Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
279/07.7TBILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
DEPÓSITO
INDEMNIZAÇÃO
CREDOR HIPOTECÁRIO
TERRENO URBANIZÁVEL
PDM
JUSTA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 09/29/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – ÍLHAVO – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INSTÂNCIA CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 692º, Nº 2, DO C. CIV.
Sumário: I – O artigo 692º, nº 2, do CC limita-se a estabelecer a inoponibilidade ao credor hipotecário (que aqui intervém como interessado no processo expropriativo) do depósito da indemnização, que se sub-roga à coisa hipotecada, efectuado pelo expropriante à ordem do credor dessa indemnização (do expropriado que seja o devedor hipotecário).

II – Assim, não resulta da lei (mesmo artigo 692º) qualquer direito do credor hipotecário a obter a entrega directa da indemnização respeitante à expropriação (incidente sobre a coisa hipotecada) por parte do devedor desta (do expropriante).

III – Na falta de obtenção pelo expropriante (devedor da indemnização que se sub-roga ao bem objecto da expropriação) de um acordo entre o credor hipotecário e o devedor hipotecário (expropriado), acordo que confira natureza liberatória, face ao credor hipotecário, ao pagamento da indemnização expropriativa, pode o expropriante recorrer à consignação em depósito como forma de cumprimento liberatório dessa obrigação.

IV – A garantia constitucional da propriedade privada (artigo 62º da CRP) assenta em duas dimensões: uma “garantia de permanência” e uma “garantia de valor”. A transformação da primeira na segunda dimensão pressupõe (é esse o sentido do artigo 62º, nº 2 da CRP) – no que aqui apresenta relevância – a existência de uma expropriação por utilidade pública.

V – A “justa indemnização” referida no trecho final do nº 2 do artigo 62º da CRP expressa essa “garantia de valor”, equivalendo a uma “garantia de valor de troca”.

VI – Este “valor de troca” – a justa indemnização – implica um referencial de cálculo que não se apresente como completamente desfasado (calculado à margem) do “valor de mercado”.

VII – A inexistência de um Plano de Pormenor, enquanto obstáculo à edificabilidade imediata numa zona definida por um PDM como urbanizável (em função da aprovação de um Plano de Pormenor) não conduz a que esse terreno seja considerado, para efeito de cálculo da indemnização por expropriação, como solo “não apto para construção”.

VIII – Existe, relativamente a um terreno nas condições referidas em VII, uma expectativa efectiva de edificabilidade que o mercado intui na fixação do preço desse terreno e que constitui uma dimensão valorativa deste que a expropriação retira ao expropriado.

IX – A fixação de uma “justa indemnização” por esse terreno, para que não se apresente como completamente desfasada do “valor de mercado”, deve integrar essa expectativa de edificabilidade, através da classificação do solo, à partida, como “apto para construção”.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

            1. Nos presentes autos de expropriação por utilidade pública, respeitantes à denominada “parcela nº 1” (área de 472 m2, a destacar de um prédio sito em Ílhavo, adjacente à Rua Cimo da Vila, freguesia de S. Salvador, correspondente à matriz urbana nº 5793), cuja apropriação pelo Estado, através da entidade Expropriante, foi destinada à execução da obra identificada como SCUT Costa da Prata – lanço – Mira/Aveiro Sul, assume o estatuto de Expropriante A... (doravante referida como Expropriante e, no contexto da presente apelação, como Apelante), sendo Expropriado, enquanto proprietário do terreno onde se integrava a mencionada parcela, ao tempo da declaração de utilidade pública, B... (que referiremos doravante como Expropriado, Apelado no contexto da apelação final, e Agravado no contexto do recurso interlocutório desta espécie admitido a fls. 309).


            Intervém no presente processo, além dos indicados Expropriante e Expropriado, na qualidade de Interessado titular de hipotecas sobre o prédio que incluía a parcela expropriada, o Banco C... (adiante referido como Interessado, sendo Agravante no recurso admitido a fls. 309)[1].

            Refere-se o presente recurso de apelação da Expropriante (interposto a fls. 454, admitido a fls. 457 e que propiciou a subida do agravo interlocutório admitido a fls 309[2]) à Sentença de fls. 433/447, que fixou em €10.122,48 o montante indemnizatório devido pela expropriação da mencionada parcela nº 1, sendo que o fez em sede de recurso, igualmente interposto pela Expropriante (fls. 156/165), relativo à decisão arbitral necessária de fls. 4/7[3].

            1.1. Com efeito – e percorreremos aqui sucintamente o iter da expropriação até à chegada a esta instância –, foi a mencionada “parcela nº 1”, em conjunto com outras, objecto de declaração de utilidade pública pelo Despacho nº 6217-A/2006 (2ª série), do Secretário de Estado Adjunto e das Obras Públicas (publicado no Diário da República – II Série, nº 57, de 22/03/2005; v. fls. 8/9).

            Na sequência desta declaração, realizada que foi a vistoria ad perpetuam rei memoriam (consta ela de fls. 42/44)[4] e inexistindo acordo do Expropriado relativamente à proposta de indemnização feita pela Expropriante[5], foi fixado, por arbitragem necessária, nos termos anteriormente referidos, o valor de €12.162,46, sendo a propriedade da parcela adjudicada à Expropriante, através do despacho de fls. 67.

            1.2. Notificada deste despacho, veio a Expropriante (requerimento de fls. 156/165) interpor recurso – referimo-nos aqui ao recurso para o Tribunal da Comarca da situação da parcela expropriada, previsto no artigo 52º, nº 1 do Código das Expropriações (CE) –, impugnando, desde logo, a classificação, na fase arbitral, do solo como apto para construção e propondo, alternativamente e dentro deste pressuposto, como valor da “justa indemnização devida pela expropriação”, €2.360,00. Alternativamente, a considerar-se o terreno como apto para construção, propõe a Expropriante o valor de €5.050,00.

            Respondeu a este recurso, a fls. 184/192, o Interessado, Banco C..., pugnando pela manutenção do valor fixado na fase arbitral[6].

            Realizou-se a avaliação prevista no artigo 61º, nº 2 do CE (fls. 282/287), colhendo esta o voto unânime dos cinco peritos, na fixação à parcela expropriada do valor geral de €10.594,48 (valor do terreno: €9.467,38; benfeitorias: €1.127,10), pressupondo estes valores a classificação do solo como apto para construção, classificação sempre unanimemente reiterada pelos Senhores peritos em posteriores esclarecimentos[7].

            1.3. Alcançou-se, assim, a fase de julgamento do recurso respeitante à expropriação, proferindo o Tribunal a Sentença de fls. 433/447 – que é, como antes se indicou, a decisão ora apelada. Tal aresto, confirmando a classificação do solo expropriado como apto para construção, culminou com o seguinte pronunciamento decisório:


“[…]
[D]ecide-se fixar a indemnização global a pagar pela entidade Expropriante ao Expropriado em €10.122,48, acrescida da actualização que resultar em consequência da aplicação do disposto no artigo 24º do [CE], ou seja, de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação, desde 22/03/2005 até à presente data.
[…]”
            [transcrição de fls. 446]

            1.4. Entretanto, antecedentemente a esta Sentençae abordaremos agora o trecho processual respeitante ao recurso de agravo –, no decurso da tramitação da fase judicial da expropriação, havia o Interessado Banco C... apresentado o requerimento de fls. 79/86. Neste, invocando atrasos do Expropriado na satisfação dos compromissos garantidos pelas hipotecas incidentes sobre o prédio em que se integra a parcela expropriada, formulou o referido Interessado, dirigida ao Tribunal de Ílhavo, a seguinte pretensão:


“[…]
 [Q]ue a justa indemnização a atribuir nos presentes autos à parcela de terreno expropriada, lhe seja desde logo entregue para ressarcimento da depreciação das suas garantias hipotecárias, quer tal entrega se verifique na fase processual a que se refere os nºs 2, 3 e 4 do artigo 52º do [CE], quer se verifique na fase final de pagamento, a que se refere os artigos 67º e seguintes, também do [CE].
[…]”
            [transcrição de fls. 86, sublinhado acrescentado]

            Opôs-se o Expropriado a fls. 195/196 a esta pretensão, afirmando estar a proceder ao pagamento atempado dos mútuos garantidos pelas hipotecas incidentes sobre o prédio objecto da expropriação parcial, juntando documentação em apoio de tal alegação.

            Recaiu sobre a pretensão do Interessado o despacho de fls. 233/234, cujo teor aqui se transcreve:


“[…]
A fls. 79 dos autos veio o Banco C..., requerer que a indemnização a atribuir nos presentes autos pela parcela expropriada lhe seja desde logo entregue para ressarcimento da depreciação das suas garantias hipotecárias sobre o prédio de que foi expropriada a parcela em causa nestes autos por conta de contratos de mútuo que celebrou com o mutuário, estando em dívida várias prestações e outras quantias, verificando-se uma diminuição de tais garantias em face da mencionada expropriação. Para prova do alegado juntou diversos documentos.
O expropriado […] veio […] opor-se a tal pretensão, alegando, em síntese, que tem pago as prestações mensais e que os contratos não foram resolvidos, além de que não ocorre qualquer depreciação.
Apreciando, dir-se-á que em face da oposição do [Expropriado], não é possível a decisão incidental da questão suscitada, pois esta reveste manifesta complexidade, carecendo de produção de prova, tanto mais que não resulta dos documentos juntos que os contratos tenham sido resolvidos.
Pelo exposto, indefere-se a requerida entrega da indemnização ao ora requerente Banco C....
[…]”
            [transcrição de fls. 233/234]

            Esta decisão foi mantida pelo despacho de fls. 301/302 (que apreciou, desatendendo-as, uma arguição de nulidade e um pedido de esclarecimento, ambos reportados à mencionada decisão, v. fls.  244/247).            

            1.4.1. Inconformado, apresentou-se o Interessado Banco C... a agravar (fls. 307)[8], sendo tal recurso admitido a fls. 309[9], motivando-o o Agravante a fls. 338/349, aí formulando as seguintes conclusões:


“[…]
1ª. No seu requerimento de fls. 79 e ss. dos autos, o Recorrente, Banco C..., veio invocar os seus créditos hipotecários que detém sobre o prédio de que faz parte a parcela de terreno expropriada, e, por via disso, requereu a entrega da justa indemnização a atribuir nos presentes autos àquela parcela de terreno, quer tal entrega se verifique na fase processual a que se refere[m] os n.º 2, 3 e 4 do artigo 52º do Código das Expropriações, quer se verifique na fase final de pagamento a que se referem os artigos 67º e ss. daquele diploma legal, uma vez que tal expropriação diminuiu de valor o prédio objecto da expropriação, pelo menos, no montante de €12.162,46, fixado pelo acórdão de arbitragem, e, consequentemente, depreciou, naquele valor, as suas garantias hipotecárias sobre aquele prédio. 
2ª. O douto despacho de fls. 301 e 302 dos autos, proferido em 07/02/2008, que esclareceu o despacho de fls., proferido em 22/05/2007, e que dele faz parte integrante, indeferiu a requerida entrega da indemnização, ao Recorrente, Banco C..., quer tal entrega se verifique na fase processual a que se refere os n.º 2, 3 e 4 do artigo 52º do Código das Expropriações, quer se verifique na fase final de pagamento a que se referem os artigos 67º e ss. daquele diploma legal, uma vez que, no dizer do despacho esclarecido, «em face da oposição do requerido não era possível a decisão incidental da questão suscitada, pois aquela reveste manifesta complexidade, carecendo de produção de prova, tanto mais que não resulta dos documentos juntos que os contratos tenham sido resolvidos».
3ª. O expropriado, B..., a fls. 195, veio opor-se à entrega, ao Recorrente, da justa indemnização a atribuir nos presentes autos à parcela de terreno expropriada, quer tal entrega se verifique na fase processual a que se refere os n.º 2, 3 e 4 do artigo 52º do Código das Expropriações, quer se verifique na fase final de pagamento a que se referem os artigos 67º e ss. daquele diploma legal «alegando, em síntese, que tem pago as prestações mensais e que os contratos não foram resolvidos, além de que não ocorre qualquer depreciação».
4ª. O Expropriado não põe em causa a existência dos créditos hipotecários invocados pelo Recorrente no seu requerimento de fls. 79 e ss. dos autos, nem os seus valores e prestações acordadas.
5ª. Nos termos do artigo 9º nº 1 do Código das Expropriações «consideram-se interessados, além do expropriado, os titulares de qualquer direito real ou ónus sobre o bem a expropriar (…)».
6ª. O Recorrente é titular de duas hipotecas sobre o imóvel, de que faz parte a parcela de terreno expropriada, para garantia de dois créditos que concedeu ao Expropriado, sendo, por isso, interessado nos presentes autos de expropriação.
7ª. Do estatuído nos artigos 9º nºs 1 e 3 e 10º nºs 3 e 5 do Código das Expropriações não resulta que o Recorrente para ser considerado interessado e ter legitimidade para intervir nos presentes autos de expropriação [sem que] tenham sido resolvidos os dois contratos de mútuo invocados.
8ª. Apenas exigem que o Recorrente, para ser considerado interessado nos presentes autos de expropriação e ter legitimidade para neles intervir, seja titular de qualquer direito real sobre o imóvel a expropriar.
9ª. Os créditos invocados pelo Recorrente estão garantidos por duas hipotecas, constituídas pelo Expropriado a seu favor, sobre o prédio de que faz parte a parcela de terreno expropriada, beneficiando, assim, da preferência e prioridade consagradas no artigo 686º do Código Civil, quanto ao seu pagamento pelo valor do imóvel hipotecado.
10ª. Em consequência da expropriação da parcela de terreno expropriada, o prédio objecto da expropriação diminuiu de valor, pelo menos, no montante de €12.162,46, fixado pelo acórdão [arbitral], e, do mesmo modo, depreciou, naquele montante, as garantias hipotecárias do Banco Recorrente sobre aquele prédio. 
11ª. De acordo [com] o estatuído no artigo 692º nºs 1 e 3 do Código Civil, se a coisa ou direito hipotecado se perder, deteriorar ou diminuir de valor – o que sucede nos presentes autos –, e o dono ou titular tiver o direito a qualquer indemnização, transfere-se para o objecto da indemnização o direito que o credor hipotecário tinha de ser pago, com preferência sobre os demais credores, pelo valor da coisa hipotecada.
12ª. O Banco Recorrente, enquanto credor hipotecário do prédio de que faz parte a parcela de terreno expropriada, conserva em relação à justa indemnização a atribuir nos presentes autos àquela parcela de terreno a preferência que tinha sobre o imóvel onerado.
13ª. Dos artigos 52º nº 3 e 71º nº 3 do Código das Expropriações resulta que ao Recorrente, na sua qualidade de interessado, assiste o direito de receber a justa indemnização a atribuir nos presentes autos à parcela de terreno expropriada, para ressarcimento da depreciação das suas garantias hipotecárias, quer tal entrega se verifique na fase processual a que se refere os n.º 2, 3 e 4 do artigo 52º do Código das Expropriações, quer se verifique na fase final de pagamento a que se referem os artigos 67º e ss. daquele diploma legal.
14ª. O Banco Recorrente, enquanto credor hipotecário do prédio de que faz parte a parcela de terreno expropriada, conserva, em relação à justa indemnização a atribuir nos presentes autos àquela parcela de terreno, a preferência que tinha sobre o imóvel onerado.
15ª. Pelo que tal indemnização lhe deverá ser entregue, quer tal entrega se verifique na fase processual a que se refere os n.º 2, 3 e 4 do artigo 52º do Código das Expropriações, quer se verifique na fase final de pagamento a que se referem os artigos 67º e ss. daquele diploma legal.
16ª. O despacho recorrido, que esclareceu o despacho de fls., proferido em 22/05/2007, e que dele faz parte integrante, devia ter deferido a entrega da indemnização, ao Recorrente, quer na fase processual a que se refere os n.º 2, 3 e 4 do artigo 52.º do Código das Expropriações, quer na fase final de pagamento a que se referem os artigos 67.º e ss. daquele diploma legal.
17ª. O despacho recorrido violou, assim, os artigos 9º nº 1 e 3, 10º nºs 3 e 5, 52º nºs 2, 3 e 4, 67º, 71º nº 3 e 73º nº 1 do Código das Expropriações e os artigos 686º e 692º nºs 1 e 2 do Código Civil.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o despacho recorrido e ordenar-se que o Senhor Juiz a quo o substitua por outro que defira a entrega da indemnização ao Recorrente, quer na fase processual a que se refere os n.º 2, 3 e 4 do artigo 52º do Código das Expropriações, quer na fase final de pagamento a que se referem os artigos 67º e ss. daquele diploma legal, conforme é de
Justiça.
[…]”
            [transcrição de fls. 344/349]

            1.5. Retomando a marcha do processo de expropriação subsequente à Sentença de fls. 433/447 (subsequentemente à decisão ora apelada), ocorreu a interposição, pela Expropriante do presente recurso de apelação (fls. 454), sendo este admitido pelo despacho de fls. 457.

Da motivação de tal recurso (fls. 463/476), constam, a rematar, as seguintes conclusões:


“[…]
O Caso Julgado Arbitral
1. Tem que se considerar assente e definitivamente julgado, por força do caso julgado arbitral, que à data da DUP e à data da arbitragem, a parcela expropriada não apresentava condições de edificabilidade em virtude de não existir qualquer plano de pormenor aprovado para a área em que se situa, nem se situar em zona infra-estruturada e comprometida à data da publicação do PDM.
2. A decisão recorrida ao não contemplar nem os factos nem a solução de direito constantes da conclusão anterior, violou o disposto nos artigos 58º do CE, 1528º do CPC, 22º e 26º do DL 31/86 e 673º do CPC.
Sem Prescindir: impugnação do julgamento quanto à matéria de facto
3. Resulta da decisão arbitral, na parte em que a mesma não mereceu discordância da recorrente, que à data da DUP não existia qualquer plano de pormenor aprovado para a área em que se situa a parcela expropriada, nem ela se situava em zona infra-estruturada e comprometida à data da publicação do PDM.
4. Isso, aliás, resulta também do próprio laudo pericial unânime (cfr., fls. 284).
5. Tal factualidade é insusceptível, em concreto, de ser destruída por quaisquer outras provas, dado integrar a parte não recorrida da decisão arbitral e resultar também da perícia efectuada nos autos que serviu de base à decisão, pelo que deverá ser a matéria de facto dada como provada (cfr. artigo 712º, nº 1, alíneas a) e b) do CPC), nela devendo ser incluída.
Violação de Lei
6. A justa indemnização corresponde ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal, à data da DUP, tendo em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data (artigo 23º, nº 1 do CE).
7. À data da DUP a parcela expropriada não tinha condições de edificabilidade, por preencher exactamente a hipótese da previsão do artigo 18º nº 1 do Regulamento do PDM de Ílhavo, onde se diz: «[n]os espaços urbanizáveis de expansão (…) a construção deverá ser precedida de plano de pormenor que garanta uma estruturação urbanística das zonas. Enquanto não for aprovado plano de pormenor, só poderão ser licenciadas construções em zonas infra-estruturadas e comprometidas, à data da publicação do presente Regulamento» (sublinhado nosso).
8. A decisão recorrida não respeitou o princípio da contemporaneidade da indemnização por referência à data da DUP, e determinou a indemnização com base [em] aptidão edificativa que a parcela não possuía àquela data, nem sequer à data da própria avaliação.
9. Em coerência com os pressupostos regulamentares definidos na decisão arbitral, que nessa parte não foi recorrida (as resultantes do artigo 18º, nº 1 do RPDM), o solo da parcela teria que ser avaliado como apto para outros fins.
10. Considerado o uso do solo à data da DUP, os peritos unanimemente fixaram o valor do solo como não superior a seis euros/m2, conforme resposta ao quesito 2º da expropriante (cfr. fls. 286 dos autos).
11. O valor do solo da parcela é, assim, de €2.832,00; por referência a tal uso, o muro constitui benfeitoria indemnizável (€1.127,10) pelo que a indemnização devida pela expropriação deverá ser fixada em €3.959,10.
12. A decisão recorrida violou o disposto no artigo 18º, nº 1 do RPDM e nos artigos 23º, nº 1 e 27º, nº 3 do CE, devendo ser revogada e substituída por outra que fixe o valor da indemnização em €3.959,10.
Sem prescindir: quanto à benfeitoria
13. Se a parcela dever ser avaliada como solo apto para construção, então não pode ser atribuída qualquer indemnização pela benfeitoria.
14. Em tais circunstâncias, tal muro será um encargo e não um benefício, não desempenhando qualquer função útil, tido em vista aquela fim edificativo, que permita ser qualificado como benfeitoria.
15. Caso se mantenha a avaliação com base no uso do solo para
construção, terá sempre que ser diminuída do valor de €1.127,10, pelo que deverá ser fixada em €8.995,38, sob pena de violação do artigo 23º, nº 1 do CE.
[…]”
[transcrição de fls. 473/476, constando os títulos do original]


II – Fundamentação


            2. Encetando a apreciação dos dois recursos emergentes da tramitação na primeira instância (o agravo e a apelação admitidos respectivamente a fls. 309 e 457), importa ter presente que o âmbito objectivo de qualquer um deles se define através do teor das conclusões apresentadas pelo respectivo recorrente [artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[10]].

            Tendo isto presente, haverá que apreciar e decidir, desde logo, seguindo a ordem do artigo 710º, nº 1 do CPC, o recurso de agravo – o recurso primeiramente interposto –, apreciando-se subsequentemente a apelação, o recurso dominante que propiciou, por arrastamento, a subida daquele. Note-se que nesta situação, tendo presente a autonomia substancial do objecto do agravo na dinâmica do processo expropriativo (refere-se ele à entrega directa da indemnização – seja ela qual for – ao Interessado/Agravante e não ao Expropriado), sempre subsistirá interesse na apreciação desse recurso interlocutório, independentemente do sentido decisório do recurso de apelação final, sendo que um hipotético provimento do primeiro (do agravo) sempre terá utilidade prática (teria, como adiante veremos) para o Agravante (v. artigo 710º, nº 2 in fine do CPC). Com efeito, proceda ou improceda a apelação da Expropriante, esta sempre terá de satisfazer algum montante indemnizatório ao Expropriado (ao devedor hipotecário do Agravante), sendo necessário, face à pretensão do Interessado/Agravante, determinar se essa entrega (na forma de depósito à ordem de alguém) deve ser referida ao Interessado. Nisto se traduz, aliás, a pretensão recursória deste.

            Há, pois, que começar pela apreciação do recurso de agravo.

O recurso de agravo (interposto a fls. 307, recebido a fls. 309 e motivado a fls. 338/349):

            2.1. Refere-se este recurso[11], como flúi do relato constante do item 1.4./1.4.1., ao despacho de fls. 233/234, na parte em que foi desatendida a pretensão do Agravante, enquanto Interessado no processo expropriativo, emergindo o respectivo interesse processual da circunstância de dispor este de garantias hipotecárias incidentes sobre o prédio do qual foi destacada a parcela expropriada (v. disposições do CE transcritas na nota 3 supra). É certo que o mencionado despacho de fls. 233/234 originou, em função do requerimento de fls. 244/247 (uma arguição de nulidade por preterição do contraditório e um pedido de aclaração), o pronunciamento complementar do Tribunal a quo de fls. 301/302, ao qual o requerimento de interposição do recurso (v. fls. 307) se refere enquanto decisão recorrida. Todavia, tendo presente a motivação do agravo, e concretamente o teor das conclusões deste (acima transcritas no item 1.4.1.), percebe-se estar em causa (rectius, constituir o objecto do recurso que ora se aprecia) uma integração lógica entre os dois despachos, o de fls. 233/234 e o de fls. 301/302, na asserção decisória comum a ambos de negar a entrega directa ao Interessado Banco C..., enquanto credor hipotecário do Expropriado, do montante indemnizatório que se vier a apurar neste processo, quer tal montante tenha sido apurado e depositado intercalarmente, quer o venha a ser em função da apelação que subsequentemente será apreciada e decidida.

            Tudo se resume, assim, em função do apontado elemento decisório comum contido nos despachos de fls. 233/234 e 301/302[12], à questão, suscitada pelo Banco C... no requerimento de fls. 79/86, de saber se ao credor hipotecário é devido, no âmbito de um processo de expropriação por utilidade pública, no qual este intervém com o estatuto de Interessado (artigo 9º do CE[13]), o pagamento directo, por ordem do Tribunal (é o que o Agravante pretende), do montante indemnizatório que em tal processo se venha a atribuir ao devedor hipotecário. Isto no pressuposto – e tal pressuposto verifica-se in casuda garantia hipotecária, que aqui decorre de hipotecas voluntárias do Expropriado, incidir sobre o prédio objecto da expropriação.

            2.1.1. A garantia hipotecária – e este constitui o necessário ponto de partida da subsequente exposição – “[…] confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo” [artigo 686º, nº 1 do Código Civil (CC)]. Trata-se, pois, de um direito real de garantia – de um direito instrumental de outros, maxime que se destina a assegurar (a garantir) direitos de crédito[14] – que, na situação que aqui nos interessa, se projecta nas vicissitudes da coisa afecta à garantia, nos termos resultantes do artigo 692º do CC, cujo texto integral aqui se reproduz para facilidade de apreensão do seu sentido:

Artigo 692º
Indemnizações devidas
1 – Se a coisa ou o direito hipotecado se perder, deteriorar ou diminuir de valor, e o dono tiver direito a ser indemnizado, os titulares da garantia conservam, sobre o crédito respectivo ou as quantias pagas a título de indemnização, as preferências que lhes competiam em relação à coisa onerada
2 – Depois de notificação da existência da hipoteca, o devedor da indemnização não se libera pelo cumprimento da sua obrigação com prejuízo dos direitos conferidos no número anterior.
3 – O disposto nos números precedentes é aplicável às indemnizações devidas por expropriação ou requisição, bem como por extinção do direito de superfície, ao preço da remição do foro e aos casos análogos.

            Anotando esta disposição, referem Pires de Lima e Antunes Varela, com interesse para a questão colocada neste agravo:


“[…]
A sua doutrina é aplicável, dada a generalidade do nº 3, a todo e qualquer crédito de indemnização resultante da perda ou diminuição do valor da coisa. Pode tratar-se duma indemnização de seguro, duma por utilidade pública ou particular, etc. […]. É admitida, pois, de uma maneira geral, a sub-rogação das indemnizações devidas, mantendo o credor hipotecário sobre o respectivo crédito as preferências que lhe competiam em relação à coisa onerada.
Abrangendo o direito do credor hipotecário a indemnização devida por terceiro (a qual ocupa, por sub-rogação, o lugar da coisa hipotecada), deve entender-se que ao credor é legítimo agir directamente contra o devedor da indemnização […].
O nº 2 deste artigo 692º tem por objectivo conciliar os interesses do credor com os do devedor da indemnização. Enquanto o devedor da indemnização não for notificado da existência da hipoteca (não se considerou suficiente a publicidade resultante do registo), não pode evitar-se o pagamento da indemnização ao devedor hipotecário. Mas, notificado aquele […], dispõe já a lei que o devedor da indemnização se não libera pelo cumprimento daquela obrigação com prejuízo dos direitos conferidos no número anterior. Se, portanto, não obstante o cumprimento do devedor, o credor hipotecário vier a obter a satisfação do seu crédito, o cumprimento tem-se como liberatório. Não há prejuízo para ninguém. Se, porém, o devedor hipotecário não cumprir e o credor não obtiver a satisfação dos seus direitos, já o cumprimento se não considera liberatório e sobre o crédito de indemnização pode o credor hipotecário exercer aqueles direitos, como se esse crédito fosse devido. O devedor da indemnização terá, nesse caso, de ressarcir-se junto do dono da coisa hipotecada do prejuízo que lhe advier do segundo pagamento a que é obrigado.
Se o devedor da indemnização não obtiver, por acordo com o credor hipotecário e com o devedor, meio de satisfazer a sua dívida por modo liberatório, pode recorrer à consignação em depósito […].”[15]

            A este respeito, caracterizando igualmente, no quadro das vicissitudes da hipoteca por alteração do seu objecto, o regime emergente do artigo 692º do CC nas suas diversas incidências, diz Luís Manuel Teles de Menezes Leitão:


“[…]
Apesar de estar em causa essencialmente uma ideia de sub-rogação real, consistente na substituição do objecto da hipoteca pelo crédito à indemnização, ou pelas quantias pagas para a sua satisfação, a verdade é que neste caso a lei vai permitir que a hipoteca tenha um objecto que não pode habitualmente ter, e que inclusivamente se molda sobre o regime do penhor de créditos, exigindo-se da mesma forma a notificação ao devedor (cfr. artigo 681º, nº 2 [CC]).
[…]”[16]

            Vale a pena, dado o apontado paralelismo da situação com a do penhor de créditos, caracterizar aqui – e continuamos a seguir a exposição de Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – o regime correspondente (actuando desta feita através do artigo 685º do CC), na situação paralela à prevista, para a hipoteca no artigo 692º acima transcrito:


“[…]
Um dos direitos do credor pignoratício é logo o de cobrar o crédito, estabelecendo o artigo 685º, nº 1 [CC], que o credor pignoratício deve cobrar o crédito empenhado logo que este se torne exigível, passando o penhor a incidir sobre a coisa prestada em satisfação desse crédito. Trata-se, neste caso, de uma hipótese de sub-rogação real, sendo o crédito automaticamente substituído pela coisa como objecto do penhor (res sucedit in locum nominis). Em princípio, o direito a cobrar o crédito é atribuído exclusivamente ao credor pignoratício, dado que o titular do direito empenhado só pode receber com o consentimento daquele, extinguindo-se neste caso o penhor (artigo 685º, nº 4 [CC]). Apenas no caso de o crédito ter por objecto a prestação de dinheiro ou de outra coisa fungível, o devedor não pode fazê-la senão aos dois credores conjuntamente, cabendo-lhe, na falta de acordo entre os interessados, o recurso à consignação em depósito (artigo 685º, nº 2 [CC]).
[…]”[17]

            Revertendo, com base nestas considerações, à situação dos autos, constata-se que em lugar algum a lei determina (concretamente não o determina no artigo 691º do CC) que a indemnização que se sub-roga à coisa hipotecada seja devida, sem mais, ao credor hipotecário – no sentido de dever ser prestada pelo respectivo devedor (coisa distinta de poder ser prestada, no sentido de faculdade concedida a alguém). O que resulta da lei é, tão-só, que o pagamento feito ao credor da indemnização (neste caso: o pagamento feito pelo Expropriante ao Expropriado) não libera o devedor dessa indemnização, no sentido de não operar a extinção da dívida indemnizatória deste no confronto do credor hipotecário (se este não tiver, entretanto, obtido a satisfação do seu crédito[18]). A solução – a solução com assento legal –, no sentido em que a doutrina equaciona o problema, por referência a uma compreensão global da incidência da vicissitude ocorrida sobre a coisa hipotecada, remete para o domínio das opções (para a autonomia comportamental) do devedor da indemnização sub-rogada, no tratamento da situação, fornecendo-lhe a ordem jurídica o quadro consequencial da sua actuação (por exemplo a consignação em depósito).

            Vale aqui a ideia, presente nas caracterizações doutrinárias acima mencionadas, que o pagamento (rectius, o depósito do valor da indemnização) à ordem do credor dessa indemnização expropriativa não libera o devedor desta prestação e que, na falta de obtenção (no acto de satisfação da indemnização) de um acordo entre o devedor e o credor hipotecário quanto ao destino da prestação indemnizatória, restará o recurso à consignação em depósito, sendo certo que, nesse caso (no caso da falta de um acordo que propicie um efeito extintivo à efectivação dessa prestação), o devedor da indemnização expropriativa, sem culpa sua, não pode efectuar a prestação com a certeza (rectius, com a segurança) de que ela o livrará da obrigação corporizada na indemnização (preenchendo-se assim a facti species do artigo 841º,nº 1, alínea a) do CC).

            Este entendimento é, aliás, reforçado pela consideração do regime (especial) previsto no Código das Expropriações para o depósito da indemnização fixada globalmente, no caso de pluralidade de interessados. Tenha-se presente, com efeito, a vocação de generalidade do artigo 37º, nº 4 do CE (previsto para a expropriação amigável, mas estendido às fases arbitral, pelo artigo 52º, nº 2, e de pagamento final – subsequente ao recurso da arbitragem – pelo artigo 73º, nº 1, ambos do CE):

Artigo 37º
[…]
---------------------------------------------------------------------------------------
4 – Não havendo acordo entre os interessados sobre a partilha da indemnização global que tiver sido acordada, é esta entregue àquele que por todos for designado ou consignada em depósito no lugar do domicílio da entidade expropriante, à ordem do juiz de direito da comarca do lugar da situação dos bens ou da maior extensão deles, efectuando-se a partilha nos termos do Código de Processo Civil.
---------------------------------------------------------------------------------------

            Em qualquer dos casos[19], estamos perante determinações (estabelecimento de consequências) dirigidas ao devedor da indemnização (neste caso à entidade Expropriante) e nunca perante uma regulação da qual o Tribunal possa, na configuração factual que aqui se lhe depara, extrair uma determinação (uma ordem) de entrega directa da indemnização ao credor hipotecário. O Tribunal não podia, no quadro que aqui se lhe deparou, substituir-se a este, decidindo a quem era (ou é) devida a entrega directa da indemnização.

            Resta-nos, pois, e embora os argumentos aqui adiantados não sejam exactamente coincidentes com o percurso expositivo e a ratio decidendi do trecho processual decisório aqui agravado, resta-nos, pois, dizíamos, constatar que a pretensão do Interessado ora Agravante (a pretensão de lhe ser entregue directamente pelo Tribunal a indemnização que vier a ser fixada[20]), expressa neste recurso, não pode ser acolhida nos termos em que foi formulada, sendo de negar, consequentemente, provimento ao agravo.

            No final, no item contendo o pronunciamento decisório respeitante a ambos os recursos apreciados, haverá que expressar esse resultado respeitante ao recurso de agravo.

            Passemos, entretanto, à apreciação do recurso processualmente dominante, do recurso de apelação, referido à Sentença de fls. 433/447.

O recurso de apelação (interposto a fls. 454, recebido a fls. 457 e motivado a fls. 463/476):

            2.2. A delimitação temática da apelação, da qual agora cuidaremos, resulta, como antes se indicou, do teor das conclusões respectivas (mostram-se elas transcritas no item 1.5.). Compulsada essa síntese, constata-se, num primeiro momento, a formulação de uma pretensão visando a alteração do elenco fáctico constante da Sentença apelada. Referimo-nos – e este configura o primeiro aspecto deste recurso a apreciar na subsequente exposição – (a) à pretensão da Expropriante, expressa, com base em argumentos diferenciados[21], nas conclusões 1 a 5, de que aos factos seja acrescentada uma determinada asserção. Complementarmente – e neste elemento do recurso (o segundo aspecto deste) a Apelante pressupõe uma prévia fixação dos factos –, (b) discute-se a classificação do terreno, constante da avaliação realizada na fase judicial[22], como “solo apto para construção”, face à incidência da aptidão edificativa resultante do Regulamento do PDM de Ílhavo (conclusões 6 a 12). E, enfim – traduzindo o fundamento culminante do recurso de apelação –, (c) discute a Expropriante, pressupondo a consolidação da classificação do solo como “apto para construção”, a questão da benfeitoria incluída no cálculo do quantum indemnizatório.

            São estes, pois, os três fundamentos da apelação que cumpre apreciar.

            2.2.1. (a) A entidade Apelante aduz, nesta vertente do recurso, argumentos (expressam-se eles nas conclusões 1 a 5) que aspiram a uma alteração da matéria de facto, através da inclusão no elenco desta da circunstância de, à data da declaração de utilidade pública, não existir qualquer plano de pormenor aprovado para a área onde se situa a parcela expropriada, nem que ela se situava em zona infra-estruturada e comprometida à data da publicação do Plano Director Municipal (PDM)[23].

            Esta pretensão aparece, como se disse, sob a dupla roupagem de uma suposta violação do caso julgado (conclusões 1 e 2) e referida à impugnação dos factos em função de uma distinta valoração das provas disponíveis (conclusões 3 a 5).

            A questão colocada é basicamente a mesma, apresentada de formas que só na aparência encerram argumentos distintos. Trata-se sempre, em qualquer dos casos, da pretensão de incluir no elenco dos factos (num elenco que se deve reduzir a asserções exteriores ao plano das realidades jurídicas) afirmações conclusivas, de teor negativo (reportadas ao que não existe, caso de um plano de pormenor), e fundamentalmente coincidentes com a expressão de realidades valorativas jurídicas, esquecendo a Apelante que o domínio da indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas se configura como um domínio exterior aos factos, que por isso mesmo, não é indagável através da prova e no qual não existe, para o tribunal, condicionamento às alegações das partes, como decorre do trecho inicial do artigo 664º do CPC[24].

É que, saber se um terreno apresenta condições de edificabilidade em função de condicionamentos decorrentes de um PDM e da inexistência de um Plano de Pormenor (PP)[25], resume-se a uma valoração jurídica, refere-se à (esgota-se na) ponderação da integração da facti species dos artigos 25º, 26º e 27º do CE, face à verificação de determinados elementos de facto[26], e é nesse sentido – é só nesse sentido – que é pressuposta (que é valorativamente utilizada), tanto no laudo da fase arbitral como na avaliação realizada na fase judicial. Como elementos de aplicação de critérios legais (de descoberta e aplicação do Direito), actuam estes, na dinâmica processual, num plano exterior aos factos: não “transitam”[27] como os factos não discutidos, já que não são fixados através da prova. E também não “transita”, contrariamente ao que pretende a Apelante, como questão deixada para traz na impugnação da decisão arbitral, porque a introdução, em tal impugnação (e veja-se o teor do recurso da Expropriante a fls. 156/165), da questão da classificação do solo como “apto para construção”, defendendo o Apelante que o não é, necessariamente coloca à discussão do Tribunal (colocou à discussão do Tribunal de primeira instância e coloca agora à discussão desta Relação) a integração do conceito legal, ou seja, de todos os pressupostos jurídicos relevantes para a apreciação dessa questão, enquanto “questão de direito” (remetemos aqui para a transcrição feita na nota 28, supra). O Tribunal – qualquer tribunal – não julga aqui de “mãos atadas”, relativamente às incidências jurídicas das questões que lhe são colocadas pelas partes, sendo irrelevante que a ora Apelante tenha feito constar da motivação do recurso respeitante à decisão arbitral (v. o respectivo item I, a fls. 156/158) um elenco de asserções jurídicas – sublinha-se, de asserções jurídicas – que “considera assentes” por, supostamente, não as discutir. Todas as asserções jurídicas que a questão colocada pelo Apelante convoque são acessíveis ao Tribunal. Este discute-as livremente, obviamente sujeito aos cânones interpretativos aplicáveis.

            Seja como for, aquilo que a Apelante pretende acrescentar aos factos – a inexistência de um PP – foi expressamente pressuposto pela Sentença Apelada (v. fls. 444/445) e valorado na fixação da natureza do solo para efeitos de cálculo da indemnização. Dessa valoração cuidaremos nos subsequentes passos deste Acórdão. Isto porque o julgador decide a “questão de direito” (no caso desta Relação, as questões de direito que lhe foram colocadas pelo recorrente) “[…] sem dependência da adução das partes, com base no seu próprio conhecimento do direito e da lei, que tem a obrigação de adquirir por si”[28].

            2.2.1.1. Consideramos, pois, improcedente o fundamento da apelação respeitante à fixação da matéria de facto.

Assim, inexistindo nesses factos (os elencados na Sentença apelada) deficiências, obscuridades, contradições ou incompletudes que inquinem a respectiva compreensão lógica (v. artigo 712º, nº 4 do CPC), há que os considerar assentes, transcrevendo-se aqui o respectivo rol, importado do texto da decisão apelada a fls. 437/439:


“[…]
1. A parcela expropriada, com a área de 472 m2, foi destacada do prédio, com a área de 1381 m2, sito no Cimo de Vila, freguesia de S. Salvador, concelho de Ílhavo, a confrontar de norte com João Alberto Nunes Pimentel, do sul com Francisco Nunes Oliveira, do nascente com Francisco Nunes de Oliveira e do poente com Rua Cimo de Vila, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 5793 e descrito na Conservatória do Registo Predial com o n° 00109/060385, sendo as suas confrontações: do Norte, com João Alberto Nunes Pimentel, do Sul, com Francisco Nunes de Oliveira, do Nascente, com Francisco Nunes de Oliveira, do Poente, com restante área do prédio.
2. No prédio de que faz parte a parcela encontra-se edificada uma habitação, de rés-do-chão e sótão, com uma idade superior a 25 anos, implantada à face da Rua Cimo de Vila.
3. O prédio insere-se numa zona onde existem ao longo da rua várias construções, destinadas à habitação, caracterizadas por moradias de um ou dois pisos, e para além das frentes edificadas a ocupação é na generalidade agrícola.
4. A parcela expropriada situa-se na parte posterior do prédio, servindo de quintal da habitação, estando ocupada por árvores de fruto, sendo acessível através do prédio o qual confronta a poente com a Rua Cimo de Vila.
5. O prédio, com frente para a Rua Cimo de Vila, apresenta-se plano, com pequeno declive para Nascente, onde a parcela expropriada tem uma cota próxima da camada freática como se pode verificar pela flora característica como seja a espadana.
6. Sob o ponto de vista agrológico, o solo da parcela apresenta uma textura franco-argilosa, sem elementos grosseiros e uma estrutura grumosa, fina, moderada, o que lhe conferia aptidão para hortícolas e menos para frutícolas apesar de, na data da vistoria, estar ocupada por fruteiras, algumas secas devido a deficiente drenagem.
7. A Rua Cimo de Vila, com a qual o prédio de onde é destacada a parcela confronta, é uma via pavimentada, dispondo de rede de abastecimento de água, rede de saneamento, rede de energia eléctrica, rede telefónica e rede de distribuição de gás.
8. De acordo com o Plano Director Municipal de Ílhavo, em vigor á data da [DUP], o prédio de onde é destacada a parcela expropriada está inserida nas seguintes classes:
- Espaço Urbano de Nível I – ao longo da via de acesso – Rua Cimo de Vila (500m2);
- Espaço Urbanizável de Expansão I – para além da faixa actualmente edificada.
9. A parcela expropriada encontra-se integrada em Espaço Urbanizável de Expansão, que apenas permite a construção desde que exista plano de pormenor aprovado, sendo apenas licenciadas construções em zonas infra-estruturadas.
10. De acordo com o PDM de Ílhavo são permitidas construções com índices de utilização máxima de 1,5 para uma área urbana de 500m2, correspondente à largura do prédio por uma profundidade de 50 m2.
11. Assim, teremos, uma área máxima de construção de 750m2 (1,5x500m2).
12. O valor estimado para a demolição, remoção e transporte a vazadouro das construções existentes, no valor de € 3.750,00.
13. O muro de vedação numa extensão de 51 m, com 1,70m de altura, tem o valor de €1.127,10.
[…]”
            [transcrição de fls. 437/439]

            2.2.2. (b) Interessa-nos agora o segundo fundamento da apelação, que a Apelante qualifica de “violação de lei” (conclusões 6 a 12, transcritas no item 1.5. deste Acórdão), querendo referir-se à integração do conceito de “justa indemnização” através da aplicação prática dos critérios legais conducentes a uma ou outra das alíneas – a) ou b) – do nº 1 do artigo 25º do CE. Discute-se aqui, pois, a natureza do terreno que integra a parcela expropriada, enquanto conceito operante na fixação da chamada “justa indemnização”, por referência às duas categorias matriciais legais de classificação dos solos que subjazem ao nº 1 do citado artigo 25º. A introdução de tal discussão significa, neste caso, determinar se o terreno, como diz a Sentença, secundando o voto unânime e reiterado dos peritos (v. fls. 284), constitui “solo apto para construção”, ou, como defende a Apelante, “solo apto para outros fins”, em função da inexistência, ao tempo da declaração de utilidade pública, de um Plano de Pormenor.

            O Legislador, seguindo uma técnica que já vinha do anterior Código das Expropriações[29], no qual constituíra uma inovação relativamente ao Código de 1976[30], delimitou o conceito correspondente a cada um dos grupos de solos definindo-os pela positiva, no caso dos “solo[s] apto[s] para construção” (nº 2 do artigo 25º do CE), e delimitando pela negativa o respectivo universo, no caso dos “solo[s] apto[s] para outros fins” (nº 3 do mesmo artigo).

            Releva tal classificação como pressuposto da operação de cálculo do valor do solo expropriado (por referência, fundamentalmente, aos critérios gerais diferenciados contidos nos artigos 26º e 27º do CE), maxime para a aplicação prática do conceito de “justa indemnização”, nos termos em que esta é condicionalmente associada pelo texto constitucional – através do uso do advérbio de exclusão “só” – à ideia de requisição e expropriação por utilidade pública [artigo 62º, nº 2 da Constituição da República portuguesa (CRP)][31].

            Existe, assim, um espaço argumentativo preambular, referido à caracterização do conceito de “justa indemnização”, que importa aqui percorrer, no quadro da dilucidação desta vertente do recurso.

            2.2.2.1. Importa aqui, portanto, concretizar o sentido do conceito operativo fundamental em torno do qual se constrói o poder do Estado de afectar ao domínio público, com base em lei e mediante indemnização, bens objecto de propriedade privada. Importará caracterizar, enfim, como se disse, o conceito de “justa indemnização”.

            Há que não esquecer – e seguimos as observações tecidas por Miguel Nogueira de Brito a respeito do direito fundamental de propriedade privada –, que “[t]oda a norma que disciplina a expropriação deve ser entendida como uma norma restritiva do direito fundamental de propriedade […]. O direito a não ser privado da propriedade é o direito fundamental de propriedade consagrado no artigo 62º, nº 1 da [CRP]; a expropriação por utilidade pública e a requisição, previstas no nº 2 do mesmo artigo, são apenas casos de restrição daquele direito fundamental, não integrando o seu conceito”[32].

            Embora diferenciados – rectius, referidos a realidades distintas – os conceitos de propriedade e de património apresentam uma relevante conexão em sede de expropriação, que os torna operativamente complementares. Esta questão é equacionada em termos gerais por Miguel Nogueira de Brito, nos seguintes termos:


“[…]
Qual é […] a conexão que se estabelece entre os conceitos de propriedade e de património? A resposta prende-se com o necessário reconhecimento de que a propriedade, na ordem económica actual, é sempre também património, porque é convertível em dinheiro […].”[33]

            E acrescenta o mesmo Autor, formulando uma resposta, na base da distinção, relativamente à garantia constitucional da propriedade, entre as duas dimensões relevantes dessa garantia: a “garantia de permanência” e a “garantia de valor”:


“[…]
[A] propriedade em sentido constitucional não consiste no património dos cidadãos, mas nas suas posições jurídicas com valor patrimonial.
[…]
A distinção entre uma função primária, ou de defesa, e uma função secundária, ou de compensação, da garantia da propriedade, corresponde à ideia de que essa garantia não consiste, em primeira linha, numa «garantia de valor», mas sim numa «garantia de permanência» […]. Isso significa também […] que a transformação da «garantia de permanência» numa «garantia de valor» apenas ocorre quando se verifiquem os pressupostos de uma expropriação legítima ou de um legítimo acto de nacionalização ou socialização de meios de produção. Mais ainda, as duas dimensões da garantia individual da propriedade e a relação de prioridade que entre elas se estabelece, conduzem a uma distinção entre garantia de valor de uso e garantia de valor de troca. A garantia de permanência é uma garantia de valor de uso dos concretos direitos de propriedade, tal como eles existem na ordem jurídica; pelo contrário, apenas em caso de expropriação ou nacionalização, em que a garantia de permanência dá lugar a uma garantia de valor, é assegurado ao proprietário o valor de troca (ou valor de mercado) do bem expropriado ou nacionalizado. Assim, no âmbito da sua tarefa de determinação do conteúdo e limites da propriedade, o legislador está obrigado a preservar o valor de uso dos bens objecto da propriedade, nos termos em que eles são configurados num caso concreto, e só num caso de afectação de tais bens que reúna os pressupostos de uma expropriação ou nacionalização se pode falar numa garantia do valor de troca.”[34]
            [sublinhado acrescentado]


Existe uma correspondência entre este “valor de troca” e o conceito de “justa indemnização”, representando este último, assim, uma espécie de “preço” ou contrapartida necessária da restrição e, nos termos em que o caracterizam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, expressa estruturalmente a ideia de transformação do direito de propriedade, em função do acto lesivo deste consubstanciado na expropriação, “no direito ao respectivo valor”[35].

Embora a Constituição – e continuamos a citar os dois últimos Autores – não estabeleça “[…] qualquer critério indemnizatório («valor venal», «valor de mercado», «valor real», etc.) […]”, não deixa ela de expressar, através do conceito de “justa indemnização” uma imposição de respeito pelo “[…] princípio da equivalência de valores, expulsando desta equivalência valores especulativos ou ficcionados, decisivamente perturbadores da «justa medida» que deve existir entre as consequências da expropriação e a sua indemnização”, valendo aqui, numa espécie de súmula do conceito (constitucional) de “justa indemnização”, as seguintes ideias-força: “[…] (a) uma ideia tendencial de contemporaneidade, pois, embora não sendo exigível o pagamento prévio, também não existe discricionariedade quanto ao adiamento do pagamento da indemnização; (b) justiça de indemnização quanto ao ressarcimento dos prejuízos suportados pelo expropriado, o que pressupõe a fixação do valor dos bens ou direitos expropriados que tenha em conta, por exemplo, a natureza dos solos (aptos para construção ou para outro fim), o rendimento, as culturas, os acessos, a localização, os encargos, etc.; isto é, as circunstâncias e as condições de facto”[36].

É este, aliás, o sentido profundo da jurisprudência do Tribunal Constitucional, na caracterização que faz, num já vasto corpo de decisões, do conceito de “justa indemnização”, podendo captar-se esse sentido através do seguinte trecho retirado do Acórdão nº 422/2004[37] relatado pelo Conselheiro Artur Maurício, Presidente do Tribunal entre 2004 e 2007:


“[…]
A justeza de um montante indemnizatório por expropriação dependerá, em termos gerais, da circunstância de esse valor «traduzir uma adequada restauração da lesão patrimonial» (palavras do Acórdão nº 381/89), o que implica – e a jurisprudência do Tribunal Constitucional também o tem afirmado (v.g. no […] Acórdão nº 314/95) – um mínimo de correspondência a referenciais de mercado na determinação do quantum indemnizatório. É que, se é no mercado onde os actores económicos, através da oferta e da procura, fixam o valor dos bens transaccionados, não poderá ter-se por adequado um valor completamente desfasado daquilo que corresponderia, nesse mesmo mercado, ao valor de transacção do bem expropriado.
Quando se fala em um mínimo de correspondência a referenciais de mercado, quer-se sublinhar um outro elemento, também invariavelmente presente na jurisprudência deste Tribunal, e que acentua que a expressão (que é usada por Alves Correia, in O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra 1989, pág 540) «valor de mercado normativamente entendido» corresponde «a um valor de mercado «normal» ou «habitual», em que não entrem em linha de conta factores especulativos ou anómalos, o que faz com que, algumas vezes, o pretium dos bens que poderia ser obtido num mercado onde jogam livremente as regras da oferta e da procura, seja, acentuada ou substancialmente diferente daquele que se obteria por recurso ao conceito normativo delineado» (citação do Acórdão nº 314/95; v. ainda Alves Correia, A Jurisprudência do Tribunal Constitucional..., cit. págs. 233/234, dos nºs. 3905 e 3906).
Ou seja, o que se pretende dizer é que o valor justo, o «justo preço», não podendo ser alheio aos critérios de mercado, não tem que coincidir integralmente com eles, sendo possíveis, sem que a indemnização deixe de ser constitucionalmente adequada, «reduções (...) impostas pela especial ponderação do interesse público que a expropriação serve», tal como «são admitidas majorações, devido à natureza dos danos provocados pelo acto expropriativo» (Alves Correia, o Plano Urbanístico... cit.).
[…]”
            [sublinhado acrescentado]



            Servem estas considerações para tornar claro – e trata-se de um elemento relevante para a ulterior exposição – que o parâmetro aferidor da justeza de uma indemnização respeitante a expropriação por utilidade pública de solo, não se encerrando ou esgotando na procura de um – rectius, “do” – valor de mercado, entendido este como a procura de um montante que expresse exactamente uma espécie de intercepção estatística entre a curva da “oferta agregada” de terra (o conjunto de terra passível de colocação no mercado num determinado espaço territorial) e a “procura agregada” do mesmo bem (o conjunto do que os consumidores de terra, nesse espaço, estão dispostos a gastar na aquisição de terra com aquelas características)[38], não se encerrando a fixação de uma indemnização, dizíamos, na procura do tal valor idealizado de mercado, não pode deixar ela de manter, sob pena de já não ser “justa” no sentido de “valor de troca”, uma espécie de “reserva mínima” referida ao valor ou preço de mercado, em termos de excluir valores que, para mais ou para menos, se mostrem, como sublinhou o Tribunal Constitucional no citado Acórdão nº 422/2004 (e em tantos outros), “completamente desfasado[s]” dos valores de mercado. É que a ideia de justiça referida a uma indemnização – o conceito matriz de “justa indemnização” –, expressando também um elemento relacional, não pode prescindir de uma comparação de realidades, e o elemento fundamental de comparação do qual dispomos para aferir a compensação devida àquele que é privado, contra ou sem a sua vontade, de um direito, não pode deixar de ser, em última análise, a situação de quem transacciona no mercado um bem dessa mesma natureza. É neste sentido que um dos elementos de controlo dessa justeza indemnizatória é referido como “princípio da igualdade na relação externa de expropriação” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 422/2004), assentando numa comparação entre expropriados e não expropriados.

            É com base nestes pressupostos que importa avançar nas específicas questões suscitadas pela Apelante.

            2.2.2.2. A contestação da entidade Expropriante à classificação da parcela expropriada como “terreno apto para construção”, cujo valor deve ser calculado, nos termos do artigo 26º do CE – no caso “[…] por referência à construção que nele seria possível efectuar se não tivesse sido sujeito a expropriação, num aproveitamento económico normal, de acordo com as leis e os regulamentos em vigor […]” –, a contestação a esta classificação, dizíamos, assenta na circunstância do Regulamento do PDM de Ílhavo[39] integrar a área específica correspondente à parcela expropriada num denominado “espaço urbanizável de expansão” (artigos 17º e 18º do Regulamento do PDM de Ílhavo), espaço no qual, a construção pressupõe a existência de um Plano de Pormenor[40], instrumento de ordenamento neste caso inexistente, à data da expropriação.

            A questão colocada resume-se, assim, à caracterização da inexistência do referido PP, no momento aqui considerado, como projecção de um afastamento absoluto da edificabilidade[41] e, consequentemente, da classificação do solo expropriado como apto para construção. Esta asserção – a de que o solo deve ser considerado como apto para construção – foi tecnicamente sustentada na perícia documentada a fls. 282/287 e complementarmente esclarecida, sempre unanimemente pelos cinco peritos, a fls. 355/359 e 406/409.

Deste último esclarecimento transcreve-se aqui (por encerrar o elemento fulcral da presente situação) o seguinte trecho, referido à questão da possível expansão edificativa da parcela expropriada, no quadro traçado pelo Regulamento do PDM:

“[…]
Para além da solução equacionada e posta em prática por simulação para determinação do real valor do terreno e que foi devidamente esclarecida na peritagem inicial e no relatório complementar, a parcela está, como se disse, integrada em área urbanizável e dispõe de um potencial edificativo próprio que, face ao PDM, constitui um direito inquestionável, que pode ser absorvido como se propôs ou mesmo no âmbito de um aproveitamento urbano do prédio, na sua globalidade, por um plano de pormenor da iniciativa da Câmara Municipal, ou da iniciativa e custos pelos expropriados em conjugação com terceiros, sem prejuízo do acompanhamento e concordância da solução apresentada pela C. Municipal, neste caso configurando a iniciativa particular.
Esta possibilidade é real e tem de ser admitida a sua possibilidade tal como outras, havendo centenas de soluções que podem ser equacionadas pelos eventuais projectistas, no âmbito do referido plano de pormenor.
[…]”
            [transcrição de fls. 408]


A necessária correspondência a um valor que contenha um referencial de mercado – mínimo que seja (ou que, dito por outras palavras, não seja um valor totalmente desfasado do valor de mercado) – na determinação de um quantum indemnizatório justo, expressa um elemento dinâmico, expressa, por ser o que verdadeiramente corresponde ao “valor de troca”, algum tipo de antecipação que o “mercado” (enquanto realidade dinâmica) faça da evolução minimamente previsível da edificabilidade de um determinado terreno. Só um afastamento absoluto – no caso resultante de uma impossibilidade legal de construir – conduziria a uma classificação de um terreno como não apto para construção (e, mesmo nesse caso, teríamos a norma do nº 12 do artigo 26º do CE[42]). Tenha-se presente que, neste caso, a parcela se situa, não obstante a existência de outras condicionantes ao jus aedificandi, numa área “urbanizável”, ou seja, numa área na qual, por definição, existe uma expectativa de edificabilidade.

Este elemento – a existência de uma expectativa tutelável de edificabilidade – foi tecnicamente explicitado na perícia, por diversas vezes (já havia sido intuído, aliás, no arbitramento), e foi adequadamente apreendido e fundamentado na decisão recorrida. Estamos perante uma questão que reputamos de verdadeiramente central na caracterização de uma indemnização por expropriação por utilidade pública como “justa”, no sentido antes definido, quando comparamos, designadamente para o efeito de controlo do princípio da igualdade (artigo 13º da CRP), a situação do Expropriado com a dos proprietários circundantes não abrangidos pela expropriação[43]. Vale aqui – e citamos, ilustrando o que julgamos ser uma adequada aplicação do conceito de “justa indemnização” integrando a ideia de tutela indemnizatória do fim de uma expectativa que deve ser indemnizatoriamente considerada, o voto de vencido do Conselheiro Rui Moura Ramos constante do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 145/2005 (v. nota 41) –, vale aqui, dizíamos, a ideia segundo a qual “[…] não sendo irrelevantes, na formação dos preços de um terreno no mercado concorrencial, constrangimentos administrativos à construção, estes não excluem que, em função de múltiplos factores (desde logo das possíveis expectativas de ulterior alteração desses constrangimentos, decorrentes, por exemplo, da evolução previsível do statu quo traduzido numa proximidade de 300 m de terrenos aptos para construção[44]), no mercado, a interacção entre a oferta e a procura produza preços equivalentes aos valores que, sem a verificação dos elementos elencados no nº 2 do artigo 25º do CE, seriam alcançados com base no nº 12 do artigo 26º do CE”.

É esta a lógica de funcionamento do mercado – o local ideal onde, através da interacção entre a oferta e a procura, se forma o preço dos bens. E aí, no mercado (todos o sabemos), expectativas passíveis de um mínimo de antecipação influenciam decisivamente o comportamento dos agentes[45], o que é particularmente relevante em sede de determinação do preço da terra. Antes referimo-nos à interacção que ocorre no mercado entre a “oferta agregada” de terra e a “procura agregada” desta. Note-se que esta interacção, nos termos em que a Ciência Económica a caracteriza, depende decisivamente (a sua “elasticidade” reflectida no preço depende decisivamente) da existência daquilo que se qualifica como a possibilidade de “usos alternativos” (alternative uses) da terra (a edificabilidade configura o “uso alternativo” paradigmático da terra), sendo estes “usos alternativos” que, conferindo elasticidade à oferta e à procura de terra, conferem também a esta um carácter económico não estático e, consequentemente, determinam o seu preço[46]. A intervenção do Estado, condicionando o “uso alternativo” da terra, criando, por exemplo, áreas de reserva agrícola, ecológica, fixando através de um PDM áreas onde se pode e não se pode construir, ou onde se pode mediante o preenchimento de determinadas condições (por exemplo, mediante um Plano de Pormenor passível de ser alcançado), modela o comportamento do mercado e determina, neste sentido, o “valor de troca” da terra.

Aqui, a existência de um “uso alternativo” configurável como edificabilidade (espaço urbanizável, como diz o Regulamento do PDM de Ílhavo), mediante a elaboração de um PP, adianta-nos um elemento relevante para a formação do preço da parcela expropriada, sendo que a avaliação, ao considerar fundamentadamente esse elemento, mais não fez que fixar uma “justa indemnização”.

Não vemos, pois, razão para alterar o entendimento expresso no laudo pericial unânime, correctamente seguido pelo Tribunal a quo, sendo certo que o artigo 23º, nº 1 do CE (norma que a Apelante entende ter sido violada) mostra na sua formulação[47] abertura suficiente – e esse constitui o caminho interpretativo adequado – a uma consideração (à consideração que reputamos de constitucionalmente conforme, referida ao artigo 62º, nº 2 da CRP[48]) que tutele a ponderação indemnizatória da efectiva expectativa de edificabilidade aqui presente.

A existência neste caso de uma real expectativa de expansão edificativa abrangente da parcela expropriada (expectativa assente no destino possível daquela área face ao PDM de Ílhavo) torna patente a adequação do critério de classificação do solo (solo apto para construção) adoptado na decisão apelada.

Há, pois, que a confirmar nesse elemento.

2.2.3. (c) E resta-nos, no quadro dos três fundamentos da apelação acima indicados, abordar a questão da adição ao montante indemnizatório do valor da benfeitoria (€1.127,10), descrita na vistoria ad perpetuam rei memoriam, correspondente a um muro de vedação existente na parcela expropriada.

Tenha-se presente que o valor que a Apelante entende dever ser subtraído à indemnização, dado o “estorvo” representado pela existência desse muro para a edificabilidade aqui considerada, já foi tido em conta no cálculo inicial do laudo arbitral (v. fls. 6: “[…] a que haverá que retirar o valor estimado para a demolição e remoção dos materiais da construção existente, de €3.750,00 […]”). Coberto que está esse custo da edificabilidade acrescida, feito repercutir no Expropriado (esse valor de €3.750,00 foi aí subtraído à base de cálculo da indemnização), que o suportaria como custo seu num aproveitamento económico normal, a questão da privação do muro existente, põe-se (agora) em termos de perda do valor de construção em si mesmo considerado, designadamente dos materiais e mão-de-obra nele incorporados, valor este, em qualquer caso, perdido pelo Expropriado, já que se trata de um custo a ele referido, enquanto antigo proprietário do terreno e desse muro.

Estamos, pois, perante um elemento que devia ser considerado, como o foi, na fixação da indemnização.

Também neste último fundamento da apelação, não vemos razão para alterar o decidido na primeira instância.

2.3. Resta-nos, assim, formular a decisão respeitante aos dois recursos, sumariando previamente os elementos essenciais do antecedente percurso argumentativo:

I – O artigo 692º, nº 2 do CC limita-se a estabelecer a inoponibilidade ao credor hipotecário (que aqui intervém como interessado no processo expropriativo) do depósito da indemnização, que se sub-roga à coisa hipotecada, efectuado pelo expropriante à ordem do credor dessa indemnização (do expropriado que seja o devedor hipotecário);
II – Assim, não resulta da lei (mesmo artigo 692º) qualquer direito do credor hipotecário a obter a entrega directa da indemnização respeitante à expropriação (incidente sobre a coisa hipotecada) por parte do devedor desta (do expropriante);
III – Na falta de obtenção pelo expropriante (devedor da indemnização que se sub-roga ao bem objecto da expropriação) de um acordo entre o credor hipotecário e o devedor hipotecário (expropriado), acordo que confira natureza liberatória, face ao credor hipotecário, ao pagamento da indemnização expropriativa, pode o expropriante recorrer à consignação em depósito como forma de cumprimento liberatório dessa obrigação;
IV – A garantia constitucional da propriedade privada (artigo 62º da CRP) assenta em duas dimensões: uma “garantia de permanência” e uma “garantia de valor”. A transformação da primeira na segunda dimensão pressupõe (é esse o sentido do artigo 62º, nº 2 da CRP) – no que aqui apresenta relevância – a existência de uma expropriação por utilidade pública;
V – A “justa indemnização” referida no trecho final do nº 2 do artigo 62º da CRP expressa essa “garantia de valor”, equivalendo a uma “garantia de valor de troca”;
VI – Este “valor de troca” – a justa indemnização – implica um referencial de cálculo que não se apresente como completamente desfasado (calculado à margem) do “valor de mercado”;
VII – A inexistência de um Plano de Pormenor, enquanto obstáculo à edificabilidade imediata numa zona definida por um PDM como urbanizável (em função da aprovação de um Plano de Pormenor) não conduz a que esse terreno seja considerado, para efeito de cálculo da indemnização por expropriação, como solo “não apto para construção”;
VIII – Existe, relativamente a um terreno nas condições referidas em VII, uma expectativa efectiva de edificabilidade que o mercado intui na fixação do preço desse terreno e que constitui uma dimensão valorativa deste que a expropriação retira ao expropriado;
IX – A fixação de uma “justa indemnização” por esse terreno, para que não se apresente como completamente desfasada do “valor de mercado”, deve integrar essa expectativa de edificabilidade, através da classificação do solo, à partida, como “apto para construção”.  

III – Decisão
           
3. Assim, tudo visto, decide-se:

A) Negar provimento ao agravo recebido a fls. 309, confirmando a decisão a ele referida (o despacho de fls. 233/234);
B) Considerar improcedente a apelação recebida a fls. 457, confirmando, consequentemente, a Sentença recorrida (a Sentença de fls. 433/447).

Custas do agravo pelo Interessado/Agravante (Banco C...) e da apelação pela Expropriante/Apelante (A...).

Coimbra,
(J. A. Teles Pereira)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)


[1] Interessam à caracterização deste interveniente como Interessado, no contexto deste processo expropriativo, as seguintes disposições do Código das Expropriações (Lei nº 168/99, de 18 de Setembro):
Artigo 9º
Conceito de interessados
1 – Para os fins deste Código, consideram-se interessados, além do expropriado, os titulares de qualquer direito real ou ónus sobre o bem a expropriar e os arrendatários de prédios rústicos ou urbanos.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
3 – São tidos por interessados os que no registo predial, na matriz ou em títulos bastantes de prova que exibam figurem como titulares dos direitos a que se referem os números anteriores […].
Artigo 10º
Resolução de expropriar
1 – A resolução de requerer a declaração de utilidade pública é fundamentada […].
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
5 – A resolução a que se refere o nº 1 anterior é notificada ao expropriado e aos demais interessados cuja morada seja conhecida, mediante carta ou ofício registado com aviso de recepção.
A notificação ao Interessado, Banco C..., realizada pela entidade Expropriante (referida à “proposta para aquisição amigável”) consta de fls. 47/48.
[2] Cuja subida fora determinada com o primeiro que subsequentemente a ele viesse a subir imediatamente.
[3] Esta considerou a parcela expropriada “solo apto para construção”, fixando-lhe o valor de €12.162,46, através do seguinte pronunciamento final:
“[…]
A partir dos montantes determinados, conforme explicitado no corpo do presente Relatório, para o valor do solo da parcela objecto da expropriação e para a benfeitoria afectada pela mesma e tendo em conta que a área sobrante do prédio, não sofreu depreciação uma vez que mantém as mesmas potencialidades de edificação, obtém-se para valor final: €11.035,36 + €1.127,10 = €12.162,46 […], valor que os árbitros consideram corresponder à justa indemnização a atribuir ao expropriado.
[…]”
               [transcrição de fls. 7]
[4] O auto de posse administrativa consta de fls. 35/37.
[5] Através da carta de fls. 56, propôs a Expropriante ao Expropriado o valor de €5.050.00.
[6] São estas as conclusões formuladas pelo Interessado:
“[…]
a) A parcela expropriada não tem um valor inferior a €12.162,46;
b) Deve, assim, a indemnização a atribuir aos Expropriados ser fixada em €12.162,46, como vem referido e fundamentado no Relatório de Arbitragem.
[…]”
               [transcrição de fls. 191]
[7] Com efeito, na sequência desta avaliação (a de fls. 282/287) formulou a Expropriante a fls. 291/298 diversos pedidos de esclarecimento (v. despacho de fls. 314/315 determinando a prestação desses esclarecimentos), prestados a fls. 355/359, reiterando a Expropriante a fls. 364/367 o desejo de esclarecimentos adicionais a prestar oralmente, pretensão esta indeferida a fls. 377. Foram tais esclarecimentos adicionais prestados por escrito a fls. 406/409 (o que deixou sem objecto o recurso pretendido interpor pela Expropriante a fls. 386, v. requerimento desta a fls. 388/389 e o despacho de fls. 391).
[8] Como veremos adiante, refere-se o agravo, em substância, ao elemento decisório contido no despacho de fls. 233/234, que negou a entrega do montante indemnizatório ao credor hipotecário aqui Interessado.
[9] Consta do despacho de admissão o seguinte:
“[…]
[M]ostrando-se preenchidos os pressupostos legais de tempestividade, legitimidade e recorribilidade, admite-se o recurso interposto, o qual é de agravo, com efeito meramente devolutivo, subindo com o primeiro recurso que, depois deste, haja de subir imediatamente (cfr. artigos 733º, 734º, 735º e 740 a contrario do Código de Processo Civil).
[…]”
               [transcrição de fls. 309]
[10] Por estar em causa um processo iniciado anteriormente à reforma do regime dos recursos em processo civil – ou seja, iniciado anteriormente a 1 de Janeiro de 2008 – corporizada no Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, interessam-nos aqui as disposições do CPC na redacção que apresentavam anteriormente a tal reforma (v. artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1 do mencionado Diploma). Note-se que, pela mesma razão, qualquer disposição do CPC citada neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo DL nº 303/2007, o é na versão anterior ao mesmo.

[11] Os elementos de facto que interessam à dilucidação do agravo estão documentalmente provados nos autos (emergem, aliás, do relato da tramitação processual efectuado ao longo do item 1. deste Acórdão), sublinhando-se, quanto às hipotecas incidentes sobre o prédio do qual foi destacada a parcela expropriada, o teor dos documentos (contratos de mútuo com hipoteca e fiança) de fls. 129/136 e 139/153.
[12] Excluída deste último, por não integrar o objecto do agravo (delimitado pelas conclusões respectivas), está a questão da preterição do contraditório relativamente ao requerimento do Expropriado constante de fls. 195/196.
[13] Este sempre pressuporá um interesse conexo, mas indirecto, relativamente ao objectivo central do processo de expropriação: a determinação da indemnização devida pela extinção forçada do direito de propriedade do expropriado.
[14] A. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, reprint, 1979, Lex, Lisboa, 1993, p. 739; Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4ª ed., 3ª reimpressão, Quid Juris, Lisboa, 2006, pp. 146/147.
[15] Código Civil anotado, vol I, 4ª ed., revista e actualizada com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pp. 715/716.
[16] Garantia das Obrigações, Almedina, Coimbra, 2006, p. 223.
[17] Garantia…, cit., pp. 284/285.
[18] E referimo-nos à satisfação do crédito hipotecário, nos termos contratualmente programados para esse efeito. Não ocorre, com efeito, através da sub-rogação prevista no artigo 692º do CC, qualquer vencimento antecipado, ipso facto, da obrigação de que a hipoteca constitui instrumento de satisfação.
[19] E o caso regulado no artigo 37º, nº 4 do CE, configurando uma situação apresentando semelhanças com a do credor hipotecário prevista no artigo 692º do CC, constitui, todavia, um caso distinto – a relação de semelhança apenas suporta argumentos de identidade de razão, o que é coisa distinta da aplicação directa da norma.
[20] E até a parte que já se encontra depositada.
[21] Traduzem-se estes numa suposta abrangência pelo caso julgado formado na fase arbitral (conclusões 1 e 2) e numa alegada correspondência aos factos provados em função da prova pericial (conclusões 3 a 5).
[22] E que, aliás, já fora pressuposta na avaliação efectuada na fase arbitral (v. o item IV do Relatório de Arbitragem a fls. 6/7).
[23] As asserções negativas (às quais a Apelante chama factos), nos exactos termos em que são propostas na motivação do recurso, seriam as seguintes:
“[…]
[À] data da DUP e à data da arbitragem, a parcela expropriada não apresentava condições de edificabilidade em virtude de não existir qualquer plano de pormenor aprovado para a área em que se situa, nem se situar em zona infra-estruturada e comprometida à data da publicação do PDM.
[…]
[À] data da DUP não existia qualquer plano de pormenor aprovado para a área em que se situa a parcela expropriada, nem ela se situava em zona infra-estruturada e comprometida à data da publicação do PDM.
[…]”
               [transcrição de fls. 473, ênfase no original omitido]
[24] Estamos aqui no domínio da distinção – verdadeiramente fulcral na metodologia jurídica – entre “questão de facto” e “questão de direito”. Podemos aqui utilizar, dada a evidência de não corresponderem a “factos” aquilo que a Apelante pretende propor-nos como tal, a chamada definição básica fornecida por Karl Larenz:
“[…]
Tradicionalmente distingue-se entre a questão «Que aconteceu?», como sendo a «questão de facto», da questão de saber como julgar juridicamente o acontecido, isto é, saber se ele é tal como a previsão de uma norma jurídica o representa, como sendo a «questão de direito» […]” (Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, tradução da 2ª ed. alemã de 1969, por José de Sousa e Brito e José António Veloso, Lisboa, s. d., mas de 1978, p. 295).
[25] Tratam-se estes instrumentos de ordenamento do território de diplomas legais, contendo, como é óbvio, normas jurídicas.
[26] Voltamos aqui à obra de Karl Larenz citada na nota 26:
[…]
Por vezes […] uma situação de facto não pode descrever-se senão com as expressões da ordem jurídica. Então a questão de facto e a de direito não se podem separar: seja o caso de alguém ter de noite causado «ruído perturbador do repouso» [constitui o texto de uma descrição legal] na proximidade de habitações. Se o «ruído» era tão forte que deve considerar-se apto a perturbar o repouso das pessoas, deixa-se dificilmente relatar em expressões que não sejam precisamente aquelas de que a lei se serve: O juízo: o ruído foi «perturbador do repouso», contém portanto, ao mesmo tempo, tanto a descrição do acontecimento como a sua apreciação jurídica […]. Em contraste, a questão de direito e a de facto podem manter-se novamente afastadas, se alguém mediu a intensidade do som e há agora que decidir a questão de saber se uma intensidade de som dessa ordem deve em geral ser considerada como «perturbadora do repouso». Com efeito, neste caso o acontecimento foi determinado com exactidão por conceitos extrajurídicos (físicos); a questão de saber se o assim determinado é aquilo que o conceito legal tem em vista, é uma pura questão de interpretação, mesmo que para a sua resposta seja precisa experiência natural […]” (ob. cit. na nota 26, pp. 299/300).
[27] Não “transitam”, no sentido de não terem a cobertura do “caso julgado” formado pela decisão arbitral, na parte em que esta não foi impugnada [v. sobre o alcance do caso julgado formado pela decisão arbitral necessária, na parte não impugnada, o Acórdão desta Relação de 17/06/2008 (Jorge Arcanjo), proferido no processo nº 156/05.6TBPNL.C1, disponível na pesquisa por estes campos, no sítio do ITIJ, em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/66e2b3b0df697e82802574710053d563]. Aqui a impugnação da Expropriante (a impugnação decidida na primeira instância e ora recorrida) refere-se à caracterização da parcela expropriada como “solo apto para construção”, sendo que a verificação da existência e a interpretação dos pressupostos jurídicos que a opção por essa classificação do solo convoca, não “transitou”, no sentido de que pode ser “revista” por esta Relação, que reconstituirá os elementos de Direito (os que estão integrados e os que não estão integrados) pertinentes à apreciação desse aspecto do recurso.
[28] Karl Larenz, Metodologia…, cit., p. 295.
[29] O Código aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro (v. o respectivo artigo 24º).
[30] Desta feita o aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro.
[31]A requisição e a expropriação por utilidade pública podem ser efectuadas com base em lei e mediante o pagamento de justa indemnização”.
[32] A Justificação da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional, Almedina, Coimbra, 2007, p. 994.
[33] A Justificação da Propriedade…, cit. p. 973.
[34] A Justificação da Propriedade…, cit. p. 975/976.
[35] CRP Constituição da República Portuguesa anotada, Vol I, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 808.
[36] CRP…, cit., pp. 808/809.
[37] Tenha-se presente que este Acórdão nº 422/2004, disponível no sítio do Tribunal Constitucional em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040422.html, na sua formulação decisória reportada ao artigo 23º, nº 4 do CE/99, foi posteriormente exautorado pelo Acórdão nº 11/2008 (Cura Mariano), disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080011.html. Foi este último aresto objecto de anotação concordante de F. Alves Correia, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 137º (Janeiro-Fevereiro de 2008), nº 3948, pp. 195/200. Note-se, aliás, que o artigo 23º, nº 4 do CE (julgado inconstitucional pelo referido Acórdão nº 11/2008) foi entretanto revogado pela Lei nº 56/2008, de 4 de Setembro (contém esta a última alteração ao CE).
Esta questão (a exautoração do “precedente” consubstanciado no Acórdão nº 422/2004) é, todavia, totalmente independente da (e irrelevante para a) caracterização, feita preambularmente nesse Acórdão, do conceito de justa indemnização. É neste sentido que, retomando considerações já tecidas em anteriores decisões das quais fomos relatores nesta Relação, utilizamos aqui a caracterização da ideia de justa indemnização feita no referido Acórdão nº 422/2004, sublinhando a sua vocação de generalidade – rectius, de independência da questão concreta nele julgada. Aliás, também resumindo as grandes linhas de força da nossa jurisprudência constitucional respeitantes ao conceito de justa indemnização, poderíamos remeter para o texto de um outro Acórdão do Tribunal, o nº 276/2007 (Benjamim Rodrigues), disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20070276.html
[38] É assim, em termos gerais, que se forma no mercado o preço da terra (v. Robert B. Ekelund, Jr., Robert D. Tollison, Economics, 4ª ed., Harper Collins College Pulishers, Nova Iorque, 1994, pp. 370/373).
[39] Este foi aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 140/99, de 12 de Outubro de 1999, estando publicado no Diário da República – I Série-B, nº 258, de 5/11/1999, pp. 7718/7730. Pode ser consultado igualmente (bem como todos os outros instrumentos de ordenamento territorial do concelho de Ílhavo) no sítio da Direcção Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano (http://www.dgotdu.pt), na área correspondente ao Sistema Nacional de Informação Territorial, especificamente em http://195.23.12.198:8001/SNIT/Diplomas/RCM%20140_1999.pdf.
[40] Refere o Regulamento do PDM de Ílhavo a respeito deste tipo de espaço:
Artigo 18º
Urbanizável de expansão I a III
1 – Nos espaços urbanizáveis de expansão, identificados simultaneamente no anexo I e planta de ordenamento, a construção deverá ser precedida de plano de pormenor que garanta uma estruturação urbanística das zonas. Enquanto não for aprovado o plano de pormenor, só poderão ser licenciadas construções em zonas infra-estruturadas e comprometidas, à data da publicação do presente Regulamento.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------

[41] Só um afastamento absoluto – no caso resultante de uma impossibilidade legal de construir – conduziria a uma classificação de um terreno como não apto para construção (e, mesmo nesse caso, teríamos a norma do nº 12 do artigo 26º do CE). Tenha-se presente que, neste caso, a parcela se situa, não obstante a existência de outras condicionantes, numa área “urbanizável”, na qual, por definição, existe uma expectativa de edificabilidade; integra o terreno em causa, aliás, sintomaticamente, a matriz cadastral urbana do Concelho de Ílhavo.
[42] Sublinha-se que esta norma não foi aqui aplicada, o que nos coloca fora das questões suscitadas pelo pronunciamento do Tribunal Constitucional consubstanciado no Acórdão nº 145/2005 (Helena Brito), disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050145.html.
[43] É que a expectativa real de edificabilidade do Expropriado acabou com a expropriação e a dos proprietários circundantes não expropriados mantém-se incólume. Todos os que temos – e é paradigmaticamente o caso dos juízes – de responder a danos, fixando, por equivalência, indemnizações, sabemos que uma das dimensões do dano é, precisamente, a supressão daquilo que se adiantava como concretizável e é cortado cerce pela verificação do dano. Este, por definição traduz a supressão de uma situação vantajosa, mesmo que projectiva.
[44] Esta constitui a facti species do nº 12 do artigo 26º do CE: “[s]endo necessário expropriar solos classificados como zona verde, de lazer ou para instalação de infra-estruturas e equipamentos públicos por plano municipal de ordenamento do território plenamente eficaz, cuja aquisição seja anterior à sua entrada em vigor, o valor de tais solos será calculado em função do valor médio das construções existentes ou que seja possível edificar nas parcelas situadas numa área envolvente cujo perímetro exterior se situe a 300 m do limite da parcela expropriada”.
[45] V., relativamente à forma como expectativas de ocorrências futuras afectam o preço dos bens, Joseph E. Stiglitz, John Driffill, Economics, W. W. Norton & Company, Nova Iorque, Londres, 2000, pp. 104/106.
[46] Robert B. Ekelund, Jr., Robert D. Tollison, Economics, cit., pp. 372/373.
[47]A justa indemnização não visa compensar o benefício alcançado pela entidade expropriante mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal, à data da publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data”. Lendo esta definição geral, não vemos qualquer indicação que exclua a consideração da realidade contemporânea da expropriação, naquilo que essa realidade apresenta de expectativa de uso alternativo passível de consideração no mercado.
[48] Esta, nos termos em que a define J. J. Gomes Canotilho, opera: “[…] no caso de normas polissémicas ou plurissignificativas deve[ndo] dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a Constituição”, ou seja, “[…] a interpretação conforme a Constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão (= espaço de interpretação) aberto a várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a Constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela […]”; “[…] o princípio da interpretação conforme a Constituição é um instrumento hermenêutico de conhecimento das normas constitucionais que impõe o recurso a estas para determinar e apreciar o conteúdo intrínseco da lei” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª ed., Almedina, s. d., mas publicada em 2002, pp. 1212/1213 e 1294).