Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
214/20.7GAACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR
CONTAGEM DA PENA
REGIME APLICÁVEL
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 41.º, N.º 4, 69.º, N.ºS 2, 3, 4 E 6, DO CP; ARTºS. 4.º, 467.º, N.º 1, 479.º, AL. B), 500.º, N.ºS 2, 3 E 4 E 467.º, N.º 1 DO CPP; ART. 24º DO CÓDIGO DE EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE
Sumário: I – A proibição de conduzir veículos com motor prevista no art. 69º do Código Penal, apesar de dependente da aplicação de uma pena principal, relativamente à qual assume carácter assessório, constitui uma verdadeira pena.

II – O cumprimento desta pena acessória inicia-se com a apreensão do título que permite o exercício da condução ou com a sua voluntária entrega.

III – Na ausência de disposição expressa relativa à contagem desta pena acessória são analogicamente aplicáveis, por força do disposto no art. 4º do CPP, as regras de contagem da pena de prisão, considerando-se como dia do início da execução a data da apreensão ou entrega do título que habilita ao exercício da condução, que poderá ser levantado no dia em que termina o cumprimento da pena.

Decisão Texto Integral:





Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

            Nos autos de processo abreviado supra referenciados, após o Ministério Público ter procedido à liquidação da pena acessória de proibição de condução de veículos com motor imposta ao arguido, foi proferido despacho que, na parte relevante para o presente recurso, tem o seguinte teor:

            I. Pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor (pena de cinco meses):

            Data do início: 07.05.2021 - data da entrega do título.

            Data do término: 07.10.2021 (sem prejuízo de alteração da data caso se apure que o arguido é titular de outro documento válido que lhe permita conduzir veículos com motor/verificação do previsto no art. 69.º, n.º 6, do CP – privações de liberdade).

            Discorda-se do entendimento vertido da promoção que antecede porquanto, inexistindo disposição expressa quanto ao inicio da contagem da referida pena, parece-nos que o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir se inicia, após o trânsito em julgado da decisão condenatória, no dia em que se verificou a entrega do título de condução.

            Efectivamente tem sido este o entendimento adoptado pelos nossos Tribunais superiores.

            Neste sentido veja-se, a titulo exemplificativo, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04.02.2021, proferido no processo n.º 778/07.0PAOLH-A.E1, salientou que “O cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir só se inicia, após o trânsito em julgado da decisão condenatória, no dia em que se verificou a entrega do título de condução no Tribunal a quo, à ordem do processo”, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 05.12.2007, proferido no processo n.º178/06.OGTCBR onde se escreve “O cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir só se inicia, após o trânsito em julgado da decisão condenatória, no dia em que se verificou a entrega do título de condução” (sublinhado nosso).

            Também o acórdão do Tribunal da relação do Porto, de 02.02.2011, proferido no processo n.º 136/10.0GCOVR.P1 no qual se escreve “Se é certo que a pena acessória de proibição de conduzir produz efeitos a partir do trânsito em julgado da condenação, também o é que a sua execução não se inicia sem que o título de condução esteja junto ao processo.” E ainda que “Duas diferentes situações de facto, comummente, há, desde logo, a considerar: 1. a licença de condução não se encontra apreendida no processo; 2. a licença de condução já se encontra apreendida no processo. Na 1ª hipótese, o cumprimento da pena acessória começa a partir do momento em que tal documento, porque foi entregue voluntariamente pelo condenado no prazo de 10 dias a contar do trânsito no tribunal ou em qualquer posto policial, quer porque foi apreendido por ordem do tribunal face à não entrega voluntária, deixa de estar na posse do condenado e passa a ficar à ordem do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição, após o que será devolvido àquele.”

            Ora, perguntamos nós, se o cumprimento da pena acessória, a sua execução, se inicia com a entrega da carta de condução, precisamente no momento em que o titulo é entregue, que sentido faz que o seu computo se inicie apenas no dia seguinte à entrega do titulo? Não nos parece, sem quebra de vénia por distinta opinião, razoável tal entendimento, que ademais se mostra prejudicial ao condenado.

            Tal entendimento – de que o cumprimento da pena acessória e consequentemente o seu computo se inicia com a entrega/remessa do titulo de condução e não no dia subsequente - foi adoptado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de proferido no processo n.º 230/18.9PTCBR.C1, no qual tendo a carta de condução sido remetida aos autos em causa em 13.05.2020, o Tribunal da Relação liquidou tal pena entendendo que o seu terminus ocorreria em 13.02.2021 e ainda no acórdão de 04.12.2019, dessa mesma Relação, proferido no processo n.º 37/17.0PTLRA-A.C1 que confirmou o entendimento do recorrente no sentido de que “3.O arguido entregou a sua carta de condução, em 19.09.2018, para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir em que foi condenado. 4. O início de contagem do cumprimento sanção acessória de inibição ocorreu em 19.09.2018, 5. A referida sanção acessória de inibição de conduzir tem-se por cumprida em 19.12.2018.”

            Notifique.

Inconformado, recorre o Ministério Público, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

            1. Nos presentes autos, o arguido foi condenado, além do mais, na pena acessória de 5 cinco) meses de proibição de conduzir veículos a motor, tendo procedido à entrega do seu título de condução no dia 07-05-2021.

            2. Sendo o período de proibição de conduzir um prazo (substantivo), não existindo regra específica para o seu cômputo, são aplicáveis as regras ínsitas no artigo 279.º ex vi do artigo 296.º, ambos do Código Civil, sendo, aliás, entendimento perfilhado pelo Tribunal ad quem no recentíssimo Acórdão de 10-03-2021, no processo n.º 96/20.9PAACB-A.C1.

            3. De acordo com a previsão do artigo 279.º, alínea b), do Código Civil, sendo “o evento a partir do qual o prazo começa a correr”, em concreto, entrega do título de condução, o dia em que tal evento ocorreu não é havido na contagem do prazo sub judice, pelo que o primeiro dia do prazo da pena acessória corresponde ao dia 08-05-2021.

            4. Ademais, conforme dita a alínea c), do referido preceito legal, o prazo fixado em meses termina às 24 horas do dia que corresponda, dentro do último mês, a essa data logo o último dia do prazo da pena de proibição de condução corresponde ao dia 08-10-2021, vigorando tal pena todo esse último dia, desde as 00h01m até às 24h00m.

            5. Neste sentido, o título de condução apenas poderá ser restituído ao arguido a partir das 00h01m, do dia 09-10-2021.

            6. O despacho recorrido, ao não aplicar a regra de cômputo de prazos, prevista na alínea b) do artigo 279.º do Código Civil ex vi do artigo 296.º, do mesmo diploma, recorrendo implícita e ilegitimamente à analogia, padece de ilegalidade.

            7. Razão pela qual o Ministério Público pugna pela revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que estabeleça que o prazo de 5 (cinco) meses da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor aplicado na sentença condenatória vigora até às 24h00 do dia 08-10-2021, determinando que o arguido apenas poderá proceder ao levantamento da carta de condução a partir das 00h01 do dia 09-10-2021.

           

Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se pela improcedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais.

O âmbito do recurso, segundo jurisprudência constante, afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, donde se segue que no caso vertente importa apenas averiguar como se processa a contagem da pena acessória de proibição de condução de veículos, nomeadamente, se esta se inicia no dia da apreensão ou entrega do título de condução ou no dia imediatamente subsequente e quando termina.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

            O enquadramento da questão suscitada no recurso deverá partir do disposto nos artigos 69º, nºs 2, 3, 4 e 6, do Código Penal, 500º, nºs 2, 3 e 4 e 467º, nº 1 do Código de Processo Penal, ainda que não se cinja apenas a essas normas.

            Como ponto de partida da indagação pressuposta pela questão suscitada relembrar-se-á que chegou a ser controversa a natureza da medida de inibição da faculdade de conduzir em tempos prevista no art. 61º do Código da Estrada, tendo o STJ fixado jurisprudência no sentido de que «a inibição da faculdade de conduzir, estatuída no art. 61º do CE, constitui uma medida de segurança» [1], solução que adensou críticas na doutrina, posto que já vinha sendo apontada a necessidade de o direito penal geral, e não apenas o direito penal de circulação rodoviária, dispor de uma verdadeira pena acessória de proibição de condução de veículos automóveis [2]. Nesse sentido se desenhou a evolução do direito penal, de tal modo que a proibição de conduzir veículos com motor, hoje constante do 69º do Código Penal, integrada num capítulo dedicado às penas acessórias e aos efeitos das penas, constitui uma verdadeira pena acessória; não tanto por força da sua inserção sistemática, mas porque apesar de dependente da aplicação de uma pena principal se encontra estruturada como uma verdadeira pena, não prescindindo a sua aplicação do juízo de culpa, como melhor se verá mais adiante.

            Atentemos, por agora, no teor dos comandos legais que já apontámos:

            Art. 69.º do Código Penal (Proibição de conduzir veículos com motor):

            1 – (…)

            2 - A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria.

            3 - No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.

            4 - A secretaria do tribunal comunica a proibição de conduzir à Direcção-Geral de Viação no prazo de 20 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, bem como participa ao Ministério Público as situações de incumprimento do disposto no número anterior.

            5 - (…)

            6 - Não conta para o prazo da proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança.
            7 - (…)

           

            Artigo 467.º do Código de Processo Penal (Decisões com força executiva):

            1 - As decisões penais condenatórias transitadas em julgado têm força executiva em todo o território português (…).

             2 – (…) 

            Art. 500º do Código de Processo Penal (Proibição de condução):

            1 - (…)

            2 - No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.

            3 - Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.

            4 - A licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período a licença é devolvida ao titular.

            5 - (…)

            6 - (…)

            A interpretação conjugada dos normativos acabados de transcrever pressupõe que se tenha por adquirido que a circunstância de no nº 2 do art. 69º do Código da Estrada se mencionar que a proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão (…) não significa que o cumprimento da pena acessória se inicie com o trânsito em julgado. Este segmento da norma visou apenas clarificar que a pena acessória só se torna exequível após o trânsito em julgado da decisão condenatória, conforme vem sendo acentuado tanto pela doutrina como pela jurisprudência claramente maioritárias e que perfilhamos [3]. Na verdade, a exequibilidade da pena não se confunde com o respectivo cumprimento; ainda que se torne exequível com o trânsito em julgado da sentença que a aplicou, o cumprimento da pena acessória apenas se inicia com a efectiva entrega ou apreensão do título que autoriza o exercício da condução, sendo esse o sentido normativo do nº 3 do art. 69º do Código Penal, recebido também no nº 3 do art. 500º do CPP. Aliás, a conjugação desta última norma com o nº 4 do mesmo artigo não deixa dúvidas quanto à circunstância de a apreensão da licença ter em vista retirar esse título da posse do condenado durante o período de tempo em que perdurar o cumprimento da pena acessória, única forma eficaz de permitir um controle, ainda que residual, do cumprimento daquela sanção. O incumprimento do dever do condenado de se abster de conduzir veículos com motor é normalmente verificado apenas em situações de controle policial em que é exigida a exibição da carta de condução e em que o condutor a não exibe, situação que leva à verificação da efectiva titularidade de licença de condução pelo fiscalizado, permitindo também verificar as vicissitudes a ela associadas, nomeadamente, a proibição de conduzir.

            O nº 4 do art. 500º do CPP constitui um primeiro passo para evidenciar a falta de razão do recorrente. Na verdade, se a licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição (…), como se diz naquela norma, não poderá ser desconsiderado na contagem da execução da pena o dia em que o título de condução é entregue pelo condenado ou em que a carta de condução é apreendida.

            Já antes referimos que a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor constitui hoje uma pena em sentido próprio (e não uma medida de segurança ou uma mera consequência do crime e da subsequente condenação). Sendo assim, à contagem da pena acessória serão aplicadas as mesmas regras que presidem à contagem da pena principal. Ora, quanto a esta última, confrontada com a inexistência de penas fraccionadas em lapsos de tempo inferior a um dia, a jurisprudência vem acentuando a necessidade de ficcionar o dia de início de cumprimento da pena como um período de 24 horas, ainda que tenha sido inferior – e normalmente será – o período de detenção sofrido nesse dia. É esse o único entendimento constitucionalmente conforme, porquanto o que em absolto se não poderá admitir é que por força do modo de contagem da pena o condenado possa ser colocado na contingência de ter que cumprir uma pena com duração superior à determinada na sentença, o que redundaria num excesso de pena, em violação do princípio da legalidade.

            Não vemos razão para proceder de modo diverso no que concerne à contagem da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor; trata-se, repetimos, de uma verdadeira pena, a que é assinalado um carácter de reforço da pena principal, visando a sua aplicação a diversificação e reforço do conteúdo sancionatório da condenação penal [4]. Aliás, esta pena acessória foi introduzida no Código Penal fruto de necessidades político-criminais decorrentes da elevada sinistralidade rodoviária e apresenta-se indissociavelmente ligada ao facto praticado e à culpa do agente, assinalando-se-lhe ainda efeitos gerais de intimidação, legítimos, porque a considerar dentro do limite da culpa [5]. É uma sanção dotada de moldura penal própria, dentro da qual o tribunal tem que determinar casuisticamente a pena concreta em obediência ao disposto no art. 71º do Código Penal, observando, na sua determinação, os mesmos critérios previstos para a fixação da pena principal

                Sustenta o recorrente que o período de inibição de conduzir constitui um prazo substantivo, sendo aplicáveis ao seu cômputo as regras do art. 279º do Código Civil, por força do art. 296º do mesmo diploma. Por conseguinte, tendo o arguido procedido à entrega do seu título de condução no dia 07/05/2021 e visto o disposto no art. 279º, al. b), do Código Civil, sendo aquele o evento a partir do qual o prazo começa a correr, o dia em que esse evento ocorreu não seria de considerar na contagem do prazo, pelo que o primeiro dia de inibição de conduzir seria o dia 8 de Maio de 2021. Por outro lado, na medida em que por força da alínea c) do mesmo artigo o prazo fixado em meses termina às 24 horas do dia que corresponda, dentro do último mês, a essa data, o último dia do prazo da pena de proibição de condução corresponderia ao dia 08/10/2021, vigorando tal pena todo esse último dia, desde as 00h01m até às 24h00m. Assim, o título de condução apenas poderia ser restituído ao arguido a partir das 00h01m do dia 09/10/2021.

                Esta posição encontra suporte em alguma jurisprudência (inclusivamente, nesta mesma Relação e Secção Criminal [6]) de que o recorrente se socorre na sua argumentação, mas cuja orientação não partilhamos, ressalvada a máxima consideração pelos respectivos subscritores.

            Contrariamente ao que vem sustentado, entendemos que a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor não constitui tecnicamente um prazo, ainda que a lei se lhe refira assim no art. 69º, nº 6, do Código Penal, quando dispõe que não conta para o prazo da proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade. Do mesmo modo, a pena de prisão não constitui um prazo em sentido técnico-jurídico, ainda que no art. 41º, nº 4, se estipule que a contagem dos prazos da pena de prisão é feita segundo os critérios estabelecidos na lei processual penal e, na sua falta, na lei civil. Sucede que o legislador, no desenvolvimento das ideias que pretende plasmar na lei, ora se socorre de vocábulos eminentemente técnico-jurídicos, ora utiliza expressões correntes da linguagem comum. A dúvida pode colocar-se, como sucede no caso vertente, quando o mesmo vocábulo ou expressão tanto podem ser usadas na acepção comum como na vertente técnico-jurídica. A linguagem comum tende a confundir “prazo” com “período”, usando os dois vocábulos como sinónimos. Ambos são lapsos de tempo balizados por dois momentos, sendo tarefa ingrata a de encontrar uma construção sólida que do ponto de vista linguístico permita distinguir o seu campo de aplicação na linguagem comum, tal a profusão de sentidos com que um e outro são utilizados. Já na linguagem jurídica, o vocábulo «prazo» está normalmente associado a um significado mais preciso, delimitando o lapso temporal para a prática de um acto (por exemplo, para a interposição de recurso) ou para a vigência de um determinado estado (por exemplo, os prazos máximos de prisão preventiva).

                No caso a que nos reportamos, a lei utiliza o primeiro no nº 6 do art. 69º do Código Penal e o segundo no nº 4 do art. 500º do Código de Processo Penal, consagrando na norma referente à execução da pena que a licença de condução fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição. Decorrido esse período a licença é devolvida ao titular.

            Temos escrito, a propósito das questões interpretativas que se vão colocando, que é no contexto das significâncias vertidas no texto que haverá que encontrar a dimensão que se pretendeu imprimir à palavra escrita. A própria linguagem, segundo Nietzsche, é metáfora do real, no sentido em que ele nela cria uma transposição que se afirma em dois planos distintos: na relação do locutor com o interlocutor e nas comparações que assemelham ou diferenciam elementos significáveis, tornando a palavra compreensível. Nessa medida, a palavra escrita acaba por ser um jogo de «significâncias»[7], cuja decifração exige a ponderação dos interesses que a movem e das interpretações que se lhes ajustam, particularmente numa língua tão rica de conteúdos como é a língua portuguesa, em que são frequentes, entre uma palavra e o seu antitético, progressivas graduações de significado.

            Ainda que renovando estas considerações, do que cuidamos agora é de determinar a forma de contagem da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor. A determinação da medida desta pena acessória constitui uma tarefa conformada pelo direito substantivo, partindo da moldura legal e aplicando o critério que já indicámos. Não assim no que concerne à execução da pena, tarefa regulada pelo direito adjectivo. É certo que não existe uma norma específica para a contagem da pena acessória, contrariamente ao que sucede para a contagem da pena de prisão. Essa ausência implica que o caminho a seguir seja o indicado pelo art. 4º do CPP, em cujos termos nos casos omissos, quando as disposições deste código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.  Ou seja, o iter passa pela averiguação, em primeiro lugar, da possibilidade de aplicação analógica de outras normas. A interpretação analógica apenas se deverá considerar vedada “na medida imposta pelo conteúdo de sentido do princípio da legalidade e, portanto, sempre que o recurso venha a traduzir-se num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos «processuais» do arguido (desfavorecimento do arguido, analogia in malam partem)” [8]. Não se revelando possível, a solução deverá ser procurada nas normas de processo civil que se harmonizem com o processo penal. Na falta delas, a questão será resolvida por aplicação dos princípios gerais do processo penal, tal como têm sido desenvolvidas pelos tratadistas.

            No caso de que nos ocupamos tem pleno cabimento a analogia com o regime previsto para a pena de prisão. Ora, dispõe o art. 41º, nº 4, do Código Penal, que a contagem dos prazos da pena de prisão é feita segundo os critérios estabelecidos na lei processual penal e, na sua falta, na lei civil. Segue-se, pois, que aplicando analogicamente o previsto no art. 479º, al. b), do CPP, a pena fixada em meses é contada considerando-se cada mês um período que termina no dia correspondente do mês seguinte ou, não o havendo, no último dia do mês. Da mesma forma, haverá que aplicar o princípio a que já aludimos, de ficcionar o dia do início da contagem como um período completo de 24 horas, a considerar na contagem do cumprimento da pena. De outro modo, o condenado seria injustamente penalizado, com violação do princípio da legalidade. Por fim, lançando mão do dispositivo hoje constante do art. 24º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, há que admitir a possibilidade de levantamento do título entregue ou apreendido no dia em que termina o cumprimento da pena acessória.

            Tanto basta para se concluir pela improcedência do recurso.

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, confirmando o douto despacho recorrido.

Sem taxa de justiça, por dela estar isento o M.P.



Coimbra, 10 de Novembro de 2021

(texto processado pelo relator, revisto por ambos os signatários e assinado electronicamente)

Jorge Miranda Jacob (relator)

Maria Pilar Oliveira (adjunta)


[1] - Acórdão do STJ de 29 de Abril de 1992.
[2] - Neste sentido, vide Figueiredo Dias, Direito Penal Português- As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 164/165.
[3] - Afastando assim a tese que apontava para o início do cumprimento daquela pena com o trânsito em julgado e independentemente da entrega ou apreensão do título.
[4] - Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 181.
[5] - Figueiredo Dias, idem, pág. 165.
[6] - Acórdão de 07/07/2021, proc. nº178/14.6GLTRA-B.C1; Acórdão de 10/03/2021, proc. n.º 96/20.9PAACB.C1,
[7] - Sobre o tema, veja-se Enciclopédia Einaudi – Oral / escrito / argumentação, Vol. 11, págs. 118 e ss. e 146 e ss.
[8] - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pág. 97.