Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
753/08.8TBAND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Data do Acordão: 01/11/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: N.º 1 DO ARTIGO 483.º E ARTIGO 563º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I- Ocorrendo o acidente de viação num cruzamento, quando um ciclomotor, de forma súbita e sem sinalizar a manobra, vira à sua esquerda, enquanto que um outro ciclomotor o ultrapassava pelo lado esquerdo de ambos, não é causal dessa colisão a violação do Código da Estrada, por parte deste último, decorrente de realizar essa ultrapassagem antes da passagem para peões que se encontrava logo após o cruzamento, pois o acidente sempre se daria se, mantendo-se todo o restante circunstancialismo, tal passagem ali não se encontrasse.

II- Perante este cenário e tendo resultado desse acidente a morte do condutor que mudava de direcção e não se conhecendo qualquer consequência para o que realizava a ultrapassagem, afigura-se como equilibrada a proporção das culpas de 40% para aquele e de 60% para este.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... e B... instauraram, na comarca de Anadia[1], a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra Companhia de Seguros C... S.A., pedindo a condenação desta no pagamento de 147.552 €, acrescidos de juros de mora desde a citação e até integral pagamento.

Alegaram, em síntese, que o D..., marido da autora A... e pai do autor B... faleceu, no dia 31 de Maio de 2005, em consequência das lesões sofridas num acidente de viação ocorrido na Rua Poeta Cavador, no lugar e freguesia da Moita, comarca de Anadia, quando conduzia o seu ciclomotor ...87..... e em que também foi interveniente o ciclomotor de matrícula...90....., conduzido por E... e pertencente à Câmara Municipal de Anadia. Imputam a responsabilidade na produção do acidente ao condutor do ciclomotor...90....., ao realizar, indevidamente, uma manobra de ultrapassagem ao ...87......

Mais alegam que à data do acidente, C... tinha 67 anos de idade e gozava de boa saúde, e que sofreram um forte abalo moral e grande desgosto com o desaparecimento do seu marido e pai. O falecido era aposentado, auferindo uma reforma de 430 € mensais, e era ele quem garantia o sustento do agregado familiar, contribuindo ainda para o sustento do próprio B..., que à data se encontrava desempregado.

A Ré contestou dizendo, em síntese, que o acidente ficou a dever-se exclusivamente à conduta culposa do próprio sinistrado falecido e impugnando os danos que os autores alegaram.

O Instituto da Segurança Social I.P., através do Centro Nacional de Pensões, deduziu um pedido de reembolso dos valores pagos a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência, num montante global de 16.028,65 €.

A ré contestou este pedido reafirmando que a culpa na produção do acidente é exclusivamente do condutor do ciclomotor ...87......

Realizou-se audiência preliminar em que se proferiu despacho saneador e se fixaram os factos assentes e a base instrutória.

Procedeu-se a julgamento.

Foi proferida sentença em que se decidiu:

a) condena-se a Ré:

a.1) a pagar conjuntamente aos Autores a quantia de € 29.750,00 (vinte e nove mil, setecentos e cinquenta euros);

a.2) a pagar ainda à Autora A...a quantia de € 10.500,00 (dez mil e quinhentos euros);

a.3) a pagar ainda ao Autor B... a quantia de € 12.600,00 (doze mil e seiscentos euros);

a.4) a pagar ao Instituto da Segurança Social, I.P./Centro Nacional de Pensões, a quantia de € 14.912,04 (catorze mil, novecentos e doze euros e quatro cêntimos);

a.5) a pagar aos Autores e ao Instituto da Segurança Social, I.P./Centro Nacional de Pensões a quantia correspondente aos juros de mora, à taxa legal, neste momento fixada em 4%, sobre as indicadas parcelas, desde a citação, excepto quanto aos valores referidos em a.1), a.2) e à quantia de € 2.100,00 contida em a.3), relativamente aos quais os juros serão contabilizados a partir da data da presente sentença;

b) no mais vai a Ré absolvida.

Inconformada com tal decisão, a ré dela interpôs recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

1. Da decisão proferida quanto à matéria de facto controvertida e relativa à dinâmica do acidente, considera a Recorrente que o Meritíssimo Juiz a quo julgou incorrectamente os pontos de facto constantes dos quesitos 9.º, 38.º, 40.º e 41.º da base instrutória. Isto porque:

2. Do depoimento prestado pela testemunha E..., gravado no sistema digital integrado em uso no Tribunal a quo, única testemunha presencial do acidente que mereceu a credibilidade do Tribunal, resultam mais elementos para além dos dados por provados que não foram objecto de prova credível em contrário, nem colidem com os elementos apurados pela força policial que se deslocou ao local do acidente após a ocorrência do mesmo;

3. Esta testemunha, no depoimento prestado em sede de audiência de julgamento, afirmou que tentou evitar o acidente, desviando-se para a esquerda, que sinalizou a manobra de ultrapassagem, e esclareceu ainda sobre o ponto de choque nos veículos e a presença de mais veículos na via;

4. Estas afirmações deverão merecer a credibilidade do julgador, porquanto são compatíveis com os demais elementos disponíveis no processo, traduzindo factos efectivamente complementares à dinâmica apurada pelo Tribunal, na leitura conjugada que efectuou deste depoimento, com o auto policial, o depoimento do Sr. H... participante e ainda com as regras da experiência comum;

5. Conjugados com os demais factos apurados pelo Meritíssimo Juiz a quo, conclui-se que o Sr. E... seguia efectivamente atrás do Sr. C...;

6. A dado momento, pretendendo ultrapassá-lo, após se certificar que nenhum outro veículo o pretendia ultrapassar (afirmou peremptoriamente que nenhum outro veículo circulava atrás dos intervenientes), e que tinha espaço suficiente para passarem os dois ciclomotores, fez um sinal de ultrapassagem (com o braço esquerdo) e iniciou a manobra;

7. Quando já se encontrava a escassos metros do ciclomotor ...87....., o condutor deste guinou à esquerda sem que antes haja sinalizado a manobra, tendo em vista entrar na Rua das Escolas;

8. Perante esta manobra súbita, o Sr. E... ainda tentou evitar o acidente (e a queda), desviando-se para um portão que existia do lado esquerdo e que se encontrava aberto, o que não foi possível dada a proximidade dos veículos e a manutenção da trajectória do condutor do ...87.....;

9. O embate deu-se entre as laterais de ambos os motociclos;

10. Afigura-se assim claro que a matéria de facto levada à base instrutória sob o quesito 9.º da base instrutória foi incorrectamente julgada, devendo a mesma ser alterada e dada por não provada;

11. Ao invés, na sequência do supra exposto, deverá a matéria de facto constante dos quesitos 38.º e 40.º ser considerada provada;

12. No que concerne à resposta dada ao quesito 41.º, a mesma mostra-se insuficiente, devendo ser completada com a menção que o embate ocorreu entre as partes laterais de ambos os ciclomotores intervenientes;

13. Tudo isto atento o registo de prova do depoimento supra identificado e com base no disposto no artigo 712.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil.

14. Daí que mal andou o Tribunal a quo na apreciação redutora que fez do depoimento da testemunha E..., condutor do ciclomotor...90.....;

15. Por outro lado, em face da dinâmica do acidente apurada nos autos, por nenhuma forma é passível de se concluir pelo nexo causal da actuação do condutor do ciclomotor garantido pela Recorrente, seja por acção, seja por omissão e a verificação do dano;

16. Ou, pelo menos, de atribuição de um grau de culpabilidade superior ou mesmo equivalente à do outro condutor interveniente;

17. Efectivamente, há que ponderar devidamente a actuação do inditoso C..., considerando que a manobra súbita e inopinada é assim caracterizada, não só por não sinalizada, mas também pela forma brusca e repentina como é efectuada, em cima do cruzamento, sem a aproximação progressiva ao eixo da via;

18. Sempre se dirá que se tal aproximação tivesse sido efectuada, mesmo que a manobra não fosse, do mesmo modo, sinalizada, o condutor do...90..... sempre teria tido a possibilidade de efectuar a ultrapassagem pelo lado direito, uma vez que a largura da hemifaixa de rodagem e o tipo de veículos intervenientes assim o permitia;

19. Com a sua actuação, o infeliz C... demonstrou que seguia totalmente distraído, uma vez que a própria dinâmica do acidente apurada permite concluir que nem sequer tinha noção do trânsito que circulava naquela estrada atrás de si, designadamente o ciclomotor conduzido por E..., dando causa exclusiva ao acidente;

20. Pelo exposto, a sentença em crise violou o disposto nos artigos 483.º, 562.º, 563.º e 570.º do Código Civil.

Termina pedindo que o recurso seja julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença proferida e proferido acórdão que absolva a Recorrente dos pedidos contra si formulados, como é de JUSTIÇA!

Os autores contra-alegaram, defendendo a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) há erro no julgamento da matéria de facto que figura nos quesitos 9.º, 38.º, 40.º e 41.º;

b) face à dinâmica do acidente, a conduta do condutor do ciclomotor...90..... é causal do mesmo;

c) o grau de culpa do condutor do ciclomotor...90..... na produção do acidente deve ser menor ou pelo menos igual ao da do outro interveniente.


II

1.º


A ré sustenta que, atendendo ao depoimento da testemunha E..., a matéria de facto do quesito 9.º deve ser julgada não provada, aos quesitos 38.º e 40.º deve responder-se provado e na resposta ao quesito 41.º deve acrescentar-se que o embate ocorreu entre as partes laterais de ambos os ciclomotores intervenientes[2].

Os quesitos 9.º, 38.º, 40.º e 41.º têm o seguinte teor:

9.º Pelo que embateu, violentamente, com a dianteira do ciclomotor que conduzia na parte lateral esquerda, do ciclomotor tripulado, pelo C... que já, circulando na direcção, da referida Rua das Escolas, se encontrava a atravessar a hemifaixa de rodagem contraria àquela em que seguia (isto é, a hemifaixa de trânsito do sentido Anadia/ Moita)?

38.º Pelo que o condutor deste, após se certificar que nenhum veículo o pretendia ultrapassar, e que tinha espaço suficiente para passaram os dois ciclomotores, fez um sinal de ultrapassagem?

40.º Perante tão inesperado objecto a cortar a sua linha de trânsito, ainda tentou o condutor do "...90..." evitar o embate desviando-se para a esquerda?

41.º ...porém, face quer à proximidade entre os veículos, quer a manutenção da trajectória pelo condutor do "...87.....", o embate entre a frente lateral direita daquele na lateral esquerda deste foi inevitável?

A estes quesitos o Meritíssimo Juiz respondeu:

9.º Provado apenas que quando efectuava a manobra de ultrapassagem mencionada na resposta ao quesito 8), o ciclomotor conduzido por E... embateu violentamente com a dianteira na parte lateral esquerda do ciclomotor tripulado por C....

38.º Não provado.

40.º Não provado.

41.º Provado que face quer à proximidade entre os veículos na ocasião referida na resposta ao quesito 39.º, quer à manutenção da trajectória então encetada pelo veículo de matrícula ...87..., o embate entre os dois foi inevitável.

Ao fundamentar as respostas aos quesitos relativos ao modo como se deu o acidente, o Meritíssimo Juiz afirmou:

No que respeita à dinâmica do acidente, tivemos antes do mais em consideração o assinalado auto policial, no que este expressa quanto à posição em que as viaturas ficaram e aos vestígios do acidente, enquanto sinais do que pode ter sucedido: (a) ambas as viaturas achavam-se na zona de influência do cruzamento existente no local, o que faz supor que o sinistro estará relacionado com uma manobra realizada precisamente nessa zona, ou imediatamente antes; (b) as marcas existentes na via associadas ao denominado ponto provável de embate situam-se na hemifaixa de rodagem esquerda, atendendo ao sentido de trânsito Moita-Anadia, o que aparentemente vai ao encontro do já referido, isto é, que o acidente poderá estar relacionado com uma manobra efectuada na zona do cruzamento, como o será uma operação de mudança de direcção à esquerda, embora o ponto de embate não tenha necessariamente que coincidir com o sinalizado no auto policial, visto que, de acordo com o que o Sr. H... esclareceu, a localização que fez do ponto provável de embate tem que ver com os rastos de raspagem de patins ou guiadores dos ciclomotores, o que significa que o embate que despoletou a queda e subsequente raspagem pode perfeitamente ter-se iniciado noutro local, sendo que até é natural que assim tenha sido; (c) tanto quanto é possível retirar do auto policial, as viaturas ficaram imobilizadas a uma distância relativamente próxima do tal ponto em que se percepcionavam sinais de raspagem, o que em via de princípio nos leva a crer que ambas circulariam a uma velocidade objectivamente baixa, o que aliás seria de esperar de veículos da natureza dos aqui em apreço, que normalmente têm uma curta velocidade de ponta.

O que vimos de salientar a partir do que extraímos do auto policial nada nos diz, porém, quanto às exactas circunstâncias em que o sinistro teve lugar, no sentido em que a análise que o Sr. H... da G.N.R. efectuou ao local e que plasmou por escrito e reiterou e esclareceu em audiência é em tese compatível com qualquer das versões convocadas pelas Partes nos articulados, isto é, quer com a ideia de que o condutor E... circulava desatento, não cuidando da manobra de mudança de direcção à esquerda que o condutor que seguia à sua frente encetou, quer com a ideia de que o falecido realizou de forma repentina e não sinalizada a dita manobra de mudança de direcção à esquerda.

Vale o que vem de ser dito que carecemos de outros meios de prova que nos permitam firmar uma convicção positiva sobre a dinâmica do acidente, seja em si mesmos considerados, seja considerados de forma conjugada com o que referimos serem os elementos provindos do auto policial.

Com potencial relevo nesta matéria temos apenas dois depoimentos testemunhais: o do próprio condutor do ciclomotor de matrícula ...90..., E..., por um lado, e por outro lado o de G..., que garante que conduzia ao tempo um veículo que seguia no sentido contrário ao dos ciclomotores e que tudo presenciou de frente, tendo na ocasião, depois do embate, parado a sua viatura antes da passadeira que lá existe.

Estamos diante dois depoimentos em sentido diverso, que dera aliás origem a uma acareação em sede de audiência: o primeiro refere que circulava atrás do ciclomotor conduzido pelo falecido, encetou a ultrapassagem ao mesmo, com o que ficou a seu par e que aquele, em seguida, sem o sinalizar, guinou à esquerda, tendo ambos andado ombro com ombro, após o que caíram ambos; já o segundo refere que o condutor do ciclomotor que seguia à frente sinalizou a manobra de mudança de direcção à esquerda com o estender do braço esquerdo, que se aproximou gradualmente do eixo da via e que quando já se encontrava na hemifaixa de rodagem contrária foi embatido pelo outro ciclomotor, que vinha detrás.

A natureza contraditória destes dois depoimentos vai ao ponto de E... afiançar que G... não se achava no local, por aí não circular na ocasião nenhuma viatura em sentido contrário ao seguido pelos ciclomotores e que lá houvesse parado.

Ora, não reconhecemos suficiente credibilidade à testemunha G..., tendo mesmo dúvidas de que este tenha efectivamente estado no local aquando do acidente.

Em primeiro lugar, trata-se de alguém que, no dizer do próprio, nunca antes fora ouvido a propósito deste acidente, e designadamente no contexto do processo-crime correspondente, o que vai ao encontro do que pode a este respeito retirar-se da motivação da sentença aí proferida (cfr. fls. 112 e 113): não se compreende com facilidade como não surgiu em tal sede a oportunidade de colher as impressões desta testemunha alegadamente presencial, tanto mais que, como bem se compreende da leitura daquela motivação, já então se percebia tratar-se de um sinistro relativamente ao qual não abundavam os registos testemunhais. Aliás, não deixa de ser algo estranho o circunstancialismo em que surge esta testemunha: no dizer da própria, terá na altura do acidente deixado um cartão a um senhor que lá se encontrava, para o caso de vir a ser necessário – face a esta alegação, justificar-se-ia porventura a produção instrumental e acessória de prova sobre essa matéria, o que não sucedeu, visto que ignoramos até quem era esse tal senhor.

Em segundo lugar, o próprio depoimento em si mesmo não nos parece suficientemente convincente: por um lado, há que notar que, efectuando o sinistrado de forma irrepreensível a manobra de mudança de direcção à esquerda, a fazer fé na descrição feita por esta testemunha (que referiu inclusive a sinalização da manobra com o braço esquerdo, o que nem os próprios Autores alegaram na petição inicial), só com alguma dificuldade pode compreender-se que o condutor que circulava atrás não tivesse concretizado a ultrapassagem pela direita, visto que teria a hemifaixa de rodagem correspondente praticamente toda desimpedida; por outro lado, estando a viatura em que esta testemunha seguia muito próxima já do cruzamento em questão, ao ponto de ter parado imediatamente após o embate e logo atrás da passadeira que aí se encontra, não é também facilmente compreensível que o sinistrado tivesse avançado com a feitura da manobra, que estaria ainda a realizar, pese embora se aproximasse uma viatura em sentido contrário.

Em terceiro lugar, notamos na postura geral desta testemunha um porventura excessivo empenho na demonstração de uma versão favorável aos familiares do sinistrado falecido, que nos suscita pelo menos algumas reticências quanto à sua isenção, reticências estas que podemos exemplificativamente ilustrar com as palavras que em dado passo proferiu em sede da acareação, quando confrontado com a alegação, do condutor sobrevivo, de que este não tinha memória de lá ter parado na ocasião nenhuma viatura – “mas já teve memória para fazer uma ultrapassagem num traço contínuo”.

Não reconhecendo suficiente credibilidade à testemunha G..., a verdade é que também não reconhecemos total credibilidade à testemunha E... quando sustenta que seguia em dado passo a par do ciclomotor conduzido pelo falecido e que este guinou então sem sinalização, circulando ambos ombro a ombro, até que caíram: em primeiro lugar, trata-se de uma versão que não é compatível com a que logo após o acidente deu a conhecer à G.N.R., face ao que consta a fls. 22 vº, dado que então terá dito que circulava atrás quando se deu a manobra de mudança de direcção à esquerda do ciclomotor que seguia à sua frente; em segundo lugar, se as coisas se tivessem passado como esta testemunha relatou em audiência, dificilmente teriam os ciclomotores ficado no local em que ficaram, isto é, em plena zona do cruzamento e tão próximos do ponto em que previsivelmente chocaram – o mais provável seria que pelo menos um deles se houvesse afastado um pouco mais, visto que o embate teria sido totalmente lateral; e em terceiro lugar, as consequências danosas associadas a um acidente decorrente de um mero encostar ombro a ombro, nas circunstâncias em apreço, seriam em via de princípio outras que não a morte de um dos intervenientes, que se coaduna mais com um efectivo e relativamente violento embate.

Dito isto, no que concerne à dinâmica do acidente, entendemos todavia não desvalorizar totalmente o depoimento da testemunha E..., seja porque não há dúvida que se trata do condutor sobrevivo interveniente no acidente, seja porque o seu depoimento é em parte compatível, quer com os sinais retratados no auto policial, quer com as regras da experiência comum, seja ainda porque se trata de alguém que não deixou de reconhecer dois factos que em tese o desfavorecem pessoalmente: referimo-nos à circunstância de ter dito que se achava próximo do eixo da via, ainda que sem o transpor, e que para além disso estava a efectuar a ultrapassagem ao ciclomotor que originariamente seguia à sua frente, pese embora estivesse em face de um cruzamento.

Lendo este depoimento de forma conjugada com o que se extrai do auto policial, e do depoimento do Sr. H... da G.N.R. que o corroborou, e com as regras da experiência comum, afigura-se-nos possível assentar, entre o mais que ora não releva, que a testemunha E... seguia efectivamente atrás, que em dado passo encetou uma ultrapassagem e que o condutor do ciclomotor guinou à esquerda, sem que antes haja sinalizado a manobra, tendo em vista entrar na Rua das Escolas, então sendo embatido pelo veículo conduzido por aquela testemunha.

Ouvidos os depoimentos de todas as testemunhas regista-se que somente G... declarou ter presenciado o acidente, sendo que E..., como condutor de um dos ciclomotores envolvidos, também manifestou ter conhecimento directo de como aquele se deu.

Todas as outras testemunhas declararam não ter visto o acidente, sem prejuízo de algumas delas terem estado no local onde ele ocorreu, umas logo após o mesmo, outras mais tarde.  

Por outro lado, há que ter presente o auto de Participação de Acidente de Viação que se encontra nas folhas 22 e 23, que foi elaborado pelo agente da GNR F..., que esteve no local depois do acidente e, naturalmente, não o presenciou.

O agente F... depôs por teleconferência e fê-lo sem ver aquele auto. Isso, associado ao tempo já decorrido e aos muitos outros casos em que a testemunha, por força da suas funções, interveio entretanto, fez com que depusesse com bastantes reservas e dúvidas, dizendo, por mais do que uma vez, que já não se recordava de alguns dos factos objecto de questões que lhe foram colocadas e mostrando-se pouco seguro.

Assim, quanto à dinâmica do acidente apenas podemos procurar respostas nos depoimentos das testemunhas G.... e E..., bem como no mencionado auto lavrado pela GNR.

E... reconhece que o acidente se dá quando realizava uma manobra de ultrapassagem ao ciclomotor ...87....., num local em que há um cruzamento, um risco continuo a dividir as duas hemifaixas de rodagem e uma passadeira de peões próxima.

Quanto ao modo como se deu o acidente, E... diz que vinham os dois ciclomotores, devagarinho, no mesmo sentido, indo aquele que ele conduzia atrás do ...87...... Começou a ultrapassar este na sua mão de trânsito e só calcou o risco contínuo quando, ao aperceber-se que iam bater, procurou desviar-se. Acrescenta que ao desviar-me, ele (o condutor do ...87.....) toca com o ombro dele no meu. Ele cai para o lado direito e eu caio para o lado esquerdo, isto por que nessa altura iam ombro a ombro. Repete esta ideia quando mais adiante afirma que andámos para aí 2 metros de ombro a ombro encostadinhos um ao outro. Ele caiu para um lado e eu caí para o outro e depois, insistindo na mesma versão, diz que ele (o condutor do ...87.....) encostou-se a mim, eu encostei-me a ele e ele cai para o lado direito e eu para o esquerdo e ficámos ali. E refere ainda que até parecia que íamos a conversar.

Segundo esta parte do depoimento, o acidente ter-se-á dado por causa de uma carga de ombro; terá sido esse encosto de ombro entre os condutores que originou que cada um caísse para o lado. Esta tese é absolutamente inverosímil; mesmo que os condutores quisessem encostar-se um ao outro, ombro a ombro, teriam muita dificuldade em consegui-lo e só com muita perícia é que atingiriam esse objectivo. Não é de todo credível que as coisas se tivessem passado dessa forma.

Mas, E... também afirma que o ciclomotor ...87..... virou para a esquerda e que se atravessou à sua frente. Diz igualmente que o embate se dá a meio do ...87....., depreendendo-se (pois isso não foi dito expressamente) que nessa colisão este é atingido nessa parte, pela frente do...90......

Esta é já uma versão diferente da apresentada antes e não conciliável com ela, pois naquele primeiro cenário, nos instantes que antecederam o acidente, os ciclomotores estavam lado a lado. E, sendo assim, não se vê como pode o ...87..... atravessar-se à frente do...90..... e ser embatido na sua parte lateral pela frente deste. Acresce que dizendo E... que, quando estavam lado a lado, o condutor do ...87..... se apercebeu da sua presença, não é razoável que, então, este, sabendo que está à sua esquerda um motociclo, vire para esse lado, pois é óbvio que ao fazê-lo causaria um acidente.

Cruzando este depoimento com o que consta no auto de Participação de Acidente de Viação devemos concluir que o acidente se dá quando o ciclomotor...90....., conduzido por E..., realizava uma manobra de ultrapassagem ao 1...87...... E também se deve ter por provado que o...90..... embateu com a sua frente na parte lateral do ...87....., facto este que figura no auto da GNR, que E... admite ter acontecido e que está em consonância com a manobra de mudança de direcção para a esquerda que este ciclomotor realizava.

Quanto ao local na via em que a colisão se deu, surgem algumas dúvidas resultantes de, no seu depoimento, o agente F...ter referido que os vestígios que o levaram a assinalar o ponto provável do embate no sítio que figura no auto de Participação de Acidente de Viação, foram raspagens no alcatrão feitas por partes dos ciclomotores, nomeadamente os punhos. A ser assim, parece que entre o momento do embate e a queda do ciclomotor este sempre se moverá, pelo que, se o punho vier a raspar no alcatrão, isso já será um pouco à frente do ponto onde se deu a colisão.

No que se refere à sinalização da manobra de ultrapassagem, regista-se que E... declarou que fez sinal com a mão esquerda e, ao ser-lhe perguntado por que não buzinou, disse que porque são buzinas que se podem como se não podem ouvir. Então, se optou por não buzinar, em vez de levantar o braço, apenas por que o som da buzina não ser forte[3], a verdade é que, nesse caso, para avisar um condutor que ia à sua frente, mesmo assim sempre o avisaria melhor buzinando do que levantando o braço, pois este sinal não era visto por quem o precedia. De qualquer forma este depoimento é pouco credível, o que não permite que, com base nele, se atinja um patamar de certeza de que sinalizou a manobra e que se certificou de que nenhum veículo o pretendia ultrapassar.

Das circunstâncias já mencionadas, também não se pode concluir que E... ainda tentou evitar o acidente, desviando-se para a esquerda. Não há prova que sustente isso, sendo certo que, como já se disse por mais de uma vez, o depoimento daquele tem muito pouca credibilidade.

À luz do que se deixa dito, conclui-se que se deve responder aos quesitos 9.º, 38.º, 40.º e 41.º nos precisos termos em que o fez o Meritíssimo Juiz.

Como facilmente se percebe, está-se a extrair estas conclusões se se ter feito referência ao depoimento da testemunha G... que, como acima se mencionou, depôs no sentido de que presenciou o acidente, pois, nessa ocasião, vinha na mesma estrada, em sentido oposto àquele em que seguiam os ciclomotores. Disse esta testemunha que nessa altura, ausentou-se do local pouco tempo depois do acidente, indo à sua vida (dirigindo-se para as Caves .....), mas antes deixou um cartão seu a um senhor de bigode, cabelo branco de mais idade, com chapéu (na acareação já refere uma boina), que estava sentado junto ao chafariz e que conhecia a autora.

O Meritíssimo Juiz disse que, pelas razões que expõe no seu despacho das folhas 165 a 174, em que fundamenta o julgamento da matéria de facto, do qual acima se transcreveu uma parte, não reconhecemos suficiente credibilidade à testemunha G..., tendo mesmo dúvidas de que este tenha efectivamente estado no local aquando do acidente.

Com efeito, tratando-se de um caso de um acidente em que houve um vítima mortal, fica sem explicação o facto desta testemunha, como ela diz e resulta da sentença das folhas 337 a 345, não ter sido ouvida antes, nomeadamente no processo crime em que E... foi acusado e julgado, entre outras infracções, pela prática de um crime de homicídio por negligência. Se o cartão que a testemunha diz ter entregue ao senhor de mais idade acabou por chegar às mãos dos autores, pois só assim estes a podiam ter arrolado na presente acção, não se percebe por que é que estes não deram notícia (se é que não deram) no processo crime da existência desta testemunha que tinha presenciado o acidente. A verdade é que a explicação para esta questão, seja ela qual for, não se encontra nos autos.

As dúvidas suscitadas pelo Meritíssimo Juiz são pertinentes e importa salientar que ele esteve na presença da testemunha, apercebendo-se de reacções que a observação directa dos comportamentos tidos no momento do depoimento permite, os quais não são transponíveis para a gravação e que, por isso, o tribunal de recurso não pode conhecer. E não é demais realçar que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[4].

Assim, não se encontrando motivos suficientes para afastar, nesta parte, as dúvidas tidas pelo Meritíssimo Juiz, aceitam-se as mesmas como boas, pelo que também não se valora o depoimento da testemunha G....

Apesar disso, é oportuno referir que, estando em causa neste recurso somente a matéria de facto relativa aos quesitos 9.º, 38.º, 40.º e 41.º, se se tomasse como bom o depoimento da testemunho G..., sempre se responderia nos termos acima expostos, possivelmente com a ligeira alteração de na resposta ao quesito 9.º se acrescentar que o embate se deu já na metade esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha de ambos os ciclomotores. Isto porque G... diz que o condutor do ...87..... sinalizou a sua manobra de mudança de direcção, aproximou-se do eixo da via e, quando já tinha entrado na metade esquerda, é embatido pelo...90....., que seguia nesse lado da via e realizava uma ultrapassagem àquele.

À luz do que se deixa dito, conclui-se que nenhuma censura merece o julgamento feito pelo Meritíssimo Juiz da matéria de facto dos quesitos 9.º, 38.º, 40.º e 41.º, motivo por que nada se altera neste capítulo.


2.º

Estão provados os seguintes factos:

1) No dia 31 de Maio de 2005, cerca das 17h40, na Rua Poeta Cavador, no lugar e freguesia da Moita, comarca de Anadia, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o ciclomotor de matrícula ...87....., de C..., residente que foi na ..., e o ciclomotor de matrícula...90....., pertencente à Câmara Municipal de Anadia [alínea A) dos Factos Assentes].

2) No dia, hora e local do acidente, o aludido ciclomotor ...87..... era conduzido pelo seu proprietário, C..., no sentido Moita-Anadia, isto é, no sentido Nascente-Poente [alínea B) dos Factos Assentes].

3) No mesmo sentido circulava o ciclomotor de matrícula...90....., pertencente à Câmara Municipal de Anadia, tripulado por E... , divorciado, jardineiro, residente na ... [alínea C) dos Factos Assentes].

4) A totalidade da faixa de rodagem da referida Rua Poeta Cavador tem a largura de 5,40 metros, sem bermas, processando-se o trânsito em ambos os sentidos de marcha, sendo que as duas hemifaixas de trânsito se encontram separadas por uma linha longitudinal descontínua [alínea D) dos Factos Assentes].

5) Apesar de todos os esforços e tratamentos hospitalares, após o acidente, C... veio a falecer no Hospital Distrital de Anadia, pelas 18h05 do dia 31 de Maio de 2005 [alínea E) dos Factos Assentes].

6) Com base no falecimento de C..., beneficiário ....., em consequência do acidente, foram requeridas ao ISS-IP/CNP as respectivas prestações por morte, que foram deferidas [alínea G) dos Factos Assentes].

7) Em consequência do referido em 6), o ISS-IP/CNP pagou à viúva, a título de subsídio por morte, a quantia de € 4.708,64 e a título de pensões de sobrevivência, no período de Junho de 2005 a Abril de 2010, a quantia de € 16.594,27, perfazendo um total de € 21.302,91 [alíneas H) a J) dos Factos Assentes].

8) O ISS-IP/CNP continuará a pagar à 1ª Autora a pensão de sobrevivência (enquanto esta se encontrar nas “condições legais”), pensões cujo valor mensal actual é de € 254,71 [alínea K) dos Factos Assentes e fls. 155].

9) Nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas em 1), o tempo estava seco, com boa luminosidade e a estrada, em piso de asfalto estava em bom estado (resposta ao quesito 1º da Base Instrutória).

10) No local do acidente inicia-se uma recta após uma ligeira curva de desenho à esquerda, atento o sentido de marcha de ambos os ciclomotores, isto é, Moita-Anadia (continuação da resposta ao quesito 1.º da Base Instrutória).

11) Na Rua Poeta Cavador, alguns metros após a curva mencionada em 10), entronca à esquerda, atento o sentido Moita-Anadia, a Rua das Escolas, e à sua direita, considerando o mesmo sentido, um arruamento de acesso ao lugar de Carvalhais, configurando assim um cruzamento (resposta ao quesito 2.º da Base Instrutória).

12) A mesma Rua Poeta Cavador constitui a via principal da localidade da Moita, sendo a estrada que liga a cidade de Anadia, sede do concelho, à parte nascente do concelho de Anadia, recebendo o nome de Rua Poeta Cavador ao atravessar o povoado da Moita e, durante o seu percurso pelo interior da Moita, é uma estrada muito sinuosa, com bastantes curvas e contra-curvas e com ligeiras subidas e descidas (resposta ao quesito 3.º da Base Instrutória).

13) Ambos os ciclomotores, momentos antes da verificação do acidente, seguiam na sua hemifaixa de trânsito, sendo que o ciclomotor conduzido pelo E...,...90..... circulava na retaguarda do ciclomotor conduzido pelo C... (resposta ao quesito 4.º da Base Instrutória).

14) A linha longitudinal descontínua, logo após a curva anteriormente referida de desenho à esquerda, dá lugar a uma linha longitudinal contínua, separadora das duas hemifaixas de trânsito, desenhada no pavimento, de modo visível, antecedendo o aludido cruzamento, sempre considerando o sentido Moita-Anadia, interrompendo-se neste cruzamento de modo a permitir o acesso aos arruamentos que se cruzam com a Rua Poeta Cavador e vice-versa (resposta ao quesito 5.º da Base Instrutória).

15) Imediatamente a seguir ao cruzamento existe na mesma Rua Poeta Cavador uma passadeira para peões, desenhada no piso devidamente sinalizada com um sinal vertical, direccionada ao portão de um lar da terceira idade ali existente, reiniciando-se a linha longitudinal contínua, como assinalado na participação do acidente elaborada pela G.N.R. de Anadia (resposta ao quesito 6.º da Base Instrutória).

16) C... pretendia tomar a referida Rua das Escolas pelo que, logo após ter descrito a curva de desenho à esquerda, aproximou-se do eixo da via e iniciou a manobra de mudança de direcção para a Rua das Escolas (resposta ao quesito 7.º da Base Instrutória).

17) E..., que conduzia o ciclomotor de matrícula...90....., após ter descrito a curva referida em 16), iniciou a manobra, que pretendia realizar, de ultrapassagem ao ciclomotor tripulado pelo C... (resposta aos quesitos 8.º e 12.º da Base Instrutória).

18) Quando efectuava a manobra de ultrapassagem mencionada em 17), o ciclomotor conduzido por E... embateu violentamente com a dianteira na parte lateral esquerda do ciclomotor tripulado por C..., tendo este sido brutalmente projectado contra o solo, onde ficou prostrado (resposta aos quesitos 9.º e 10.º da Base Instrutória).

19) O condutor do ciclomotor de matrícula ...90 iniciou a manobra de ultrapassagem imediatamente antes do cruzamento referido em 11) e da passagem para peões referida em 15) (resposta ao quesito 13.º da Base Instrutória).

20) Como consequência da descrita colisão, C... sofreu ferimentos (resposta ao quesito 16.º da Base Instrutória).

21) Foi transportado, logo após o acidente, pela ambulância dos Bombeiros Voluntários de Anadia, para o Hospital Distrital de Anadia, onde lhe foram dispensados os devidos cuidados e tratamentos clínicos (resposta ao quesito 17.º da Base Instrutória).

22) À data do acidente, o falecido C... tinha 67 anos de idade e gozava de boa saúde, robustez física e muita agilidade (resposta ao quesito 18.º da Base Instrutória).

23) Os Autores, mãe e filho, sofreram um forte abalo moral e grande desgosto com o desaparecimento tão súbito e trágico de C... (resposta ao quesito 21.º da Base Instrutória).

24) A Autora A...e o C... formavam um casal amantíssimo, no quadro dum já longo casamento, em perfeita harmonia e paz (resposta ao quesito 22.º da Base Instrutória).

25) A Autora A... vive amargurada com a morte do seu ente querido, tendo grande dificuldade em superar a perda do marido, por ela muito amado (resposta ao quesito 23.º da Base Instrutória).

26) O Autor B... vive inconsolável com a perda do seu pai, a quem votava um grande amor e amizade, aliás recíproco, próprio de uma boa, sã e elevada relação paterno-filial (resposta ao quesito 24.º da Base Instrutória).

27) Na verdade, o falecido C... representava para o seu único filho, o aqui Autor B..., uma forte referência para a vida e actualmente sente grande dificuldade em conformar-se com o desaparecimento daquele que em vida lhe votou muito amor e amizade, acudindo-o sempre nos momentos difíceis (resposta ao quesito 25.º da Base Instrutória).

28) A dor psíquica pela morte trágica do C..., marido e pai, acompanhará os Autores pela vida fora (resposta ao quesito 26.º da Base Instrutória).

29) O falecido C... era, ao tempo do acidente, aposentado da sua profissão de serralheiro, auferindo a reforma de € 430,00 mensais, 14 vezes por ano, quantia essa que era integrada no património familiar (resposta ao quesito 29.º da Base Instrutória).

30) O falecido C... garantia o sustento do agregado familiar, contribuindo ainda para o sustento do próprio Autor B..., que à data se encontrava desempregado (resposta ao quesito 31.º da Base Instrutória).

31) Criava e cuidava de alguns animais domésticos (resposta ao quesito 32.º da Base Instrutória).

32) Dos proventos que auferia, o falecido C... despendia parte em gastos pessoais (resposta ao quesito 33.º da Base Instrutória).

33) Nas circunstâncias de tempo e lugar a que se alude em 1), o condutor do ciclomotor de matrícula...90..... circulava na Rua Poeta Cavador, no sentido Moita-Anadia, circulação essa realizada pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha e a velocidade não superior a 50 km/h (resposta ao quesito 36.º da Base Instrutória).

34) Em determinado momento do trajecto do...90....., surge a circular à sua frente, na mesma metade da faixa de rodagem, o ciclomotor com matrícula ...87....., a velocidade inferior (resposta ao quesito 37.º da Base Instrutória).

35) Quando o ciclomotor de matrícula...90..... se encontrava a escassos metros do ...87....., o condutor deste, súbita e inopinadamente e sem qualquer tipo de sinalização, flecte a esquerda com o intuito de mudar de direcção (resposta ao quesito 39.º da Base Instrutória).

36) Face quer à proximidade entre os veículos na ocasião referida em 35), quer à manutenção da trajectória então encetada pelo veículo de matrícula ...87....., o embate entre os dois foi inevitável (resposta ao quesito 41.º da Base Instrutória).

37) A Câmara Municipal de Anadia havia transferido a sua responsabilidade civil, a favor de terceiros, pelos danos causados pelo seu referido veículo, interveniente no acidente, para a aqui Ré, através de contrato de seguro válido, titulado pela apólice número ..... [alínea F) dos Factos Assentes].


4.º

Sustenta a ré que em face da dinâmica do acidente apurada nos autos, por nenhuma forma é passível de se concluir pelo nexo causal da actuação do condutor do ciclomotor garantido pela Recorrente, seja por acção, seja por omissão e a verificação do dano[5].

Para o efeito afirma que é inequívoco que o condutor do veículo garantido pela Recorrente procedia a uma manobra de ultrapassagem e que o acidente se deu em ponto indeterminado numa zona de cruzamento. No entanto, cumpre não esquecer que os veículos intervenientes eram dois ciclomotores e que a manobra de ultrapassagem se efectuou a reduzida velocidade (não apurada mas inferior a 50 km/hora), tanto que as duas motorizadas ficaram imobilizadas na zona do cruzamento. Acrescenta que tratava-se de dois veículos de largura reduzida e velocidade de ponta baixa. O local do acidente, pelos elementos constantes nos autos, tinha boa visibilidade, sendo que mais nenhum veículo circulava naquele local. Igualmente nenhum elemento de prova refere a travessia da via, na altura, por qualquer peão, na passadeira ou fora desta[6].

Resulta da matéria de facto apurada nos autos que E..., que conduzia o ciclomotor...90....., imediatamente antes de um cruzamento e de uma passagem para peões que havia depois deste, iniciou uma manobra de ultrapassagem ao ciclomotor ...87....., que seguia à sua frente, no decorrer da qual se veio a dar a colisão entre os dois. E quando o ciclomotor de matrícula...90..... se encontrava a escassos metros do ...87....., o condutor deste, súbita e inopinadamente e sem qualquer tipo de sinalização, flecte à esquerda, com o intuito de mudar de direcção, e face, quer à proximidade entre os ciclomotores, quer à manutenção da trajectória então encetada pelo ...87....., o embate entre os dois foi inevitável.

Nesta parte, o Meritíssimo Juiz considerou na decisão recorrida que a manobra de ultrapassagem encetada pelo condutor do veículo de matrícula...90..... é duplamente ilícita: por um lado porque é proibida a ultrapassagem imediatamente antes dos cruzamentos e nos cruzamentos, e por outro lado porque é proibida ainda a ultrapassagem imediatamente antes das passagens assinaladas para a travessia de peões [cfr. art. 41º/1 c) e d) do Código da Estrada, na redacção vigente ao tempo dos factos, derivada da 5ª alteração ao D.L. nº 114/94, de 3.05, introduzida por intermédio da Lei nº 20/02, de 21.08, diploma a que doravante deverão reportar-se todas as normas que citarmos sem indicação do diploma a que se referem].

Dispõe o n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. E o artigo 563.º do mesmo diploma estabelece que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Assim, a obrigação de reparar um dano supõe a existência de um nexo causal entre o facto e o prejuízo[7].

E como causa adequada deve considerar-se, em princípio, toda e qualquer condição do prejuízo. Mas uma condição deixará de ser causa adequada, tornando-se juridicamente indiferente, desde que seja irrelevante para a produção do dano segundo as regras da experiência, dada a sua natureza e atentas as circunstâncias conhecidas do agente, ou susceptíveis de ser conhecidas por uma pessoa normal, no momento da prática da acção. E dir-se-á que existe aquela irrelevância quando, dentro deste condicionalismo, a acção não se apresenta de molde a agravar o risco de verificação do dano[8].

A introdução no citado artigo 563.º do adverbio "provavelmente" faz supor que não está em causa apenas a imprescindibilidade da condição para o desencadear do processo causal, exigindo-se ainda que essa condição, de acordo com um juízo de probabilidade, seja idónea a produzir um dano[9].

Ora, se o condutor do ciclomotor...90..... não estivesse a ultrapassar o ...87....., imediatamente antes de cruzamento, quando este vira à sua esquerda, para entrar na via a que esse cruzamento dava acesso, o embate não se teria dado. Na verdade, nesse caso, o ciclomotor ...87..... teria virado à esquerda e, não estando o ...87..... a ultrapassá-lo por esse lado, a trajectória deste não se cruzaria com a daquele e o acidente não ocorria. Assim, pouco importa se o ciclomotor ...87..... ia a velocidade não superior a 50 km/hora[10], se os ciclomotores têm largura reduzida, se o local tem boa visibilidade ou se mais nenhum veículo ali circulava, dado que aquele ao ultrapassar contribuiu para que se cruzassem as trajectórias dos dois ciclomotores e qualquer uma das condutas, violadoras do Código da Estrada, que tenha contribuído para essa intersecção é causal do acidente. Pois, o nexo causal é definido, na esfera do direito civil, em função da variante negativa da causalidade adequada, o que significa que qualquer condição que interfira no processo sequencial dos factos que conduzem à lesão, e que não seja de todo em todo indiferente à produção do dano segundo as regras normais da experiência comum, seja causa adequada do prejuízo verificado[11].

A circunstância de a ultrapassagem ter sido (também) realizada imediatamente antes de uma passagem assinalada para a travessia de peões desrespeita o disposto no artigo 41.º n.º 1 d) do Código da Estrada. Porém, pese embora essa norma seja violada, nessa parte, a conduta do condutor do ciclomotor...90..... não é causal do acidente, por que este sempre se produziria se, mantendo-se todo o restante circunstancialismo, tal passagem ali não se encontrasse. Não se acompanha, assim, a decisão recorrida (apenas) na parte em que ela considera (não obstante não o afirme de modo expresso e inequívoco) que a violação àquela alínea d) também é causal do acidente.


5.º

Por fim a ré defende que ao condutor do ciclomotor...90..... não deve ser atribuído um grau de culpabilidade superior ou mesmo equivalente à do outro condutor interveniente. Isto por que a manobra do condutor do ...87..... foi brusca e repentina, efectuada em cima do cruzamento, sem a aproximação progressiva ao eixo da via, para além de que se esta aproximação tivesse sido efectuada, mesmo que a manobra não fosse sinalizada, sempre o condutor do...90..... teria tido a possibilidade de efectuar a ultrapassagem pelo lado direito.

Nos termos do n.º 1 do artigo 570.º do Código Civil, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

O Meritíssimo Juiz considerou que em concreto seria apesar de tudo mais imprevisível para o condutor que circulava à frente, numa zona de cruzamento e nas imediações de uma passagem de peões, ser aí alvo de uma ultrapassagem, que para o condutor que circule atrás constatar, no cruzamento, uma manobra de mudança de direcção súbita sem adequada sinalização, posto que aquela zona de cruzamento serve precisamente, entre o mais, para dar ensejo à realização de manobras de mudança de direcção à esquerda. De resto, sinal de que o legislador pretende impor aos condutores especiais precauções na circulação na zona de cruzamentos e das passagens para peões, é o dever de acrescida prudência em matéria de velocidade que faz impender sobre os condutores que daí se aproximem [art. 25º/1 a) e f)]. Estamos pois em crer que é razoável atribuir 70% da culpa pelo acidente ao condutor do veículo seguro na Ré e 30% ao sinistrado que veio a falecer.

Não há dúvidas de que os dois condutores agiram com imprudência, sendo ambas as condutas censuráveis. De qualquer modo, num cruzamento, sempre é mais expectável que um condutor mude de direcção, do que realize uma ultrapassagem, pois, nesse local é possível efectuar aquela manobra sem se desrespeitar as regras estradais, enquanto que esta, nessas circunstâncias, não é de todo admissível.

Por outro lado, ao nível das consequências do acidente, verifica-se que no que toca ao condutor do...90..... não é conhecida qualquer uma. Já quanto ao condutor do ...87....., provou-se que sofreu ferimentos que lhe determinaram a morte, tendo morrido ainda no dia do acidente, quando então contava 67 anos de idade.

Finalmente, diga-se que os dois veículos eram ciclomotores, pelo que não existe qualquer desproporção entre eles.

Pelo que se deixa dito, deve considerar-se que a ultrapassagem num cruzamento é uma manobra mais grave do que a mudança de direcção feita de forma súbita e sem prévia sinalização, o que responsabiliza mais o condutor do...90..... do que o do ...87...... No mesmo sentido apontam, aqui de forma mais significativa, as consequências decorrentes do acidente, em que se destaca a já referida morte do condutor do ...87....

Ponderado tudo o que se deixa dito, conclui-se que a culpa do condutor do...90..... é superior à da do ...87...... Mas, a circunstância deste ter iniciado a manobra de mudança de direcção de forma súbita e sem qualquer tipo de sinalização, quando o...90..... se encontrava a escassos metros de si, tem uma gravidade maior do que aquela que o Meritíssimo Juiz lhe atribuiu, no juízo que fez relativamente à proporção das culpas. As culpas dos condutores não estão tão afastadas quanto resulta da atribuição de 70% para o que conduzia o...90..... e de 30% para o que dirigia o 87....; elas estão um pouco mais próximas.

Nestes termos, afigura-se como equilibrado fixar as culpas dos condutores dos ciclomotores...90..... e ...87..... em 60% para aquele e 40% para este.

Consequentemente, os montantes das condenações que figuram na sentença recorrida devem ser adaptados, reduzindo-se, à proporção das culpas agora encontrada.

A ré deve, assim, ser condenada a pagar:

- conjuntamente aos autores a quantia de 25.500 € (e já não 29.750 €);

- à autora A... a quantia de 9.000 € (e já não 10.500 €);

- ao autor B... a quantia de (9.000 € + 1.880 € =) 10.800 € [e já não (10.500 € + 2.100 € =) 12.600 €];

- ao Instituto da Segurança Social I.P./Centro Nacional de Pensões, a quantia de 12.781,46 € (e já não 14.912,04 €).


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se:

a) parcialmente procedente o recurso, fixando-se a proporção das culpas dos condutores dos ciclomotores...90..... e ...87..... em 60% para aquele e 40% para este e condena-se a ré a pagar:

a.1) conjuntamente aos autores a quantia de 25.500 €;

a.2) ainda à autora A... a quantia de 9.000 €;

a.3) ainda ao autor B... a quantia de 10.800 €;

a.4) ao Instituto da Segurança Social I.P./Centro Nacional de Pensões, a quantia de 12.781,46 €);

revogando-se, nestes segmentos, a decisão recorrida;

b) improcedente na restante parte o presente recurso, confirmando-se no mais a decisão recorrida, reportando-se a condenação no pagamento de juros de mora aos montantes acima mencionados[12].

Custas pelos autores e pela ré, na proporção dos seus decaimentos, sem prejuízo da isenção de que beneficia o Instituto da Segurança Social I.P./Centro Nacional de Pensões.


António Beça Pereira (Relator)
Nunes Ribeiro
Helder Almeida

[1] Em Abril de 2009 o processo foi remetido para o então criado Juízo de Grande Instância Cível de Anadia, da comarca do Baixo Vouga.
[2] Cfr. conclusões 10.ª a 41.ª.
[3] Importa não esquecer que à luz do disposto no artigo 22.º n.º 2 b) do Código da Estrada, por estar dentro de uma localidade, a manobra de ultrapassagem não devia ser sinalizada com sinal sonoro.
[4] Ac. Rel. Porto de 19-9-00, CJ 2000-IV-186.
[5] Cfr. conclusão 15.ª.
[6] Cfr. folhas 205 e 206.
[7] Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, pág. 578.
[8] Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª Edição, pág. 405.
[9] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 7.ª edição, pág. 349.
[10] Este facto nem permite concluir que não circulava em excesso objectivo de velocidade, pois o artigo 27.º n.º 1 do Código da Estrada estabelece como velocidade máxima, para os ciclomotores dentro das localidades, os 40 km/h.
[11] Ac. STJ de 18 Maio 2006, Ref. 7914/2006, Proc. 923/06, www.colectaneade jurisprudencia.com.
[12] Onde no decisório da sentença recorrida, na parte relativa aos juros de mora, em a.5) se refere a quantia de € 2.100,00 contida em a.3), deve considerar-se que esta, por força da presente decisão, foi reduzida para 1.800 €.