Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
462/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: MANDATO
PROCURAÇÃO
CADUCIDADE
MORTE
Data do Acordão: 05/31/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 265.º, N.º 3; 266.º,N.º 2; 1174.º E 1175.º DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: 1. O mandato e a procuração regem-se por princípios coincidentes, pelo que não divergem as soluções em caso de morte do mandante ou simples representado.

2. Não se extingue a procuração, nem caduca o mandato representativo e é válido o negócio celebrado com ela depois da morte do constituinte, se uma ou outro foram conferidos no interesse de terceiro ou este desconhecia o falecimento

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A..., B..., C... e D..., demandaram, na comarca de Penacova, E..., F..., G..., H..., I..., J... e mulher K... e M..., para que se declare nula a escritura de justificação notarial realizada pelo réu F... em representação de L..., falecido marido da ré E..., com a qual fez registar a aquisição dos três prédios referidos na petição inicial e consequentemente se declare ineficaz em, relação aos autores, a venda que deles fez aos réus J... e mulher K..., com o cancelamento dos registos de aquisição a favor dos compradores e de hipoteca a favor da M..., e bem assim se lhes entreguem os ditos prédios, ou em alternativa se lhes pague a parte do preço da venda que a cada um cabe.
Alegam, em síntese, que os prédios vendidos na sequência do registo lavrado com base da escritura de justificação foram herdados de seus pais (N... e O...) pelo autor António Rocha e seu irmão José Rocha e que foram vendidos após a morte deste, pelo réu F... com procuração outorgada pelo José Rocha (antes de falecer), a quem sucederam os também autores António, José e D....

2. Os réus contestaram. Houve réplica e no prosseguimento da causa foi proferida sentença que a julgou improcedente e absolveu os réu dos pedidos. Os autores não se conformam e recorrem a esta Relação, concluindo:
1) O 1.º Recorrente A... adquiriu, conjuntamente com seu irmão L..., os prédios dos autos, por sucessão dos pais, N... e O...;
2) Não se provou que o L... tenha adquirido tais prédios por doação de seus pais, como resulta da resposta negativa dada ao quesito 10.º;
3) Os mesmos prédios encontram-se descritos no Registo Predial de Penacova e ali inscritos de aquisição, na proporção de metade para cada um, a favor do José e do A..., desde 12 de Fevereiro de 1958;
4) Não podiam, pois, os pais destes, doar, em 1972, prédios que já não eram deles desde 1958, acrescendo que o pai deles, N... faleceu, como ficou provado na al. j) da especificação, em 1/7/1956, isto é 18 anos antes da “pretensa” doação.
5) É falsa a afirmação feita na escritura de justificação de que os prédios não estavam descritos.
6) Com base nos depoimentos das testemunhas o Tribunal “a quo” só podia responder negativamente aos quesitos 2 a 10, impugnando-se tais respostas;
7) O L... tinha plena consciência de que o Recorrente António, seu irmão, eram comproprietários dos prédios dos Autos, como o demonstra não só o facto de este ter assinado o contrato promessa de compra e venda, mas também o contrato de arrendamento rural junto aos autos na audiência de discussão e julgamento, celebrado em 1996.
8) Mesmo aceitando, para meros efeitos de raciocínio, as respostas aos quesitos como foram dadas, sempre a aplicação do direito aos factos, com respeito pelas certidões predial e matricial, conduziria à procedência da acção, isto porque é absoluta mente impossível saber-se, num caso de compropriedade, onde começa e acaba a actuação como comproprietário ou como proprietário único.
9) O L... faleceu em 13/12/99;
10) Deixou como seus únicos e universais herdeiros, além da Recorrida E..., os seus três filhos -José, António e D...;
11) Com tal falecimento, ocorrido antes da celebração da .escritura de compra e venda dos prédios dos autos, transferiu-se automaticamente para a esfera jurídica dos herdeiros a titularidade .dos bens de que era proprietário;
12) A venda celebrada da totalidade dos prédios é nula no que respeita à parte que cabe aos mesmos herdeiros, porquanto o procurador, F..., 2° Recorrido, apenas tinha legitimidade para vender a parte que cabia ao seu mandante e não a parte pertencente aos herdeiros.
13) Trata-se, pois, de venda de coisa alheia, relativamente aos mencionados herdeiros, que, como tal, é ineficaz quando a eles e nula;
14) A acção devia ter sido julgada procedente e provada na sua totalidade.
15) Quando assim se não entendesse, devia, pelo menos, tê-lo sido no que respeita à nulidade da escritura de compra e venda, relativamente aos herdeiros legitimários do “de cujus”;
16) Não decidindo desta forma, o Tribunal “a quo” violou, além do mais, o disposto nos artigos 892°, 896°, 2.133.º, e 2139.º, todos do Código Civil e ainda os artigos 659.º, n° 3, 660.º, n° 2 e 668.º, n° 1 d) todos do Código de Processo Civil.

3. Contra-alegaram os réus em defesa do julgado. Estão colhidos os vistos. Cumpre decidir, tendo em conta os factos provados em 1.ª instância, como se segue:
1) No dia 27 de Outubro de 1999, no Cartório Notarial de Penacova, foi celebrada escritura de justificação, em que consta como primeiro outorgante F..., na qualidade de procurador, qualidade essa conferida por instrumento notarial a que se reporta a certidão de fls. 133, e em representação de L..., casado com E... e como segundos outorgantes G..., H... e I....
2) Em tal escritura declarou o primeiro outorgante, na qualidade em que outorgou que “o seu constituinte dono e legítimo possuidor com exclusão de outrem dos seguintes prédios sitos na freguesia de São Pedro de Alva, Penacova, omisso na Conservatória e inscritos em nome do justificante:
- Número Um - Rústico, composto por terra de cultura com oliveiras, videiras e árvores de fruto, sito em Regada de Lefreu, com a área de mil novecentos e noventa metros quadrados e inscrito na matriz sob o artigo 3.445.
- Número Dois - Rústico, composto de pinhal e mato, sito em Presa, com a área de mil trezentos e noventa metros quadrados e inscrito na matriz sob o artigo 3.506.
- Número Três - Urbano, composto de casa de habitação de rés do chão e um andar sito em Lefreu, com a superfície coberta de cento e trinta metros quadrados, descoberta com duzentos e trinta metros quadrados, adega com duzentos metros quadrados, telheiros com noventa metros quadrados, eira com noventa e cinco metros quadrados, casa da eira com setenta metros quadrados e logradouro com duzentos e cinquenta metros quadrados, inscrito na matriz sob o artigo 804."
3) Declarou ainda que “em meados de mil novecentos e setenta e dois, ajustou contrato verbal de doação e por isso não titulado, com N... e mulher O..., que foram residentes em São Pedro de Alva, Penacova, estando porém precludida a faculdade de outorgaram escritura de doação em virtude do falecimento daqueles que nela deveria figurara como doadores. Que possui os ditos prédios, sem qualquer interrupção, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, cultivando-os, preparando e lavrando a terra, semeando- a, retirando dela os respectivos produtos e frutos, habitando o urbano, procedendo às reparações ao longo do tempo, pagando as contribuições e impostos respectivos; posse que assim exerceu como verdadeiro proprietário que sempre se julgou, era e é dos ditos imóveis, pelo que os adquiriu por usucapião, fundada nessa posse, que exerceu em seu próprio nome, de boa fé, de modo pacífico, contínua e publicamente, por período superior a 20 anos, estando ele justificante impossibilitado de comprovar pelos meios extrajudiciais normais a aquisição do seu direito sobre aqueles prédios, atento o título de aquisição.
4) Foi ainda declarado pelos segundos outorgantes “que por serem verdadeiras, confirmam inteiramente as declarações prestadas pelo primeiro outorgante nesta escritura.”
5) No dia seis de Janeiro de dois mil foi celebrada escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca, em que consta como primeiro outorgante F..., na qualidade de procurador de L..., como segundo outorgante Dr. J... e mulher Dr.ª K... e como terceiro outorgante Carlos Alberto Gonçalves de Campos, na qualidade de procurador de M....
6) Em tal escritura foi dito pelo primeiro outorgante “que em nome do seu constituinte, vende ao segundo, livres de quaisquer ónus ou encargos e pelo preço global de vinte e dois milhões de escudos, que já recebeu, os seguintes imóveis:
a) por vinte e um milhões de escudos o prédio urbano sito em Lefreu, freguesia de São Pedro de Alva, Concelho de Penacova, inscrito na matriz sob o artigo 804.
b) por quinhentos mil escudos, o prédio rústico, sito em Regada de Lefreu freguesia de São Pedro de Alva, inscrito na matriz sob o artigo 3445.
c) por quinhentos mil escudos, o prédio rústico si to em Presa, freguesia de São Pedro de Alva, inscrito na matriz sob o artigo 3 506.”
7) Foi ainda dito pelos segundos outorgantes “que aceitam esta venda, que o prédio urbano ora adquirido se destina a habitação própria permanente.”
8) Os segundos e terceiro outorgantes disseram ainda “que, também, pela presente escritura, a Caixa Geral de Dep6sitos,S.A., concede aos segundos outorgantes um empréstimo no Regime Geral de Crédito, da quantia de vinte e dois milhões de escudos, importância de que estes se confessam desde já solidariamente devedores.”
9) N... e O... eram pais de L... e de A....
10) N... faleceu em 1 de Julho de 1956.
11) O... faleceu em 12 de Janeiro de 1980.
12) L... era pai de B..., C... e D....
13) L... faleceu no dia 14 de Dezembro de 1999, no estado de casado com E...
14) Entre L..., casado com E... e A..., como primeiros outorgantes e J... e K...., como segundos outorgantes, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda cujo teor consta de fls.56 e 57 dos autos.
15) Desde 1956, José Ribeiro da Cunha administrou e geriu os prédios identificados em 2), cultivando-os, preparando e lavrando as terras, semeando-as, retirando delas os respectivos produtos e frutos, aí morando aquando das suas estadias em Lefreu, recebendo e pagando as contas, despesas contribuições e impostos e sendo o único a dar ordens ao caseiro Cordeiro.
16) O que fez sem qualquer interrupção.
17) A vista de toda a gente.
18) Sem oposição de quaisquer dos Autores.
19) E tais actos eram praticados sem o auxilio ou participação de qualquer dos Autores.
20) E nomeadamente do primeiro Autor, que sempre morou na Parede e só vinha ao local a convite do L....
21) O L... e a esposa E... passaram procuração ao Autor José Estácio em 24 de Setembro de 1999, para este proceder à venda dos prédios aludidos em 2).
22) Procuração que foi mais tarde revogada em virtude de o Autor José Estácio ter muito que fazer e não poder cumprir o desejo de seu pai.
23) Quando se deslocaram ao local dos imóveis em visita e ao pretenderem apoderar-se dos móveis aí existentes, os, outros Autores foram alertados pela Sr.ª Trindade que os mesmos constavam de um inventário já acordado com o comprador.
24) Pela venda aludida em 5) e 7) e como sinal e início de pagamento, no início de Setembro de 1999, o L... recebeu 2 500 000$00 da. Empresa Imobiliária P..., empresa encarregada da venda.
25) Dessa importância o L... enviou à P... um cheque de 500 000$00 como primeiro pagamento da comissão acordada pela venda.
26) E entregou ao filho António a quantia de 1 000 000$00 para este liquidar uma letra pessoal, através de um cheque passado sobre o banco BPI.
27) E os restantes 1000 000$00 foram gastos pelo L... nas despesas da casa, médicos, farmácia e hospitais.
28) No dia da outorga da escritura aludida em E) os compradores pagaram apenas a quantia de 19.500000$00.
29) Tendo tal quantia sido paga mediante dois cheques passados pelos compradores : um cheque de 1.862.900$00 passado ao Sr João Tavares, da P..., sendo 1.500.000$00 a parte restante da comissão acordada e 362.900$00 referente a despesas apresentadas e um cheque de 17.637.000$00 passado ao procurador F..., que o entregou a E... e depositado na sua conta bancária na Agência do BPI em Parede.
30) Em 12 de Outubro de 1999, fez o seu então marido L..., testamento a seu favor.


4. Com estes factos a sra. juiz considerou que a situação jurídica dos prédios correspondia à que foi objecto da escritura de justificação notarial e, partindo do pressuposto de que a procuração utilizada para outorga da escritura de venda manteve a validade após a morte do representado – o falecido L... – considerou válida a venda e julgou a acção improcedente.
O recurso dos autores assenta na dupla tese da nulidade da escritura de justificação, por o seu objecto não corresponder ao direito justificado, e na não produção de efeitos da procuração para além da morte do representado José Rocha. Basicamente são estas duas questões que marcam o sentido das conclusões alegatórias e estas, por sua vez delimitam o objecto da apelação.
Pelo que nos é dado aperceber, a situação de facto em litígio pode resumir-se no seguinte: o falecido José Rocha era casado, em segundas núpcias, com a ré E..., a favor de quem teria feito testamento, e tinha três filhos do seu primeiro casamento com O..., que são os autores António Estácio, José Estácio e João Estácio; alegando-se que ele (José Rocha) e o irmão António Rocha tinham feito partilha (de facto) dos bens deixados pelos pais, terá ficado ele (José Rocha) com os prédios referidos nesta acção, enquanto o António terá ficado com outros, que até já terá vendido, natural seria que lhe fosse facultado, ainda em vida, dispor dos que desse modo lhe couberam.
E a estratégia foi o recurso à escritura de justificação, registo de aquisição com base nela e escritura de venda. Foi feito contrato promessa de compra e venda e do sinal ainda coube algum ao filho António Estácio, como já vem provado. O restante do preço pago no acto da escritura foi já entregue pelo procurador à E..., viúva do José da Rocha.
Depois é que vieram os problemas, trazidos pelo irmão António e pelos filhos do falecido José. E a questão que colocam é esta: os prédios eram dos pais do José Rocha e do António Rocha e foram herdados por ambos. Não houve partilhas, e até já estava registada a aquisição em nome de ambos, na proporção de metade para cada um, desde 12/02/1958. Logo, os prédios pertenceriam aos dois irmãos e não apenas ao José Rocha; e a parte deste foi, por morte, deferida aos filhos, também ora autores. Por tudo isto a venda feita pela escritura de 6 de Janeiro de 2.000 é ineficaz relativamente aos autores, para quem foi vendida coisa alheia.

5. Posto isto, vejamos. Há que ter em linha de conta que a questão da escritura de justificação está, neste momento, ultrapassada. Com efeito, tal escritura serviu apenas para, com base nela, se proceder ao registo de aquisição a favor de quem declarou perante o notário e confirmou por testemunhas que tinha a posse dos prédios há mais de 20 anos e assim os adquiriu por usucapião. O registo - que a nosso ver não tem, neste caso, o efeito presuntivo da existência do direito, previsto no artigo 7.º do Código do Registo Predial ( cfr. acórdão de 06/06/2000, em www.dgsi.pt , proc. n.º 1289/2000, por nós relatado.) - quando posto em crise transporta invariavelmente para o justificante o ónus da prova na acção de impugnação, como é o caso.
Na verdade, a escritura de justificação não é um instrumento de transmissão do direito, como seria uma escritura de venda, doação ou partilha; nem é apta a declarar o direito, como é a sentença, na medida em que o notário não tem os poderes que só o tribunal tem. A escritura de justificação não passa de um mero instrumento de constatação de declarações produzidas perante o notário. Por isso, quando é usada registralmente, para estabelecimento ou reatamento do trato sucessivo, nunca o registo pode fazer presumir o direito, na medida em que não assenta num instrumento de criação ou de transmissão dele.
Logo, quem promoveu o registo com base na escritura de justificação tem agora, em tribunal, oportunidade de fazer a prova de que efectivamente adquiriu o direito que já diz ter adquirido no acto notarial de justificação. Por isso, o que conta agora é a prova da posse exclusiva por tempo bastante para usucapir e não a análise da escritura de justificação. Ou seja, o que está em causa é saber se o José Rocha adquiriu por usucapião os prédios que vendeu, ou se não adquiriu e por isso devem ser considerados bens comuns, uma vez que os adquiriu por sucessão de seus falecidos pais, de quem também o autor António é herdeiro.
Na 1.ª instância foi decidido que os adquiriu, por usucapião, de acordo com os factos provados na resposta aos pontos 2.º a 10.º da base instrutória. Neles não se diz e também se não quesitou que o poder de facto exercido pelo José Rocha sobre os prédios correspondia a uma intenção de se considerar proprietário exclusivo, mas o sentido dos articulados dos réus, é que o José Rocha se considerava como tal e não logrou provar-se a tese oposta. De resto, esse poder de facto sempre faria presumir a posse do José Rocha, em face da que poderia ser exercida em nome do irmão, como resulta do artigo 1252.º, n.º 2 do Código Civil.
Os apelantes põem em crise a prova desses quesitos, alegando que a prova testemunhal jamais poderia conduzir a esse resultado, indicando os depoimentos dos autores António Estácio, José Estácio e João Estácio, mas estes são meros depoimentos de parte e até foram requeridos e admitidos como tal. Logo só valem como confissão, na medida em que admitam factos que lhes sejam desfavoráveis e não é o caso. Tudo o que digam em seu favor (e foi isso que fizeram os depoentes) é absolutamente irrelevante como meio de prova.
Depois, na fundamentação da sua decisão, a sra. juiz teve o cuidado de referir que valorou os depoimentos das testemunhas que sufragavam a tese de que os irmãos António e José, apesar de não terem procedido a inventário judicial dos bens herdados nem à respectiva escritura de partilhas, dividiram-nos por acordo e cada um dispôs deles conforme o acordado. O António terá ficado com outros bens que até já terá vendido. E se o fez, tal só foi possível com a colaboração do irmão, ou recurso à escritura de justificação, ou mera tradição de facto. Disso mesmo se convenceu o tribunal, não só perante os depoimentos das testemunhas, mas também com a ajuda de escritos particulares do José e de correspondência trocada com o irmão.
Por isso, apesar de não ter sido levado ao questionário qualquer quesito que visasse uma resposta directa no sentido da constatação desta tese, o certo é que as respostas aos quesitos 2.º a 10.º a teve em linha de conta, como se verifica das referências feitas na fundamentação. Por isso dispensamos o alargamento da matéria de facto, que implicaria a anulação do julgamento.
E nem a afirmação de que os prédios estavam registados em nome dos dois irmãos impede esta conclusão. Neste conspecto, os apelantes alegam que a aquisição dos prédios está registada em nome dos irmãos, conforme certidão que juntaram no decorrer da audiência, mas nem só não conseguimos constatá-lo, como ainda assim tal circunstância não impedia que o José Rocha os tivesse adquirido por usucapião, uma vez provada a posse por mais de 20 anos a contar de 1958, data do registo.
O argumento de que ambos outorgaram no contrato promessa de compra e venda, ainda que perturbador, também não é de todo impeditivo da posse do José, na medida em que a posse é um facto jurídico sujeito a prova e a razão de ambos terem outorgado o documento também o é. Logo, tudo se passou no domínio da convicção do julgador que legitimou a decisão de facto (artigo 655.º do Código de Processo Civil).

6. Assim, provada a aquisição dos prédios em análise por banda do José Rocha outra questão se coloca: a de saber se a procuração usada depois da sua morte manteve a eficácia até à conclusão do acto da escritura de venda.
A sentença recorrida diz que sim, porque no contexto da procuração vem incluída a menção expressa de que é conferida no interesse de terceiros e por isso irrevogável.
Ora, a procuração cuja disciplina vem regulada nos artigos 262.º e seguintes do Código Civil constitui um instrumento de representação, mediante o qual o representante (procurador) actua em nome do representado (constituinte), sendo na esfera jurídica deste que se produzem desde logo todos os efeitos (artigo 258.º do Código Civil).
Não confundir com o mandato, que é um contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra (artigo 1157.º do Código Civil). Aqui o mandatário actua em nome próprio e obriga-se a transferir os efeitos para o mandante, conforme os termos do contrato (artigos 1161.º e seguintes). Pode haver mandato sem representação (artigo 1180.º) e mandato com representação (1178.º), conforme seja ou não acompanhado de procuração, e pode haver representação sem mandato (artigo 258.º).
No mandato a lei define soluções para o caso de morte do mandante (cf. artigos 1174.º, n.º 1 e 1175.º do Código Civil); mas na procuração nada diz. Parece, no entanto não haver dúvidas de que a morte faz extinguir (caducar) os poderes de representação (a procuração). Há todavia que acautelar interesses de terceiros que dependam da procuração. Por isso o n.º 2 do artigo 266.º do Código Civil estatui que “…as restantes causas extintivas da procuração [onde se deve incluir a morte] não podem ser opostas a terceiro que, sem culpa, as tenha ignorado”.
Mantêm, por isso, eficácia os negócios celebrados pelo representante após a morte do representado se o outro contraente ignorava, sem culpa, a morte deste. Assim, se os réus compradores ignoravam a morte do vendedor José Rocha quando outorgaram na escritura de compra e venda com o seu representante, esta mantêm-se válida e eficaz.
Do elenco dos factos provados não consta qualquer alusão ao conhecimento ou não da morte do José Rocha por banda dos réus compradores José António Silva e mulher; mas já se pode constatar que no artigo 13.º da sua contestação, a fls. 55, consta a afirmação de que “quando outorgaram na escritura de compra e venda não sabiam da morte de L...”.
Parece fora de dúvida de que se defendem aqui por excepção. Os autores responderam, mas não fizeram qualquer alusão a este facto, pelo que ele deve ser considerado assente, nos termos do disposto nos artigos 487.º, n.º 2 e 490.º, 1 e 2 do Código de Processo Civil. Logo, daqui se retira, sem mais, que a venda dos prédios titulada pela escritura de 6 de Janeiro de 2000 é eficaz.
Note-se também que bem podia ser eficaz a procuração se ainda não tivesse cessado a relação jurídica que lhe serviu de base (artigo 265.º, n.º 1 do Código Civil). Ora do próprio instrumento notarial que institui poderes de representação consta clara e expressamente que o representado incumbiu o seu representante de executar as tarefas concretas que, a partir do contrato promessa de venda, passariam pela escritura de justificação, pelo registo de aquisição e terminaria na venda aos promitentes compradores.
Por outro lado o procurador e réu F... alega, na sua contestação (cfr. artigos 43.º e 44.º, a fls. 68) que aceitou o “mandato” após ter posto a condição de o mandante L... dar conhecimento dos factos aos filhos e deles receber concordância.
Os autores, no seu articulado de resposta, incluem os ditos artigos 43.º e 44.º na enumeração dos artigos que dizem contestar, mas o certo é que apenas contestam os factos que alegadamente suportariam a invocada ilegitimidade dos réus. Se bem reparamos, o articulado de resposta não passa da oposição à matéria da ilegitimidade, na sequência do que se diz que é falso tudo o que se alega nos artigos enumerados no artigo 22.º (196), mas que em boa verdade não se diz que é falso o facto de o réu F... ter dito que aceitava o mandato.
Claro que não é pelo facto de se falar em mandato que é mandato. Será mandato se e na medida em que o destinatário aceita a incumbência do mandante, na medida em que aí haverá um encontro de vontades (acordo), mediante o qual uma das partes aceita e por isso se obriga a realizar os negócios por conta da outra.
Sendo evidente que é para aí que os factos apontam, então concluiremos que há aqui um mandato representativo, ou mandato com representação. ( Cf. a propósito a fundamentação do acórdão do STJ, de 03/06/1997, CJSTJ, Ano V, 1997, tomo II, págs. 112 e 13) E neste caso também a morte do mandante não faz caducar o mandato se não for conhecida do mandatário (artigo 1174.º, 2.ª parte, do Código Civil). Aqui o regime coincide com o da procuração, como aliás em toda a extensão de ambos os institutos.
A morte do mandante também não faz caducar o mandato quando este é conferido no interesse de terceiro (dito artigo 1175.º, 1ª parte), pelo que assume aqui particular importância o conceito de interesse de terceiro. A procuração diz (ela própria) que é conferida no interesse de terceiro, mas não será por isso que o é. Sê-lo-à se isso mesmo resultar da própria relação jurídica que lhe subjaz. E neste particular já vimos que a relação jurídica determinante da representação é estabelecida também no interesse dos promitentes compradores, pela razão óbvia de que é do seu interesse concluir o negócio que prometeram celebrar e em nome do qual já tinham entregue certa quantia em dinheiro a título de sinal e princípio de pagamento.
Logo, trata-se efectivamente duma procuração e de um mandato em favor de terceiro. E foi esta relação jurídica, assim conferida no interesse de terceiro, que conferiu a irrevogabilidade à procuração; não foi o facto de nela se dizer que é irrevogável. Tendo sido, como foi, conferida no interesse de terceiro, esta procuração só podia ser revogada com justa causa (cfr. n.º 3 do artigo 265.º do Código Civil).
Não foi revogada, por isso manteve a sua eficácia para a realização do negócio a que se destinava, mesmo depois da morte do constituinte. Também o mandato, assim conferido no interesse de terceiro, não caducou por morte do mandante (artigo 1175.º do Código Civil).
Assim e em conclusão:
- O mandato e a procuração regem-se por princípios coincidentes, pelo que não divergem as soluções em caso de morte do mandante ou simples representado.
- Não se extingue a procuração, nem caduca o mandato representativo e é válido o negócio celebrado com ela depois da morte do constituinte, se uma ou outro foram conferidos no interesse de terceiro ou este desconhecia o falecimento. ( veja-se Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, 4.ª edição, vol. I, 246 e 247 e vol. III da 3.ª edição, págs. 737 a 741)

Assim sendo, mantém-se a decisão de facto que deu os prédios por adquiridos pelo José Rocha e decisão de direito que neles repousa, pelo que improcedem as conclusões da apelação e a sentença recorrida será de manter.


7. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo dos apelantes.
Coimbra

Relator: Coelho de Matos; Adjuntos: Custódio Costa e Ferreira de Barros