirva de base a várias relações jurídicas concretas. Há-de tratar-se, portanto, de facto que esteja intimamente conexionado com certa relação jurídica e cuja incerteza se reflicta desfavoravelmente sobre a relação sub specie”, adianta: “as acções de declaração negativa apresentam a particularidade de o réu poder vir a ser colocado na necessidade de ir a juízo demonstrar a existência dum direito em altura que lhe não seja propícia, quando não disponha, de momento, dos elementos bastantes para a sua prova. Este mesmo inconveniente apresentava a antiga provocatio ad agendum e a respectiva condenação a perpétuo silêncio, no caso de não ser intentada a respectiva acção positiva e aí feita a correspondente prova dentro do prazo previamente assinalado”, o que levou alguns processualistas, cientes dessas desvantagens, a defenderem dever caber ao autor, nas acções de declaração negativa, o encargo da prova da inexistência do direito ou do facto controvertidos, reservando para o réu o encargo probatório nas restantes acções[5].

Antunes Varela[6], depois de afirmar que a admissibilidade das acções de simples apreciação negativa “dependerá da existência de um inte­resse processual na sua propositura, mas não de se ter o réu arrogado a titu­laridade do direito que o autor pretende negar, ao invés do que, primo cons­pectu, se poderia depreender do disposto no art. 343/1 do CC”, acrescenta que nos casos em que é o réu quem, antes de a acção ser proposta, alardeia a existência do direito ou do facto, cuja inexistência o autor pretende seja declarada, a solução aceite pela lei (art. 343/1 do CC) não é a de recair sobre o autor o ónus de provar o facto constitutivo da sua pretensão sob pena da acção vir a ser julgada im­procedente; antes a lei, movida pela ideia de ser, por via de regra, mais fácil provar a existência dum direito ou dum facto (apontando para determinada causa específica de um ou outro) do que demonstrar a sua inexistência (eliminando todas as causas possíveis da sua produção) converteu, no que se refere ao onus probandi estas acções em verdadeiras provocationes ad agendum.

Manuel de Andrade[7] sustenta: “nas acções de simples apreciação negativa[...] o ónus probatório compete ao réu, a ele incumbindo a prova da existência do direi­to que se arroga, e não ao autor a prova da não-existência do mesmo direito. Conquanto nos pareça não ser esta a melhor solução, o artigo 343/1 do CC não admite doutrina diferente”, salientando que “a improcedência destas acções faz caso julgado (material) no sentido da existência do direito que o autor pretendia negar; esta solução, que reputámos correcta ainda quando a improcedência da acção não equivalia à prova da existência do direito, não pode suscitar agora qualquer dúvida, pois que a improcedência resulta da prova efectiva do direito”.

            Já para Teixeira de Sousa o réu só teria de provar os factos constitutivos do direito de que se arroga quando deduzisse pedido reconvencional. Inexistindo tal pedido, suporta o autor, à semelhança do que sucede nas demais acções, o ónus de demonstrar os factos que invoca como causa de pedir, quer se tratem de factos impeditivos ou extintivos do direito alegado pelo réu, quer dos factos dos quais o autor retira a inexistência daquele direito.

            Segundo este processualista,[8] “se o autor propõe uma acção de apreciação negativa (art. 4°, n° 2, al. a)), cabe-lhe a prova da inexistência ou do facto impeditivo, modificati­vo ou extintivo da situação jurídica (que é a causa de pedir dessa acção) e somente perante esta prova se devolve à contraparte a prova do facto consti­tutivo dessa situação (art°s 342°, nº 2, e 343°, nº 1, CC). Esta solução para o ónus da prova nas acções de apreciação negativa decorre da vigência na­quelas acções, como, aliás, em todas as demais, do ónus de alegação da causa de pedir (art°s 467°, n° l, al. c), e 1930, nº 2, al. a); cfr. STJ - 4/I/1979, BMJ. 283, 136), o que, dada a correspondência, em regra, entre o ónus da alegação e o ónus da prova, significa que é essa a factualidade que deve ser provada pelo autor. Ao réu só cabe o ónus da prova dos factos constitutivos da situação jurídica negada pelo autor se essa parte pretender que, sendo a acção julgada improcedente, se reconheça a prova da existên­cia da situação jurídica (e não apenas a falta de prova da inexistência dessa situação), devendo para tal formular o correspondente pedido reconvencio­nal (art. 274, nº 1). Se o autor da acção de apreciação negativa não prova o facto impeditivo, modificativo ou extintivo que alega como causa de pedir e o réu não prova o facto constitutivo, a acção é julgada improcedente (art. 516°). Mas neste caso só fica decidida a falta de prova da inexistência da situação jurídica (e não a prova da existência dessa situação) pelo que o autor pode propor uma outra acção com fundamento num outro facto im­peditivo, modificativo ou extintivo da situação negada”.

             Estando nestes autos em debate uma acção negatória de servidão, tal como proposta pelos recorrentes, justifica-se que se indague qual, em concreto, o regime probatório aplicável.

            A este respeito, elucida Manuel de Andrade[9]: “na acção negatória de servidão a doutrina tradicional é no sentido de que o Autor só carece de provar a sua propriedade. Sendo esta ilimitada, em princípio (Cód. Civil, art. 1305.°), e tendo como elemento intrínseco a exclusão de terceiros, o Réu é que terá de provar a constituição da servidão.

            Esta doutrina, que se pode ver consagrada no artigo 343.°, n.° l, do Código Civil, não é todavia inteiramente pacífica e inatacável”.

            E Anselmo de Castro[10] refere, por seu turno: “também na acção negatória de servidão, igualmente acção de declaração negativa, as opiniões se dividiam; uns, entendendo que o autor só carecerá de provar a sua propriedade, por ser esta ilimitada, em princípio (art. 1305.° do Cód. Civ.), e ter como elemento intrínseco a exclusão de terceiros sendo o réu quem terá de provar a constituição da servidão. Outros, pelo contrário, entendendo não ser assim, porque o direito de servidão é compatível com o direito de propriedade (propriedade limitada) e porque o autor, na acção negatória, não pretende demonstrar apenas o seu direito de propriedade, mas ainda que sobre este não existe o encargo da servidão. Mas ainda aqui ao réu competirá a prova da existência do direito que o autor lhe nega. Esta foi a solução que veio a ser consagrada no Cód. Civil — art 343°, l —e que o Cód. de Proc. Civil completaria, introduzindo as correspondentes alterações no regime dos articulados dessas acções”.

            Ainda acerca da acção negatória de servidão, esclarece o Acórdão desta Relação, de 27.02.2007[11] que a mesma “…visa unicamente a declaração da inexistência de um direito ou de um facto (alínea a) do n.º2 do art. 4º do CPC). As acções de simples apreciação esgotam por si os efeitos pretendidos pelo autor, estabelecendo a certeza jurídica almejada, operando-se com o trânsito em julgado a finalidade própria da acção, porque não associada qualquer eficácia executiva. Como acertadamente vem defendido no acórdão do STJ publicado na CJ 2003, 1º, p. 68, a improcedência da acção de simples apreciação negativa envolve o reconhecimento da existência do direito que o réu se arroga, que fica definitivamente estabelecida em face da parte contrária. Não pressupõem essas acções qualquer facto ilícito, mas apenas situações de dúvida e incerteza que poderão vir a ocasionar prejuízos. Pondo termo a situações de dúvida ou incerteza contribuem para prevenir litígios e nesta medida tutelam bens jurídicos, garantindo a certeza do direito e das relações jurídicas. Com o trânsito em julgado, nessas acções, fica definitivamente decidido inter partes se o direito ou facto existe ou não. Na lição de Antunes Varela, citada no dito acórdão, e publicada na RLJ 121/14, “na contestação das acções de mera apreciação negativa não tem, em princípio, cabimento defesa por excepção (material ou peremptória), nem a dedução de reconvenção, mas apenas a alegação dos factos constitutivos do direito que o réu se arroga ou dos sinais demonstrativos do facto”.

            Também Pires de Lima e Antunes Varela[12], relativamente à acção em análise, entendem que incumbe ao réu a prova da existência da servidão.

            Em idêntico sentido, se pronunciaram, entre outros, o Acórdão desta Relação, de 12.06.2007[13], Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.10.2006[14]. Pode retirar-se deste último aresto: “A esta luz, não pode negar-se ao réu em acção de simples apreciação negativa posição substancial ou materialmente (embora não formalmente) coincidente com a de autor em acção de simples apreciação positiva. Esse sendo mesmo o seu traço mais saliente, em vista da inversão do regime -regra do ónus da prova operado no n.º 1 do art. 343.º do Código Civil, não poderá negar-se que, na perspectiva da relação material controvertida, o réu passa, nas acções de simples apreciação negativa, a ocupar posição equivalente à de autor noutra qualquer acção. Por outro lado, uma acção de simples apreciação negativa nunca pode improceder, e o nela demandado ser absolvido do pedido, por falta de prova. Nesse tipo de acções, a dúvida sobre a realidade dos factos terá sempre, conforme resulta do art. 516.º do Código de Processo Civil (e 346.º do Código Civil), que resolver-se em desfavor do réu, que é a parte a quem o facto aproveita (v. acórdão do STJ, de 30. 01.03, CJSTJ, Ano XI, Tomo I, p. 68). Todavia, porque também a estes casos se aplicam as demais regras de repartição do ónus probatório, demonstrada pelo réu a existência da servidão (os respectivos factos são, relativamente a ele, por força do art. 343.º, n.º 1, constitutivos) será, depois, ao autor que incumbe a prova dos factos impeditivos, modificativos e extintivos daquele direito (n.º 2 do art. 342.º da lei substantiva civil)”.

            E o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.11.2005[15] refere: “Nesse tipo de acções, a dúvida sobre a realidade dos factos terá sempre, conforme resulta do art. 516° do C.Proc.Civil, que resolver-se em desfavor do réu, que é a parte a quem o facto aproveita. Todavia, porque também a estes casos se aplicam as demais regras de repartição do ónus probatório, demonstrada pelo réu a existência da servidão (os respectivos factos são, relativamente a ele, por força do art. 343º, nº 1, constitutivos) será, depois, ao autor que incumbe a prova dos factos impeditivos, modificativos e extintivos daquele direito (n° 2 do art. 342° do diploma citado)”.

            No caso dos autos, os Autores propuseram contra os Réus acção negatória de servidão, invocando, entre o mais, que o prédio de cuja propriedade se arrogam não se encontra onerado com qualquer servidão de passagem, a pé e/ou de carro, pretendendo que judicialmente de declare a inexistência de qualquer direito de passagem sobre tal prédio. Contestaram os Réus, contrapondo a existência do direito negado por aqueles, com fundamento no exercício, temporalmente localizado, de actos materiais conducentes à aquisição da servidão de passagem.

            A lei define a servidão predial como o encargo imposto num prédio, chamado dominante, em proveito exclusivo de outro pertencente a dono diferente, designado por serviente[16].

Trata-se, pois, de uma restrição ao direito de propriedade sobre o prédio dito serviente, isto é, ao direito de gozo do respectivo proprietário, ou seja, implica um direito real limitado.

É oponível não só ao proprietário do prédio serviente como também aos seus futuros adquirentes, de harmonia com o princípio da inerência.

Podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que lhe não aumentem o valor[17].

Para a constituição de uma servidão é fundamental que dela resulte alguma vantagem para o prédio dominante, isto é, um proveito efectivo por via de um prédio serviente.

As servidões são indivisíveis e, como tal, se o prédio serviente for sujeito a divisão com afectação a vários donos, cada porção fica sujeita à parte da servidão que lhe cabia, e se for dividido o prédio dominante tem cada consorte o direito de usar a servidão sem alteração ou mudança[18].

Às servidões legais, designadamente as que são constituídas em benefício de um prédio encravado, se refere o artigo 1550º do Código Civil, o qual, designadamente, determina que os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública nem condições que lhes permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos (n.º1), permitindo, por outro lado, gozar de igual faculdade o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio (n.º 2).

Nele se prevê o encrave predial absoluto e o relativo, ou seja, por um lado, o prédio que não tem qualquer comunicação com a via pública, e o que dispõe de insuficiente comunicação, isto é, só possível através da realização de obras de custo desproporcionado com os lucros ou vantagens derivados da sua exploração.

A via pública a que se refere este normativo é aquela onde as pessoas possam circular livremente, nomeadamente as estradas e os caminhos.

Assim, verificados que sejam os referidos pressupostos, envolvem as servidões legais o direito potestativo gerador da faculdade de constituir uma servidão sobre determinado prédio, independentemente da vontade do dono deste.

Exercido que seja esse direito, designadamente por via de contrato ou de sentença judicial, logo a servidão passa de potência a acto, isto é, logo se transmuta de meramente legal em efectiva.

Entre as servidões sobressai, pelo seu relevo económico e prático, a de passagem a pé ou de carro, ou seja, o poder conferido ao proprietário do prédio encravado de exigir o acesso à via pública através do prédio ou dos prédios vizinhos.

Os modos de constituição das servidões são o contrato, o testamento, a usucapião ou destinação de um pai de família[19].

No caso vertente, importa focalizar a discussão na usucapião, pois que foi esta a forma aquisitiva da servidão invocada pelos Réus, impondo-se, deste modo, indagar da verificação dos pressupostos necessários ao preenchimento deste instituto.

Segundo o artigo 1287.º, do Código Civil, “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”.

Ou seja, a usucapião comporta uma forma originária de constituição de direitos reais, através do reconhecimento jurídico duma situação de facto, exigindo, para o seu preenchimento, dois requisitos ou pressupostos, cuja verificação cumulativa é necessária para que o instituto possa produzir efeitos.

O primeiro desses requisitos pressupõe uma situação de posse relativamente a um direito real de gozo, designadamente direito de propriedade.

O segundo requisito reporta-se ao decurso dessa situação de posse por um certo lapso temporal, variável de acordo com verificação concreta das circunstâncias previstas nos artigos 1294.º e seguintes do Código Civil.

A posse caracteriza-se pelo “ poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”[20]. Adquire-se, designadamente, “pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes exercício do direito”[21] e “pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta”[22].

Para o preenchimento da usucapião como facto aquisitivo, a posse tem de ser pública e pacífica[23], apenas influindo as demais características no prazo necessário para a sua constituição.

A posse, enquanto facto aquisitivo, pressupõe a reunião de dois elementos: a) um elemento material – o corpus –, traduzido nos actos materiais praticados sobre a coisa, no exercício de poderes sobre a mesma; b) um elemento psicológico – o animus -, consubstanciado na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos materiais praticados.

A circunstância da lei fazer depender a existência da posse destes dois elementos, confronta o possuidor com a necessidade de comprovar o preenchimento dos mesmos. Só a posse assim demonstrada releva para efeitos aquisitivos através do instituto da usucapião.

Note-se, porém, que o exercício dos actos materiais que se traduzem no corpus faz presumir a existência do animus[24].

Trata-se, todavia, de uma presunção legal tantum juris, susceptível, por isso, de ser ilidida pela prova do contrário[25].

É, de resto, o entendimento que se extrai do Assento do STJ de 14/05/96[26], e que continua em vigor, agora com a natureza de acórdão uniformizador de jurisprudência.

Como se defende no mencionado Acórdão do STJ, de 24.10.2006, “…como nos casos de aquisição unilateral do direito não há causa, ou antes, não há um negócio jurídico que defina a vontade, não há uma causa concreta, o Código estabeleceu uma presunção de causa, dizendo que "em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto" (art. 1252.º, n.º 2, do C.Civil). Esta presunção da existência do animus só pode ser ilidida pela demonstração de que os actos praticados são por sua natureza insusceptíveis de conduzir à posse – são actos facultativos ou são actos de mera tolerância. (Cfr. MANUEL RODRIGUES, A Posse – Estudo de Direito Civil Português, 4.ª edição, revista, anotada e prefaciada por FERNANDO LUSO SOARES, Coimbra, 1996, pp. 192 e 195)”.

E acrescenta o mesmo Acórdão: “Desta forma, presumido legalmente o animus da posse das servidões, incumbiria já aos autores (…), por força do disposto no art. 342.º, n.º 2, do C.Civil, alegar e provar que o poder de facto exercido pelos réus derivava de simples tolerância, situação em que se poderia dizer que a respectiva posse era precária, por exercida em nome deles (art. 1253.º, al. b), do C.Civil)”.

Sustenta a sentença recorrida que “considerando a factualidade dada como provada, é manifesto que os réus lograram demonstrar, como inequivocamente lhes competia, que têm o direito de passar, adquirido por usucapião, pelo prédio da herança aqui representada pelos aqui autores”.

Ancorou-se tal conclusão na factualidade provada, e que não foi posta em crise no presente recurso, nomeadamente nos factos vertidos nas alíneas 8), 15) e 16.

Traduz-se essa factualidade no seguinte: os réus têm feito trânsito, a pé e de tractor, pelo prédio dos autores, conduzindo ovelhas e outro gado, iniciando a travessia no sentido sul – norte, e depois flectindo para nascente, atravessando também o prédio confinante de I......, até atingir o prédio por aqueles possuído; a segunda Ré, bem como o anterior proprietário, na pessoa do seu rendeiro, utilizavam, por vezes, e há mais de 20 anos, a travessia pelo caminho atrás descrito para acederem à sua propriedade, sendo tal travessia feita à vista de toda a gente e sem oposição dos autores.

O quadro factual assim descrito não confere potencialidade aquisitiva, por via do instituto da usucapião, aos actos materiais exercidos pelos réus em relação ao prédio dos autores.

O artigo 1263º, alínea a) do Código Civil, e a que já se fez alusão, determina que “a posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito”.

Com isso se significa que “exige-se, em primeiro lugar, uma prática reiterada dos actos materiais. Não basta a prática de um único acto, como a passagem eventual pelo terreno vizinho (…). O essencial (…) é que os actos aquisitivos, variáveis de caso para caso, se dirijam ao estabelecimento de uma relação duradoura com a coisa, não bastando um contacto fugaz, passageiro (Henrique Mesquita, Lições cit., pág. 97”[27].

Ou seja: a constituição da posse pressupõe, antes de mais, a prática reiterada de actos materiais sobre a coisa; essa materialidade carece de ser exercida com carácter duradouro, susceptível de revelar intensidade e/ou permanência. Exige-se um exercício com carácter de continuidade. Não se basta com actos fugazes, ocasionais ou casuais.

Ora, no caso em análise apenas resultou comprovado que a 2ª Ré, bem como o anterior proprietário, através do seu rendeiro, para acederem à sua propriedade, durante mais de 20 anos, por vezes atravessavam, a pé e de tractor, o prédio dos Autores.

Desconhece-se a regularidade dessa travessia - e era aos Réus que incumbia alegar e comprovar a continuidade e reiteração dos actos praticados -, mas a expressão em causa não se coaduna com o carácter contínuo e reiterado exigido pelo preceito legal citado.

O facto vertido na alínea 13ª dos factos considerados provados (o acesso aos prédios dos réus era feito, por vezes, por caminhos que, provindo de nascente, se dirigiam para norte dos mesmos) serve ainda para reforçar o entendimento acerca do carácter descontínuo do atravessamento do prédio dos Autores pelos Réus. Tal circunstancialismo não só serve para afastar a natureza encravada do prédio dos Réus – embora seja esta uma questão lateral no domínio da discussão dos presentes autos -, como desabona acerca da prática reiterada da travessia através do prédio dos Autores.

E não se pode extrair a questionada regularidade do atravessamento pelos Réus do prédio dos Autores pelos sinais que evidenciam a existência do caminho por aqueles percorrido, pois que, uma vez mais, ficou indemonstrado que fossem eles os únicos utilizadores do referido trilho.

Como já se deixou mencionado, era aos Réus que competia alegar e demonstrar os factos constitutivos da servidão de passagem sobre o prédio dos Autores, cuja existência estes negam.

Acresce ainda o facto de, tendo apenas se dado como provado que a travessia era feita à vista de toda a gente, sem oposição dos autores tal circunstancialismo não confere à posse a natureza pacífica exigida pelo artigo 1261º do Código Civil. Não basta, com efeito, essa ausência de oposição por parte dos Réus, era ainda indispensável que ela ocorresse num núcleo mais alargado de pessoas, designadamente as posicionadas para poderem manifestar qualquer oposição.

Tendo os Réus invocado o instituto da usucapião como facto aquisitivo do direito em causa, recaía sobre eles o ónus probatório da comprovação dos seus pressupostos, designadamente o exercício da posse exigida para o seu preenchimento. Ora, “um non liquet probatório nas acções de simples apreciação negativa terá sempre que resolver-se em desfavor do réu”[28].              

Deste modo, e contrariamente ao sustentado na decisão impugnada, não lograram os Réus demonstrar a factualidade indispensável à aquisição, pela via invocada, da servidão que alegam existir, o que, nos termos anteriormente expostos, deve conduzir à procedência dos pedidos negatórios de tal servidão.


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Conclusão:

Em acção negatória de servidão rege o artigo 343º, nº1 do Código Civil, invertendo-se o regime regra de prova, ficando o réu onerado com a tarefa de demonstrar os elementos constitutivos do direito que sustenta existir.

Invocando o Réu a usucapião como forma de aquisição da servidão que invoca a seu favor, é a ele que compete alegar e demonstrar as características da posse necessárias ao preenchimento desse instituto, designadamente a constituição de posse pública, pacífica, exercida, de forma reiterada e contínua, por lapso temporal não inferior a 15 anos.

A indemonstração de qualquer delas deve ter como consequência a procedência da acção, enquanto negatória da servidão.

                                             *

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, concedendo provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida na parte em que foi impugnada, declarando-se que os Réus não gozam de qualquer direito de passagem, de pé, de carro e tractor sobre o prédio pertencente à Herança representada pelos Autores, condenando-se aqueles a absterem-se de passar ou fazer trânsito de pé e/ou com gado sobre o mesmo.

Custas (primeira instância e nesta Relação): pelos Réus/Recorridos.


[1] artigos 684º, nº 3 e 685-A, nº 1 do C.P.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto
[2] art.º 664º do mesmo diploma
[3] Direito Processual Civil, AAFDL, 1977/78, vol. I, págs. 277 e seguintes
[4] Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, págs 117 e seguintes
[5] Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, III, pág. 288; Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, pág. 192
[6] “Manual de Processo Civil”, págs. 20, 460, 461
[7] Ob. cit. pág. 205
[8] “As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, págs. 260, 261
[9] Ob. cit., pág. 204
[10] Ob. cit. pág. 124, 125
[11] Processo nº 1881/05.7TBVIS.C1
[12] “Código Civil anotado”, vol. I, pág. 307
[13] 372/06.3TBVIS-A.C1, www.dgsi.pt
[14] 06A1980, www.dgsi.pt.
[15] 05B3055, www.dgsi.pt. Cf. ainda Acórdão da Relação de Lisboa, 29.04.2008, 867/2008-7 e Acórdãos da Relação do Porto, 10.11.98, 9820959 e de 27.01.97, 9630008, www.dgsi.pt.
[16] artigo 1543º do Código Civil
[17] artigo 1544º do Código Civil
[18] artigo 1546º do Código Civil).
[19]artigo 1547º, n.º 1, do Código Civil
[20] Artigo 1251º do Código Civil
[21] Artigo 1263º, a) do Código Civil
[22] Artigo 1258º do Código Civil
[23] Artigo 1297º, a contrario, do Código Civil
[24] Neste sentido, acórdãos do STJ de 25/02/93, Proc. 82887, da 2.ª secção e de 05/05/2005,  Proc. 1078/05, da 7.ª secção.
[25] Acórdãos do STJ, já citados, de 10.11.2005 e de 24.10.2006
[26] Publicado no DR, II S, de 24/6/96.
[27] Pires de Lima/Antunes Varela, “Código Civil anotado”, vol. III, pág. 26; cf. ainda Menezes Cordeiro, “A Posse – Perspectivas Dogmáticas Actuais”, pág. 103, 104
[28] Citado Acórdão do STJ, 24.10.2006