Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
842/10.9PEAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CRIME CONTINUADO
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
Data do Acordão: 09/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 30º, N.º 2, DO C. PENAL
Sumário: A figura do crime continuado constitui uma excepção à regra do concurso em caso de pluralidade de infracções, consentida graças à concorrência de determinados requisitos mitigadores enunciados no n.º 2, do art.º 30º, do C. Penal, entre os quais se encontra a verificação de uma situação exterior propiciadora da execução e susceptível de diminuir consideravelmente a culpa.
Trata-se de saber, em cada caso concreto, quando é que podemos afirmar que houve, de modo exterior ao agente, um condicionalismo que facilitou a sua acção e consequentemente degradou a respectiva culpa. Tem-se por adquirido que o fundamento da aludida minorização da culpa há-de ir buscar-se em algo que, de fora, isto é, alheio ao agente, e de modo considerável, ou seja, significativamente, facilitou a repetição da actividade criminosa, «tornando cada vez menos exigível ao agente - como anota Eduardo Correia - que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito».
Por conseguinte, a pedra de toque deste requisito será sempre um condicionalismo exógeno ao agente que lhe facilita a recaída e o torna, na circunstância, menos culpado.
Assim, se o agente concorre, minimamente que seja, para que esse quadro exterior se desenhe, não pode obviamente aproveitar-se das condições que criou e ver configurada uma situação de continuação criminosa.
É exactamente esta a linha de orientação da nossa jurisprudência, quando afirma que não haverá crime continuado, mas concurso de infracções, «quando as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa, mas, pelo contrário, são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa».
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. Na Comarca do Baixo Vouga, após julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, foi proferida decisão do seguinte teor:
A) Absolver o arguido A..., actualmente detido no EP de Coimbra, da prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro;
B) Condenar o arguido A..., pela prática de sete crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 1 (um) ano de prisão por cada um deles;
C) Condenar o arguido A... na pena conjunta de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão;
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2. Inconformado, o arguido interpôs recurso do acórdão, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª - O arguido, ora recorrente, discorda e não se conforma com a decisão proferida no acórdão do Tribunal a quo, no que diz respeito à aplicação da matéria de direito, por entender que a factualidade provada consubstancia um crime continuado e, em consequência, e ainda de acordo com a mesma, deveria a pena que lhe fosse aplicada ser suspensa na sua execução.
Vejamos:
2.ª - Nos termos do consagrado no art. 30 n.º 2 do C.P., o crime continuado ocorre quando, através de várias ações criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade, homogeneidade, e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, quadro de solicitação externa, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente.
3.ª - No caso “sub iudice” uma repetição criminosa que não afasta a forma de crime continuado, uma vez que ela resultou de uma renovação de oportunidades que proporcionaram ao arguido a repetição da sua conduta anterior.
4.ª - As situações favoráveis à reiteração criminosa não foram criadas pelo arguido; a realidade exterior verificada, a não intercetação do mesmo pelas autoridades é que solicitou o arguido, é que lhe facilitou o caminho da prática reiterada do ilícito. Foram as circunstâncias externas, que sendo sempre as mesmas, e anteriormente experimentadas com sucesso pelo arguido, facilitaram a repetição da condução do veículo.
5.ª - No quadro da mesma situação exterior que tinha proporcionado a sua primeira conduta, o que vem novamente favorecer a tentação da sua repetirão, nada lhe tendo, entretanto, acontecido, o que voltou a fazer com que cada vez fosse menos exigível ao arguido comportar-se diferentemente.
6.ª - O pressuposto de diminuição considerável da culpa do agente, constante do n.º 2 do artigo 30.º do C. Penal, está directamente relacionado com fatores externos, que facilitem a repetição de atitude já anteriormente assumida.
7.ª - O arguido apenas terá acedido a esses chamamentos exteriores, a essas novas oportunidades surgidas, para continuar a conduzir sem a respectiva licença, pois que o arguido nunca foi intercetado pela polícia. Efetivamente, desde 13 de Abril a 10 de Agosto de 2010, tal como ficou assente, à luz do princípio das regras da experiência e livre apreciação da prova, de acordo com o preceituado no art.127.º do C.P., na matéria de fato provada, o arguido conduziu por diversas vezes sem que tenha sido intercetado pela polícia.
8.ª - “Ponto decisivo para unificação de uma pluralidade de crimes na forma de um só crime continuado será, verdadeiramente, a existência de uma situação exterior que consideravelmente facilite a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com a norma” - de acordo com os ensinamentos de Eduardo Correia.
9.ª - “A isto acresce que, salvo melhor opinião, nem toda a separação temporal na actividade do agente importa em pluralidade de resoluções. Há diversos atos separados no tempo que, no entanto, representam uma só resolução, embora a prática de cada um dos actos obrigue a uma certa manifestação de vontade. Ora esses actos não são mais do que descargas automáticas da resolução inicial”.
10.ª - Deste modo, do exame de toda a fatualidade resulta que a atuação do arguido tem de se subsumida a um único crime continuado.
11.ª - No plano naturalístico, o arguido desenvolveu uma primeira conduta que se prolonga no tempo e que não foi “cortada”, não “terminou”, não se verificou intercecão pelos agentes da autoridade.
12.ª - O crime ora em apreço é de consunção instantânea, mas só termina quando o agente é intercetado ou cesse voluntariamente essa atuação e dela têm conhecimento as autoridades que têm competência para proceder criminalmente. Trata-se, para usar a expressão de Eduardo Correia (Unidade e Pluralidade de Infracções, pág. 23), de um “estado antijurídico”, que, no caso, se traduz num só episódio.
13.ª - Necessidade, proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável. Assim sendo, deverá ser aplicada pena consentânea com a punição do crime continuado nos termos do art. 79.º do C.P.
14.ª - Para a determinação da medida concreta da pena há que fazer apelo aos critérios definidos pelo artigo 71.º do Código Penal, nos termos do qual, tal medida será encontrada dentro da moldura penal abstractamente aplicável, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente. Neste caso releva que o arguido, posteriormente à prática dos fatos de que vem acusado, a 03/09/2010, ficou titular de carta de condução, categorias A1, B e B1.
15.ª - Tendo em conta o disposto nos artigos 79.º, 71.º, 70.º e 40.º, n.ºs l e 2 do CP e pelos motivos aí expostos, donde resulta ser insuficiente a aplicação ao arguido de uma pena não detentiva, a fim de se conseguir de forma adequada e suficiente a recuperação social do arguido e se satisfazerem as exigências de reprovação e de prevenção do crime. Porém, sempre será razoável ponderar que seja decretada a suspensão da execução da pena.
16.ª - Tendo ficado assente na matéria de fato provado que o arguido é actualmente e desde 03/09/2010 titular de carta de condução, categorias A1, B e B1, é possível, fundamentadamente, concluir que este tipo de ilícito não mais será cometido pelo arguido e a simples censura do fato e a ameaça da prisão realizarão ainda de forma adequada e suficiente as finalidades da punição na vertente da prevenção geral.
17.ª - De acordo com o preceituado no artigo 50.º do Código Penal, o tribunal afirma a prognose social favorável em que assenta o instituto da suspensão da execução da pena, se concluir que a simples censura do fato e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, devendo, para tal, atender à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste e só deve decretar a suspensão da execução quando concluir, face a esses elementos, que essa é a medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade.
18.ª - O Tribunal deverá correr um risco prudente; cremos pois, salvo melhor opinião que, tendo ficado como matéria assente provada: “Das condições pessoais”: nas als. 27), 28), 29), 30), 31), 36) 37) 42) e 43) que, em suma, o arguido é oriundo de uma família destruturada e problemática, com uma infância e juventude conturbada, toxicodependente, com comportamentos desviantes, mas ainda assim com uma retaguarda familiar dos tios e com o sentido de responsabilidade pela educação da filha menor, pelo que frequenta a escola no EP, além de que já é titular de carta de condução nas categorias A1, B, B1, o juízo de prognose, salvo melhor opinião, deverá ser positivo, pois que, seguramente também decerto, será bastante para assegurar as finalidades da prevenção geral e as necessidades de prevenção especial ou de reintegração, o cumprimento da eventual pena única do cúmulo das penas anteriores, que vier, entretanto, a ser determinado.
19.ª - Pelo supra exposto, discordamos da sentença recorrida, do tribunal a quo, quando “entende que não é possível formular um juízo de prognose social favorável do arguido”. Discordamos que a suspensão da execução possa pôr em causa a crença da comunidade na validade da norma e a confiança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais, tanto mais que o arguido, ora recorrente, já é titular de carta de condução. Assim sendo, entendemos que a simples censura do fato e a ameaça da pena bastarão para satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção (geral) do crime, devendo, salvo melhor opinião, suspender-se a pena de prisão que for aplicada ao arguido.
20.ª - Violou, pois, o tribunal recorrido, na decisão ora em crise, as normas jurídicas preceituadas nos arts. 30.º. n.º 2, 50.º e 79.º do Código Penal.
Termos em que, e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, Venerandos Desembargadores, deverão considerar procedente o presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão ora em crise e substituída por outra que considere a fatualidade provada como crime continuado e ainda suspensa na sua execução a pena concreta que for aplicada ao arguido, ora recorrente.
Far-se-á, assim, a habitual, serena e necessária justiça!
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3. O Ministério Público respondeu ao recurso, conclusivamente nos termos infra transcritos:
1. O recorrente, pela leitura atenta do seu petitório, defende que os factos julgados como provados integram a figura do crime continuado, pelo que indirectamente impugna a medida da pena única, e pugna pela suspensão da execução da pena que lhe venha a ser aplicada, pelo que o recurso está limitado a matéria de direito.
2. A pena única aplicada tem em atenção a culpa do recorrente, a elevada ilicitude dos factos, a intensidade do dolo, o passado criminal do recorrente e, em obediência ao disposto no art. 71.º do CP, sendo essas, tanto as penas parcelares, como a pena única, as penas justas e, como tal, a medida certa da pena, a mesma não pode ser suspensa na sua execução, pois, tal como se escreveu no douto Acórdão recorrido, desse modo não se alcançariam as finalidades da punição.
3. Sobre o conceito de crime continuado, pode ler-se o seguinte no Acórdão do STJ de 27/05/2010, proferido no P.474/09.4PSLSB.L1.S1, em que foi Relator o Exmo. Sr. Conselheiro Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt:
“A problemática relativa ao concurso de crimes unidade e pluralidade de infracções, das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no art. 30.º do CP a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.
4. No caso concreto, o arguido foi condenado pela prática de 7 (sete) crimes de condução sem habilitação legal e as sete conduções automóvel feitas pelo recorrente ocorreram entre os dias 13/04 e 10/08/2010 e sucede que no dia 13/06 é apanhado a fazer condução automóvel em ruas distintas da cidade de Aveiro, mas apenas com intervalo de 10 minutos entre uma ocorrência e a outra, pelo que não nos choca que nestas situações haja continuação delituosa, com a consequente redução dos crimes para seis (6).
5. Nas restantes situações, não há proximidade temporal, pois as mesmas foram ocorrendo ao longo de um período de quase meio ano, em dias e locais distintos, o que por si só afasta, relativamente aos mesmos, a figura do crime continuado - neste sentido Acórdão do STJ de 08/02/95 proferido no P.46947 da 3.ª Secção.
6. E, relativamente a todos elas, com excepção ao por nós referido na conclusão quarta, não há homogeneidade na forma de execução, sendo que da matéria de facto não consta qualquer item que dê suporte ao pretendido pela recorrente, ou seja, de que a sua actuação ocorreu “no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
7. Por outro lado, tendo em atenção particularmente o passado criminal do recorrente, com várias experiências no âmbito do sistema judicial, cujas condenações aplicadas, em pena alternativa à prisão ou com suspensão da execução desta, de nada lhe serviram para arrepiar caminho, nomeadamente quanto à condução automóvel, pode concluir-se que não estão reunidos os pressupostos legais para determinar a suspensão da execução da pena (enunciados no citado art. 50.º n.º l do C. Penal), sem prejuízo de se aceitar que o número de crimes possa ser reduzido para seis, na sequência do por nós referido na conclusão quarta, e consequentemente também possa ser reduzida a pena única.
Nestes termos, improcedendo o recurso, ainda que parcialmente e pelos motivos distintos por nós elencados, será feita justiça.
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4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, em parecer a fls. 210, louvando-se na resposta do Ministério Público na 1.ª instância, entende que o arguido deve ser condenado pela prática de 6 crimes de condução sem habilitação legal, não devendo ser suspensa a nova pena conjunta que se vier a aplicar.
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5. Notificado, nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.
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6. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Como flui do disposto no n.º 1 do art. 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
De acordo com as conclusões da motivação do recurso interposto nestes autos, são estas as duas questões a que cabe dar resposta: (i) se as condutas ilícitas do arguido integram a figura do crime continuado; (ii) se a pena de prisão deve ser suspensa na sua execução.
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2. No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos:
Processo n.º 842/10.9PEAVR
1) No dia 13-04-2010, pelas 15h00, o arguido A..., conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula … , de marca Ford Escort, pela Rua do Sol, em Esgueira, Aveiro;
2) O arguido conduzia este veículo sem ser detentor de carta de condução ou outro documento que o habilitasse a conduzir;
3) O arguido quis e conseguiu conduzir a viatura em causa, bem sabendo que não dispunha de carta de condução ou outro título que o habilitasse à condução e que a mesma era exigida por lei;
4) Agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei;
Processo 1301/10.5PEAVR
5) No dia 07-06-2010, pelas 17h30, o arguido A..., conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula … de marca Alfa-Romeo 156, pela Rua José Luciano de Castro, em Aveiro;
6) O arguido conduzia este veículo sem ser detentor de carta de condução ou outro documento que o habilitasse a conduzir;
7) O arguido quis e conseguiu conduzir a viatura em causa, bem sabendo que não dispunha de carta de condução ou outro título que o habilitasse à condução e que a mesma era exigida por lei;
8) Agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei;
Processo n.º 1335/10.0PEAVR
9) No dia 10-06-2010, pelas 15h30, o arguido A..., conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula … de marca Alfa-Romeo 156, pela Rua da Azenha, em Azenhas de Baixo, Aveiro;
10) O arguido conduzia este veículo sem ser detentor de carta de condução ou outro documento que o habilitasse a conduzir;
11) O arguido quis e conseguiu conduzir a viatura em causa, bem sabendo que não dispunha de carta de condução ou outro título que o habilitasse à condução e que a mesma era exigida por lei;
12) Agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei;
Processo n.º 1362/10.7PFAVR
13) No dia 11-06-2010, pelas 18h00, o arguido A..., conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula … de marca Alfa-Romeo 156, pela Rua das Escolas, Esgueira, em Aveiro;
14) O arguido conduzia este veículo sem ser detentor de carta de condução ou outro documento que o habilitasse a conduzir;
15) O arguido quis e conseguiu conduzir a viatura em causa, bem sabendo que não dispunha de carta de condução ou outro título que o habilitasse à condução e que a mesma era exigida por lei;
16) Agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei;
Processo n.º 1368/10.6PBAVR
17) No dia 13-06-2010, pelas 04h20, o arguido A..., conduziu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula … de marca Alfa-Romeo 156, pela Rua Direita, Aradas, em Aveiro;
18) No dia 14-06-2010, pelas 01h40, o arguido conduziu o mesmo veículo, pela Estrada nacional n.º 109, e Rotunda do Centro Comercial Glicínias, em Aradas, Aveiro;
19) No mesmo dia, pelas 04h30 o arguido conduziu o veículo em causa, pela Rua 1º de Maio, na Freguesia de Santa Joana, em Aveiro;
20) O arguido conduziu este veículo sem ser detentor de carta de condução ou outro documento que o habilitasse a conduzir;
21) O arguido quis e conseguiu conduzir a viatura em causa, bem sabendo que não dispunha de carta de condução ou outro título que o habilitasse à condução e que a mesma era exigida por lei;
22) Agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei;
Processo n.º 1880/10.7PEAVR
23) No dia 10-08-2010, pelas 03h10, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Alfa Romeo 156, com a matrícula … , pela Rua Direita, freguesia de Aradas, em Aveiro;
24) O arguido conduzia este veículo sem ser detentor de carta de condução ou outro documento que o habilitasse a conduzir;
25) O arguido quis e conseguiu conduzir a viatura em causa, bem sabendo que não dispunha de carta de condução ou outro título que o habilitasse à condução e que a mesma era exigida por lei;
26) Agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei;
Das condições pessoais:
27) O arguido é oriundo de uma família problemática, vivenciando conflitos frequentes entre os progenitores, separando-se estes quando o arguido tinha 13 anos, separando-se também os quatro filhos do casal;
28) O arguido ficou a viver com os tios maternos, separado dos irmãos e da mãe que se deslocou para Lisboa e nunca mais contactou com este filho. Em relação ao pai manteve um relacionamento, embora distante;
29) Na família dos tios, o arguido terá recebido uma educação baseada em princípios e normas socialmente aceites;
30) No decurso da adolescência o arguido muda-se para casa dos avós maternos, tendo tido menor supervisão e acompanhamento. Nessa sequência o seu percurso escolar foi caracterizado por diversas retenções, devidas a condutas inadequadas e absentismo e não a dificuldades de aprendizagem;
31) Após a conclusão do 8.º ano de escolaridade, abandona a escola e passa a acompanhar outros jovens problemáticos, iniciando-se no consumo de estupefacientes e a manifestar comportamentos desviantes e delinquentes;
32) Tentou a sua autonomização através de relações afectivas e colocação laboral, que contudo não perdurou;
33) À data da reclusão vivia com os seus tios. Profissionalmente colaborava com este tio na montagem de estruturas de “pladur”, executando ainda alguns biscates na área da mecânica automóvel;
34) Os seus rendimentos oscilavam consoante o número de dias de trabalho e o tipo de trabalho que executava;
35) Não contribuía para o agregado familiar, apesar de tal também não lhe ser solicitado;
36) Mantém um relacionamento afectivo com B..., com quem tem uma filha menor, mas pouco consolidado e com repetidas rupturas;
37) Continua contudo a contar com o apoio dos seus tios quer a nível logístico, quer da reintegração profissional;
38) Encontra-se preso desde 3 de Março de 2011 e veio transferido para o EP de Coimbra em 20 de Dezembro de 2011, registando pendência processual;
39) O arguido realiza um juízo de desvalorização da sua conduta, minimizando a sua contribuição para os processos em causa, reconhecendo necessidade de efectuar apenas alguns reajustamentos ao seu quotidiano;
40) Detém uma imagem social depreciativa, em virtude do seu historial de delinquência e pelos diversos contactos com o aparelho de administração da justiça, embora no meio não se denotem sinais de rejeição à sua presença;
41) No EP de Coimbra, ao contrário de Aveiro onde sofreu 2 castigos, não regista qualquer sanção disciplinar. Contudo, o seu comportamento ainda é caracterizado pela contestação ao sistema;
42) Frequenta a escola e não se encontra integrado em qualquer programa de tratamento por considerar não necessitar;
43) O arguido é actualmente, e desde 03-09-2010, titular de carta de condução, categorias A1, B e B1;
44) O arguido tem os seguintes antecedentes criminais: pela prática, em 29/04/2002, de seis crimes de roubo, p. e p. pelo art. 210.º, n.º 1 do Código Penal, foi condenado, por acórdão de 14/07/2005, transitado em julgado em 28/09/2005, na pena única de três anos de prisão, suspensa com regime de prova e com a condição de pagar a indemnização ao ofendido no prazo de 90 dias (Processo Comum Colectivo n.º 380/02.3GBILH do Tribunal Judicial de Aveiro); pela prática, em 08/06/2007, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1, foi condenado, por sentença de 29/06/2007, transitada em julgado em 24/07/2007, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 5,00 (Processo Sumário n.º 224/07.0GTAVR do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro); pela prática, em 23/11/2007, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1, foi condenado, por sentença de 03/12/2007, transitada em julgado em 18/02/2008, na pena de sete meses de prisão (Processo Sumário n.º 618/07.0GAVGS do Tribunal Judicial de Vagos); pela prática, em 27/01/2006, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1, foi condenado, por sentença de 24/05/2007, transitada em julgado em 17/10/2008, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 5,00 (Processo Comum Singular n.º 166/06.6PBAVR do Juízo de Média Instância Criminal de Aveiro – Juiz 3, Comarca do Baixo Vouga); pela prática, em 17/11/2005, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1, foi condenado, por sentença de 19/04/2007, transitada em julgado em 17/10/2008, na pena de 85 dias de multa à taxa diária de € 5,00 (Processo Comum Singular n.º 1916/05.3PTAVR do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro); pela prática, em 28/10/2005, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1, foi condenado, por sentença de 31/07/2006, transitada em julgado em 20/10/2008, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 5,00 (Processo Abreviado n.º 1771/05.3PEAVR do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro); pela prática, em 25/09/2006, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1, foi condenado, por sentença de 08/10/2008, transitada em julgado em 28/10/2008, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 3,50 (Processo Comum Singular n.º 697/07.0PTPRT do 2.º Juízo, 3.ª Secção, dos Juízos Criminais do Porto); pela prática, em 24/05/2003, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1, foi condenado, por sentença de 23/05/2006, transitada em julgado em 03/11/2008, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de € 5,00 (Processo Comum Singular n.º 2116/03.2PTAVR do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro); pela prática, em 22/07/2007, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1, foi condenado, por sentença de 13/03/2008, transitada em julgado em 03/11/2008, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 6,00 (Processo Comum Singular n.º 283/07.5GTAVR do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Aveiro); pela prática, em 06/11/2006, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1, foi condenado, por sentença de 19/01/2009, transitada em julgado em 09/02/2009, na pena de cinco meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano (Processo Comum Singular n.º 499/06.1GTAVR do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Ílhavo); pela prática, em 24/12/2007, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1 e de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1 do Código Penal, foi condenado, por sentença de 11/05/2009, transitada em julgado em 21/09/2009, na pena de dez meses de prisão substituída por 300 dias de multa à taxa diária de € 5,00 quanto ao crime de condução sem habilitação legal e na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 5,00 quanto ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez e ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses (Processo Comum Singular n.º 386/08.9PTPRT do 1.º Juízo, 1.ª Secção, dos Juízos Criminais do Porto); pela prática, em 23/05/2008, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1, foi condenado, por sentença de 01/06/2009, transitada em julgado em 25/01/2010, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano (Processo Comum Singular n.º 1208/08.6PEAVR do Juízo Média Instância Criminal de Aveiro – Juiz 2, Comarca do Baixo Vouga); pela prática, em 14/06/2010, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1, foi condenado, por sentença de 28/07/2010, transitada em julgado em 06/01/2011, na pena de doze meses de prisão (Processo Sumário n.º 1373/10.2PTAVR do Juízo Pequena Instância Criminal de Ílhavo, Comarca do Baixo Vouga); pela prática, em 02/12/2009, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1 e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art. 291.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, foi condenado, por acórdão de 07/12/2010, transitado em julgado em 04/04/2011, na pena única de dois anos e seis meses de prisão (Processo Comum Colectivo n.º 210/09.5GDAND do Juízo Média Instância Criminal de Aveiro – Juiz 2, Comarca do Baixo Vouga); pela prática, em 18/11/2009, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º do DL. n.º 2/98 de 3/1 e de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203.º do Código Penal, foi condenado, por sentença de 02/12/2010, transitada em julgado em 11/04/2011, na pena de dezasseis meses de prisão, substituída por 480 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade (Processo Comum Singular n.º 413/09.2GAVLC do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Vale de Cambra).
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3. Relativamente aos factos não provados, ficou consignado:
Que o arguido seja honesto, responsável e bem conceituado no meio onde vive.
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4. Do mérito do recurso:
4.1. Do crime continuado:
Como claramente decorre do conteúdo do art. 30.º, n.º 1, do Código Penal («O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente»), o critério de distinção entre unidade e pluralidade de infracções não é um critério naturalístico mas, antes, normativo ou teleológico, que atende à unidade ou pluralidade de valores jurídicos criminais negados, expressos nos tipos legais de crimes, correspondendo à unidade ou pluralidade de juízos de censura tendo na base a unidade ou pluralidade de resoluções criminosas.
Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores ou diversas vezes ao mesmo preceito, o juízo de censura será determinante para saber se concretamente se verifica um ou mais crimes. Isto se deduz do advérbio «efectivamente» contido na citada norma e dos princípios basilares sobre a culpa - neste sentido, vide Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado e Comentado, 10.ª edição, como sendo a consagração do que já vinha ensinando o Prof. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções.
O que se vem de dizer significa que, para a existência de uma infracção penal, não é bastante a antijuricidade, ou seja, a realização do tipo legal de crime; é necessário que a conduta seja reprovável, isto é, passível de culpa. E, assim, poderemos dizer que há tantos crimes, na realização do mesmo tipo legal, quantas vezes a conduta se tornar reprovável. A pluralidade de infracções resultaria, para o mesmo tipo legal, da pluralidade de juízos de censura ou reprovação.
As normas jurídico-penais, a par da valoração objectiva da conduta humana, têm uma função de determinação, de imperativo, para agir como contramotivo no momento da resolução.
Deste modo, haverá tantas violações de norma quantas vezes ela se tornar ineficaz nessa função determinadora da vontade.
E o que indica quantas vezes se verifica essa ineficácia é a resolução.
Quantas vezes o indivíduo resolveu agir por modo contrário ao imperativo da norma, tantas vezes se verifica a sua ineficácia, ou seja, a sua violação.
Em jeito de síntese, ressalta a seguinte ideia predominante: mesmo que a actuação do agente se traduza numa pluralidade naturalística de acções, executadas em momentos separados no tempo, existe um só crime desde que aquelas estejam subordinadas a uma única resolução criminosa, sendo de esclarecer que a existência de certa conexão temporal que ligue os vários momentos da conduta do agente é um índice importante da unidade de resolução, mas não é decisivo, havendo que atender a todo o circunstancialismo fáctico revelador da forma como se desenvolveu a actividade criminosa do agente para então se chegar à aludida determinação de vontade, concreta, determinada, e não a qualquer uma resolução abstracta, geral.
Contudo, o comando do n.º 1 do art. 30.º do CP, sofre, com cobertura da lei, duas importantes restrições: os casos de concurso legal ou aparente (onde pontificam as regras da especialidade, da consunção e da subsidiariedade) e de crime continuado.
Esta figura, a do crime continuado, constitui uma excepção à regra do concurso em caso de pluralidade de infracções, consentida graças à concorrência de determinados requisitos mitigadores enunciados no n.º 2 do art. 30.º do Código Penal, a saber:
- plúrima realização do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico;
- homogeneidade da forma de execução, o chamado injusto objectivo da acção;
- lesão do mesmo bem jurídico, isto é, a unidade de injusto de resultado;
- situação exterior propiciadora da execução e susceptível de diminuir consideravelmente a culpa.
Porventura o requisito mais problemático de toda esta plêiade de pressupostos cumulativos será o último: saber, em cada caso concreto, quando é que podemos afirmar que houve, de modo exterior ao agente, um condicionalismo que facilitou a sua acção e consequentemente degradou a respectiva culpa. Tem-se por adquirido que o fundamento da aludida minorização da culpa há-de ir buscar-se em algo que, de fora, isto é, alheio ao agente, e de modo considerável, ou seja, significativamente, facilitou a repetição da actividade criminosa, «tornando cada vez menos exigível ao agente - como anota Eduardo Correia - que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito» In Direito Criminal, II, 209..
Por conseguinte, a pedra de toque deste requisito será sempre um condicionalismo exógeno ao agente que lhe facilita a recaída e o torna, na circunstância, menos culpado.
Assim, se o agente concorre, minimamente que seja, para que esse quadro exterior se desenhe, não pode obviamente aproveitar-se das condições que criou e ver configurada uma situação de continuação criminosa.
É exactamente esta a linha de orientação da nossa jurisprudência, quando afirma que não haverá crime continuado, mas concurso de infracções, «quando as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa, mas, pelo contrário, são conscientemente procuradas e criadas pelo agente para concretizar a sua intenção criminosa» Cfr. Ac. do STJ de 10/12/1997, proc. n.º 1192/97, sumariado no Boletim Interno do STJ, n.º 16. No mesmo sentido, v.g., Acs. do STJ de 07/03/2001 e 12/06/2002, com sumários publicados na ob. cit., n.ºs 49 e 62, respectivamente..
Como decorre impressivamente da matéria de facto provada, é de admitir que o recorrente actuou de forma homogénea, lesando sempre o mesmo bem jurídico.
Todavia, não existe a necessária situação exterior apta a proporcionar as subsequentes repetições e a facilitar a reiteração da actividade criminosa, por forma a que a culpa do arguido se tenha de haver como consideravelmente diminuída. No processo de motivação ou de vontade do arguido não avulta um arrastamento para o crime por força da “disposição exterior para o facto”. Antes, e pelo contrário, foi sempre o próprio que criou as condições necessárias, formulando e concretizando a respectiva resolução criminosa, agindo em função de cada caso concreto, adaptando o modus operandi às circunstâncias específicas dos seus desígnios.
Enfim, foi sempre o arguido que decidiu e executou, sem a influência de qualquer elemento exterior, uma vez após outra, a prática de condução de veículo automóvel sem que fosse detentor da necessária licença.
Não estamos, pois, perante uma situação de crime continuado.
E quantos crimes praticou efectivamente o arguido? Sete, como foi considerado no acórdão recorrido, ou apenas seis, como refere o Ministério Público na sua resposta ao recurso?
Afigura-se-nos que a posição do Ministério Público, vertida na ponto 4. da resposta ao recurso, encerra um manifesto erro de apreciação do acerto factológico dado como provado.
Na verdade, lendo-se, com a devida atenção, os pontos provados n.ºs 17) e 18), desde logo se vê claramente que o Ministério Público considera duas situações ocorridas no dia 13 de Junho de 2010, quando nesse dia só se verificou um acto de condução. Os dois casos verificados num único dia tiveram lugar em 14 de Junho de 2010 e, aqui, considerou, e bem, o colectivo de 1.ª instância:
«No caso em apreço, provou-se que nos dias 13/4/2010 pelas 15h, 7/6/2010 pelas 17h30m, 10/6/2010, pelas 15h30m, 11/6/2010 pelas 18h, 13/6/2010 pelas 4h20m, 14/6/2010 pelas 1h40m e nesse mesmo dia 14/6/2010 pelas 4h30m e 10/8/2010 pelas 3h10m, o arguido conduziu um automóvel ligeiro de passageiros em diversas vias públicas de Esgueira, Aveiro, Aradas, Santa Joana, área desta comarca de Aveiro.
O arguido conduziu os veículos referidos, naquelas circunstâncias de espaço e de tempo, em estradas e ruas abertas ao trânsito de um número indeterminável de veículos a motor, sem possuir a necessária habilitação legal – carta de condução, designadamente – que o habilitasse a conduzir aquele tipo de veículos, sabendo, no entanto, que a mesma lhe era legalmente exigível e que a sua falta o fazia incorrer em responsabilidade criminal, ao conduzir aqueles veículos, cujas características conhecia, naquelas circunstâncias. Não obstante saber tal, não se absteve de conduzir aqueles veículos, nas circunstâncias descritas.
Em todas as circunstâncias descritas o arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era censurável e punida por lei como crime.
Da conjugação dos normativos que acabámos de mencionar com a factualidade dada como provada claramente resulta que o arguido, com as suas condutas, preencheu os elementos objectivos do tipo de crime em apreço: - conduzia veículo ligeiro, pela via pública, sem estar habilitado com a necessária carta de condução.
Do mesmo modo, mostra-se preenchido o elemento subjectivo do tipo de ilícito em causa: - o arguido quis conduzir os veículos, sabendo não estar legalmente habilitado com a carta de condução e, ainda, que a sua conduta era proibida e punida por lei, encontrando-se, assim, consciente da ilicitude das mesmas.
Todavia, entendemos, como acima explanado, que as condutas imputadas ao arguido e provadas no que tange ao dia 14/6/2010 não relevam como condutas separadas já que, atendendo às regras do concurso de crimes já acima explanadas, existe uma única resolução criminosa por parte de tal arguido quando inicia a condução em cada dia, e não de cada vez que é detectado em condução no mesmo dia, desconhecendo-se inclusivamente se chegou a parar já que a autoridade policial não o interceptou nem lhe efectuou paragem. Caso diferente seria se se tivesse apurado que o arguido tinha sido abordado e parado o veículo, pois que nessa situação teria de se concluir inequivocamente por uma nova resolução criminosa ao retomar a condução.
Pelo exposto, dúvidas não restam quanto à prática, pelo arguido, de sete crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nº 2 do Decreto-Lei nº 2/98 de 3 de Janeiro, por referência aos arts. 121º e ss. do Cód. Estrada».
Em razão do exposto, o arguido é autor material de 7 (sete) crimes da espécie já referenciada.
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4.2. Sobre a pretendida suspensão da execução da pena:
Dispõe o artigo 50.º do Código Penal (redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro):
«1 – O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 – O tribunal se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 – Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4 – (…).
5 – O período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão».
A apreciação e a decisão sobre a medida de substituição que a suspensão da execução da pena constitui é uma faculdade vinculada, necessariamente dependente do poder-dever da sua aplicação, desde que verificados os pressupostos exigidos na supra citada norma.
Para se optar pela suspensão da execução da pena exige a lei, como pressuposto formal, que ao agente deva ser concretamente aplicada pena de prisão até ao limite de 5 anos.
No que tange ao pressuposto material, o critério legal a seguir é simplesmente este: o tribunal deve preferir a pena de substituição em causa sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, ela se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição.
O que o mesmo é dizer que a suspensão da execução da pena depende tão-somente de considerações de prevenção especial, sobretudo de prevenção especial de socialização, e de prevenção geral sob a forma de satisfação do «sentimento jurídico da comunidade».
«(...) O tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena (...) de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação», a dita pena de substituição «se revele mais adequada e suficiente na realização das finalidades da punição. O que vale logo por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena (...) de substituição e a sua efectiva aplicação.
Bem se compreende que assim seja: sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie da pena. Por outras palavras: a função da culpa exerce-se no momento da determinação quer da medida da pena de prisão (necessária como pressuposto da substituição), quer da medida da pena alternativa ou de substituição; ela é eminentemente estranha, porém, às razões históricas e político-criminais que justificam as penas (...) de substituição, não tendo sido em nome de considerações de culpa, ou por força delas, que tais penas se constituíram e existem no ordenamento jurídico.
(...) Desde que impostas ao aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena de substituição só não será aplicada se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias» Jorge de Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, § 497 e 498, 499 e 500, págs. 331/333..
Por outro lado, é conveniente esclarecer que o que está em causa no instituto da suspensão da execução da pena não é qualquer «certeza», mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser conseguida. O tribunal deve correr risco “prudencial” (fundado e calculado) sobre a manutenção do agente em liberdade.
Como se colhe da matéria de facto provada, o arguido regista quinze condenações, reportando-se uma à prática, em 2002, de um crime de roubo e 14 à prática de crime de condução sem habilitação legal por factos ocorridos em 24-05-2003, 17-11-2005, 28-10-2005, 27-01-2006, 25-09-2006, 06-11-2006, 08-06-2007, 22-07-2007, 23-11-2007, 24-12-2007, 23-05-2008, 18-11-2009, 02-12-2009, 14-06-2010.
No âmbito do processo n.º 386/08.9PTPRT, o arguido foi condenado, pela prática, em concurso efectivo, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de condução em estado de embriaguez, ocorridos em 24-12-2007, em pena de prisão substituída por multa (1.º crime) e em pena de multa (2.º crime).
No domínio do processo comum colectivo n.º 210/09.5GDAND, pela prática, também em concurso efectivo, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, perpetrados em 02-12-2009, foi imposta ao arguido a pena única de dois anos e seis meses de prisão.
Em relação ao processo n.º 413/09.2GAVLC, o arguido foi condenado, pela prática, em 18/11/2009, ainda em concurso efectivo, de um crime de condução sem habilitação legal e de um crime de furto, na pena conjunta de dezasseis meses de prisão, substituída por 480 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Cometido o crime de condução sem habilitação legal no dia 23-05-2008 e tendo-lhe sido aplicada, no processo n.º 1208/08.6PEAVR, por sentença transitada em julgado em 25-01-2010, a pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, logo o arguido reiniciou a sua actividade delituosa, com a prática dos sete crimes de igual natureza versados nos presentes autos.
Tal como as demais penas anteriormente sofridas pelo arguido, também esta pena de prisão, ainda que submetida ao referido regime de substituição, não bastou, assim, para a “prevenção da reincidência”.
Mantendo uma atitude de indiferença pelos valores jurídicos tutelados pela norma por si violada, o arguido incorreu na prática de mais crimes, os dos presentes autos.
É certo que, como invoca o arguido, este é titular, desde 03-09-2010, de carta que o habilita à condução de veículos das categorias A1 (motociclos de cilindrada não superior a 125 cm3 e de potência máxima até 11kw), B (automóveis ligeiros ou conjuntos de veículos compostos por automóvel ligeiro e reboque de peso bruto até 750 kg ou, sendo este superior, com peso bruto do conjunto não superior a 3500 kg, não podendo, neste caso, o peso bruto do reboque exceder a tara do veículo tractor) e B1 (triciclos e quadriciclos).
Não fora o desrespeito generalizado pelas normas que disciplinam a circulação rodoviária, com os consequentes perigos para a vida/integridade física dos demais utilizadores das vias públicas, o que é evidenciado pela prática dos crimes de condução em estado de embriaguez e de condução perigosa de veículo rodoviário, poder-se-ia admitir como razoável a suspensão da execução da pena porquanto, no presente, se mostra altamente improvável a verificação de novos crimes de condução sem habilitação legal.
Porém, a ocorrência de duas condenações pelos referidos crimes, p. e p., o primeiro, pelo artigo 292.º, e o segundo, pelo artigo 291.º, ambos do CP, inviabilizam, de todo, um prognóstico favorável sobre o comportamento futuro do arguido, afigurando-se-nos, ao invés, como mais provável, que o arguido, sem a pena restritiva da liberdade, voltará a incorrer em condutas que, de forma grave, lesarão normas jurídicas tutelares de valores ligados à utilização segura das nossas estradas.
Dito de outro modo, a globalidade complexiva dos factos que se correlacionam com o comportamento (anterior e posterior) do arguido evidencia uma patente carência de socialização por parte do mesmo, ao ponto de se dizer que ele revela uma incapacidade na manutenção de uma conduta futura lícita, na vertente jurídico-penal considerada.
Nestes termos, não é possível tecer um prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento, de tal modo que se considere que a pena de substituição em causa venha a realizar, perante o circunstancialismo exposto, a sua ressocialização.
Ou seja, já não é aceitável que o julgador volte a correr o risco - que seria agora aleatório e não prudencial -, sobre a manutenção do arguido em liberdade.
Perante a evidente incapacidade do arguido aproveitar as oportunidades ressocializadoras que já lhe foram oferecidas, reveladora da insuficiente interiorização dos valores jurídicos-penais inerentes às regras de circulação rodoviária, só a pena de prisão permite, no caso concreto, satisfazer, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
Por todo o exposto, não merece provimento o recurso interposto pelo arguido.
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam na 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, com 3 UC´s de taxa de justiça [artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, ambos do CPP; artigo 8.º, n.º 5, e tabela anexa, do Regulamento das Custas Processuais (DL n.º 34/2008, de 26-02)].
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(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º 2, do C.P.P.)
Coimbra, 26 de Setembro de 2012

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)