Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3550/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: PENHORA
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
Data do Acordão: 02/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CONDEIXA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 824.º, N.º 3 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; ARTIGO 59.º, N.º 2 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
Sumário: 1. O mecanismo excepcional do n.º 3 do art. 824.º do Código de Processo Civil - na redacção anterior à que resulta do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8/3, ou do correspondente n.º 4 do artigo 824.º na redacção deste Decreto-Lei - não se destina a proporcionar ao executado o estilo de vida que teria se não fosse a penhora, mas antes obviar a situações em que a adequação legal do art. 824º, n.º 1, alínea a) não salvaguarda a sua sobrevivência digna.
2. O equilíbrio entre o direito do credor à satisfação do seu crédito e o direito do devedor à garantia de um mínimo de subsistência dele próprio e do seu agregado familiar deve ser encontrado na referência ao salário mínimo nacional, estabelecido nos termos do artigo 59.º, 2, a) da Constituição da República.

3. Não é de isentar de penhora, nos termos do citado n.º 3 do artigo 824.º do Código de Processo Civil, o vencimento do executado, quando a diferença entre o seu montante líquido, por um lado, e as despesas com a renda de casa, água, luz e gás, adicionada ao montante da penhora, por outro, é superior ao salário mínimo nacional.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. Depois de nomeado à penhora 1/3 do vencimento do executado A..., nos autos de execução ordinária n.º 295/2000, a correr termos na comarca de Condeixa, veio este requerer a isenção da penhora ou a sua redução a 1/6.
Alegou, em síntese, que o seu agregado familiar é composto por si, pela sua mulher e por um filho, estudante de 19 anos de idade, e que aufere a quantia mensal líquida de 1.480,58 €, despendendo, a título de renda de casa, a quantia de 376,02 €, de água o montante de 25,42 €, de luz 66,19 € e de gás 56,00 € , para além de despesas médicas, de alimentação, vestuário, transportes e educacionais que estima não serem inferiores a 955,00 € e ainda de despesas de deslocação que estima em 847,00 € por mês.
Após audição da exequente Caixa Geral de Depósitos e a apreciação documental da prova apresentada, a sra. Juiz atendeu em parte ao requerido e ordenou a penhora de 1/6 do vencimento.

2. Inconformado o requerente/executado agrava da decisão e conclui:
1) A penhora ordenada nos presentes autos constitui manifesta violação do disposto no artigo 824°, n. 3 do CPC.
2) As despesas dadas como não provadas constituem facto notório, não carecendo de prova, nos termos do disposto no artigo 514° do CPC.
3) Aliás, de acordo com a decisão proferida pela autoridade administrativa no sentido de deferimento de apoio judiciário na modalidade de dispensa total de taxa de justiça e demais encargos com o processo, as mesmas devem e têm necessariamente de ser tidas em conta, tendo em vista o apuramento do rendimento líquido disponível do agregado familiar.
4) No caso das despesas de alimentação vestuário e calçado, varia também em função do número de elementos que constituem o agregado familiar, em aplicação do princípio do valor per capita do rendimento auferido pelo agregado familiar.
5) O tribunal a quo deveria ter, face ao exposto, isentado de penhora o vencimento auferido pelo ora recorrente.
6) Pelo que, ao decidir como decidiu, isto é, mantendo a penhora do vencimento do ora recorrente, atento o supra exposto, o Tribunal a quo colocou em causa a subsistência do executado e do seu agregado familiar.
7) Ao manter a penhora do referido vencimento, o Tribunal a quo foi contra os princípios constitucionais que garantem ao cidadão e ao seu agregado familiar uma vida condigna, princípios estes transpostos no artigo 824° do CPC.
8) Tendo em conta as circunstâncias de facto supra referidas, a manutenção da referida penhora constitui manifesta violação do disposto no artigo 824°, n. 3 do CPC.
9) Qualquer interpretação em sentido contrário do vertido no referido preceito legal, é manifestamente inconstitucional por violação do disposto no artigo 59° da CRP, inconstitucionalidade esta que se invoca.
10) A decisão recorrida deve ser substituída por outra que isente de penhora o vencimento do ora recorrente.


3. Contra-alegou a exequente em defesa do julgado. Foi proferido despacho de sustentação. Estão colhidos os vistos. Cumpre decidir.
Além dos factos referidos supra no ponto 1., foram ainda dados por assentes os seguintes factos:
­ o agregado familiar do executado A... é composto por si, pela sua mulher e por um filho, estudante de 19 anos de idade;
­ o A... aufere a quantia mensal líquida de e 1.480,58 €, despendendo, a título de renda de casa, a quantia de e 376,02 €, de água o montante de e 12,71 € (considerando que o documento de fls. 373 corresponde a 2 meses de consumo) e de luz E 66,19 €.

4. Antes de tudo o mais, tenha-se em linha de conta que a redução da penhora a 1/6 do vencimento não esteve, desde a primeira hora, excluída pelo executado, na medida em que requereu (cfr. fls. 38 a 43 destes autos) a redução da penhora a 1/6 para o caso de ser desatendida a isenção. Ou seja, a questão da impossibilidade de subsistência, apesar de colocada quando fez esse requerimento, não deixou de parte a hipótese alternativa da redução da penhora de 1/3 para 1/6 do vencimento. Note-se que no ponto 27 do respectivo conteúdo o requerente escreve que “… a penhora de 1/3 do vencimento é manifestamente excessiva, pelo que deverá a mesma ser reduzida a 1/6, perante as condições económicas do ora oponente e do seu agregado familiar, do qual, repete-se, é o único sustento”.
Perante a decisão que reduziu a penhora do seu vencimento de 1/3 para 1/6, o exequente, que goza do apoio judiciário, vem agora esgrimir a impossibilidade de subsistência com a penhora de 1/6, correspondente a 246,76 € do vencimento líquido, apelando à inconstitucionalidade da decisão por interpretação da norma do artigo 824.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12/12, em violação do disposto no artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa.

5. Ora, o que devemos, antes de mais, referir é que está fora de questão a inconstitucionalidade da norma que resulta das disposições conjugadas do n.º 1, a) e b) e n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil, face à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/2002, de 09/07/2002, publicado no DR, 1.ª série -A, de 02/07/2002 e do acórdão do mesmo tribunal n.º 96/2004, de 11/02/2004, DR, 2.ª série, de 01/04/2004.
Para o que aqui importa já se sabe que é inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana decorrente do princípio do Estado de Direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1.º, 59.º, n.º 2, alínea a), e 63.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa, a norma que resulta da conjugação do disposto na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil (na redacção emergente da reforma de 1995-1996), na parte em que permite a penhora de uma parcela do salário do executado que não é (aqui supostamente) titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que priva o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional; ( Cfr. acórdão do TC, n.º 98/2004, de 11/02/2004, DR, II, de 01/04/2004)
Decorre daí que o vencimento do executado não pode ser penhorado na medida em que não fique garantido rendimento equivalente ao salário mínimo nacional que “contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o mínimo dos mínimos não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo …” porque “a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário”. ( Acórdão citado.)
E como se pode constatar da fundamentação da decisão recorrida, este pensamento foi salvaguardado, quando se escreveu que se trata “de um benefício excepcional que visa atender a situações específicas, concretas e particulares de sobrevivência com um mínimo de dignidade do executado e do seu agregado familiar. A decisão do Juiz é, assim, fundada na equidade, fazendo uma ponderação entre o direito do executado em assegurar a satisfação das suas necessidades básicas e do seu agregado familiar e o direito do exequente em ser pago do crédito exequendo”.
Foi só depois disto que em primeira instância se decidiu baixar a penhora de 1/3 para 1/6 do vencimento, afastando a hipótese de isenção após se observar que “o montante mensal que o executado receberá, descontada a penhora de 1/6 no seu vencimento, assegura de forma suficiente as necessidades do seu agregado familiar”.
De facto, o mecanismo excepcional do n.º 3 do art. 824.º do C.P.C. não se destina a proporcionar ao executado o estilo de vida que teria se não fosse a penhora, mas antes obviar a situações em que a adequação legal do art. 824º, n.º 1, alínea a) do C.P.C. não salvaguarda a sua sobrevivência digna”. É aqui que está a diferença. O equilíbrio entre o direito do credor à satisfação do seu crédito e o direito do devedor à garantia de um mínimo de subsistência dele próprio e do seu agregado familiar deve ser encontrado na referência ao salário mínimo nacional, estabelecido nos termos do artigo 59.º, 2, a) da Constituição da República.

6. Vem provado que o agravante aufere um vencimento líquido mensal de 1.480,58 € e que gasta 454,92 € com despesas de renda de casa, água e luz. Nas conclusões da alegação, que, como se sabe, definem o âmbito do recurso, face ao disposto nos artigos 684.º, 2 e 3 e 690.º, 1, 2 e 4 do Código de Processo Civil, o agravante pretende a alteração da decisão recorrida quanto à matéria de facto provada, alegando que o que não foi dado como provado devia tê-lo sido, porque se trata de “factos notórios”.
Ora, o que foi dado por não provado foi que gastasse 56,00 € no consumo do gás, 955,00 € nas despesas médicas, de alimentação, vestuário, transportes e educacionais e 847, 00 € de despesas de deslocação, tudo por estimativa.
Se a primeira ainda se pode admitir como facto notório, já as duas últimas se nos afigura claramente que não. Acresce ainda o facto de as indicadas despesas, estimadas, de saúde, alimentação e educação se inscreverem no quadro dos bens de subsistência que o salário mínimo visa garantir. Donde decorre que os gastos a ter em conta na matéria de facto provada são os já indicados 454,92 €, mais os 56,00 € de consumo de gás, o que dá o total de 510,92 €. São estes os factos provados a acrescentar aos já acima referidos no ponto 3.
Deles decorre que o agravante aufere um vencimento líquido de 1.480,58 €, e que a penhora de 1/6, no montante de 246,76 €, adicionada às despesas de 510,92 € totalizam 757,68 € que, subtraído ao montante do vencimento líquido deixa de resto 722,90 €, quantia superior ao salário mínimo. Logo, resulta garantida, neste caso, a observância da inconstitucionalidade da norma do artigo 824.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil e as conclusões são de improceder, devendo ser mantida a penhora de 1/6 do vencimento liquido do executado.
Concluindo:
­ O mecanismo excepcional do n.º 3 do art. 824.º do Código de Processo Civil - na redacção anterior à que resulta do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8/3, ou do correspondente n.º 4 do artigo 824.º na redacção deste Decreto-Lei - não se destina a proporcionar ao executado o estilo de vida que teria se não fosse a penhora, mas antes obviar a situações em que a adequação legal do art. 824º, n.º 1, alínea a) não salvaguarda a sua sobrevivência digna
­ O equilíbrio entre o direito do credor à satisfação do seu crédito e o direito do devedor à garantia de um mínimo de subsistência dele próprio e do seu agregado familiar deve ser encontrado na referência ao salário mínimo nacional, estabelecido nos termos do artigo 59.º, 2, a) da Constituição da República.
­ Não é de isentar de penhora, nos termos do citado n.º 3 do artigo 824.º do Código de Processo Civil, o vencimento do executado, quando a diferença entre o seu montante líquido, por um lado, e as despesas com a renda de casa, água, luz e gás, adicionada ao montante da penhora, por outro, é superior ao salário mínimo nacional.

7. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao agravo, confirmando a decisão que ordena a penhora de 1/6 do vencimento líquido do executado.
Custas a cargo do agravante, sem prejuízo do apoio judiciário.
Coimbra,