Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2270/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: AVAL EM BRANCO
LETRA
BENEFICIÁRIO
VENCIMENTO AUTOMÁTICO DE PRESTAÇÕES
Data do Acordão: 10/25/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ANADIA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTº 31º, § 4, DA LULL ; 781º DO C. CIV. .
Sumário: I – O aval é o acto pelo qual um terceiro ou signatário da letra garante o pagamento dela (no todo ou em parte) por parte de um dos seus subscritores-obrigado cambiário .
II – O aval pode ser completo (quando se exprime pelas palavras “bom para aval” ou por outra fórmula equivalente e se encontra assinado pelo dador do aval) ou incompleto ou em branco (quando resulta de simples assinatura do dador, aposta na face anterior da letra, desde que tal assinatura não seja do sacado nem do sacador) .

III – Em relação a terceiros adquirentes de boa fé da letra (e, portanto, no domínio das relações mediatas) é compreensível que se deva aplicar a presunção, juris et de jure, de que o aval, que não indique o avalizado, foi prestado a favor do sacador, dada a necessidade de protecção desses terceiros de boa fé, pois ao adquirirem a letra em tais condições terão provavelmente confiado que o aval foi prestado em relação ao sacador – dado o disposto no artº 31º, §4, da LULL - e, como tal, devem ser protegidos nessa confiança .

IV- Já no domínio das relações imediatas, não havendo terceiros de boa fé a proteger, não faz sentido aplicar as regras específicas de que se revestem os títulos de crédito e que se destinam, fundamentalmente, a proteger a circulação desses títulos e a segurança dos terceiros de boa fé, deles adquirentes .

V – Desse modo, nas relações (imediatas) entre o sacador, o aceitante e o avalista é admissível a prova de que o aval foi dado a pessoa diferente do sacador, mais concretamente a favor do aceitante da mesma, e mesmo ainda nos casos em que tal vontade não encontre o mínimo de correspondência no texto da lei, mas que tenha, na realidade, correspondido ao sentir das partes nele envolvidas .

VI – Afigura-se não ser possível aplicar o artº 781º do C. Civ. em situações de execução com base em letras de câmbio, mesmo quando se está apenas no domínio das relações imediatas, apesar de aí, dado que as letras não entraram em circulação e não havendo necessidade de proteger a segurança dessa circulação nem a de terceiros de boa fé, já lhe não ser aplicável o regime especial de que estão revestidas, tudo se devendo passar como se a obrigação estivesse sujeita ao regime geral das obrigações .

Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. A..., instaurou execução, para pagamento de quantia certa, contra os executados, B...ª, e C....
No final do requerimento executivo, terminou a exequente pedindo que os executados fossem citados para, no prazo de 20 dias, lhe pagarem: a) a quantia de € 53.241,93; b) os juros vincendos calculados sobre a quantia de € 15.385,93, relativa às nove prestações que aludiu no artº 10 (trata-se, a nosso ver, de manifesto lapso, dado que do contexto do teor do requerimento executivo resulta claramente que se queria aludir ao artº 11) desse seu requerimento, desde 17/05/02 e até efectivo e integral pagamento; c) e ainda os juros vincendos calculados sobre a quantia de € 36.934,23, desde a data da citação e até ao integral e efectivo pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, o seguinte:
Serem a exequente e a executada sociedades comerciais que têm por objecto o comércio de vinhos, vindo, desde há muito, estabelecendo entre si relações comerciais.
No princípio do ano de 2001, a exequente e a executada procederam a um encontro de contas, tendo-se então apurado, com reporte à data de 31/01/2001, ser a primeira credora da segunda na quantia de esc. 11.106.955$00.
Na sequência de diversa correspondência trocada, foi então acordado entre ambas que tal importância seria paga em 36 prestações, mensais e sucessivas, de esc. 308.527$00 cada, vencendo-se a primeira em 28/2/01 e as restantes no dia 28 do mês a que respeitavam, vencendo-se juros à taxa anual de 12%.
Foram então calculados os juros vincendos, até à data de vencimento aposta em cada um daquelas letras, cujo valor foi incorporado no respectivo montante pelo qual cada uma delas foi preenchido.
Desse modo, para pagamento de tais prestações, a executada emitiu 36 letras, todas por si aceites, sacadas da exequente, através das assinaturas dos respectivos legais representantes.
Letras essas que foram, porém, todas avalizadas pelo 2º executado, gerente da executada.
Entretanto, a solicitação da executada e com a aprovação da exequente, as prestações referentes aos meses de Fevereiro, Março e Abril de 2001, foram transferidas para os respectivos meses do ano de 2004, tendo-se, em consequência, procedido ao cálculo dos respectivos juros nos moldes sobreditos.
Daquelas 36 letras, de que se declarou dona e legítima portadora, a exequente declarou dar à execução apenas 33 delas, com os montantes e as datas de vencimento descriminados no artº 10 do seu requerimento inicial, sendo que a 1ª delas, com o valor de esc. 324.748$00, tinha data do vencimento em 26/6/2001 e a última, no montante de esc. 430.161$00, tinha dada do vencimento em 28/4/2004.
Acontece, porém, que as letras relativas às prestações vencidas em Junho, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2001 e em Janeiro, Fevereiro, Março e Abril de 2002, não foram pagas nas datas do seu vencimento e nem sequer foram reformadas.
Pelo que entendendo que, face ao disposto do artº 781 do CC, a falta de pagamento dessas prestações envolve o vencimento das restantes, a exequente juntou os originais das 24 letras relativas às prestações que se venceriam de Maio de 2002 a Abril de 2004 (inclusivé).
Razão essa pela qual entende que, descontado o valor dos juros incorporados na letras não vencidas, tem a exequente o direito a haver da executada a quantia do capital em débito, acrescido dos juros de moratórios, vencidos e vincendos, nos termos por si ali melhor descriminados, à taxa legal de 12%, e que se encontram traduzidos no final daquele seu petitório, tal como logo no início se deixou exarado.
Pelo pagamento de tal débito entende também ser responsável o 2º executado por ter dado o seu aval à aceitante de tais letras.

2. No seu despacho inicial (cuja certidão se encontra junto a fls. 47 a 49 destes autos), a srª juiz a quo, com base nos fundamentos ali aduzidos, decidiu, no final, indeferir liminar e parcialmente a “acção executiva no que diz respeito às letras com vencimento em 28/5/02 e posteriores a tal data e bem assim no que excede o cômputo dos juros de mora à taxa de 7%, declarando-se ainda o 2º executado parte ilegítima na execução”.

3. Não se tendo conformado com tal despacho decisório, a exequente dele interpôs recurso, o qual foi admitido como agravo, a subir imediatamente e em separado dos autos principais.

4. Não obstante ter sido, mais tarde, julgada extinta execução contra a sociedade executada, devido a ter sido, entretanto, declarado falida, o recurso prosseguiu os seus termos, a pedido da exequente, com o fundamento de pretender prosseguir a execução contra o outro 2º executado.

5. Nas correspondentes alegações recurso, a agravante concluiu as mesmas nos seguintes termos:
“1ª As letras submetidas a execução destinavam-se ao pagamento, em prestações, de uma dívida por fornecimento de vinhos que, à data em que foram emitidas, já se encontrava vencida.
2ª Dívida, cujo valor foi consolidado, por acordo, entre exequente e executada, que acordaram, ainda, nessa forma de pagamento.
3ª Neste quadro, a entrega das letras pela executada à exequente não se traduziu numa novação da dívida que lhe estava subjacente, mas tão só uma dação pro solvendo.
4ª Onde apenas estava em causa facilitar à exequente a cobrança do seu crédito, cujo valor e exigibilidade eram logo aí, pacíficos.
5ª Mantendo-se as letras na posse legítima da exequente, sua sacadora, tudo se passa no campo das relações imediatas.
6ª E aí não faz sentido que se imponha à recorrente o uso prévio da acção declarativa, como forma de se cobrar pela totalidade do seu crédito, vedando-lhe a possibilidade de executar a totalidade das letras que titulavam aquelas prestações.;
7ª Cujo vencimento decorreu da falta de pagamento de nove das prestações acordadas .
8ª Sendo certo que a Lei vem alargando o elenco dos títulos executivos, para evitar , justamente, a propositura desnecessária de acções tendentes a reconhecer um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia.
9ª Assim, ao decidir pela inexigibilidade do pagamento da totalidade das letras, violou a decisão recorrida, nesta parte, o disposto nos arts. 43º/2º, da L.U., 840º e 781º do C. Civil.
10ª Levanta-se neste recurso outra questão, qual seja, a de saber que alcance se pode dar à expressão “dou o meu aval à subscritora”.
11ª Ou melhor, se ao sacador deve admitir-se que faça prova que, com a aposição dessa expressão o avalista se quis obrigar ao lado do sacado.
12ª A doutrina de que a presunção do nº 4 do art. 31º da LU é absoluta, valendo tanto nas relações mediatas como nas mediatas é, no entender do Professor Vaz Serra inaceitável.
13ª O avalista, nas relações entre si e o sacador, sabe por conta de quem se obrigou.
14ª Visando a presunção estabelecida na alínea 4) do art. 31º da Lei Uniforme a protecção da boa fé na circulação do título, isto é da boa fé do terceiro que adquire o título, julgando que o aval garante o sacador.
15ª Nada justifica, sendo antes contrário ao bom senso e à equidade, que, ficando a letra na posse e titularidade do sacador, lhe seja vedada a possibilidade de accionar o avalista, pela via daquela presunção.
16ª Isto porque, fora das regras impostas pela necessidade da fácil circulação dos títulos de crédito, a letra de câmbio está dominada pelo crédito que representa.
17ª A solução contrária, além de injustificável, quer à luz dos princípios quer à luz dos interesses que se quiseram salvaguardar, conduz, “in casu”, à consagração de um verdadeiro abuso de direito!
18ª Decorrendo, ainda a possibilidade/necessidade da admissão dessa prova do nº 2 do art. 238º do C. Civil.
19ª Já que, no título cambiário a exigência da forma é ditada por princípios de protecção da boa fé de terceiros, devendo, nas relações imediatas, buscar-se antes o sentido real que as partes quiseram que a expressão tivesse.
20ª Entendimento este que decorre ainda da própria interpretação sistemática da Lei Uniforme, vista no seu conjunto.
21ª Onde há uma claríssima distinção entre o domínio das relações imediatas, onde o que “vale “ em última instância é o próprio crédito titulado na letra, e o das relações mediatas, onde aí sim, se impõem os princípios da literalidade e abstracção.
22ª Daí que, nesta parte, se mostrem violados os arts. 31º/4 da L.U. e o art. 238º/2 do C. Civil.
23ª Não se alcança o motivo porque foi a taxa de juro reduzida aos “juros civis”.
24ª Sendo a sacadora das letras uma sociedade comercial e a aceitante outra e sabendo-se que as sociedades comerciais nascem para a prática de actos de comércio e que as relações entre elas serão sempre comerciais.
25ª A taxa de juro aplicável é a taxa de juros a que alude o artº 102º do C. Com. e fixada em 12%, pela Portaria 262/99 de 12.04.
26ª Mostrando-se aqui violados aqueles dispositivos e ainda o artº 13º/2 do Cód. Comercial”.

6. Não foram apresentadas contra-alegações.

7. De forma tabelar, a srª juiz a quo sustentou o despacho recorrido.

8. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II- Fundamentação
1- Delimitação do objecto do recurso.
1. Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto dos mesmos (cfr. artºs 690, nº 1, e 684, nº 3 do CPC), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (nº 2 – finé - do artº 660 do CPC).
Vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a derimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
1.1 Ora calcorreando as conclusões do recurso as questões que importa decidir serão as seguintes:
a) Apreciar da bondade do despacho que julgou o 2º executado, Alberto Rocha, parte ilegítima na execução.
b) Apreciar da bondade do despacho que indeferiu a execução no que concerne à parte do pedido apoiado na letra com vencimento em 28/5/02 e bem assim naquelas outras com datas de vencimento posteriores a essa.
c) Apreciar da bondade do despacho que indeferiu a execução na parte em que a contabilização dos juros moratórios pedidos pela exequente excedia os 7%.
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2. Os factos
2.1 Os factos, mais relevantes, a considerar são aqueles que supra se deixaram exarados sob o nº 1 do ponto I, e ainda os seguintes (por resultarem directamente dos autos ou dos documentos a eles juntos):
2.2 Com o requerimento inicial, a exequente juntou 33 letras de câmbio (que correspondem agora a fls. 83 a 148 destes autos), todas com a data de emissão ou de saque de 31/1/2001, apresentando como datas de vencimento, respectivamente, 28/06/2001, 28/09/2001, 28/10/2001, 28/11/2001, 28/12/2001, 28/01/2002, 28/02/2002, 28/03/2002, 28/04/2002, 28/05/2002, 28/06/2002, 28/07/2002, 28/08/2002, 28/09/2002, 28/10/2002, 28/11/2002, 28/12/2002, 28/01/2003, 28/02/2003, 28/03/2003, 28/04/2003, 28/05/2003, 28/06/2003, 28/07/2003, 28/08/2003, 28/09/2003, 28/10/2003, 28/11/2003, 28/12/2003, 28/01/2004, 28/02/2004, 28/03/2004 e 28/04/2004, e cujo montante por cada uma delas titulado aqui se dá por reproduzido.
2.3 Em cada uma dessas letras figura como sacadora a exequente-ora agravante, A..., e como sacada e aceitante a 1ª executada, B....
2.4 No canto superior do verso de cada uma delas consta, além do mais, a expressão “dou o meu aval ao subscritor”, seguida, logo por debaixo, da assinatura do 2º executado, C... (pelo menos tudo aponta ser dele, face aos elementos disponíveis e ao alegado pela exequente).
2.5 Tais letras não entraram em circulação.
2.6 Dá-se aqui por inteiramente reproduzido o teor dos documentos juntos a fls. 65, 67, 68, 70, 71, 72, 73, 74/77, 79 e 81.
2.7 A presente acção foi instaurada em 28/5/2002.
2.8 Já depois do despacho recorrido, ou seja, por sentença proferida em 25/7/2003, já transitada, foi declarada a falência da executada, B...ª, vindo, como consequência, a ser proferida, em 8/7/2004, sentença, já transitada, que julgou extinta a execução instaurada contra a mesma.
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3. O direito
3.1 Quanto à 1ª questão.
Da ilegítimidade, ou não, do 2º executado, Alberto Rocha.
Começaremos, desde logo, por tratar de tal questão, já que no caso de se confirmar a ilegitimidade decretada no despacho recorrido ficaria então prejudicado o conhecimento das restantes questões acima enunciadas, em virtude de a execução ter, entretanto, sido declarada extinta no que concerne à 1ª executada, por ter sido decretada a sua falência (cfr. artº 660, nº 2 – 2ª parte - do CPC).
A srª juiz a quo fundamentou a sua decisão, de considerar aquele parte ilegítima, no facto de dos dizeres do aval não ser possível concluir a favor de que pessoa foi o mesmo concedido, pelo que face ao estatuído no artº 31 §4 da LULL (diploma ao qual nos referiremos sempre doravante mencionarmos somente o normativo, sem a indicação da sua origem), ter-se-ia de considerar que o referido aval foi concedido a favor da sacadora. E sendo assim, sendo a sacadora exequente não poderia ela demandar o seu próprio avalista.
Mas será que é assim?
Vejamos.
Como é sabido, o aval é o acto pelo qual um terceiro ou signatário da letra garante o pagamento dela (no todo ou em parte) por parte de um dos seus subscritores (vidé, por todos, prof. Ferrer Correia, in “Lições de Direito Comercial, Vol. III, págs. 196, 198 e ss”).
Pode, pois, dizer-se que o aval tem por fim próprio, ou função específica, garantir ou caucionar a obrigação de certo obrigado cambiário (cfr. Abel Pereira Delgado in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, anotada, 4ª ed., pág. 156”).
O seu regime encontra-se previsto e regulado, como é sabido, no artº 30 e ss., e de onde se pode constatar que o mesmo está sujeito a uma disciplina jurídica própria e com várias particularidades – cujo estudo e análise nos dispensamos aqui de fazer e salientar, por ser despiciendo, neste momento, para o caso em apreço.
Importa, por ora (por ter a ver com o caso concreto em apreciação), tão somente concentrarmos no artº 31, que regula a forma do aval.
Aval esse que, conforme dali resulta, pode ser completo (quando se exprime pelas palavras «bom para aval» ou outra fórmula equivalente e se encontra assinado pelo dador do aval) ou incompleto ou em branco (quando resulta de simples assinatura do dador, aposta na face anterior da letra, desde que tal assinatura não seja do sacado, nem do sacador – vidé, a propósito, França Pitão, in “Letras e Livranças, 3ª ed., actualizada, Almedina 2005, pág. 199”, citando ali o prof. Ferrer Correia, in” Ob. cit. pág. 202 e sss” e ainda Abel Pereira Delgado, in “Ob. cit., pág. 164, nota 2”.
E aí, depois de se estabelecer, em diversos graus, a forma como o aval dever ser dado, determina no seu § 4º que “o aval deve indicar a pessoa por quem se dá. Na falta da indicação, entender-se-á pelo sacador”.
A interpretação, porém, de tal normativo começou, desde os primórdios, em que o respectivo diploma da LULL (resultante das Convenções de Genebra de 7/6/1930) entrou em vigor, na nossa ordem jurídica interna (8/9/1934 – cfr. artº 1º do DL nº 26556 de 20/4/36), a suscitar, desde logo, polémica, quer na nossa doutrina, quer na nossa jurisprudência.
Polémica essa que, no essencial, girava à volta de saber se tal normativo, era de carácter imperativo ou absoluto, se consagrava uma presunção juris et de jure ou somente uma presunção juris tantum.
Controvérsia essa que obrigou à prolação, pelo STJ, do assento de 1/2/1966 (publicado no D.G. nº 44, de 22/2/1966 e BMJ nº 154 –131”) que, com dois votos de vencido, ditou a seguinte doutrina obrigatória: “Mesmo no domínio das relações imediatas o aval que não indique o avalizado é sempre prestado a favor do sacador”.
Todavia, tal assento, em vez de serenar a polémica à volta de tal questão, teve o condão de tornar ainda mais acérrima aquela discussão, com uma forte corrente de doutrina nacional e estrangeira, encabeçada pelo prof. Vaz Serra, a considerar inaceitável a aludida doutrina fixada pelo referido assento (cfr., por todos, o prof. Vaz Serra, in “RLJ, Ano 108, págs. 78/79/80 – com citação aí de vários autores e jurisprudência estrangeiros, a rejeitarem a doutrina do assento - e o prof. Ferrer Correia, in “Ob. cit. pág. 212”).
Criticas essas - com as quais, desde já avançamos, comungamos – que assentam, essencialmente, no seguinte:
É compreensível que, em relação a terceiros adquirentes de boa fé (e portanto no domínio da relações mediatas) se tenha de aplicar a presunção, juris et de jure, de que o aval, que não indique o avalizado, foi prestado a favor do sacador, dada a necessidade de protecção desses terceiros de boa fé, pois ao adquirirem a letra em tais condições terão provavelmente confiado que o aval tivesse sido prestado pelo sacador, e como tal devem ser protegidos nessa confiança. Na verdade, sendo a letra um título de crédito, e, por isso, dominado, além do mais, pela característica da literalidade, e sendo esta destinada, como é sabido, à protecção de terceiros adquirentes de boa fé, segue-se que em relação a esses terceiros confiados que, por força do §4º do artº 31, o aval se considera dado pelo sacador, já não seria viável ou admissível tomar, para o efeito, em consideração circunstâncias estranhas, ou seja, exteriores ao documento cambiário. E desse modo não poder provar-se no domínio de tais relações (mediatas) ter o aval sido dado por pessoa diversa do sacador.
Porém, já no domínio da relações imediatas, não havendo terceiros de boa fé a proteger, já não faz sentido aplicar as regras específicas de que se revestem os títulos de crédito e que se destinam, fundamentalmente, a proteger a circulação desses títulos e a segurança dos terceiros, de boa fé, deles adquirentes.
Desse modo, nas relações (imediatas) entre o sacador, aceitante e avalista é admissível a prova de que o aval foi dado a pessoa diferente do sacador, e mesmo ainda nos casos em que tal vontade não encontre o mínimo de correspondência no texto da lei, mas que tenha, na realidade, correspondido ao sentir das partes nele envolvidas. É que sendo o aval um negócio formal, por força do disposto no artº 238, nº 2, do CC, deve prevalecer sempre a vontade real das partes, desde que a tal não se oponham as razões determinantes do forma do negócio; razões essas que, como se viu, não ocorrem no caso da relações imediatas (cfr. por todos, prof. Ferrer Correia, in “Ob. cit. pág. 56”; o prof. Vaz Serra, in “Ob. cit., pág. 80, nota 2” e Abel Pereira Delgado, in “Ob. cit. págs. 168/169, nota 11”).
Ora, e como é sabido, ao ser revogado o artº 2º do CC pelo artº 4, nº 2, do DL nº 329-A/95 de 12/12, os assentos deixaram de ter força vinculativa geral, passando (mesmo em relação aos já então proferidos) somente a ter o valor de acordãos de uniformização de jurisprudência, com uma simples função orientadora e indicativa da doutrina neles fixada (cfr. artºs 17, nº 2, do citado DL nº 329-A/95 e artºs 732-A e 732-B do CPC).
Logo, tendo o citado assento do STJ de 1/2/66 deixado de ser vinculativo, e aderindo nós às criticas que lhe eram feitas nos termos e pelas razões que supra se deixaram exaradas, somos levados a concluir que, ao contrário da doutrina que pelo mesmo foi preconizada, no domínio das relações cambiárias imediatas a presunção inserta no §4 do artº 31 da LULL pode ser ilidida mediante prova em contrário, ou seja, de que não tendo sido indicado na letra de câmbio a pessoa a favor da qual foi dado o aval nela inserto é, legalmente, admissível a prova de que o mesmo foi dado a pessoa diferente da do sacador, e mais concretamente a favor do aceitante da mesma. (Vidé em sentido idêntico - muito embora se reconheça que a problemática não é ainda hoje de todo pacífica -, para além da doutrina acima citada, e entre muitos outros, Acordãos do STJ de 9/5/2002, in “CJ, Ano X, T2 - 16”; de 14/10/97, in “BMJ 470 - 637”; de 29/10/2002 e de 21/1/2003, da RC de 12/4/2005, desta secção, da RP de 14/7/2000 e de 17/10/2000, in “www.dgsi.pt”; Acs. da RLx de 20/31997, in “BMJ 46 5 – 646”; e de 20/1/2000, in “CJ, Ano XXV, T1 – 88” e Ac. RC, desta secção não publicado, in “Rec. Apelação nº 954/04”).
Nesses termos, face à posição acabada de defender, e face à alegação feita pela exequente de que o aval aposto nas letras dadas à execução foi dado pelo 2º executado à 1ª executada - aceitante, e até face à prova documental que, desde logo, fez juntar aos autos com o requerimento inicial (que aponta em tal sentido), não poderia srª juiz a quo julgar, ab initio, e à luz do citado artº 31§4, o referido 2º executado parte ilegítima para ser demandado na presente acção.
Porém, somos mesmo de opinião que, no caso em apreço, não se está, em bom rigor, perante uma situação de falta de indicação da pessoa a favor de quem se quis dar o aval.
Na verdade, o 2º executado-avalista com a expressão “dou o meu aval ao subscritor”, seguida, por baixo, da sua assinatura, indicou a pessoa a quem dava o aval, só que não a identificou concreta e completamente.
Não se está, assim, perante um caso de aval em branco.
Tal indicação foi feita, só que de forma imperfeita ou equívoca, e nomeadamente porque, não estando prevista para as letras a figura (jurídica) do “subscritor”, com tal expressão ou designação tanto se pode estar a querer referir à firma sacadora, como à firma sacada (aceitante).
Logo, não será, a nosso ver, de aplicar ao caso o citado §4 do artº 31.
E sendo assim, a resolução do problema situar-se-á no âmbito da interpretação e integração das declarações negociais (cfr. artºs 217 e 236 e ss, e sobretudo, 238, nºs 1 e 2, do CC).
Ora, estando nós no âmbito de um negócio ou acto formal (produzido no domínio das relações imediatas), e mesmo que, no caso em apreço, se considere que o sentido da declaração negocial que vier a ser dado a tal expressão não encontra qualquer mínimo de correspondência no texto que se encontra exarado no referido documento ou título cambiário, sempre haverá que atender à vontade real das partes, ou seja, indagar sobre qual foi a efectiva vontade do 2º executado ao escrever tal expressão, ou seja, sobre a pessoa a quem quis dar aquele seu aval, e mais concretamente se à firma sacadora, se à firma sacada-aceitante, sendo certo que, pelas razões que supra já deixámos exaradas, não se vislumbram razões determinantes da forma desse negócio ou acto que a tal se oponham (muito embora desde já adiantemos que, só pelo teor dos vários documentos juntos autos, tudo indicia que o referido aval foi dada a favor da pessoa da 1ª executada, e tanto mais ainda que o avalista era seu legal representante). Quanto a esta última subquestão, vidé ainda, no mesmo sentido, e para além do prof. Vaz Serra, in “ob. e pág. cit.”; Acordãos do STJ de 10/1/2002, in “CJ, Acs. do STJ, Ano X, TI – 25” e de 18/5/1999, in “BMJ 487 – 347” e ainda, Heinrich Horster, in “A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina 1992, pág. 511”.
Termos, assim, por tudo o exposto, de concluir que, salvo sempre o devido respeito, a srª juiz a quo se precipitou ao julgar, desde logo, o 2º executado parte ilegítima na acção, e nessa medida se revoga, nessa parte, o seu despacho.

3.2 Quanto à 2ª questão
Do indeferimento da execução no que concerne à parte do pedido baseado na letra com data de vencimento em 28/5/02 e bem assim naquelas com datas de vencimento posteriores.
Como é sabido, e resulta do disposto no artº 45, nº 1, do CPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.
Enquanto para uns esse título corresponde à causa de pedir (vidé, por todos, Lopes Cardoso, in “Manual da Acção Executiva, 3ª ed. pág. 27”), já para outros, na acção executiva, a causa de pedir é o facto jurídico de onde provem a obrigação que o título documenta (vidé, por todos, Ac. do STJ de 28/1/91, in “ AJ, 19º - 15” e Prof. Lebre de Freitas, in “Acção executiva, 2ª ed., pág. 61”).
De qualquer modo, o título executivo constitui a base da execução, por ele se determinando o tipo de acção e o seu objecto (nº 1 do citado artº 45) e bem assim a legitimidade activa e passiva para a acção (artº 55, nº 1, do CPC).
Tal como resulta do nº 1 do citado artº 45, e no dizer do Prof. Lebre de Freitas( in “Código de Processo Civil anotado, vol. 1º, Coimbra Editora, pág. 87), “o objecto da execução tem de corresponder ao objecto da situação jurídica acertada no título”, “sendo também pelo título que se determina o quantum da prestação”.
Títulos executivos esses que se encontram tipificados no artº 46 do CPC (na redacção anterior ao DL nº 38/03 de 8/3, não sendo este aqui aplicável dado a presente acção já se encontrar em vigor aquando da sua entrada em vigor – cfr. seus artºs 21 e 23), e dos quais aqui interessa realçar os previstos na sua al. c), ou seja, “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artº 805...”.
Como é sabido, com a reforma do CPC/95, e ao contrário do que sucedia até aí, os títulos de créditos ou cambiários deixaram de ser autonomizados, passando a incluir-se na previsão dos documentos particulares a que se alude na citada al. c) do artº 46. (Vidé, a propósito e por todos, o cons. Lopes do Rego, in “Comentário ao Código de Processo Civil, Almedina, pág. 69”).
No caso em apreço destes autos, a exequente deu à execução (como a própria afirma – vidé, por ex, artº 10 do seu requerimento executivo) 33 letras cambiárias, de que se reclama legítima portadora, pretendendo obter o pagamento do montante nelas titulado, descontado do valor correspondente aos juros nelas incorporadas e em relação àquelas cujo vencimento ainda não tinha ocorrido aquando da instauração da acção. Letras essas nas quais figura a 1ª executada como sua aceitante e, alegadamente, o 2º executado como avalista da primeira. Letras essas que, conforme previamente começou por alegar, tiveram a sua origem numa dívida que a primeira executada contraiu para consigo, e que resultou de um acerto de contas, tendo ficado acordado, entre ambas, que o seu pagamento seria efectuado em 36 prestações (no montante de esc. 308.527$00 cada), mensais e sucessivas, a vencerem juros a 12%, tendo para pagamento das mesmas a 1ª executada emitida 36 letras, com as datas de vencimento acima referidas.
Ora não tendo a 1ª executada pago 9 dessas letras já vencidas, entende a exequente que todas as demais prestações se venceram, nos termos do artº 781 do CC, pelo que apresentou à execução todas as demais letras (que consubstanciariam tais prestações) sacadas àquela, independentemente de ainda não ocorrido a data de vencimento aposta em cada uma delas.
As letras dadas à execução são pagáveis em dia certo, pelo que, como regra, devem ser apresentadas a pagamento no dia nelas indicado ou num dos dois dias úteis seguintes (cfr. artºs 33§5º e 38).
Por outro lado ainda, preceitua o artº 33§6º que as letras, quer com vencimentos diferentes, quer com vencimentos sucessivos, são nulas.
Por outro lado, é sabido que as letras são, além de mais, títulos de créditos literais (significando tal que a constituição da obrigação se faz pela simples inspecção do título, e daí que o seu conteúdo não pode ser modificado, nem a sua existência e validade contestadas, através da invocação de elementos estranhos ao próprio contexto do documento) e abstractos (o que significa, desde logo, que elas são independentes da sua causa debendi. Mesmo que no próprio título se faça expressa referência à relação jurídica causal, a obrigação cambiária continua a ser independente da obrigação fundamental, tendo uma vida própria).
Ora, compulsando o despacho recorrido, verifica-se que foi, essencialmente, com base em tais normativos e princípios que se indeferiu o pedido executivo assente nas letras, dadas à execução, cujas datas de vencimento nelas apostas ainda não tinha ocorrido (e que acima fizemos referência).
Porém, não obstante o comando inserto no acima citado artº 33§5, que proíbe as letras com vencimentos diferentes ou sucessivos, ou seja, que o montante das letras possa ser designado em prestações, vem-se entendendo, todavia, poder emitir-se tantas letras quanto as prestações convencionadas.
Porém, quando – como alegadamente aconteceu no caso em apreço – a divida originária e total está titulada numa pluralidade de letras, com vencimentos em datas diferentes, isto é, quando se emitem tantas letras quantas as prestações convencionadas, tem-se colocado a questão de saber se, não sendo paga a letra relativa a uma das prestações, se vencem automaticamente as restantes, nos termos do artº 781 do CC?
Tal questão não se mostra consensual, sendo que, contudo, há uma corrente de opinião que defende que muito embora tal não seja possível no domínio da relações mediatas (pois, uma vez postas em circulação, as letras passam a ser independentes umas das outras, e regulamentadas apenas pelo direito cambiário), já, porém, é possível aplicar o citado artº 781 do CC quando se está apenas no domínio das relações imediatas, pois aí, dado que as letras não entraram em circulação e não havendo, assim, necessidade de proteger a segurança dessa circulação e bem como dos terceiros de boa fé, já lhe não é aplicável o regime especial de que estão revestidas, e, nomeadamente, aquele que emerge dos princípios e características de que supra falámos, tudo então se devendo passar como se a obrigação estivesse sujeita ao regime geral das obrigações (neste sentido, vidé o prof. Vaz Serra, in “RLJ Ano 74 – 373 a 377, e Ac. do STJ de 17/10/75” e em sentido contrário vidé, por ex, Avelino Moreira, in “Sciência Jurídica, 4º - 493”).
Embora não isentos de dúvidas (e, por isso, sem prejuízo de um período ainda de maior reflexão sobre o assunto), considerando, por um lado, que estamos no âmbito de uma acção executiva, cujos títulos que lhe servem de base são letras cambiárias, e, por outro, todos os princípios acima enunciados, decorrentes das características da literalidade e da abstracção de que se revestem as letras (é que, ao contrário do que se possa pensar, esta questão é completamente distinta daquela outra que analisámos em 1º lugar sobre a interpretação do artº 31§4) e bem assim ainda como o disposto nos artºs 45, nº 1, do CPC e artºs 33§§5º e 6º e 38 da LU, somos levamos a inclinarmos para o entendimento de não ser aqui aplicável, mesmo no domínio da relações imediatas, o disposto no artº 781 do CC.
Porém, mesmo que porventura se admitisse que o fosse, atentemos no seguinte:
Estipula tal normativo (inserido no capítulo VII do Código Civil, dedicado ao regime geral do cumprimento e não cumprimento das obrigações) que “se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”.
Como resulta do ponto 2.8 dos factos assentes, a 1ª executada veio entretanto, depois do despacho recorrido, a ser declarada falida, e, em consequência, pelo tribunal a quo foi proferida sentença, já transitada, a declarar extinta a presente execução instaurada contra a mesma.
Pelo que a exequente veio manifestar, ainda no tribunal da 1ª instância, vontade da subida deste recurso, com o fim de a execução poder prosseguir contra o 2º executado-avalista.
Facto esse (jurídico superveniente) que não poderemos deixar de atender nos termos e por força do estatuído no artº 663, nº 1, do CPC.
Ora, prosseguindo a execução apenas contra o 2º executado, avalista da 1ª executada (entretanto falida), se fosse de aplicar ao caso o citado artº 781 do CC, nunca, assim, a execução poderia prosseguir contra o mesmo no que concerne á parte do pedido beseado nas letras cuja data de vencimento nelas apostas ainda não tinha decorrido aquando da instauração da acção, já que, nos termos do disposto no artº 782 do CC, “a perda do benefício do prazo não se estende aos co-obrigados do devedor...”.
Todavia, já, assim, não sucede porque estando nós no âmbito das obrigações cambiárias, ocorre aqui uma excepção à regra geral, consagrada no artigo 43 da LULL. Como regra aí se estipula que o portador de uma letra pode exercer os seus direitos de acção, contra os endossantes, sacador e outros co-obrigados, no vencimento da mesma se o seu pagamento não foi efectuado. (sublinhado nosso)
Porém, e como excepção a tal regra, resulta do estipulado no nº 2 de tal normativo, que o portador de uma letra pode exercer os seus direitos de acção contra qualquer um daqueles obrigados mesmo antes do seu vencimento, no caso de falência do sacado. (sublinhado nosso)
Ora, face a tal dispositivo legal, como entretanto a 1ª executada - sacada e aceitante das letras dadas à execução – faliu (o que, como já vimos, determinou que a execução tenha sido declarada extinta contra si), a exequente poderá, assim, demandar executivamente o 2º executado (avalista das mesmas, alegadamente a favor daquela) no que concerne mesmo às letras cuja data de vencimento, nelas apostas, ainda não tinha decorrido aquando da instauração da presente acção.
Ter-se-á, desse modo, de concluir que, no que concerne à sobredita questão, o recurso, ainda que por fundamentos divergentes dos aduzidos pela agravante, terá de proceder, devendo, nesses termos, a execução prosseguir contra o 2º executado mesmo relativamente às aludidas letras cuja data de vencimento não ainda tinha decorrido aquando da instauração da execução, a qual, deverá, assim, prosseguir, agora, com base em todas as sobreditas letras (sendo certo que possuindo, agora, a exequente, por força do facto jurídico superveniente acima aludido, fundamento legal para o efeito, não faria, a nosso ver, sentido obrigá-lo a instaurar uma nova acção só com base em tais letras, tanto mais que a execução ainda não passou da sua fase inicial de instauração, o que colidiria ainda com princípio da economia processual, tão caro ao legislador da actual reforma).

3.3 Quanto à 3ª questão
Da taxa de juros aplicável.
A exequente pretende que os juros moratórios sejam contabilizados a uma taxa de 12% por, no fundo, tal corresponder, no essencial, às taxas então em vigor para as empresas comerciais – como o são quer a exequente-sacadora, quer a executada-aceitante -, tal como decorre da aplicação do artº 102§3º do C. Com. e Portaria, então vigor, nº 262/99 de 12/4, sendo certo que a dívida resultou de actos comerciais.
A srª juiz a quo entendeu que tal taxa não deveria ir além dos 7%, por força de aplicação ao caso das taxas de juros civis, resultante da portaria, então em vigor, nº 263/99 de 12/4.
Aqui afigura-se-nos, salvo o devido respeito por opinião em contrário, assistir razão à srª juiz a quo, e, resumidamente, pelo seguinte:
Já atrás se deixou expresso que estamos no domínio da relações cartulares, ou seja, das obrigações cambiárias, baseadas nas letras dadas à execução.
Como já resulta do acima expresso, as letras estão sujeitas a uma disciplina jurídica especial. Especialidade essa que se sintetiza nos seguintes princípios: a) incorporação da obrigação no título (significando isso que a obrigação e o título constituem uma unidade); b) literalidade da obrigação (significando tal que a constituição da obrigação se faz pela simples inspecção do título); c) abstracção da obrigação (significando tal que a letra é independente da “causa debendi”; d) independência recíproca das várias obrigações incorporadas no título (significando tal que a nulidade de uma das obrigações que a letra incorpora não se comunica às demais); e) e, por fim, a autonomia do direito do portador (significando tal que o portador é considerado credor originário).
Ora, com base nos princípios da incorporação, da literalidade e da abstracção não se poderá aqui atender, desde logo, a relação fundamental ou subjacente.
Por outro lado, estipula o nº 3 do artº 48 da LU que o portador da letra pode reclamar daquele contra quem exerce o seu direito de acção os juros à taxa de 6 por cento, desde a data do seu vencimento.
Porém, e como é sabido, com vista a pôr termo à acesa polémica que então se instalara a tal propósito, foi proferido, pelo STJ, o assento de 13/7/92 (publicado no DR, Iª S, de 1/12/92) que estabeleceu então a seguinte doutrina vinculativa: “As letras e livranças emitidas e pagáveis em Portugal é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios, a taxa que decorre do disposto no artº 4 do DL nº 262/83 de 16/6”.
Ora, o citado artº 4 do DL 262/83 reza assim: “o portador de letras, livranças ou cheques, quando o respectivo pagamento estiver em mora pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais”.
Como acima vimos, tal assento passou a ter, simplesmente, o valor de acordão uniformizador de jurisprudência, sendo, todavia, praticamente pacífico o entendimento de que a sua doutrina mantém ainda hoje actualizada e como tal de seguir.
Logo, por tudo o exposto, será de aplicar ao caso dos autos a taxa de juros legais civis em vigor, em cada momento (artºs 559 do CC e respectivas portarias), sendo certo que aquela que decorre do citado artº 102 §3º do C. Com. é uma taxa supletiva, e como tal só poderia, quando muito, ser aplicada caso estivéssemos numa acção declarativa e aí fosse invocada ou então, na hipótese extrema, se de cada letra (dada como título executivo) constasse expressamente que a mesma provinha de relações comerciais. (vidé, neste sentido, entre outros, Ac. da RC de 1/6/99, in, “BMJ 483 – 418”; Ac. da RC de 7/7/98, in “BMJ 479 – 725” e Ac. da RE de 18/3/99, in “CJ, Ano XXIV, T2 – 264” ).
Pelo que, nessa parte, não nos merece censura o despacho recorrido, pelo que, quanto a tal questão, se julga improcedente o recurso.
***
III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso (de agravo), revogando-se o despacho recorrido na parte em que julgou o 2º executado, C..., parte ilegítima e em que indeferiu pedido executivo baseado na letra com vencimento em 28/5/02 e bem assim naquelas com datas de vencimento posteriores – mantendo-se, todavia, o mesmo quanto ao demais -, pelo que a acção deve prosseguir os seus ulteriores trâmites contra aquele 2º executado, nos termos em que acabou de ser decidido.
Custas pela exequente, na proporção do seu decaimento e que para o efeito fixo em 1/3.

Coimbra,2005/10/25