Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5306/18.0T8CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO
INSOLVÊNCIA CULPOSA
Data do Acordão: 07/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 186, 238 Nº1 E) CIRE
Sumário: I – O devedor que, de forma deliberada e voluntária e sem motivo de força maior ou outra razão ponderosa que se deva considerar prevalecente, pede uma licença sem vencimento, passando a desempenhar outra actividade e a receber um rendimento substancialmente inferior àquele que auferia, agrava, com culpa grave (ou até dolo) a sua situação de insolvência.

II – Tal actuação – desde que praticada nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência ou no período compreendido entre o início do processo e a declaração da insolvência (cfr. arts. 186.º, n.º 1 e 4.º, nº 2, do CIRE) – determina a qualificação da insolvência como culposa, em conformidade com o citado art. 186.º.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

M (…) e A (…), por si e na qualidade de único herdeiro de A (…) melhor identificados nos autos, vieram requerer a declaração de insolvência de R (…), melhor identificado nos autos.

O Requerido apresentou oposição, sustentando a improcedência da pretensão formulada e pedindo a exoneração do passivo restante caso viesse a ser decretada a sua insolvência.

A insolvência do Requerido veio a ser declarada por sentença proferida em 13/02/2019.

O Sr. Administrador de Insolvência apresentou o seu relatório emitindo parecer no sentido do encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente e não manifestou qualquer oposição ao pedido de exoneração do passivo restante.

A credora C (…), S.A. veio pugnar pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante com fundamento na alínea d) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE.

O Requerido respondeu, dizendo não ocorrer o referido fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, uma vez que não incumpriu nenhum prazo de apresentação à insolvência e ainda que tal tivesse acontecido daí não teria resultado qualquer prejuízo para os credores (prejuízo que a C(…) nem sequer invocou).

Os Requerentes vieram também pugnar pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante por se verificar a situação prevista na alínea g) do art. 238.º do CIRE.

Alegam, para o efeito, que o Requerido é funcionário da C (…), onde auferia um vencimento superior àquele que afirma agora receber, tendo pedido uma licença sem vencimento e tendo arranjado um outro emprego numa sociedade que lhe pertence (controlando a sua actividade e auferindo os respectivos lucros) apesar de serem os seus pais que figuram como sócios. Mais alegam que, ao agir desse modo, o Requerido apenas pretende enganar os seus credores, pretendendo que lhe seja concedido o benefício da exoneração do passivo restante sem nada pagar aos credores para, no fim do prazo dos 5 anos, retomar as suas funções e o seu ordenado na C (…) e provavelmente assumir de direito, uma vez que de facto já é sua, a gerência e propriedade da sociedade U (…) Lda.

O Requerido respondeu, negando os factos que lhe são imputados pelos Requerentes e sustentando não ocorrer qualquer fundamento para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo.

Em resposta a notificação que, para tal, lhe foi efectuada, o Requerido veio informar que apresentou o pedido de licença sem vencimento em 02/07/2018 e tal licença foi-lhe concedida até 24/10/2021.

O pedido de exoneração do passivo restante veio a ser indeferido liminarmente – por decisão proferida em 06/03/2020 – com fundamento na alínea e) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE.

Na sequência desse facto, o Requerido arguiu a nulidade do processado pelo facto de o incidente da exoneração do passivo ter sido indeferido sem que tivesse sido ouvida a prova testemunhal que havia indicado e que era essencial à boa decisão da causa.

Os Requerentes responderam, sustentando a improcedência dessa pretensão.

Entretanto, o Insolvente, R (…), veio interpor recurso da decisão proferida em 06/03/2020 (que havia indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante), formulando as seguintes conclusões:

(…).

Não foram apresentadas contra-alegações.

Foi proferido despacho de admissão de recurso e, na mesma data, foi indeferida a pretensão do Insolvente referente à arguição de nulidade nos termos referidos supra.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

● saber se deve ser anulado todo o processado posterior aos articulados do incidente de exoneração do passivo restante, por ter sido decidido o incidente sem a prévia produção da prova testemunhal que havia sido indicada;

● saber se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos propostos pelo Apelante;

● saber se há fundamento para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante ao abrigo do art. 238.º, n.º 1, alínea e), do CIRE, o que se reconduz a saber se existem (ou não) elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º do mesmo diploma.


/////

III.

Nulidade processual

O Apelante começa por aludir a uma pretensa nulidade processual que teria resultado da circunstância de ter sido fixada a matéria de facto a considerar sem que tivesse sido produzida a prova testemunhal que havia indicado.

Sobre essa matéria cabe dizer que o Apelante invocou essa nulidade em 1.ª instância – em conformidade, aliás, com o regime jurídico a que está submetida a arguição de nulidades (cfr. arts. 195.º e segs. do CPC) – e tal pretensão veio a ser indeferida por decisão proferida em 31/05/2020 (data em que também foi admitido o presente recurso) onde se considerou não ter sido cometida qualquer nulidade.

Nessas circunstâncias e tendo sido proferida decisão que expressamente indeferiu a arguição dessa nulidade, pensamos ser seguro concluir que essa questão extravasa o âmbito do presente recurso e não pode ser aqui apreciada; aquela decisão – que apreciou e indeferiu a arguição dessa nulidade – apenas poderá ser alterada no âmbito de recurso que dela seja – ou tenha sido – interposto, não podendo ser reapreciada e alterada no âmbito do presente recurso que incide sobre outra decisão.

IV.

Matéria de facto

Analisemos agora as questões referentes à matéria de facto, já que essa matéria tem prioridade lógica sobre as demais questões que aqui importa solucionar.

O Apelante começa por impugnar a decisão que julgou provada a seguinte matéria de facto que consta dos pontos 13 e 14:

13. A sociedade U (…), Lda tem como objeto "Atividades de arquitetura, de engenharia e técnicas afins, de design, de avaliação imobiliária, mediação imobiliária, compra de imóveis para revenda, formação profissional, escola de línguas e outras atividades educativas." (conforme resulta de certidão de matricula junta aos autos);

14. Tal sociedade foi constituída em finais do ano de 2016 (conforme resulta de certidão de matricula junta aos autos).

Diz o Apelante que esses factos só poderiam ser provados através de certidão da matrícula da sociedade e aquilo que se encontra juntos aos autos é apenas uma informação não certificada, datada de 23/07/2019, que não tem idoneidade para fazer a prova dessa matéria.

Nessas circunstâncias – conclui o Apelante – aqueles factos não podem ser julgados provados.

Pensamos que não lhe assiste razão.

É certo que, em conformidade com o disposto no art. 75.º do Código de Registo Comercial, o registo prova-se por meio de certidão e é certo que – como diz o Apelante – o documento que se encontra junto aos autos e que se reporta àqueles factos não corresponde a uma certidão, mas sim a mera informação não certificada emitida nos termos do art. 74.º do citado Código, não tendo, por isso, o valor probatório da certidão.

Importa notar, no entanto, que o facto que apenas pode ser provado por meio de certidão – em conformidade com o disposto no citado art. 75º – é o registo e não é esse o conteúdo dos factos em questão. De facto, aquilo que se julgou provado nos citados pontos de facto não foi o registo da sociedade e da sua constituição ou os termos desse registo; o que ali se julgou provado foi apenas que a sociedade tem determinado objecto e foi constituída em determinada data e esses factos – que não se reportam directamente ao registo – não tinham que ser provados por meio de certidão da matrícula na Conservatória, podendo ser provados por outros meios.

Ora, apesar de não ter o valor probatório da certidão, a “informação não certificada” não deixa de constituir um documento cuja força probatória corresponderá àquela que está indicada no art. 368.º do CC (porque, em bom rigor, essa informação corresponde a uma reprodução mecânica das folhas de registo que constam na Conservatória do Registo Comercial) e que, como tal, faz prova plena da coisa que representa (no caso, as folhas de registo), desde que a parte contra quem o documento for apresentado não impugne a sua exactidão. Poder-se-á dizer, em suma, que tal reprodução faz prova plena do documento original que nela se encontra reproduzido. Assim e porque o Requerido/Apelante não impugnou a sua exactidão, esse documento prova plenamente o teor das folhas do registo que representa e, consequentemente, prova que na Conservatória do Registo Predial consta a realização, em determinado momento, da matrícula da referida sociedade com o objecto social ali referido, bem como a inscrição lavrada em 18/11/2016 referente à constituição da aludida sociedade (ainda que esse documento não tenha idoneidade para provar o efectivo registo e para provar que a situação referida – teor da matrícula e inscrição da constituição da sociedade – continue vigente nos termos ali retratados e não tenha sofrido qualquer alteração).

Assim, tendo em conta o teor da referida informação não certificada – da qual se depreende que a matrícula da referida sociedade consta na Conservatória com a indicação daquele objecto e que também ali consta a inscrição da sua constituição com data de 18/11/2016 –, tendo em conta que essa circunstância aponta para a efectiva veracidade desses factos e tendo em conta, por outro lado, que o Requerido nunca impugnou esses factos que haviam sido alegados pelos Requerentes, nenhuma razão existiria para que não pudessem ser julgados provados.

Assim e no que toca a esta matéria, improcede a pretensão do Apelante.

O Apelante impugna também o teor do ponto 19 da matéria de facto onde se julgou provado que o insolvente em virtude dos factos referidos nos pontos 15° a 18° não podia deixar de saber e querer nada pagar aos seus credores com a diferença do vencimento.

Sustenta o Apelante que está em causa matéria conclusiva que, como tal, não pode ser considerada provada.

Não nos parece que assim seja.

É certo que os termos em que está redigido o citado ponto podem transmitir a ideia de que está em causa uma mera conclusão extraída dos factos referidos nos pontos 15 a 18. Mas, na verdade, não é assim, uma vez que aquilo que se julgou provado (relacionado com o conhecimento e vontade do Insolvente) é um facto diferente e autónomo, ainda que a sua prova tenha resultado – conforme se disse na fundamentação – de presunção judicial resultante da conjugação dos factos constantes dos pontos 15 a 18 com as regras de experiência.

Na verdade, o “facto” corresponde a qualquer ocorrência da vida real, qualquer evento material e concreto ou qualquer mudança operada no mundo exterior (fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens)[1], podendo e devendo abranger, pelo menos para efeitos processuais, – como afirma Manuel de Andrade[2] - os factos do mundo exterior (factos externos) ou os da vida psíquica (factos internos).

Ora, o que se julgou provado no citado ponto foi o conhecimento e a vontade do Insolvente de nada pagar aos seus credores com a diferença do vencimento (ou seja, com a diferença que deixou de receber por força dos factos referidos nos pontos 15.º a 18.º) e isso corresponde, na verdade, a um facto, não podendo ser considerado como juízo conclusivo. Está em causa um facto do foro interno – um facto da vida psíquica ou um facto interno nas palavras de Manuel de Andrade – mas, em todo o caso, corresponde a um evento ou acontecimento concreto e com efectiva e real existência e que, como tal, não corresponde a um juízo conclusivo, mas sim a um “facto” que era susceptível de prova e sobre o qual o tribunal podia emitir pronuncia acerca da sua verificação (ou não) em função da prova produzida.

É certo que, dada a sua natureza, esses factos (internos) não são visíveis externamente e não podem ser percepcionados directamente. Mas isso não significa que não seja um facto; significa apenas que a sua demonstração terá que ser feita, por regra, com recurso a presunções judiciais por intermédio de outros factos ou comportamentos de natureza externa que, de algum modo e conjugados com as regras de experiência, os evidenciem ou indiciem. E foi o que aconteceu no caso dos autos, como resulta da fundamentação da decisão proferida relativamente ao citado ponto 19.º, referindo-se que essa decisão resultou “…das regras da experiência que nos dizem que quem actuou como o insolvente só podia ter aquela vontade”.

Improcede, portanto, a argumentação do Apelante relativamente a esta matéria, mantendo-se, por isso, o citado ponto de facto.

Relativamente ao ponto 12 da matéria de facto, sustenta o Apelante que ele deve ser complementado com a indicação da data do acórdão da Relação do Porto, bem como com a indicação da data da respectiva notificação, propondo que se considere provado que o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 27/06/2018, notificado as partes com data 29/0612018, presumindo-se notificado em 02/07/2018 às partes, considerou a sociedade E (…) Lda. Solvente.

Sustenta o Apelante que esse facto é relevante para aquilatar da sua culpa na insolvência e resulta provado pelos documentos n.ºs 10 e 11 juntos com a oposição.

Ainda que seja discutível a relevância desse facto para a decisão, aditamos à matéria de facto a data em que foi proferido o acórdão da Relação. Não aditamos, contudo, a data da respectiva notificação uma vez que essa data não está certificada nos autos e o documento n.º 11 a que alude o Apelante é dúbio e equívoco, não conferindo qualquer grau de certeza a propósito desse facto. Com efeito, ainda que o aludido documento corresponda, aparentemente, à notificação de um acórdão proferido nos autos em questão e ainda que nele seja referida a data de 29/06/2018 (a que alude o Apelante), também consta do documento que, conforme certificação Citius, o mesmo teria sido elaborado em 30/05/2018 e, além do mais, nem sequer contém a identificação do respectivo destinatário.

Em face do exposto, altera-se a redacção do ponto 12 que passará a ter a seguinte redacção:

 Em Abril de 2017, os requerentes pediram a insolvência da E (…), Lda., que correu termos pelo Juízo de Comércio de Aveiro, com o n. ° 1511/17.4T8AVR onde na 1.ª instância foi declarada insolvente e na 2.ª instância foi declarada solvente por Acórdão da Relação do Porto proferido em 27/06/2018 (Cfr. decisões juntas com a petição inicial).

Pretende ainda o Apelante que se julguem provados os seguintes factos (que foram julgados provados no processo de insolvência referente a E (…) Ld.ª):

Os titulares da empresa Requerida e esta mantêm-se em actividade.

A Requerida não tem qualquer dívida vencida à Autoridade Tributária ou à Segurança Social (cfr. doe. de fls. 43 e 44)

A Requerida até à propositura deste processo tinha crédito junto da banca, fornecedores e clientes.

A Requerida tem cumprido com os contratos celebrados com as instituições de crédito, fornecedores e clientes.

Todavia, além de não assumirem relevância directa para a decisão (porque não se reportam ao devedor que foi declarado insolvente nos presentes autos), a mera circunstância de esses factos terem sido julgados provados naquele processo (referente a outra devedora) não permite que os mesmos possam ter-se como provados nestes autos.

Improcede, portanto, esta pretensão.

Assim, a matéria de facto provada – com a ligeira alteração efectuada no ponto 12 – é a seguinte:

1. Os autos de insolvência foram requeridos em 29/06/2018 e o insolvente foi considerado citado em 10-09-2018 (conforme resulta da data de entrada da petição inicial e do aviso de recepção da carta de citação e notificação do insolvente em virtude de a citação ter sido recebida por terceiros).

2. Constam da lista definitiva de credores reconhecidos e apresentada pelo Administrador Judicial (junta no Apenso A), os seguintes créditos:

     

              RECLAMANTE: NOME

NATUREZA DA DÍVIDA

Total Créditos Reclamados

Comuns

Sob condição (art. 50º do CIRE)

%

A(…) na qualidade de herdeiro de A (…) e E (…)….

Fiança em contrato de

promessa de compra e venda.

b)

139 660,93

139 660,93

10,52%

C (…),….Aval à firma "E (…)Lda."

a)

121 045,2763 742,77 57 302,509,12%
C (…) C.R.L,….Aval à firma "E (…)."113 246,05113 246,05 8,53%
C (…)Aval à sociedade "C (…) Lda953 431,02953 431,02

71,83%

TOTAL1 327 383,271270 080,77 57 302,50100%

Notas: Listagem e respectivos documentos suporte, disponíveis para consulta no escritório do Administrador da Insolvência

a) Crédito subordinado proveniente de garantia bancária ativa prestada à Câmara Municipal da X...

b) No crédito reconhecido inclui o valor de 125000,00 € acrescido de juros (moradia a construir) da responsabilidade de terceiro (" E..., Lda." ), entretanto insolvente, na qual o insolvente/devedor interveio como fiador no contrato de promessa. Nos termo do artigo 98º, nº1 do CIRE, beneficia de privilégio creditório geral, graduado em último lugar, sobre todos os bens móveis integrantes da massa insolvente, relativamente a um quarto do seu montante, num máximo correspondente a 500 UC.

3. A divida do insolvente e que fundamentou a sua declaração de insolvência remonta ao ano de 2017 (conforme resulta da sentença de declaração de insolvência).

4. O insolvente é sócio e gerente das sociedades E (…) Lda. e C (…), Lda (Cfr. certidões de matrícula juntas com a petição inicial).

5. Encontra-se separado de pessoas e bens desde 04 de Abril de 2014.

6. O insolvente vive sozinho;

7. O insolvente refere que tem despesas, nomeadamente, com alimentação, saúde, higiene, vestuário, calçado, telecomunicações e transportes, pernoitando em casa dos pais.

8. Tem dois filhos, a saber:

- M (…), nascido a 27/03/2002;

- G (…), nascido a 27/01/2005 (Cfr. assentos de nascimentos junto com a contestação);

9. Aquando da separação das responsabilidades parentais dos menores acima referidos, estes ficaram confiados à mãe, com quem vivem (Cfr. assentos de nascimentos junto com a contestação);

10. O requerido ficou obrigado a contribuir mensalmente a título de alimentos para os menores com a quantia de 200,00 €, para cada um, a entregar à mãe dos menores até ao dia 8 de cada mês, actualizada anualmente no mês de Janeiro, em 5,00 €, com início em Janeiro de 2018;

11. O requerido foi notificado, na qualidade de avalista, pelo menos, no dia 12 de Fevereiro de 2019 pela C(…) de um incumprimento de uma divida da sociedade D (…), Lda., no montante de 29.159,31€, vencida, pelo menos, no dia 01/02/2019 (conforme resulta da sentença de declaração de insolvência proferida nos presentes autos);

12. Em Abril de 2017, os requerentes pediram a insolvência da E (…), Lda., que correu termos pelo Juízo de Comércio de Aveiro, com o n. ° 1511/17.4T8AVR onde na 1.ª instância foi declarada insolvente e na 2.ª instância foi declarada solvente por Acórdão da Relação do Porto proferido em 27/06/2018 (Cfr. decisões juntas com a petição inicial).

13. A sociedade U (…), Lda tem como objeto "Atividades de arquitectura, de engenharia e técnicas afins, de design, de avaliação imobiliária, mediação imobiliária, compra de imóveis para revenda, formação profissional, escola de línguas e outras actividades educativas." (conforme resulta de certidão de matricula junta aos autos).

14. Tal sociedade foi constituída em finais do ano de 2016 (conforme resulta de certidão de matrícula junta aos autos).

15. O insolvente exerce a sua actividade na U (…) Lda. auferindo o montante de 793,34 € (Conforme resulta da pesquisa na base de dados da Segurança Social junta aos autos).

16. Os sócios da sociedade U(…), Lda são o pai (também gerente) e a mãe do insolvente.

17. O insolvente apresentou o pedido de licença sem vencimento das funções como arquitecto da C... em 02/07/2018.

18. Foi concedida licença sem vencimento até 24/10/2021.

19. O insolvente em virtude dos factos referidos nos pontos 15° a 18° não podia deixar de saber e querer nada pagar aos seus credores com a diferença do vencimento.

20. Na Declaração de Rendimentos de Pessoa Singular (IRS), respeitante ao ano de 2017 declarou rendimentos no valor de 24.531,51€ e no ano de 2018, declarou um rendimento global de 25.339,54€ (conforme resulta das declarações de IRS junta aos autos através de requerimento com a Refª 5160087).

21. Foi junto parecer por parte do Ilustre Administrador Judicial no sentido de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente (relatório previsto no artº 155º do CIRE e informações posteriormente juntas por aquele).

22. Não foi condenado, por sentença transitada em julgado, por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal (Cfr. certificado do registo criminal junto com a contestação).

Não se julgou provado:

- Que o insolvente na tentativa de recuperar a situação económica das empresas, não tivesse disponibilidades para comparecer no seu posto de trabalho e condições para prestar trabalho na C... e que tenha sido informado que a situação não podia continuar;

- Que para evitar deixar de continuar na C..., se tenha visto forçado a pedir uma licença sem vencimento e que tal se devesse para tratar dos assuntos pessoais e fazer uma especialização.

- Que se não o fizesse, já hoje não seria funcionário daquela entidade;

- Que o insolvente com tudo isto se tenha sentido e se sinta abalado psicologicamente e com muitas fragilidades pessoais e profissionais e que tais sequelas se manterão durante muito tempo;

- Que o veículo marca BMW que o insolvente anda seja da entidade patronal e modelo 320, do ano 2007.


/////

 

V.

Indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo

A decisão recorrida indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo por ter concluído pela verificação da situação prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE. E a conduta do Insolvente que a decisão recorrida entendeu preencher essa previsão normativa reconduz-se, no essencial, ao facto de o mesmo ter pedido uma licença sem vencimento das funções que exercia como arquitecto da C... para ir trabalhar numa sociedade cujos sócios são os seus pais onde passou a auferir um vencimento substancialmente inferior àquele que auferia como arquitecto da C....

O Apelante discorda dessa decisão, sustentando não se verificar a situação prevista na norma citada, uma vez que não reduziu o seu património, nem agravou a sua situação de insolvência e muito menos o fez com culpa ou dolo, sendo certo que sempre agiu de forma séria, honesta e com total lisura. Alega, para o efeito: que, quando pediu aquela licença, não era expectável que fosse pedida a sua insolvência; que não pretendeu, com essa atitude, nada pagar aos credores, pretendendo apenas dedicar-se quase em exclusividade à sociedade E (…), Ld.ª – cuja solvabilidade havia sido declarada por acórdão da Relação do Porto nessa data notificado – para, através dos respectivos lucros, pagar a todos os credores, incluindo os requerentes, sendo certo que acreditava na sua rentabilidade e estava convencido que ela já estaria equilibrada quando cessasse a licença sem vencimento; que, nunca teve a intenção de prejudicar os seus credores, nem nunca lhe passou pela cabeça que pudesse ser pedida a sua insolvência pessoal pelos Requerentes; que a circunstância de os Requerentes terem pedido a declaração de insolvência do Apelante quando estavam a serem ultimadas as negociações de financiamento com a banca para a E..., Lda., retardou esse processo e foi isso que determinou a insolvência do Recorrente sem que nada o fizesse esperar.

Analisemos, então, a questão.

Conforme disposto no art. 238.º, n.º 1, alínea e), do CIRE “O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

(…)

Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º”.

O indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante com esse fundamento pressupõe, portanto, a efectiva existência de elementos no (processo que permitam afirmar que, com toda a probabilidade, a insolvência será de qualificar como culposa, nos termos do art. 186.º. Não basta, para o efeito, que existam indícios que apontem para esse facto; esses indícios têm que ser fortes ao ponto de permitirem concluir, com toda a probabilidade ou com um elevado grau de certeza, pela efectiva verificação dessa situação.

Nessas circunstâncias, a questão de saber se existe fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante remete-nos para o disposto no citado art. 186.º e para a questão de saber se existem (ou não) elementos no processo com base nos quais se possa concluir, à luz do disposto nesse preceito legal, que, com toda a probabilidade, a insolvência será de qualificar como culposa.

Segundo o disposto no n.º 1 da norma citada, “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”. Exige-se, portanto: que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por determinada conduta ou actuação do devedor ou dos seus administradores; que tal actuação seja dolosa ou gravemente culposa e que esta actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Contudo, além de enunciar – no n.º 3 da norma citada – um conjunto de situações em que se presume a existência de culpa grave, o legislador enunciou – no n.º 2 – um conjunto de situações, cuja verificação determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, presumindo o legislador – sem admitir prova em contrário, como decorre da expressão “considera-se sempre” – que em tais situações a insolvência é sempre culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor ou dos seus administradores e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência[3]. Como refere Luís Manuel Menezes Leitão[4], “verificados alguns destes factos, o juiz terá assim que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. A lei institui consequentemente no art. 186º, nº 2, uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário”.

Significa isso, portanto, que, caso esteja demonstrada nos autos a existência de uma conduta do devedor que se integre nalguma das situações elencadas no n.º 2, o pedido de exoneração do passivo deve ser liminarmente indeferido independentemente da verificação de qualquer outro requisito, uma vez que tal conduta é suficiente, só por si, para determinar a qualificação da insolvência culposa.

E pensamos ser essa, na verdade, a situação dos autos.

A conduta do devedor (Apelante) que está em causa nos autos e que fundamentou a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo reconduz-se ao facto de ter pedido uma licença sem vencimento das funções que exercia, como arquitecto da C (…), em 02/07/2018 – licença que lhe foi concedida até 24/10/2021 – passando, a partir daí, a auferir o montante (substancialmente inferior) de 793,34€ pela actividade que exerce na U (…) Ld.ª cujos sócios são os seus pais.

O acto em questão insere-se no período temporal a que alude o citado art. 186.º uma vez que, apesar de ter sido praticado após o início do processo de insolvência (o acto foi praticado em 02/07/2018 e o processo teve início em 29/06/2018), ele foi praticado antes de declarada a insolvência (o que sucedeu em 13/02/2019) e o período compreendido entre o início do processo e a declaração da insolvência considera-se abrangido, por força do disposto no art. 4.º, nº 2, do CIRE,  nos prazos que estão previstos neste Código e que têm como termo final o início do processo de insolvência.

Por outro lado, o acto em questão enquadra-se no âmbito de previsão da alínea b) do n.º 2 do citado art. 186.º onde se dispõe que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: “Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas”. Refira-se que, apesar de a norma em questão se reportar a devedores que não sejam pessoas singulares e a condutas dos respectivos administradores, ela é aplicável, com as necessárias adaptações e por força do disposto no n.º 4, à actuação de pessoa singular insolvente, onde a isso não se opuser a diversidade das situações. Ora, com a conduta descrita, o Apelante reduziu os seus rendimentos – porquanto abdicou do vencimento que auferiu enquanto arquitecto da C..., ficando com um rendimento substancialmente inferior – e tal situação é equiparável à redução de lucros que se encontra prevista na citada alínea relativamente às pessoas colectivas.

Assim e porque, conforme dissemos, a verificação das situações previstas no n.º 2 da citada norma determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor e de que existiu um nexo causal entre a sua actuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência, impunha-se concluir, em face da referida conduta do devedor, que a insolvência era de qualificar como culposa e que, como tal, o pedido de exoneração do passivo deveria ser liminarmente indeferido ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 238.º dada a existência de elementos que indiciavam com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º.

De qualquer forma, ainda que se entenda que a conduta do Apelante não se integra nenhuma das situações previstas no n.º 2 da norma citada, sempre existiriam elementos para concluir, à luz do n.º 1, que estava indiciada, com toda a probabilidade, uma situação de insolvência culposa.

Vejamos.

Além da verificação de determinada actuação do devedor (ou dos seus administradores) inserida no período temporal ali referido, a qualificação da insolvência como culposa ao abrigo do referido n.º 1 pressupõe a demonstração de que essa actuação foi praticada com dolo ou culpa grave e que dela resultou a criação ou agravamento da situação de insolvência.

Já vimos que a actuação do devedor em causa nos autos (o pedido de licença sem vencimento) está inserida dentro do período temporal que releva para efeitos de qualificação da insolvência.

Não poderemos dizer que tal actuação tenha criado a situação de insolvência, porque, na verdade e ao que tudo indica, tal situação já estava instalada. Com efeito, pelo menos o crédito dos Requerentes está vencido desde Março de 2017 (conforme resulta da sentença de declaração de insolvência) e, não obstante as interpelações feitas (quer à E (…) Ld.ª, quer ao Apelante na qualidade de fiador e principal pagador), o crédito não foi satisfeito. É certo, por outro lado, que, conforme também se julgou provado naquela sentença, o devedor não dispunha de quaisquer bens ou rendimentos que lhe permitissem cumprir aquela obrigação já vencida, pelo que, à luz do disposto no art. 3.º do CIRE, estava em situação de insolvência.

Temos, no entanto, como indiscutível que o pedido de licença sem vencimento agravou a situação de insolvência do Apelante. E tal pedido agravou essa situação porque ele teve como consequência a perda do rendimento (vencimento) que o Apelante auferia pelo exercício das suas funções e a consequente impossibilidade de afectar esse rendimento (ou, pelo menos, uma parte dele) à satisfação dos direitos dos seus credores. A impossibilidade de satisfazer pontualmente as suas obrigações vencidas agravou-se, portanto, com o acto praticado e com a perda de rendimento que dele resultou. E, a fazer fé nas suas alegações – segundo as quais apenas passou a auferir o valor de 793,34 € pela actividade que exerce numa sociedade da qual são sócios os seus pais, não dispondo de qualquer outro rendimento, quando é certo que, pelo exercício das funções que desempenhava na C..., auferia um vencimento mensal no valor aproximado de 1.800,00€ –, o Apelante agravou a sua situação de insolvência ao ponto de ficar sem qualquer rendimento que pudesse afectar à satisfação do seu passivo vencido, uma vez que o valor que recebe actualmente será necessário para prover à sua subsistência e para contribuir para o sustento dos seus filhos menores a quem estava obrigado a pagar o valor mensal global de 400,00€.

Resta saber se há elementos para concluir que tal actuação tenha sido culposa (culpa que, para efeitos de qualificação da insolvência e, consequentemente, para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, terá que se apresentar na modalidade de dolo ou culpa grave, conforme resulta do citado art. 186.º).

O dolo, segundo a noção que nos é dada pelo art. 14º do Código Penal, comporta três modalidades: o dolo directo, o dolo necessário e o dolo eventual. O primeiro corresponde às situações em que o agente quer directamente realizar o facto ilícito, ou seja, às situações em que “…o agente representa ou prefigura no seu espírito determinado efeito da sua conduta e quer esse efeito como fim da sua actuação, apesar de conhecer a ilicitude dele[5]; o segundo corresponde às situações em que o agente, apesar de não querer directamente o facto ilícito, o previu ou representou como consequência necessária da sua conduta, ou seja, “…o agente não tem a intenção de produzir o resultado ilícito, pois o fim que prossegue é outro; mas sabe que também produzirá forçosamente esse resultado. Prevê o evento ilícito como consequência inevitável da sua conduta, embora não seja este evento que o determina a agir; sem embargo, aceita-o…[6] e o terceiro corresponde às situações em que o agente representa o facto ilícito como consequência possível da sua conduta e actua conformando-se com a possível realização do facto, ou seja, embora preveja o facto ilícito não tem a intenção de o realizar e tão pouco o prevê como consequência necessária da sua conduta, admitindo, contudo, que ele possa produzir-se e aceitando essa possibilidade sem que tal o iniba de actuar[7].

A negligência, por seu turno, abarca as situações em que o agente não chega a prever o resultado ou, apesar de o prever como possível, actua sem o aceitar e acreditando que ele não se produzirá, correspondendo, na prática, à omissão da diligência que era exigível e que, caso tivesse sido observada, teria permitido prever o resultado e usar das cautelas e cuidados necessários para o evitar. A culpa/negligência é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (cfr. art. 487º nº 2 do Código Civil), correspondendo, por isso, à omissão da diligência e deveres de cuidado que, naquelas circunstâncias, eram exigíveis e que seriam adoptados por uma pessoa normalmente diligente. Estabelecendo a distinção entre culpa grave e culpa leve, refere Inocêncio Galvão Telles[8] que quer a culpa grave quer a culpa leve “…correspondem a condutas de que uma pessoa normalmente diligente – o bonus pater familias – se absteria. A diferença entre elas está em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida”. Segundo Antunes Varela[9], a culpa grave “…consiste em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos em princípio observam”. A culpa grave – que também poderemos designar por negligência grave grosseira – pressupõe, assim, um grau de diligência muito inferior àquele que seria exigível e que seria adoptado por uma pessoa normalmente diligente, correspondendo a uma violação grosseira dos deveres de cuidado e prudência que, no caso, eram exigíveis e eram elementares.

Ora, em face disso, pensamos ser clara a existência de dolo do Apelante ou, pelo menos, culpa grave.

Alega o Apelante que, ao pedir a licença sem vencimento, não pretendeu prejudicar e nada pagar aos credores, pretendendo apenas dedicar-se quase em exclusividade à sociedade E (…) Ld.ª – cuja solvabilidade havia sido declarada por acórdão da Relação do Porto nessa data notificado – para, através dos respectivos lucros, pagar a todos os credores, incluindo os Requerentes, sendo certo que acreditava na sua rentabilidade e estava convencido que ela já estaria equilibrada quando cessasse a licença sem vencimento.

Admitindo que essa alegação corresponda à realidade, a única conclusão que daí poderíamos retirar é que o Apelante não teria actuado com dolo directo, uma vez que a sua conduta – ao pedir a licença sem vencimento – não visava directamente a perda do rendimento que auferia e o agravamento da situação de insolvência que daí resultava; a sua actuação teria sido determinada em função de outro objectivo que pretendia alcançar e que se reconduzia à recuperação da sociedade E (…).

Mas ainda que essa circunstância afastasse a existência de dolo directo, ela já não teria aptidão para afastar a existência de dolo necessário ou eventual, ou, pelo menos, a existência de negligência grave, uma vez que, apesar de não ter sido movido pela intenção de agravar a sua situação de insolvência (por ter sido movido pela intenção de se dedicar em exclusivo à referida sociedade com vista a obter a sua recuperação económica), o Apelante sabia – ou, pelo menos, não podia deixar de saber se usasse da diligência mínima – que tal actuação provocaria necessariamente a redução dos seus rendimentos e o consequente agravamento da sua situação de insolvência.

Importa notar que, de acordo com a versão dos factos que é apresentada pelo próprio Apelante, o pedido de licença sem vencimento foi um acto deliberado e voluntário, da iniciativa do Apelante, que não foi determinado por motivo de força maior (por força de doença própria ou de familiar que carecesse do seu acompanhamento ou por qualquer outro motivo ponderoso e inultrapassável) nem foi motivada pela necessidade de salvaguardar um qualquer bem ou interesse relevante que fosse prioritário e devesse prevalecer. O Apelante apenas terá entendido – segundo diz e por razões que não relevam e não iremos comentar – optar pela tentativa de recuperar a referida sociedade (objectivo que, ao que parece, nem sequer conseguiu alcançar) em prejuízo da sua própria solvência e tal circunstância não releva para efeitos de justificar a sua conduta e para efeitos de excluir a sua culpa no agravamento da sua situação de insolvência.

E também não vislumbramos a relevância do facto – a que alude o Apelante – de não ser expectável que os Requerentes viessem pedir a sua insolvência imediatamente depois de terem sido notificados do Acórdão da Relação do Porto que havia declarado improcedente o pedido de declaração de insolvência da sociedade E (…). Em primeiro lugar, nem sequer percebemos as razões pelas quais o Apelante afirma não ser expectável que viesse a ser requerida a sua insolvência. Com efeito, se o crédito dos Requerentes estava vencido desde Março de 2017 e se ainda não havia sido pago, o natural seria que o seu pagamento viesse a ser exigido e, se o Apelante não dispunha de bens susceptíveis de penhora que pudessem responder pela satisfação desse crédito, o natural seria que os Requerentes pedissem a declaração da sua insolvência. Foi isso que aconteceu sem que, em termos objectivos, se possa afirmar que tal não fosse expectável. Por outro lado, a circunstância de o Apelante não estar à espera que fosse requerida a sua insolvência, não invalida a existência de culpa no agravamento da sua situação de insolvência, sendo certo que, ainda que os Requerentes não tivessem requerido a insolvência, o pedido de licença sem vencimento não deixaria de configurar uma actuação que, com culpa grave, agravava a sua situação de insolvência.

Concluímos, portanto, em face do exposto, que o Apelante actuou, no mínimo, com culpa grave, uma vez que sabia ou não podia deixar de saber, caso usasse de diligência mínima, que a sua actuação iria determinar a perda de rendimentos e o consequente agravamento da sua situação de insolvência. Ainda que o Apelante não tivesse previsto ou representado esse resultado como consequência necessária da sua conduta – o que nos parece difícil – é seguro concluir que tal apenas poderia ter sucedido por grave e grosseira violação de deveres de cuidado elementares que, naquelas circunstâncias, não deixariam de ser adoptados por qualquer pessoa e que só uma pessoa particularmente negligente ou descuidada deixaria de observar.

Entendemos, portanto, em face do exposto, que há elementos bastantes para concluir, com toda a probabilidade, pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º e, como tal, havia fundamento para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo ao abrigo do disposto no art. 238.º, n.º 1, alínea e), do CIRE, conforme se entendeu na decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – O devedor que, de forma deliberada e voluntária e sem motivo de força maior ou outra razão ponderosa que se deva considerar prevalecente, pede uma licença sem vencimento, passando a desempenhar outra actividade e a receber um rendimento substancialmente inferior àquele que auferia, agrava, com culpa grave (ou até dolo) a sua situação de insolvência.

II – Tal actuação – desde que praticada nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência ou no período compreendido entre o início do processo e a declaração da insolvência (cfr. arts. 186.º, n.º 1 e  4.º, nº 2, do CIRE) – determina a qualificação da insolvência como culposa, em conformidade com o citado art. 186.º.

III – Nessas circunstâncias – que indiciam com toda a probabilidade uma insolvência culposa, nos termos do art. 186.º do CIRE – deve ser indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo, ao abrigo do disposto no art. 238.º, n.º 1, alínea e), do mesmo diploma.


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VI.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Apelante, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.

Coimbra, 2020/07/13

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora )

Maria João Areias

Freitas Neto


[1] Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 3ª ed., Reimpressão, pág.206 e 209.
[2] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 194.
[3] Cfr. Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2013, 5.ª edição, págs. 133 e 134; Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, pág. 301 e Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, pág. 610.
[4] Direito da Insolvência, 2013, 5ª ed., pág.248.
[5] João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3ª edição, pág.459.
[6] Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 3ªedição, págs.295 e 296.
[7] Cfr. Inocência Galvão Teles, ob. cit., págs. 296 e 297.
[8] Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 304.
[9] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3ª ed., pág. 467, nota 3.