Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1591/18.5T8FIG-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA
ATRIBUIÇÃO DE CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
MODIFICAÇÃO DA ATRIBUIÇÃO
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DA F. FOZ – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 615º, Nº 1, AL. D), 986º E 988º DO NCPC; 1793º, Nº 3 DO C. CIVIL
Sumário: I- A nulidade por excesso de pronúncia, prevista no artº 615º, nº 1, d) do C.P.C, não se reporta aos fundamentos considerados pelo magistrado para a prolacção de decisão, mas antes afere-se pelos limites da causa de pedir e do pedido.

II- Os processos de jurisdição voluntária, nos quais se inserem os pedidos de atribuição de casa de morada de família, não estão sujeitos a critérios de legalidade estrita, o que permite ao Juiz usar de alguma liberdade na condução do processo e na investigação dos factos, não estando limitado pela concreta alegação das partes, podendo adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna (cfr. o disposto nos artsº 986º e segs. do C.P.C.)

III- Estando atribuída a casa de morada de família a ambos os ex-cônjuges até à realização de partilhas do casal, a alteração desta decisão só poderá ocorrer se se verificarem circunstâncias supervenientes que imponham essa alteração (crf. Artº 1793º, nº 3 do C.C. e 988º, nº 1 do C.P.C.).

IV- Compete àquele que pretende que lhe seja atribuída exclusivamente o uso da casa de morada de família alegar e provar a existência dessas circunstâncias, bem como que a necessidade da habitação exclusiva para o seu agregado familiar, prevalecente sobre a do ex-cônjuge.

V- Existindo filhos menores do ex-casal, o mero decurso do tempo pode constituir, por si só, circunstância relevante para a alteração da decisão sobre a casa de morada de família, em especial quando não existe acordo para a realização das partilhas previstas entre o ex-casal.

VI- O artº 1793º do C.C. visa a proteção da família, como ela é constitucionalmente garantida pelo artº 67º da Constituição, pelo que existindo filhos menores do ex-casal e constituindo o direito a uma residência condigna um direito inalienável das crianças, que cabe aos seu progenitores assegurarem no limite das suas capacidades (conforme resulta ainda do princípio 4º da Declaração Universal dos Direitos da Criança (Proclamada pela Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas n.º 1386 (XIV), de 20 de Novembro de 1959, e artº 27º da Convenção sobre os Direitos da Criança, Adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990), o interesse que deve prevalecer na decisão a proferir é o destes menores.

Decisão Texto Integral:






SUMÁRIO ELABORADO PELO RELATOR (artº 667 nº3 do C.P.C.)

I- A nulidade por excesso de pronúncia, prevista no artº 615 nº1 d) do C.P.C, não se reporta aos fundamentos considerados pelo magistrado para a prolacção de decisão, mas antes afere-se pelos limites da causa de pedir e do pedido.
II-Os processos de jurisdição voluntária, nos quais se inserem os pedidos de atribuição de casa de morada de família, não estão sujeitos a critérios de legalidade estrita, o que permite ao Juiz usar de alguma liberdade na condução do processo e na investigação dos factos, não estando limitado pela concreta alegação das partes, podendo adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna (cfr. o disposto nos artsº 986 e segs. do C.P.C.)
III-Estando atribuída a casa de morada de família a ambos os ex-cônjuges até à realização de partilhas do casal, a alteração desta decisão só poderá ocorrer, se se verificarem circunstâncias supervenientes que imponham essa alteração (crf. Artº 1793 nº3 do C.C. e 988 nº1 do C.P.C.).
IV-Compete àquele que pretende que lhe seja atribuída exclusivamente o uso da casa de morada de família, alegar e provar a existência dessas circunstâncias, bem como que a necessidade da habitação exclusiva para o seu agregado familiar, prevalecente sobre a do ex-cônjuge.
V-Existindo filhos menores do ex-casal, o mero decurso do tempo pode constituir, por si só, circunstância relevante para a alteração da decisão sobre a casa de morada de família, em especial quando não existe acordo para a realização das partilhas previstas entre o ex-casal.
VI-O artº 1793 do C.C. visa a protecção da família, como ela é constitucionalmente garantida pelo artº 67 da Constituição, pelo que, existindo filhos menores do ex-casal e, constituindo o direito a uma residência condigna, um direito inalienável das crianças, que cabe aos seu progenitores assegurarem no limite das suas capacidades (conforme resulta ainda do princípio 4º, da Declaração Universal dos Direitos da Criança (Proclamada pela Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas n.º 1386 (XIV), de 20 de Novembro de 1959 e artº 27 da Convenção sobre os Direitos da Criança, Adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990), o interesse que deve prevalecer na decisão a proferir, é o destes menores.


Proc. Nº 1591/18.5T8FIG-C.C1 Apelação
Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – J. Família e Menores da Figueira da Foz- J2.
Recorrente: J...
Recorrida: C...
Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves
Juízes Desembargadores Adjuntos: Jaime Ferreira
Teresa Albuquerque

Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
RELATÓRIO
C... veio propor o presente processo de jurisdição voluntária para atribuição da casa de morada da família contra o ex-marido, J..., alegando, em síntese, que se tornou insustentável manter-se o ex-casal a viver em conjunto após o divórcio, pelo que em Abril/Maio de 2019 a requerente acabou por sair de casa e arrendar um pequeno apartamento onde se instalou com os filhos menores, sem que conseguisse a colaboração do requerido para procederem à partilha, vindo a requerente, em 5/4/2019, a instaurar um processo de Inventário que atualmente se encontra pendente, correndo termos sob o n.º ... no Cartório Notarial da Dr.ª ...
Mais alegou que o requerido ficou desempregado e encontra-se atualmente detido para aguardar julgamento, não tendo meios para obter a adjudicação do imóvel em causa no processo de Inventário, nem para pagar os empréstimos associados ao imóvel.
Concluiu que a casa lhe deve ser atribuída, para ali viver com os filhos menores, mediante o pagamento de um valor não inferior a €200, por equidade, a favor do requerido, mas em caso de improcedência deste pedido deve este compensar a requerente, enquanto se mantiver a moratória, com o dito valor mensal de €200.
*
Realizada tentativa de conciliação, não foi alcançado acordo, pelo que foi o Requerido notificado para, no prazo de 30 dias, querendo, apresentar oposição.
Em contestação, o requerido veio alegar que a requerente de forma voluntária abandonou a casa de família, atribuindo de forma voluntária a mesma ao requerente, tendo arrendado um apartamento, com plenas condições de habitabilidade.
Quanto ao beneficio da moratória, alegou que iria terminar no final do mês de apresentação da contestação, pretendendo a requerente beneficiar da moratória embora o requerido tenha estado a cumprir todas as obrigações decorrentes desta moratória, além de a requerente ter beneficiado de um acréscimo de rendimentos, pois o progenitor tem vindo a reforçar a pensão de alimentos, repondo valores em atraso, sendo manifestamente abusiva e humilhante a pretensão da demandante.
Concluiu pela improcedência do pedido.
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Após audiência de inquirição de testemunhas foi proferida sentença que julgou “provado e procedente o presente processo de jurisdição voluntária e atribuo a título de arrendamento a antiga casa de morada de família à requerente, C..., para aí residir com os filhos menores dela e do requerido, podendo substituir as fechaduras das portas do edifício, sendo tal necessário para garantir a segurança dos residentes e dos seus bens.
Como contrapartida do uso da moradia, a requerente pagará mensalmente ao requerido J... uma renda de duzentos e cinquenta euros (€250)”.
Não conformado com esta decisão, impetrou o requerido recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
I. ...
II. Assim, dever-se-á revogar a sentença por outra em que atribua a casa ao requerido.
*
Pela requerente e ora recorrida foram interpostas contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.
Nestes termos, a única questão a decidir que delimita o objecto deste recurso, consistem em apurar:
a) se a sentença proferida nos autos é nula por excesso de pronúncia;
b) se se verificam os pressupostos para atribuição da casa de morada de família à requerente;
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:
Factos provados (com interesse para a decisão da causa):
1. Na ação de divórcio entre requerente e requerido foi atribuída a ambos a utilização da casa de morada de família até à partilha.
2. Considerando insustentável manter-se o ex-casal a viver em conjunto após o divórcio, a requerente acabou por sair da casa comum na Primavera de 2019, sem que tenha existido acordo entre os ex-cônjuges para a partilha.
3. A requerente veio a arrendar em 1/5/2019 um apartamento de tipo T-2 onde se instalou com os filhos menores, pela renda mensal de €265.
4. A requerente instaurou em 5/4/2019 um processo de Inventário que atualmente se encontra pendente, correndo termos sob o n.º ... no Cartório Notarial da Dr.ª...
5. O requerido veio a ser detido em Setembro de 2020, mantendo-se em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional do …, a aguardar julgamento.
6. A filha C... nasceu em 9/12/2007 e o filho T... nasceu em 7/12/2011.
7. A filha de requerente e requerido tem 13 anos e o filho de ambos tem 9 anos de idade, dormindo no mesmo quarto no apartamento arrendado pela mãe.
8. A requerente está disposta a pagar o valor da prestação bancária da casa, de cerca de €250, caso a moradia lhe seja atribuída para ali passar a residir com os filhos.
9. A requerente recebeu a retribuição líquida de €834,71 em Janeiro de 2021.
10. A moradia em questão é composta de garagem, r/c, 3 quartos no 1.º andar, 3 casas-de-banho e sótão.
*
Factos não provados ou sem interesse para a decisão da causa:
Os demais do requerimento inicial e da contestação.”
Ao abrigo do disposto no artº 662., nº1 do C.P.C. decide este coletivo aditar, oficiosamente, os seguintes factos por relevantes para a resolução da causa e por constarem de documento (certidão e registo predial e certidão das Finanças juntos aos autos apensos de incumprimento de responsabilidade parentais (apenso A):
11-Pela AP. ... de 2003/08/26 mostra-se registada a aquisição por compra pelo progenitor J..., no estado de solteiro, da fração autónoma designada pela letra A, correspondente ao terceiro andar nascente-sul para habitação e aparcamento nº 16, na cave, o 6º a contar do norte da fila nascente, do prédio urbano sito na ..., inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ... da freguesia de ,,, e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o número ...
12-A referida fração é constituída por 3 divisões assoalhadas, cozinha, marquise, despensa e casa de banho.
13-A supra descrita fração autónoma encontra-se arrendada a C..., mediante o pagamento da renda mensal de 400,00 €.
Assente a matéria fáctica a considerar, passemos à análise das considerações de direito elencadas pelos recorrentes.
DAS NULIDADES DA SENTENÇA
Vem o requerente invocar a nulidade da sentença proferida em primeira instância, por excesso de pronúncia, considerando que o juiz se pronunciou para além do que fora alegado como fundamento para a atribuição da casa de morada de família à requerente, que se fundava tão só na inadequação da casa em tempo de pandemia e no desinteresse do requerido na partilha, e não no interesse dos menores, considerado na decisão sob recurso.
O juiz do tribunal a quo pronunciou-se sobre esta questão, conforme disposto no artº 641º, nº 1 do C.P.C., nos seguintes termos:
“Quanto à nulidade da sentença por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, o recorrente não indica a alínea do n.º 1 pretensamente violada, mas referindo excesso de pronúncia, terá olhado ao disposto na alínea d) daquele n.º 1.
O requerido recorrente não tem razão, pois refere-se a conclusões sobre a inconveniência e prejuízo para os menores de estes serem mantidos a dormir no mesmo quarto, sendo de sexos diferentes, conclusões que o julgador retirou da matéria de facto provada com base nas regras da experiência, tendo liberdade decisória para o fazer, pois trata-se, como o requerido reconhece, de um processo de jurisdição voluntária, sendo-lhe aplicáveis a regras legais dos artigos 986.º a 988.º do Código de Processo Civil.
O Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, decidindo as questões por equidade (Alberto dos Reis, Proc. Especiais, II, 399). Ver ainda o Manual de Proc. Civil de A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, 2.ª ed., p. 69 e segs., onde se refere que prevalece a equidade sobre a legalidade estrita.
Na avaliação do interesse dos menores, o juiz podia com fundamento nos factos provados n.ºs 6, 7 e 10, concluir que o interesse dos filhos do extinto casal, nos termos do art.º 1793.º, n.º 1, do Código Civil, será de cada um ter o seu próprio quarto na casa pertencente aos pais e, objectivamente, é preferível para o requerente, que está preso e não sabe quando irá sair da prisão, receber uma renda, do que continuar sem a receber e sem poder usar a moradia, impedindo caprichosamente que mãe e filhos utilizem a casa em troca de uma renda justa.
Ora, as presunções e conclusões do julgador plasmadas na sentença com o fito de atingir uma decisão equitativa constituem matéria de direito e o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5.º, n.º 3, do C.P.C.).
O art.º 607.º, n.º 4, parte final, do C.P.C. prevê expressamente que na sentença o juiz extraia dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência, sendo justamente o que sucedeu, concluindo pela defesa do interesse das crianças.
Nesta conformidade não se verifica a nulidade da sentença por excesso de pronúncia alegada pelo recorrente.”
Concorda-se com o pertinente e certeiro juízo de primeira instância.
A nulidade por excesso de pronúncia, prevista no artº 615º, nº 1, d) do C.P.C, não se reporta aos fundamentos considerados pelo magistrado para a prolacção de decisão, mas antes afere-se pelos limites da causa de pedir e do pedido.
Com efeito, a nulidade invocada está diretamente relacionada com o artigo 608º, nº 2, do Código de Processo Civil, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas, cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Ou, como refere ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, V Vol., pp. 67/68:
, «O juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, Não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pelas partes.
(...)
Também não pode condenar em objeto diverso do que se pediu, isto é, não pode modificar a qualidade do pedido. Se o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar determinada quantia, não pode o juiz condená-lo a entregar coisa certa; se o autor pediu a entrega de coisa certa, não pode a sentença condenar o réu a presta um facto; se o pedido respeita à entrega de uma casa, não pode o juiz condenar o réu a entregar um prédio rústico, ou a entregar casa diferente daquela que o autor pediu; se o autor pediu a prestação de determinado facto (a construção dum muro, por hipótese), não pode a sentença condenar na prestação doutro facto (na abertura duma mina, por exemplo).»
Quer isto dizer que o juiz está limitado pela pretensão material do A., o efeito jurídico que ele visa alcançar com a ação. Nesta medida, o que identifica a pretensão material do A., conforme se refere no Ac. do S.T.J. de 07/04/16 Ac. do S.T.J. de 07/04/16, relator Lopes do Rego, proferido no proc. nº 842/10.9TBPNF.P2.S1, disponível para consulta in www.dgsi.pt é “o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado.
Importa, todavia, estabelecer, na medida do possível, quais os parâmetros dentro dos quais se move esta possibilidade de convolação jurídica, não se podendo olvidar que – continuando a ser a regra do dispositivo pedra angular do processo civil que nos rege – o decretamento de efeito jurídico diverso do especificamente peticionado pressupõe necessariamente uma homogeneidade e equiparação prática entre o objecto do pedido e o objecto da sentença proferida, assentando tal diferença de perspectivas decisivamente e apenas numa questão de configuração jurídico-normativa da pretensão deduzida.

E daqui decorre que não será possível ao julgador atribuir ao autor ou requerente bens ou direitos materialmente diferentes dos peticionados, não sendo de admitir a convolação sempre que entre a pretensão formulada e a que seria adequado decretar judicialmente exista uma essencial heterogeneidade, implicando diferenças substanciais que transcendam o plano da mera qualificação jurídica.”

Acrescenta-se ainda neste Acórdão o seguinte: “Note-se que (como salientamos no estudo O Princípio Dispositivo e os Poderes de Convolação do Juiz no Momento da Sentença, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Lebre de Freitas, págs. 781 e segs.) a prevalência de uma visão que tende a sacralizar a regra do dispositivo, dando-lhe nesta sede uma supremacia tendencialmente absoluta, conduz a resultado profundamente lesivo dos princípios – também fundamentais em processo civil – da economia e da celeridade processuais: na verdade, a improcedência da ação inicialmente intentada e em que se formulou pretensão material juridicamente inadequada não obsta a que o autor proponha seguidamente a ação correta, em que formule o – diferente – pedido juridicamente certo e adequado, por tal ação ser objetivamente diversa da inicialmente proposta (e que naufragou em consequência da errada e insuprível perspetivação e enquadramento jurídico da pretensão);” A este respeito vidé ainda os exemplos apresentados no Ac. de 5/11/09, proferido pelo STJ no P. 308/1999.C1.S1, disponível para consulta in www.dgsi.pt
Não estando o tribunal limitado pelas alegações das partes no domínio da indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas, está cfr. refere José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em Anotação ao Código de Processo Civil, págs. 41, “dependente da introdução na causa dos factos aos quais o tribunal a aplica, devendo sempre distinguir-se o plano dos factos, em que vigora, mesmo em matéria de direito processual, o princípio do dispositivo, e o plano do direito, em que a soberania pertence ao juiz, sem prejuízo ainda, no que ao direito material se refere, de o conhecimento oficioso se circunscrever no domínio definido pelo objecto do processo.” Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.5.2012, relator Gilberto Jorge, proc. nº 91/09.9T2MFR.L1-6, disponível in www.dgsi.pt.
Se assim é no âmbito da jurisdição civil, estes autos de atribuição de casa de morada de família, inserem-se no âmbito da jurisdição voluntária, regulada pelo disposto nos artºs 986 e segs. do C.P.C.
Ora, os processos de jurisdição voluntária não estão sujeitos a critérios de legalidade estrita, o que permite ao Juiz usar de alguma liberdade na condução do processo e na investigação dos factos, adoptando em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, seja para coligir oficiosamente provas que repute essenciais às finalidades concretas do processo, seja para prescindir de actos ou de provas que repute inúteis. Pode o tribunal, conforme disposto no artº 986 nº2 do C.P.C. “investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; (…)” e pode optar pela procidência que julgue mais adequada e justa (não estando limitado pela concreta providência requerida pelas partes).
Sendo certo que em causa está a morada de dois menores cuja residência foi fixada com a mãe (precisamente na casa de morada de família, como decorre dos autos de divórcio de que este constitui apenso), na decisão a proferir é imposto ao magistrado que considere o superior interesse dos menores, cfr. decorre do disposto no artº 1793º, nº 1 do C.C. e 41º do RGPTC.
Assim sendo, a consideração, como factor relevante, do interesse dos menores, que prevalece aliás sobre o mero interesse ou comodidade dos seus progenitores, está conforme à lei e aos princípios constitucionais que nos regem e que constam dos artsº 65º e 70º, nº 1, c) da nossa Constituição.
Indefere-se assim a arguição de nulidade da decisão.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Invoca ainda o requerido, como fundamento de recurso, a não verificação dos pressupostos para atribuição de casa de morada de família à requerente, pois que foi esta que de forma voluntária saiu da casa que também lhe estava atribuída, mais alegando que tem mais necessidade da casa que a requerente, pois que, apesar de se encontrar detido preventivamente, necessitará de casa para habitar quando sair da prisão e a requerente já tem uma casa, por si escolhida, que satisfaz as necessidades do seu agregado.
Decidindo
a) se se verificam os pressupostos para atribuição da casa de morada de família à requerente;
Para a prolacção de decisão de atribuição da casa de morada de família à requerente considerou a sentença em apreço o salário da requerente, o montante da renda que constitui 1/3 deste salário e o facto de a habitação arrendada pela requerente não ser adequada aos interesses desta e dos dois filhos menores da requerente e do requerido e, ainda, que o requerido não necessita de uma habitação com 3 quartos, tendo em atenção que está atualmente preso e “não a pode utilizar, nem sabendo quando poderá ser libertado.(…) não se justificando que estando o pai preso por período não determinado impeça os filhos de ter, cada um, o seu próprio quarto, de modo a salvaguardar a privacidade da jovem.”, pelo que concluiu que “estando a casa que foi da família agora desabitada, não se concebe que o requerido exija que assim continue, na esperança de um dia ser libertado da prisão para a ir habitar. É justo que nesta situação a requerente, que também é sua dona, ali habite com os filhos, sendo a casa utilizada por três pessoas e não só pelo pai, se for e quando for libertado, o qual não necessita de uma habitação tão ampla para viver sozinho. Um quarto ou um apartamento T-0 ou T-1 arrendado satisfariam plenamente as necessidades habitacionais do requerido após sair da prisão e o pai não provou que não tenha outra habitação.”
Posto isto, o artigo 67.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa dispõe que “A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à proteção da sociedade e do Estado e à efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros”. O espaço físico onde a família habita diariamente é indispensável à realização individual de cada um, bem como da própria família.
No reconhecimento deste direito fundamental prescreve o artigo 65.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”, mais resultando do disposto no artº 70 nº1 c) da Constituição que os jovens gozam de especial protecção no acesso a habitação, entendida esta como habitação condigna.
São estes direitos e deveres sociais, ou seja, direitos que ao Estado incumbe assegurar, mediante a promoção de políticas que assegurem a efectividade dos referidos direitos, entre as quais se inserem as referentes à atribuição da casa de morada de família, em especial quando existam filhos menores do ex-casal.
Nesse caso e nos demais, em que em causa esteja a aplicação de medidas que envolvam o interesse e bem estar dos menores, é primacialmente este interesse e bem estar que deve ser considerado na decisão a proferir, ainda que em detrimento dos interesses de um ou mais progenitores.
Conforme refere Sandra Passinhas No artigo “A ATRIBUIÇÃO DO USO DA CASA DE MORADA DA FAMÍLIA NOS CASOS DE DIVÓRCIO EM PORTUGAL: CONTRIBUTO PARA UM “AGGIORNAMENTO” INTERPRETATIVO”, publicado na Actualidad Jurídica Iberoamericana, núm. 3 bis, noviembre 2015, pp. 165 – 191, disponível online em https//idibe.org/wp-content/uploads/2013/09/215.pdf, na decisão a proferir “o juiz, mais do que o interesse do ex cônjuge, (…) deve atender ao interesse dos filhos do casal. Só esta interpretação actualizadora do Código Civil será conforme à Constituição portuguesa.”
Uma residência condigna é um direito inalienável das crianças, conforme resulta ainda do princípio 4º da Declaração Universal dos Direitos da Criança (Proclamada pela Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas n.º 1386 (XIV), de 20 de Novembro de 1959) e aos seus progenitores, incumbe o dever de, no âmbito das suas capacidades, assegurarem essa habitação condigna (cfr. artsº 1878º e 1879º do C.C. e artº 27º da Convenção sobre os Direitos da Criança, Adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990).
Ora, é precisamente na consideração do interesse dos menores, filhos deste ex-casal e das necessidades de cada um dos ex-cônjuges que a causa se terá de decidir, como decorre expressamente do disposto no artº 1793º do C.C.
Com efeito, volvendo a Sandra Passinhas Ibidem, pág.183., o artº 1793º do C.C. visa a proteção da família, como ela é constitucionalmente garantida pelo artº 67º da Constituição, quando existam filhos (ou outros familiares carecidos de protecção) do ex-cônjuge ou ex-unido de facto, justificando-se a sua permanência na casa de morada de família com o cônjuge que detém a sua guarda, ainda que contra a vontade do ex-cônjuge proprietário, sendo portanto irrelevante que a casa seja bem comum ou próprio desse cônjuge.
Conforme se refere em Ac. desta Relação de 20/06/17 Proferido no Proc. nº 1747/14.0T8LRA.C1, , em que foi relatora Maria Domingas Simões, disponível in www.dgsi.pt., a “casa de morada de família é aquela onde de forma permanente, estável e duradoura, se encontra sediado o centro da vida familiar dos cônjuges (ou unidos de facto), conforme resulta do disposto no art.º 1672.º do CC, e mantém a sua relevância mesmo após a dissolução do casamento ou união de facto, de modo que “embora perdendo, naturalmente, a vocação de lugar de ‘’habitação da família’’, jamais perderá todo o lastro que sustentou o particular regime a que se encontrava subordinado, por isso que na lei se preservam os interesses dos ex-cônjuges e dos filhos, agora através da ponderação do destino da casa de morada de família e dos termos da sua atribuição a um dos cônjuges”.
Neste conspecto, o artigo 1793º do Código Civil visa a proteção da casa de morada de família, assegurando que ao cônjuge, ou unido de facto, que mais seria atingido pelo divórcio, ou pela separação, quanto à estabilidade da habitação familiar, seja atribuído o direito de arrendamento da casa de morada de família.
Para o efeito, cabe, no entanto, ao cônjuge/unido de facto que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar a necessidade dessa casa e que essa necessidade se impõe ao do outro cônjuge.
Vários são os critérios considerados quer na doutrina, quer na jurisprudência Vidé a título de mero exemplo ac. de T.R.P de 03/04/2017, relator Carlos Querido, proferido no proc. nº 579/11.1TBVCD-E.P1, como critérios a valorar, para atribuição da casa de morada de família, a um ou outro dos ex-cônjuges.
Assim, Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito da Família” págs. 680 a 682. sobre a questão em apreço defendem que “o direito ao arrendamento da casa de morada da família, em caso de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, deve ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela. Na verdade, o objetivo da lei, ao permitir ao juiz manter o arrendamento na titularidade do cônjuge arrendatário ou transferi-lo para o outro cônjuge, não é o de castigar o culpado ou premiar o inocente, como não é o de manter na casa de morada da família, em qualquer caso, o cônjuge ou ex-cônjuge que aí tenha permanecido após a separação de facto, mas o de proteger o cônjuge ou ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar, cônjuge ou ex-cônjuge ao qual, porventura, os filhos tivessem ficado confiados. (….) Na avaliação da necessidade da casa, deve o tribunal ter em conta, em particular, a situação patrimonial dos cônjuges ou ex-cônjuges e o interesse dos filhos. (…). Trata-se, quanto à situação patrimonial dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais são os rendimentos e proventos de um e outro, uma vez decretado o divórcio ou separação judicial de pessoas e bens, assim como os respetivos encargos; no que se refere ao interesse dos filhos, há que saber a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos menores (…), e se é do interesse dos filhos viverem na casa que foi do casal com o progenitor a quem ficaram confiados. (…) Haverá que considerar ainda outros fatores relevantes, como a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc. Quando possa concluir-se, em face desses elementos que a necessidade de um dos cônjuges é consideravelmente superior à do outro, deve o tribunal atribuir o direito ao arrendamento da casa de morada da família àquele que mais precisar dela; só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar outros fatores (…)”.
Por sua vez, Pereira Coelho Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra Editora, n.º 122, Ano 1989 – 1990, páginas 137, 138, 207 e 208. defendia que «[…] a lei quererá que a casa de morada da família, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e de outro […]. Ora, este critério geral, segundo nos quer parecer, não pode ser outro senão o de que o direito ao arrendamento da casa de morada da família deve ser atribuído ao cônjuge ou ex-cônjuge que mais precise dela. […] A necessidade da casa (ou a «premência», como vem a dizer a jurisprudência; melhor se diria a premência da necessidade) parece-nos ser, assim, o factor principal a atender. […] Na avaliação da premência da necessidade da casa deve o tribunal ter em conta, em primeiro lugar, justamente estes dois elementos, que mais expressivamente a revelam […]. Trata-se, quanto à «situação patrimonial» dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais os rendimentos e proventos de um e de outro […]. No que se refere ao «interesse dos filhos», há que saber a qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a pertencer a guarda dos filhos menores […]. Mas o juízo sobre a necessidade ou a premência da necessidade da casa não depende apenas destes dois elementos. Haverá que considerar ainda as demais «razões atendíveis»: a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc.».
Daqui se conclui que:
- a lei sacrificou deliberadamente o interesse do proprietário (constituindo uma restrição ao direito de propriedade com consagração constitucional cfr. decorre do artº 62º da Constituição) ao interesse da proteção da família;
- a casa deve ser atribuída ao cônjuge ou unido de facto que mais precise dela, sendo irrelevantes, para o efeito, a culpa pela separação ou divórcio;
- na apreciação da necessidade da casa releva a situação patrimonial dos cônjuges havendo que apurar-se os rendimentos e proventos de cada um e os respetivos encargos, nomeadamente a obrigação de alimentos de um cônjuge ao outro;
- quanto ao interesse dos filhos, atender-se-á se é importante para aqueles viverem na casa que foi do casal, com o progenitor guardião e se é esta residência a que melhor satisfaz os superiores interesses dos menores;
- outras razões atendíveis são as que resultem da idade e estado de saúde de algum dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de cada um, a eventual disponibilidade do casal ou de um deles de dispor de outra casa onde possa residir;
- de escasso interesse, a circunstância de um dos cônjuges poder ser ou ter sido acolhido por familiares que não estejam obrigados a recebê-lo, só o fazendo por mera tolerância.
Ora, se do disposto no artº 1793º do C.C. não decorre expressamente uma prevalência, ou hierarquia de critérios a seguir, no caso de existirem filhos menores, o critério prevalente deve ser o que melhor salvaguarde os seus interesses que, conforme já acima referido, prevalecem sobre os dos seus progenitores.
Aliás, em acórdão proferido nesta mesma relação de 09/01/2018 (proc. 238/13.0TMCBR-B.C1), e quanto à interpretação deste critério, defendeu-se, posição com a qual nos identificamos que “Quanto a este último particular, o do interesse dos filhos, prende-se ele com a situação dos filhos menores, confiados à guarda de um dos pais, e que, para não ficarem sujeitos a outro trauma para além do que normalmente lhes resulta do divórcio destes, a lei entende por bem proteger de forma a que possam continuar a viver com estabilidade na habitação a que estavam habituados, sem mais mudanças para além da própria situação familiar. Na verdade, é aos filhos menores que a lei dedica a sua proteção, precisamente por se entender que é o interesse deles que é erigido por lei como critério para atribuição da casa de morada da família.”
Há ainda que considerar que a requerente acordou com o seu ex-cônjuge, ora requerido, em 16/01/19, no que se reporta à casa de morada de família, que esta ficaria atribuída a ambos até à partilha de bens entre o ex-casal, partilha que até à data ainda não ocorreu, conforme resulta do apenso D (tendo os autos sido remetidos a este tribunal a requerimento da requerente, sem que tenha existido ainda ou sido marcada a conferência de interessados) e que estes autos visam a alteração do acordo de atribuição conjunta da casa de morada de família para atribuição exclusiva da casa de morada de família à requerente.
Conforme decorre expressamente do disposto no artº 988º do C.P.C., as decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária podem ser alteradas no caso de ocorrerem circunstâncias supervenientes que justifiquem essa alteração (e tanto são supervenientes as que ocorreram após a decisão, como as que, tendo ocorrido antes eram ignoradas ou não tenham sido alegadas por motivo ponderoso). Esta possibilidade de alteração, mostra-se expressamente consagrada, no que respeita à casa de morada de família, pelo nº 3 do artº 1793º do C.C., do qual decorre que “O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.”
É assim necessário, para que possa ocorrer uma alteração de uma decisão quanto á casa de morada de família, que tenham ocorrido circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração do decidido.
Nesta medida, que circunstâncias supervenientes foram invocadas ou se mostram por adquiridas para justificar a alteração do acordo alcançado em Janeiro de 2019?
O facto de decorridos mais de dois anos do divórcio decretado entre requerente e requerido, não ter ocorrido ainda a partilha de bens do casal, nem tendo sido possível o acordo; não ser sustentável a permanência, durante um período prolongado de tempo, dos ex-cônjuges sob o mesmo tecto, nem tal ter sido previsto aquando do acordo alcançado; o facto de, por não lhe ser exigível a permanência na mesma casa que o seu ex-cônjuge, ter arrendado um apartamento T2 que, tendo em conta as idades dos menores e a diferença de sexos, não é já adequado à sua habitação. Por último, que a casa de morada de família, actualmente e desde Setembro de 2020, se encontra desabitada, por o requerido se encontrar detido em prisão preventiva.
Resultando esta alegação adquirida nos pontos 1 a 7 da matéria de facto, tem de se considerar que constituem circunstâncias supervenientes ao acordo alcançado que justificam o pedido de alteração do mesmo.
Não só não é razoável impor-se a permanência de ambos os ex-cônjuges sob o mesmo tecto, por um período de tempo que orça quase os três anos, tendo em conta que o processo de partilhas se encontra ainda em fase inicial, como a idade dos menores desaconselha que partilhem quarto.
Independentemente de se tratar de duas crianças de sexo diferente, ambas se encontram em idades em que os interesses são radicalmente diferentes. A filha mais velha, quase com 14 anos, encontra-se na adolescência, necessitando de espaço próprio e adequado à sua idade e à convivência com amigos. É a existência deste espaço próprio essencial e salutar para o seu desenvolvimento emocional, físico, psíquico, para a sua aprendizagem e socialização.
Não é, assim, viável, impor a uma adolescente a coabitação com irmão, de sexo diferente e ainda criança, com necessidades e interesses diversos, sendo que é esta uma situação que se irá agravar com o decurso do tempo a manter-se a partilha de quarto, tendo em conta que os rendimentos da mãe não lhe permitem outra solução. Defendendo que a idade da menor é uma circunstância relevante vide ainda o voto de vencido proferido pela Srª Desembargadora Laurinda Gemas, no Ac. do TRL de 15/04/21, proc. nº 10316/16.9T8LRS-A-2, disponível in www.dgsi.pt
Ora, o mero decurso do tempo pode constituir circunstância relevante, no caso da existência de dois menores que coabitam no mesmo quarto, conforme aliás considerou o Ac. desta mesma Relação de Coimbra de 24-10-2017 Proferido no proc. nº 273/13.9TBCTB-A.C1, disponível em www.dgsi.pt: “Em sede de relações familiares, o decurso do tempo pode alterar, só por si, as circunstâncias factuais, mormente quando se trata de crianças na primeira infância, pois estas crescem de modo acelerado, física e espiritualmente, à medida que o tempo passa nesses primeiros anos de vida. Por isso, a mera passagem do tempo pode ser relevante para efeitos de alterar uma decisão. O tribunal poderá tomar medidas diversas, quanto à mesma criança e à mesma questão, consoante ela seja recém-nascida (ou tenha um ou dois anos) ou tenha 5, 6 ou 7 anos. E o decurso do tempo também pode alterar as posturas comportamentais dos progenitores em relação aos filhos ou ao outro progenitor, porque o decurso do tempo tende a diluir os ressentimentos e a promover a tolerância e a compreensão das atitudes alheias, mormente quando anteriormente não se dispunha de informação suficiente que só o tempo trouxe.”
Se atentarmos que a partilha deste bem, pressuposto de atribuição conjunta da casa de morada de família, ainda não se efetuou, que as partes não chegaram a acordo para o efeito, que a progenitora não tem meios (que poderia adquirir se efectuadas estas partilhas) para arrendar ou adquirir habitação que satisfaça as necessidades do seu agregado, que não é razoável nem salutar, após divórcio, a manutenção de ambos os ex-cônjuges sob o mesmo tecto e que que os menores vão crescendo e assim se vão alterando as suas necessidades, concluímos que as circunstâncias equacionadas e vigentes aquando deste acordo se alteraram.
Acresce que, entretanto, a situação de pandemia causada pela Covid 19 agravou ainda mais quer as condições económicas, quer as condições de habitabilidade desta família, tendo em conta os períodos de confinamento, de aulas à distância e de teletrabalho forçado.
Por outro lado, o progenitor foi, entretanto, preso preventivamente, pelo que a casa de morada de família se encontra desabitada. É certo que a requerente nela poderia habitar, porque tem esse direito em conjunto com o requerido, mas tratar-se-ia sempre de situação precária, de eventual forçada convivência do ex-casal, que não se vê que beneficie nem os progenitores, nem os menores.
Assim, se um T2 não proporciona condições aos menores para cada um auferir do seu espaço, precioso nestas idades e num período excepcional em que as aulas se processaram também à distância, a casa de morada de família tem todas as condições para albergar a mãe e os filhos e é totalmente desadequada à vivência de uma só pessoa.
Por outro lado, o requerido é proprietário de um apartamento com três assoalhadas e garagem, pelo qual aufere de renda € 400,00, dispondo, assim, ou de outro apartamento onde residir, na eventualidade de cessação da medida de prisão preventiva à qual se encontra sujeito (nos termos dos artºs 1102º e segs. do C.C.) ou de meios (que acrescerão aos do seu trabalho, não sendo alegado que esteja impedido de trabalhar) para arrendar casa que sirva os seus interesses.
Em todo o caso, os interesses dos filhos menores do casal sobrepõem-se aos do requerido e justificam a alteração da medida de atribuição conjunta desta casa de morada de família, para a atribuição exclusiva à requerente e aos menores, mediante o pagamento de uma renda, como o considerou o tribunal recorrido.
DECISÃO
Pelo exposto, julgam os juízes desta relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo requerido e, em consequência, manter nos seus precisos termos a decisão recorrida.
Custas pelo apelante (artº 527º, nº 1 do C.P.C.).
Coimbra, em 26/10/2021