Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | LUIS CRAVO | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADES PARENTAIS REGULAÇÃO DO PODER PATERNAL ALTERAÇÃO CASO JULGADO DESLOCAÇÃO PARA O ESTRANGEIRO ILICITUDE | ||
Data do Acordão: | 01/14/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | 1º JUÍZO DO T.J. DE TORRES NOVAS | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 146, 150, 182 OTM, 1409 CPC, CONVENÇÃO DA HAIA DE 1980” ( APROVADA PELO DL Nº 136/82 DE 21 DE DEZEMBRO) ,REGULAMENTO CE N.º 2201/2003 DO CONSELHO, DE 17-11-2003 ( “REGULAMENTO BRUXELAS II”) | ||
Sumário: | 1.Nos termos dos arts. 146º, al. d) e 150.º da O.T.M., a providência da alteração da regulação do poder paternal prevista no art. 182º da Organização Tutelar de Menores configura um processo de jurisdição voluntária, donde ser-lhe aplicável, entre outros, o princípio do predomínio da equidade sobre a legalidade estrita, o que também se aplica na interpretação do sentido de requerimentos que em tais processos sejam formulados. 2. Uma decisão do Tribunal do Reino Unido enquadrada nos termos da “Convenção da Haia de 1980” (aprovada para vigorar na ordem jurídica portuguesa pelo DL nº 136/82 de 21 de Dezembro) e também com apoio no Regulamento CE n.º 2201/2003 do Conselho, de 17-11-2003 (conhecido por “Regulamento Bruxelas II”) não constitui decisão sobre a regulação das responsabilidades parentais das menores em causa que residindo anteriormente em Portugal foram objecto de “deslocação ou retenção ilícita” para aquele país. 3. Consequentemente, não existindo qualquer decisão de alteração do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas às menores pelo Tribunal do Reino Unido, não se poderá verificar qualquer violação do caso julgado por parte de uma decisão que sobre essa matéria venha agora a recair. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
* 1 - RELATÓRIO «Desconhece-se a existência de qualquer norma que autorize o Tribunal a retirar em absoluto a guarda de menores a pessoa a quem a mesma foi atribuída no âmbito do regime de regulação do poder paternal, designadamente através da alteração dessa regulação, conforme foi solicitado nos presentes autos pela requerente L (…). De facto, se a requerente pretende que a guarda dos menores lhe seja retirada, terá que indicar a quem a mesma será entregue. Além disso, embora tal não seja muito claro, nem tenha sido estabelecido de forma totalmente expressa, discordando assim da perspectiva sustentada pelo Ministério Público, resulta da sentença junta aos autos que o tribunal inglês que a proferiu, atribuiu a guarda dos menores M (…) e C (…), à mãe deles, nos termos do Regulamento Bruxelas II. Tal atribuição da guarda dos menores à mãe foi efectuada com o acordo da requerente L (…). Essa decisão já terá transitado em julgado. Logo este Tribunal não pode ir proferir nova decisão a atribuir a guarda dos menores à mãe deles, sob pena de violação do caso julgado. Em conformidade, pelo exposto, e por falta de fundamento legal, indefere-se a pretensão da requerente L (…) para lhe ser retirada a guarda das menores M (…) e C (…). * Inconformada com essa decisão, dela interpôs recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, a qual finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões: Deverão assim V. Excias. conceder provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra que determine a realização das diligências tendentes a aferir da vontade da progenitora das menores quanto à requerida alteração do regime de regulação das responsabilidades, seguindo-se os demais trâmites e sendo proferida decisão de alteração do regime fixado, conforme requerido, assim se fazendo JUSTIÇA.»
* Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações. * Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir. * 2 – QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do N.C.P.Civil – e, por via disso, as questões a decidir são as de não haver ou não haver “norma” que permita a alteração da regulação do poder paternal decretada, e a de haver ou não desnecessidade de ser proferida decisão de regulação das responsabilidades parentais por o tribunal inglês já ter decidido sobre tal, com força de caso julgado. * 3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A factualidade que interessa ao conhecimento do presente recurso é a que consta do precedente relatório, para o qual se remete, por economia processual. * 4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Consabidamente, encontra-se previsto no art. 182º da Organização Tutelar de Menores[1], a providência da alteração da regulação do poder paternal, com a epígrafe de “Alteração de Regime”. Com efeito, no dito art. 182º, nº1 da O.T.M., dispõe-se que quando o acordo ou a decisão transitada não forem cumpridos por ambos os pais, ou quando circunstâncias supervenientes tornem necessário alterar o que estiver estabelecido, qualquer dos progenitores ou o curador podem requerer ao tribunal nova regulação. Assim, não sendo de questionar que a Requerente L (…) – por ser a pessoa a quem as menores foram judicialmente confiadas em providência de regulação de poder paternal (cf. arts. 1905º, nº2 e 1918º do C.Civil) – tinha efectivamente legitimidade ao abrigo deste normativo para suscitar/requerer a alteração da regulação do poder paternal, logo por aí soçobra o fundamento da decisão recorrida de que não existia “norma” que autorizasse o Tribunal a retirar em absoluto a guarda de menores a pessoa a quem a mesma foi atribuída no âmbito do regime de regulação do poder paternal... Por outro lado, e inquestionavelmente, nos termos dos arts. 146º, al. d) e 150.º da O.T.M., a providência em referência configura um processo de jurisdição voluntária. E consabidamente, o regime processual dos processos de jurisdição voluntária encontra-se previsto nos arts. 1409º, 1410º e 1411º do Código de Processo Civil, consubstanciando-se na prevalência de quatro princípios: a) princípio do inquisitório (1409º, nº2); b) predomínio da equidade sobre a legalidade (659º, nº2, in fine); livre modificabilidade das decisões ou providências (1411º, nº1); inadmissibilidade de recurso para o Supremo (1411º, nº2).[2] Assim, «no exercício da jurisdição voluntária, o tribunal pode livremente investigar os factos, coligir as provas e recolher as informações que julgar convenientes para uma boa resolução (…). O material de facto sobre que há-de assentar a resolução, é não só o que os interessados ofereçam, mas também o que o juiz conseguir trazer para o processo pela sua própria actividade (…). O juiz dispõe de largo poder de iniciativa, o mesmo sucedendo quanto aos meios de prova e de informação (…)».[3] Por outro lado, a distinção entre jurisdição voluntária e contenciosa, já foi traçada nos seguintes termos: «Nos processos de jurisdição contenciosa, há um conflito de interesse entre as partes (…), que ao tribunal incumbe dirimir, de acordo com os critérios estabelecidos no direito substantivo. Nos processos de jurisdição voluntária há um interesse fundamental tutelado pelo direito (…) que ao juiz cumpre regular nos termos mais convenientes».[4] E por assim ser é que «Em vez da obediência a regras normativas rígidas (…) vigora a liberdade de opção casuística pelas soluções de conveniência e de oportunidade mais adequadas a cada situação concreta. Prevalência por conseguinte, da equidade sobre a legalidade estrita».[5] De facto, parece-nos de meridiana clareza que a equidade entre as partes não seria alcançada se se adoptasse a necessidade e/ou postulasse a exigência de um rigor estrito para a formulação de uma qualquer pretensão nesta sede. E com isto já estamos a dar solução ao outro controvertido aspecto da questão em apreciação, qual seja, o de que se a requerente pretendia que a guarda dos menores lhe fosse retirada, teria que indicar a quem a mesma seria entregue. É, que em nosso entender, essa indicação até foi suficientemente feita nos referenciados requerimentos de 13 e 19 de Dezembro de 2012, subscritos por L (…) pois que da conjugação do teor de ambos eles com o literalmente constante do acordo alcançado no Tribunal do Reino Unido (oportunamente junto em cópia autenticada), se extrai que as menores M (…) e C (…) haviam sido, em Agosto de 2011, objecto de alegada deslocação ilícita para o estrangeiro (mais concretamente para Inglaterra) por parte da progenitora, S (…) quando se encontravam a residir em Portugal com a mesma L (…), face ao que esta última accionou os instrumentos legais internacionais em matéria de deslocação ilícita de menores, tendo sido designadamente remetido à Autoridade Central do Reino Unido, ao abrigo do Regulamento (CE) n° 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro de 2003, ex vi da Convenção de Haia, de 25 de Outubro de 1980, sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, e a pedido de L (…), um pedido de regresso a Portugal das ditas crianças M (…) e C (…). Mais se extrai da leitura da cópia autenticada em referência, que a aí requerente (ou seja, L (…)) e a aí requerida (isto é, S (…)) concordaram em que as crianças permanecessem a residir habitualmente em Inglaterra e Gales, onde se encontravam a residir aquando dessa decisão, e que L (…) se comprometia a requerer sem demora ao Juízo de Família e Menores da Amadora a anulação da ordem de custódia proferida a seu favor relativamente às crianças datada de 22.03.2010 e fornecer prova de tal anulação a S (…) até 28 de Fevereiro de 2013. Ora se assim é, temos, por um lado, que a Requerente L (…) claramente concordava – e concorda – em que as menores continuassem a residir no Reino Unido com a sua mãe… Mas, por outro lado, assumiu o compromisso perante a progenitora da menores e também perante o Tribunal do Reino Unido de requerer sem demora ao Juízo de Família e Menores da Amadora a anulação da ordem de custódia proferida a seu favor relativamente às crianças datada de 22.03.2010 e aos mesmos fornecer prova de tal anulação. Sendo nesse conspecto e sequência que veio junto do Tribunal onde havia sido anteriormente regulado o poder paternal das menores – com estas a serem-lhe confiadas – formular o pedido de retirada imediata da guarda das menores que lhe estava conferida … em ordem a que, consequencialmente, doravante tal passasse a competir à mãe. Esta é a interpretação dessa vontade da Requerente que não pode deixar de se extrair dos termos e moldes em que foi formulada e face aos moldes em que se encontrava instruída! Assente isto, que dizer do fundamento da decisão recorrida de que era desnecessário ser proferida decisão de regulação das responsabilidades parentais, por o tribunal inglês já ter decidido sobre tal, com força de caso julgado. Também aqui – e releve-se este juízo antecipatório! – a decisão recorrida não fez a melhor interpretação e aplicação dos normativos legais. É que claramente resulta que a referenciada decisão do Tribunal do Reino Unido consistiu numa decisão “convencional”, isto é, com referência a um pedido de entrega de menores em caso de deslocação ilícita, formulado com base na “Convenção da Haia de 1980”, tendo sido a decisão enquadrada nos termos dessa convenção internacional aplicável e também com apoio no designado por “Regulamento Bruxelas II”. Ora, consabidamente a dita “Convenção da Haia de 1980” (aprovada para vigorar na ordem jurídica portuguesa pelo DL nº 136/82 de 21 de Dezembro), versa “Sobre o Reconhecimento e Execução das Decisões Relativas à Guarda de Menores e Sobre o Restabelecimento da Guarda de Menores”. Quando é certo que no caso vertente se tratou de uma providência instaurada tendo em vista a entrega das menores – por ser caso de “deslocação ou retenção ilícita” das mesmas – não incidindo directamente sobre a guarda das menores. Ademais, decorre do preceituado nos arts. 5º e 7º da “Convenção Relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidades Parentais e Medidas de Protecção das Crianças” concluída em 10-10-1996 em Haia (conhecido por “Convenção da Haia de 1996”, aprovada pelo Decreto 52/2008, de 13 de Novembro), que o Estado Português continua a ter competência para proferir decisão em matéria de responsabilidades parentais referentes às duas crianças, cuja mãe as retirou de forma ilícita da guarda da Requerente (cf. o n.º 2 do art. 7º da mesma Convenção). Tal resulta também do artigo 10.º do Regulamento CE n.º 2201/2003 do Conselho, de 17-11-2003 (conhecido por “Regulamento Bruxelas II”), o que, aliás, se encontra em linha com a ressalva estatuída nos pontos “(17)” e “(18)” dos “Considerandos” desse mesmo Regulamento, de que quando haja uma decisão dos Tribunais do Estado-Membro – para o qual a criança tenha sido deslocada ou no qual tenha sido retida ilicitamente – de se oporem ao seu regresso, por sua vez essa decisão possa ser substituída por uma decisão posterior do Tribunal da Estado-Membro da residência habitual da criança antes da deslocação ou da retenção ilícita. Isto é, confere-se sempre a primazia ao Estado-Membro da residência habitual da criança, certamente tendo em conta que fora nesse que ocorrera precípuamente a regulação do exercício das responsabilidades parentais, que uma decisão sobre a entrega ou regresso não visou revogar em si. Dito de outra forma: pelo Tribunal do Reino Unido não foi proferida decisão sobre a regulação das responsabilidades parentais relativas às menores M (…) e C (…) Aliás, desconhece-se até se tal decisão do Tribunal do Reino Unido se encontra ou não transitada em julgado! Assim, concordamos inteiramente e subscrevemos a seguinte afirmação constante das alegações recursórias: “Não existindo qualquer decisão de alteração do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas às menores não se poderá verificar qualquer violação do caso julgado, na medida em que tal pressupõe a existência de decisão judicial prévia sobre o mesmo objecto, com os mesmos sujeitos processuais.” Procedem assim inteiramente e sem necessidade de maiores considerações, as alegações recursórias, impondo-se a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que dê a devida prossecução aos autos. * 5 – SÍNTESE CONCLUSIVA I – Nos termos dos arts. 146º, al. d) e 150.º da O.T.M., a providência da alteração da regulação do poder paternal prevista no art. 182º da Organização Tutelar de Menores configura um processo de jurisdição voluntária, donde ser-lhe aplicável, entre outros, o princípio do predomínio da equidade sobre a legalidade estrita, o que também se aplica na interpretação do sentido de requerimentos que em tais processos sejam formulados. II – Uma decisão do Tribunal do Reino Unido enquadrada nos termos da “Convenção da Haia de 1980” (aprovada para vigorar na ordem jurídica portuguesa pelo DL nº 136/82 de 21 de Dezembro) e também com apoio no Regulamento CE n.º 2201/2003 do Conselho, de 17-11-2003 (conhecido por “Regulamento Bruxelas II”) não constitui decisão sobre a regulação das responsabilidades parentais das menores em causa que residindo anteriormente em Portugal foram objecto de “deslocação ou retenção ilícita” para aquele país. III – Consequentemente, não existindo qualquer decisão de alteração do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas às menores pelo Tribunal do Reino Unido, não se poderá verificar qualquer violação do caso julgado por parte de uma decisão que sobre essa matéria venha agora a recair. * 6 - DISPOSITIVO Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a decisão proferida nestes autos sob recurso, ordenando-se a sua substituição por outra que dê a devida prossecução aos autos, nos termos previstos pelo art. 183º e segs. da O.T.M.. Sem custas. * Coimbra, 14 de Janeiro de 2014
Luís Filipe Cravo ( Relator ) Maria José Guerra António Carvalho Martins)
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