Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
432/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JORGE ARCANJO
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA EXCETIO NON ADIMPLETI
Data do Acordão: 10/21/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: REC. APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Área Temática: CÓDIGO CIVIL
Legislação Nacional: ART. S 428° E 1207° DO C.C.
Sumário:
I- O instituto da chamada exceptio non adimpleti contractus - art. 428° do C. C. - tem o seu âmbito de aplicação nas obrigações sinalagmáticas, impondo que se tome em conta o princípio da boa fé e o apelo à ideia de abuso de direito.
II- Tal excepção dilatória de direito material ou substantivo não exclui definitivamente o direito do autor, apenas o paralisa temporariamente.
III- A excepção do não cumprimento contratual deve considerar-se admissível não só nos casos de incumprimento temporário, cumprimento parcial ou defeituoso, mas também nas situações de incumprimento definitivo.
IV- O dono da obra, face ao cumprimento defeituoso pelo empreiteiro, pode recusar o pagamento do preço enquanto não forem eliminados os defeitos, embora tenha de, previamente, respeitar e subordinar-se aos procedimentos previstos nos art. s 1221°; 1222° e 1223° do C. C.
Decisão Texto Integral: Apelação nº432/03
Acordam no Tribunal da Relação de COIMBRA
I – RELATÓRIO
A Autora – ... – instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca da FIGUEIRA DA FOZ, acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus - DONZÍLIA ... e marido JÚLIO ....
Alegou, em resumo:
Os Réus, com o apoio de um regime de incentivos ( RIME ), pretendendo remodelar o seu estabelecimento de ourivesaria “ Água Azul “, contactaram, para o efeito, José Manuel..., que elaborou o respectivo orçamento, no valor de 11.700.000$00, acrescido de IVA, aceite por aqueles.
Após a emissão do orçamento, José ..., constituiu a sociedade Autora, para a qual transferiu todos os direitos e obrigações inerentes ao contrato celebrado com os Réus, com a anuência destes.
A Autora, em execução daquele orçamento, executou as obras de remodelação da ourivesaria, no valor global de 13.689.000$00.
A obra foi entregue e aceite, sem reservas, pelos Réus, tendo a Autora, em 15/7/99, emitido a factura correspondente ( fls.8 ), mas aqueles só entregaram a quantia de 2.000.000$00, ficando por liquidar o restante.
Pediu a condenação dos Réus a pagarem solidariamente a quantia de 12.507.230$00, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa de 12%, sobre o montante de 11.689.000$00, até efectivo e integral pagamento.
Contestaram os Réus, defendendo-se, em síntese:
As obras foram solicitadas a José Manuel Delgadinho para a sociedade “ Água Azul Lda “, de que o Réu marido é sócio-gerente, havendo sido acordado que, por motivos fiscais, seriam realizadas em nome de Fernando Rodrigues Monteiro, pelo que arguíram a excepção dilatória da ilegitimidade activa e passiva.
As obras foram pagas ao José Manuel Delgadinho, num valor total de 13.689.000$00.
Por seu turno, não foram realizados alguns dos serviços contratados e outros apresentaram defeitos.
Concluíram pela absolvição da instância e subsidiariamente pela absolvição do pedido.
No saneador julgou-se improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade das partes, afirmou-se tabelarmente inexistirem outras excepções, seguindo-se o saneamento do processo.
Na audiência de julgamento, os Réus requereram a eliminação do quesito 12º - ( “ os Réus apenas entregaram à Autora a quantia de 2.000.000$00 por conta do montante total das obras realizadas descriminadas no quesito 9º? ”) - , alegando que o recibo referido na alínea B) - (“ Em 19.Maio.99 Fernando Rodrigues Monteiro declarou ter recebido de “ Ourivesaria Água Azul Lda “ a quantia de 13.689.000$00 proveniente da factura nº168 ) - faz prova plena quanto ao pagamento da obra, não sendo, por isso, admissível outro meio de prova, designadamente a testemunhal, por imperativo do disposto nos arts.221 e 394 do Código Civil.
O Ex.mo Juiz de Círculo indeferiu a reclamação, argumentando que a alínea B) dos factos assentes não faz prova do pagamento à Autora e não estando em causa o teor do contrato, mas antes o pagamento, este não está sujeito a qualquer limitação de prova.
Os Réus interpuseram recurso de agravo desta decisão, em cuja motivação concluíram nos seguintes termos:
1º) - A recorrida deve juntar aos autos o recibo ou factura dos 2.000.000$00;
2º) - É claríssimo que o documento traduz o pagamento das obras pelos recorrentes;
3º) - Tal pagamento, nos termos dos arts.221 e 394 do CC não poderia ser sujeito a prova testemunhal, como foi.
4º) - O quesito 13º deveria ser considerado provado;
5º) - Foram violados os arts.221 e 394 do CC.
Contra-alegou a Autora, preconizando a improcedência do agravo.
Concluído o julgamento, foi proferida sentença, decidindo-se:
a) - Condenar os Réus, Donzília de Jesus Maranhão Bica e Júlio M. Miranda Bica, a pagar à Autora, FIGUEIRARTE
— Construção Civil, Lda, a quantia de € 58.349,38 (cinquenta e oito mil, trezentos e quarenta e nove euros e trinta e oito cêntimos) —- correspondente a Esc. 11.698.000$00 --, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal para dívidas de natureza comercial, vencidos e vincendos, contabilizados desde 16/07/99 até efectivo pagamento;
b) - Condenar os Réus nas custas do processo.
Os Réus, inconformados com a sentença condenatória, dela interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1º) - Não foi tomado em conta o recibo junto aos autos e constante da matéria de facto assente, já que o Fernando Rodrigues Monteiro agia como “testa de ferro” do Delgadinho. Daí a violação do artigo 374 do Cód.Civil.
2º) - Mas mesmo que assim não fosse, aos recorrentes deveria ser concedido o direito do não pagamento da sua prestação, enquanto a recorrida não cumprisse a sua. Daí a violação do artigo 428 Cód.Civil.
3º) - Além disso foram cometidas várias nulidades como se verifica nas respostas aos quesitos que são contraditórias, dando a mesma matéria de facto provada e não provada, o que implica a anulação da decisão recorrida, nos termos do artigo 712 CPC.
Os apelados não contra-alegaram.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. – Delimitação do objecto dos recursos:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), impondo-se decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras ( art.660 nº2 do CPC ).
Por seu turno, no nosso sistema processual civil, os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.
2.2. - O recurso de AGRAVO:
A questão essencial do agravo contende com a natureza e valor probatório do documento de fls.18, junto pelos Réus com a contestação.
Com efeito, segundo os agravantes, o documento/recibo faz prova pela quanto ao pagamento do preço da obra, pelo que este facto jamais poderia ser controvertido e o tribunal ao admitir prova testemunhal sobre o pagamento, violou os arts.221 e 394 do Código Civil.
O documento de fls.18 é um recibo emitido, em 19/5/99, por Fernando Rodrigues Monteiro, o qual declara ter recebido da “ Ourivesaria Água Azul Lda “ a quantia de 13.689.000$00 proveniente da factura nº168.
Trata-se de um documento particular ( art.363 nº1 e 2, 2ª parte, do Código Civil ) emitido por um terceiro, cuja autoria não foi impugnada, ficando, assim, automaticamente reconhecida, ou seja, que o mesmo provém da pessoa que o subscreveu e que a sua declaração emanou do respectivo subscritor, tal como resulta do art.374 nº1 do Código Civil, adquirindo apenas força probatória formal, reportada ao aspecto extrínseco do mesmo.
Contudo, isto não significa que a declaração nele contida também seja verdadeira, ou seja, que assuma força probatória material.
No que se refere à força probatória material dos documentos particulares, apenas se consideram plenamente provados os factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante ( arts.376 e 542 do Código Civil ).
Enquanto que os documentos autênticos adquirem força probatória material erga omnes, os documentos particulares apenas provam inter partes e daí que só possam ser invocados com valor probatório pleno pelo declaratário contra o declarante, já em relação a terceiros só vale como elementos de prova a apreciar livremente pelo tribunal.
Acontece que o documento de fls.18 não é da autoria de nenhuma das partes, mas de um terceiro estranho ao processo, logo não faz prova plena do pagamento pelos Réus do preço da empreitada à Autora.
Clarificada a natureza e valor probatório do documento, convirá acentuar que o mesmo não corporiza a formalização do contrato de empreitada outorgado entre os Réus ( donos da obra ) e o empreiteiro, José Manuel Delgadinho, que, com o consentimento dos Réus, transmitiu a sua posição contratual para a sociedade Autora, e muito menos qualquer estipulação posterior.
Postergada a força probatória material do documento de fls.18, a posição dos agravantes não tem qualquer consistência jurídica, maxime quanto à pretendida eliminação do quesito 12º, não se mostrando violadas as normas dos arts.221 e 394 do Código Civil.
Nesta perspectiva, improcede o agravo.
2.3. – O Recurso de APELAÇÃO:
2.3.1. - Perante as conclusões dos recorrentes, as questões essenciais da apelação são as seguintes:
a) - A nulidade da sentença ( art.712 nº4 do CPC ), por contradição das respostas aos quesitos;
b) - O valor probatório do documento de fls.18 e a violação do art.374 do Código Civil;
c) - A excepção do não cumprimento do contrato ( art.428 do Código Civil ).
2.3.2. - OS FACTOS PROVADOS:
1) - Os Réus são proprietários da ourivesaria “Água Azul”, sita na Rua 5 de Outubro, em Buarcos, retirando desse estabelecimento os rendimentos necessários à sua alimentação e vestuário ( r.q.1º e 2º ).
2) - Em 1997, pretendendo proceder a obras de remodelação nessa loja, os Réus contactaram José Manuel Delgadinho de Oliveira, empreiteiro de construção civil, para que elaborasse o respectivo orçamento ( r.q.3º ).
3) - Em 4 de Março de 1997, José Manuel Delgadinho de Oliveira apresentou aos Réus um orçamento relativo a obras de remodelação da Ourivesaria “Água Azul”, no valor de Esc. 11.700.000$00, acrescido de IVA à taxa legal, compreendendo a realização dos seguintes trabalhos: picar e rebocar todas as paredes; remoção de entulhos e móveis velhos que sejam para o lixo; picar todos os rebocos da casa de banho, incluindo pintura e rebocar todas as paredes e o assentamento de azulejos e loiças novos; executar o tecto falso na loja e montras, incluindo sanca à parede, e aplicação de projectores embutidos no tecto; assentamento de lambrim de granito nas paredes da loja em 17 metros de comprimento e 5 metros de altura; execução de toda a instalação eléctrica da loja, incluindo tomadas no balcão, montras e armários e remodelação do quadro existente e instalação de projectores no tecto; aplicação de vidro em três montras exteriores; substituição do vidro das montras interiores por vidro duplo com filtro para o sol; substituição de montras de dentro por montras de vidro com duas portas de correr; aplicação de espelhos nas laterais interiores das montras, incluindo aplicação de projectores; substituição da porta de entrada por uma de vidro; aplicação de 3 prateleiras de granito em cada montra; assentamento de mosaicos em granito no chão da loja (40 x40) ; pintura dos tectos a tinta plástica branca ( r.q.4º e 5º ).
4) - Os Réus aceitaram o orçamento supra referido ( r.q.6º ).
5) - Em data posterior a 4/03/97, José Manuel Delgadinho de Oliveira transferiu para a sociedade “Figueirarte — Construção Civil, Lda”, todos os direitos e obrigações inerentes à sua actividade profissional de empreiteiro da construção civil, tendo os Réus aceite que as obras de remodelação supra referidas fossem executadas por esta sociedade ( r.q.7ºe 8º ).
6) - A Autora, em execução do orçamento supra referido, realizou os seguintes trabalhos: picar e rebocar todas as paredes; remoção de entulhos e móveis velhos; colocação de azulejos e loiças novas na casa de banho; execução de tecto falso na loja e montras, incluindo sanca; aplicação de projectores embutidos no tecto; colocação de lambrim de granito nas paredes da loja; execução de toda a instalação eléctrica da loja, com remodelação do quarto existente; aplicação de vidro em três montras exteriores; substituição dos vidros das montras interiores para vidro duplo com filtro solar; substituição de montras de dentro por montras de vidro com portas de correr; aplicação de projectores; substituição da porta de entrada; aplicação de duas prateleiras de granito em cada uma das três montras do estabelecimento; assentou mosaicos de granito no chão da loja; pintura dos tectos e paredes ( r.q.9º ).
7) - As obras de remodelação aludidas cifram-se em Esc.13. 698.000$00 ( r.q.10º ).
8) – A obra de remodelação efectuada pela Autora foi entregue aos Réus que a aceitaram ( r.q.11º ).
9) - A Autora enviou à Ré mulher a factura de 15/07/99, junta a fls. 8 dos autos ( acordo das partes ).
9) - Os Réus entregaram à Autora a quantia de 2.000.000$00 por conta do montante total das obras realizadas e descriminadas supra ( r.q.12º ).
10) - Por escritura pública outorgada em 18/08/1998, os Réus constituíram entre si a sociedade por quotas “Água Azul, Lda”, com sede na Rua 5 de Outubro, 98, Buarcos, tendo por objecto o comércio a retalho de artigos de ouro, prata, jóias, relógios e artigos de óptica ( A/)
11) - Em 19 de Maio de 1999, Fernando Rodrigues Monteiro declarou ter recebido de “Ourivesaria Água Azul, Lda”, quantia de 13.689.000$00 proveniente da sua factura n° 168 ( B/).
2.3.3. – 1ª Questão:
Pretendem os apelantes a anulação da sentença recorrida, nos termos do art.712 nº4 do CPC, com fundamento na contradição das respostas aos quesitos, dando-se a mesma matéria de facto provada e não provada.
Ainda que não tenham especificado nas conclusões tal asserção, limitando-se irritamente a uma alegação genérica, processualmente inócua, na motivação do recurso apontam o vício da contradição entre as respostas aos quesitos 4º e 9º da base instrutória.
Para efeitos do disposto nos arts.712 nº4 e 653 nº4 do CPC só releva a contradição insanável que pressupõe a existência de posições antagónicas e inconciliáveis entre a mesma questão de facto.
A colisão deverá ocorrer entre a matéria de facto constante de uma das respostas e a matéria de facto de outra ou então com a factualidade provada no seu conjunto, de tal modo que uma delas seja o contrário da outra.
Como se decidiu no Acórdão desta Relação de 22/2/2000 ( C.J. ano XXV, tomo I, pág.29 ), “ só há contradição entre os factos provados quando estes sejam absolutamente incompatíveis entre si, de tal modo que não possam coexistir uns com os outros “.
O tribunal considerou provado o quesito 4º, com a seguinte redacção:
Em 4 de Março de 1997, José Manuel Delgadinho de Oliveira apresentou aos Réus um orçamento relativo a obras de remodelação na Ourivesaria “Água Azul”, compreendendo a realização dos seguintes trabalhos: picar e rebocar todas as paredes; remoção de entulhos e móveis velhos que sejam para o lixo; picar todos os rebocos da casa de banho, incluindo pintura e rebocar todas as paredes e o assentamento de azulejos e loiças novos; executar o tecto falso na loja e montras, incluindo sanca à parede, e aplicação de projectores embutidos no tecto; assentamento de lambrim de granito nas paredes da loja em 17 metros de comprimento e 5 metros de altura; execução de toda a instalação eléctrica da loja, incluindo tomadas no balcão, montras e armários e remodelação do quadro existente e instalação de projectores no tecto; aplicação de vidro em três montras exteriores; substituição do vidro das montras interiores por vidro duplo com filtro para o sol; substituição de montras de dentro por montras de vidro com duas portas de correr; aplicação de espelhos nas laterais interiores das montras, incluindo aplicação de projectores; substituição da porta de entrada por uma de vidro; aplicação de 3 prateleiras de granito em cada montra; assentamento de mosaicos em granito no chão da loja (40 x40) ; pintura dos tectos a tinta plástica branca?
No quesito 9º, perguntando-se se a Autora, em execução do orçamento referente às obras de remodelação da ourivesaria dos Réus, realizou os trabalhos que nele se discriminaram ( coincidentes com os questionados em 4º e inscritos no orçamento ), o tribunal respondeu – “ Provado com as seguintes rectificações: não aplicou espelhos laterais e apenas aplicou duas prateleiras de granito em cada uma das montras “.
Assim, enquanto que a matéria de facto do quesito 4º se reporta aos trabalhos orçamentados, já a resposta ao quesito 9º refere-se à execução desses mesmos trabalhos, pois uma coisa é saber quais os trabalhos compreendidos no orçamento que o José Delgadinho apresentou aos Réus, outra se os trabalhos mencionados no orçamento, aceite pelos Réus, foram efectivamente realizados pela Autora.
Deste modo, como é evidente, não existe uma posição antagónica sobre o mesmo facto, sendo manifesta a falta da preconizada contradição e consequente anulação da sentença.
2.3.4. - 2ª Questão:
Os apelantes voltam a trazer à colação o valor probatório do documento de fls.18, com a alegação de não ter sido tomado em conta, já que o Fernando Rodrigues Monteiro agia como “ testa de ferro “ do Delgadinho, invocando como norma violada o art.374 do Código Civil.
Sobre a natureza e valor probatório do documento de fls.18, remete-se para a argumentação aduzida sobre o agravo e daí que não se mostre violado o art.374 do CC.
Quanto à alegação de que o Fernando Monteiro agia como “ testa de ferro “ do Delgadinho, para além dos apelantes não retirarem daí qualquer consequência jurídica, designadamente, sobre a eventual de simulação relativa, através de simulação dos sujeitos, com a chamada “interposição fictícia de pessoas”, figurando como intermediário aparente entre os verdadeiros sujeitos do negócio, o certo é que se trata de matéria nova, não expressamente submetida à apreciação da 1ª instância.
Ora, tal como já se anotou, os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores e não para criar decisões sobre nova matéria, alegada na petição recursal ( cf., por todos, Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em processo Civil, 4ª ed., pág.138 ).
2.3.5. - 3ª Questão:
A sentença recorrida, com impecável retórica argumentativa, qualificou o contrato entre a Autora e os Réus como de empreitada ( art.1207 do Código Civil ).
Tratando-se de um negócio jurídico bilateral, rectius, um contrato sinalagmático, oneroso, comutativo e consensual, dele emergem reciprocamente direitos e deveres, consubstanciados numa relação jurídica complexa.
Polarizando-se a relação jurídica obrigacional em torno de uma ou mais prestações típicas - deveres principais ou primários da prestação - o seu âmbito alarga-se, no entanto, aos deveres acessórios, secundários ou complementares de conteúdo diversificado, sujeitando ainda as partes à “ ordem envolvente da interacção negocial “, ou seja, a critérios normativos de razoabilidade e de boa fé, com uma função integrativa e reguladora das condutas dos contraentes.
De tal forma que o direito positivo assevera que todo o negócio jurídico deve ser pontualmente cumprido e no cumprimento das obrigações como no exercício do direito correspondente devem as partes procederem de boa fé ( arts.406 nº1 e 762 nº2 do Código Civil ).
O principal direito do dono da obra traduz-se no direito de exigir do empreiteiro a obtenção do resultado a que este se obrigou e como contrapolo a sua obrigação principal consubstanciada no pagamento do preço acordado, já que a retribuição é um elemento essencial do contrato.
E o preço da empreitada é normalmente fixado até ao momento da celebração do contrato, podendo ser determinado de modo global, também designado por preço “ à forfait “, sendo que na falta de convenção ou uso em contrário, o preço deve ser pago no acto da aceitação da obra ( art.1211 nº2 CC ).
O instituto da chamada “ exceptio non adimpleti contratus “ ( art.428 do CC ) tem o seu âmbito de aplicação nas obrigações sinalagmáticas, impondo que se tome em conta o princípio da boa fé e o apelo à ideia de abuso de direito ( arts.762 nº2 e 334 CC ).
Tem sido comumente qualificada de excepção dilatória de direito material ou substantivo; é excepção material porque fundada em razões de direito substantivo, e dilatória, por que não exclui definitivamente o direito do autor, apenas o paralisa temporariamente ( cf. por ex. Almeida Costa, RLJ ano 119, pág.114 e segs., Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág.329 e segs., José Abrantes, A Excepção do Não Cumprimento, pág.127 e segs. ).
Mesmo que o cumprimento das prestações esteja sujeito a prazos diferentes, a exceptio pode ser sempre invocada pelo contraente, cuja prestação deva ser efectuada depois da do outro, apenas não sendo admissível por aquele que deveria cumprir primeiro ( Vaz Serra, RLJ ano 105, pág.283 e 108, pág.155, Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª ed., pág.405 ).
Por seu turno, a excepção do não cumprimento deve considerar-se admissível, não só nos casos de incumprimento temporário, cumprimento parcial ou defeituoso, como nas situações de incumprimento definitivo ( cf. Pires de Lima – Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol.I, 3ª ed., pág.381, Ac RE de 26/9/95, C.J. ano XX, tomo IV, pág.269, Ac RP de 26/3/96, C.J. ano XXI, tomo II, pág.204 ).
Sendo seguro que o art.428 CC se aplica também ao contrato de empreitada ( cf. Vaz Serra, BMJ 67, pág.26, e RLJ ano 105, pág.287 ) e porque o cumprimento defeituoso é uma das formas de incumprimento (art.798 e 799 CC), a excepção do não cumprimento funciona quando há falta de cumprimento, na modalidade de cumprimento defeituoso da prestação.
Deste modo, o dono da obra face ao cumprimento defeituoso pelo empreiteiro, pode recusar o pagamento do preço enquanto não forem eliminados os defeitos ( cf. por ex., Ac RP de 4/11/91, C.J. ano XVI, tomo V, pág.179, Ac RC de 14/4/93, C.J. ano XVIII, tomo II, pág.35, Ac RC de 6/1/94, C.J. ano XIX, tomo I, pág.10, Ac RE de 26/9/95, C.J. ano XX, tomo IV, pág.269 ).
Exposto o regime legal da excepção do não cumprimento do contrato, importa aquilatar da sua pertinência no caso sub judice, segundo os elementos factuais disponíveis.
Numa primeira abordagem, constata-se que os Réus não a invocaram expressamente na contestação, pois limitaram-se a alegar que nem o José Delgadinho, nem o Francisco Monteiro executaram todos os trabalhos orçamentos ( cf. art.11º ), sem daí retirarem quaisquer consequências jurídicas, e o certo é que a obra foi executada pela Autora, por força da cessão da posição contratual, expressamente consentida pelos Réus ( r.q.6º, 7º e 8º).
Por conseguinte, a excepção, como facto impeditivo do direito de crédito reclamado ( art.342 nº2 do CC ), só relevaria processualmente se fosse oposta à Autora ( empreiteira ), visto que toda a defesa deve ser deduzida na contestação ( art.489 nº1 do CPC ). Ora, relativamente à Autora, os Réus não arguíram expressamente a excepção do não cumprimento, vindo a fazê-lo em sede de recurso, pelo que tratando-se de questão nova, a Relação dela não pode conhecer.
Todavia, mesmo a admitir-se que a contestação contem implicitamente tal arguição, também por esta via a exceptio não pode proceder.
Em primeiro lugar, comparando os trabalhos acordados com os executados ( r.q.4º e 9º ), sabe-se apenas que não foram picados todos os rebocos da casa de banho, nem aplicados os espelhos laterais das montras e apenas foram aplicadas duas prateleiras de granito, em vez das três acordadas.
Por seu turno, na contestação, alegaram os Réus a colocação defeituosa dos mosaicos de granito e a má colocação das portas de correr das montras de vidro, por caírem ( cf. art.12º ), factos que foram impugnados na réplica, mas não incluídos na base instrutória.
Muito embora a Relação possa mandar ampliar a base instrutória ( art.712 nº4 do CPC ), tal só se impõe se os factos omitidos se mostrarem indispensáveis para a decisão da causa, o que não é o caso, como se verá.
Com efeito, o regime próprio do contrato de empreitada, face ao cumprimento defeituoso da prestação, não legitima, desde logo, o dono da obra a opor a excepção do não cumprimento, pois se assim fosse, seria inútil a regulamentação exaustiva do contrato de empreitada, designadamente, no que concerne aos meios postos à disposição do dono da obra para reagir às situações de incumprimento.
É que perante o incumprimento do contrato, nele se incluindo o cumprimento defeituoso, o dono da obra terá de subordinar-se à ordem estabelecida nos arts.1221, 1222 e 1223 do CC, ou seja, (1) o direito de exigir a eliminação dos defeitos, caso possam ser supridos, (2) o direito a uma nova construção, se os defeitos não puderem ser eliminados, (3) o direito à redução do preço ou, em alternativa, a resolução do contrato, (4) o direito à indemnização, nos termos gerais.
Só que, para tanto, o dono da obra deve denunciar, no prazo legal, as situações de incumprimento lato senso, cujo ónus funciona como pressuposto do exercício dos referidos direitos.
Como elucida Pedro Martinez, “ A exceptio non rite adimpleti contractus poderá unicamente ser exercida após o credor ter, não só denunciado os defeitos, como também exigido que os mesmos fossem eliminados, a prestação substituída ou realizada de novo, o preço reduzido, ou ainda o pagamento de uma indemnização por danos circa rem “ ( Cumprimento Defeituoso, 1994, pág.328 ).
Pois bem, os Réus nem sequer alegaram que tivessem denunciado à Autora, tanto os defeitos como as omissões, nem reclamado qualquer um dos direitos que a lei lhes confere, sendo, por isso, inoperante a excepção do não cumprimento do contrato.
Por outro lado, comprovando-se que a obra de remodelação efectuada pela Autora foi entregue aos Réus que a aceitaram ( r.q.11º ), não podem estes invocar a excepção do não cumprimento do contrato para recusar o pagamento do preço, pois o empreiteiro ficou liberado da responsabilidade pelos vícios aparentes ( art.1219 nº1 do CC ), como sucede no caso concreto ( cf., por ex., Ac RP de 16/9/93, C.J. ano XVIII, tomo IV, pág.203 ).
2.3.6. – Síntese conclusiva:
a) - Um documento particular emitido por um terceiro, cuja autoria não foi impugnada, não tem força probatória material, podendo apenas ser livremente apreciado pelo tribunal.
b) - Para efeitos do disposto nos arts.712 nº4 e 653 nº4 do CPC, só releva a contradição insanável que pressupõe a existência de posições antagónicas e inconciliáveis sobre a mesma questão de facto.
c) - Atendendo ao regime específico do contrato de empreitada, o cumprimento defeituoso da prestação não legitima, desde logo, o dono da obra a opor a excepção do não cumprimento do contrato ao empreiteiro que reclama o pagamento do preço, se previamente não denunciou os defeitos, nem exigiu que os mesmos fossem eliminados, a prestação substituída ou realizada de novo, a redução do preço ou a indemnização.
III – DECISÃO
Pelo exposto, decidem:
1)
Negar provimento ao agravo e confirmar o despacho
recorrido.
2)
Julgar improcedente a apelação e confirmar a douta sentença recorrida.
3)
Condenar os recorrentes nas custas.
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COIMBRA, 21 de Outubro de 2003 ( processsado por computador e revisto).