Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
459/06.2TBPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 06/02/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1569º, Nº 2, C.CIV.
Sumário: I – A extinção da servidão de passagem por desnecessidade (artº 1569º, nº 2, C.Civ.) deve ser objectiva, efectiva e actual, relevando tanto a desnecessidade superveniente como a originária.
II – Para o efeito não basta a simples demonstração de que o prédio dominante confina com um caminho público.

III – Se uma solução alternativa passar pela realização de obras de acessibilidade ao prédio dominante, este facto concorre para o juízo de ponderação sobre a desnecessidade, e, como tal, deve ser concretamente alegado pelo requerente, não podendo ser diferido para momento posterior à efectuação das obras, porque é elemento constitutivo do direito.

IV – Compete ao requerente da extinção o ónus da prova dos elementos indispensáveis ao juízo da desnecessidade e da proporcionalidade, nomeadamente quanto à realização de obras de acessibilidade no prédio dominante, por consubstanciarem factos constitutivos do direito.

V – O custo das obras é da responsabilidade do titular do prédio serviente, requerente da extinção.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO

1.1. - Os Autores - A... e B... – instauraram (10/7/2006) na Comarca de Penacova acção declarativa, com forma de processo sumário, contra o Réu - C... .

Alegaram, em resumo:

Os Autores são donos, na proporção de metade para cada, de um prédio rústico, sito em Quinta, freguesia de S. Pedro de Alva, concelho de Penacova. O Réu é dono de um prédio rústico, sito na mesma localidade.

A favor do prédio dos Autores e sobre o prédio do Réu existe uma servidão de passagem, a pé e de carro, constituída por usucapião, que se revela por um carreiro de terra batida, com cerca de 3,70 metros de largura, e que vai desde a estrema sul do prédio do Réu até à estrema sul do prédio dos Autores.

O Réu colocou um portão, impediu a passagem, causando prejuízos aos Autores.

         Pediram cumulativamente:

a) – A declaração de que o prédio dos autores identificado no art.º 1 desse articulado beneficia de uma servidão de passagem, a pé e de carro, que onera o prédio do Réu referido no art.º 13.º desse articulado, e se exerce através do carreiro referido no art.º 28.º desse articulado, com 3,70 metros de largura, situado na extrema poente do prédio do Réu, e que vai da extrema sul do prédio deste até à extrema sul do prédio dos Autores;

b) – A condenação do Réu a reconhecer e a respeitar a existência dessa servidão de passagem; a abster-se de quaisquer actos ou comportamentos que impeçam ou perturbem o exercício dessa servidão de passagem; a retirar o portão que colocou na entrada do seu prédio, ou pelo menos a mantê-lo aberto, se necessário completamente, para entrada de pessoas a pé ou de carro;

c) – A condenação do Réu a pagar aos Autores a quantia de Eur. 3.009,60€, acrescida de juros, à taxa legal, actualmente de 4% ao ano, desde a citação até integral pagamento.

Contestou o Réu defendendo-se por impugnação motivada, ao negar a existência de prejuízos para os Autores.

Em reconvenção, alegou, em síntese:

A servidão de passagem é desnecessária porquanto o prédio dos Autores confina com um caminho situado a sudeste, que se inicia na Estrada Municipal e segue em direcção à propriedade dos Autores, que lhes permitem as mesmas ou melhores condições de acessibilidade.

Admitindo-se ser eventualmente necessário levar a cabo determinadas obras na parte sudeste do prédio dos Autores ( dominante ), cabe-lhes a eles suportar as inerentes despesas.

Pediu a condenação dos Autores:
a) - A reconhecer que têm possibilidade de acesso igualmente cómodo para o seu prédio através do caminho público situado a sudeste do mesmo;
b) – A reconhecer que o exercício da servidão sobre o prédio do Réu/Reconvinte tem inconvenientes para o prédio deste e que a extinção da servidão traz vantagens para o mesmo prédio;
c) – A abrir entrada para o seu prédio (dominante) directamente do supra referido caminho público sito a sudoeste; absterem-se de passar pelo prédio do réu/reconvinte.

Responderam os Autores, contraditando a reconvenção.

1.2. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção e total improcedência da reconvenção, decidiu:

a) – Condenar o Réu:

i) – A reconhecer que o prédio sua pertença sito no lugar de Quinta, freguesia de São Pedro de Alva, concelho de Penacova, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de São Pedro de Alva sob o artigo 3793, se encontra onerado com uma servidão de passagem, de pé e de carro, constituída por usucapião, a favor do prédio rústico propriedade dos Autores A... e B... sito na mesma localidade e freguesia, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de São Pedro de Alva sob o artigo 3788 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Penacova sob o n.º 3518/20020409, que é exercida através de um carreiro de terra batida, com cerca de 3,70 metros de largura, situado na estrema Poente do mesmo, numa extensão que vai desde a estrema Sul do prédio do Réu até à extrema sul do prédio dos Autores;

ii) – A respeitar a existência da servidão de passagem referida em i), e a abster-se de praticar quaisquer actos ou comportamentos que impeçam ou perturbem o exercício dessa servidão de passagem e a manter aberto o portão que colocou na entrada do seu prédio, para entrada de pessoas a pé ou de carro;

iii) – A pagar à Autora A... a quantia de € 500,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados da presente decisão e até integral pagamento, e ao Autor B... a quantia de € 300,00, a título de danos não patrimoniais.

b) – Absolver o Réu dos demais pedidos;

c) – Absolver os Autores dos pedidos reconvencionais.

1.3. - Inconformado, o Réu recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

(…………………………………………………………………)

Contra-alegaram os Autores, preconizando a improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. – O objecto do recurso:

         A questão submetida a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, contende com a extinção da servidão de passagem por desnecessidade ( art.1569 nº2 CC ) e as regras do ónus da prova sobre os factos constitutivos do direito conferido ao titular do prédio serviente.

         2.2. – Os factos provados:

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2.3. – O Direito:

A sentença recorrida, deferindo a acção, reconheceu a existência de servidão de passagem, a pé e de carro, a favor do prédio dos Autores ( dominante) e sobre o prédio do Réu (serviente), constituída por usucapião ( art.1548 do CC ), exercida através de um carreiro de terra batida, com cerca de 3,70 metros de largura, situado na estrema Poente do mesmo, numa extensão que vai desde a estrema Sul do prédio do Réu até à estrema sul do prédio dos Autores.
Julgou, no entanto, improcedente o pedido reconvencional de extinção da servidão por desnecessidade, com base nos seguintes tópicos argumentativos:
a) - A desnecessidade tem de ser aferida pela situação existente no momento em que a acção ( ou reconvenção ) é proposta  e não só após a realização de obras a levar a cabo no prédio dominante;
b) - A circunstância do prédio dominante confinar a sudeste com caminho público não é suficiente para se afirmar a desnecessidade;
c) - As características do terreno do prédio dominante ( desnível e muro entre as duas partes ), inviabilizam o acesso a pé ou de carro ao terreno de cultivo através do pinhal;
d) – Não releva, para o efeito, a “ eventualidade” de obras no prédio dominante, tanto mais desconhecer-se por completo a dimensão, custos e prejuízos para o titular do prédio dominante.
Objecta o apelante dizendo que a extinção da servidão por desnecessidade é admissível quando, na ponderação casuística, o prédio dominante tenha uma alternativa à servidão de passagem que, sem um mínimo de prejuízo, lhe garanta a mesma acessibilidade, ainda que haja de realizar obras não desproporcionais, competindo ao dono do prédio dominante a alegação e prova da desproporcionalidade das obras, bem como suportar o respectivo custo.
Assim, “ os apelados, após a realização de “obras de pouca monta”, eventualmente com a construção de uma pequena plataforma sobre a barroca e de uma rampa que atravesse o referido muro e com o alargamento da passagem pedonal existente na parte de pinhal do referido prédio ( 34 dos factos provados) terão acesso, de pé e de carro, ao terreno de cultivo a partir do referido caminho público, afigurando-se, então, desnecessária, a servidão de passagem que onera o prédio do ora apelante” ( 5ª conclusão/ fls.232).
Nos termos do art.1569 nº2 do CC, as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.
Como se sabe, existem duas orientações sobre o requisito da desnecessidade:
a) - Para uns, só releva a alteração das circunstâncias existentes à data da constituição da servidão, ou seja, a desnecessidade superveniente ( cf., por ex., OLIVEIRA ASCENSÃO, Direitos Reais, 4ª ed., pág.440, Ac RC de 25/10/83, C.J. ano VIII, tomo IV, pág.62 e de 13/6/95, na C.J., ano XX, tomo III, pág. 41, de 16/4/02, C.J., Ano XXVII, tomo II, pág. 23);
b) - Noutro entendimento, tanto a desnecessidade superveniente como a originária dão lugar à extinção, pois determinante é a cessação das razões que justificavam a afectação de utilidades do prédio serviente ao prédio dominante ( cf., por ex., CARVALHO FERNANDES, Direitos Reais, 4ª ed., pág, 450, Ac do STJ de 27/5/99, BMJ 487, pág.313, Ac RC de 28/9/04, C.J. ano XXIX, tomo III, pág.18, Ac RC de 10/5/05, C.J. ano XXX, tomo III, pág.9 ).
Parece ser esta a posição mais consistente, designadamente, por ser a que convoca a ponderação em concreto, apelando ao pensamento tópico, pois o que releva é que a situação de desnecessidade se apresente como objectiva, efectiva e actual.
Não basta, por isso, demonstrar-se que o prédio dos Autores (dominante) confina com um caminho público, sendo imperioso saber se a comunicação com a via pública proporciona as mesmas utilidades que o caminho da servidão de passagem (cf., por, ex., Ac RC de 12/6/2007, Ac RG de 13/4/2005, disponíveis em www dgsi.pt ).

         Perante a descrição factual apurada, dadas as características físicas do terreno do prédio rústico dos Autores, é por demais evidente que a sua confinância com o caminho público, situado a Sudeste, não proporciona as mesmas utilidades, por estar inviabilizado o acesso a pé ou de carro ao terreno de cultivo através do pinhal na parte superior.

         É que sendo o prédio dos Autores composto de duas partes, uma de terreno de cultivo, outra de pinhal e mato, o referido caminho público só permite o acesso à parte do pinhal e mato, visto que entre ambas as partes do terreno interpõem-se uma barroca, um muro de pedra a suportar o pinhal, com 1,45 e 1,85 metros de altura, existindo um declive acentuado entre elas ( cf. pontos 27 a 34). 

         Neste contexto, só com eventuais obras no prédio dos Autores (dominante) é que se poderia aquilatar da desnecessidade da servidão, como, aliás, reconhece o apelante.

Mas, como correctamente discorreu a sentença, a desnecessidade tem de ser aferida pela situação existente no momento em que a acção é proposta, ou mais rigorosamente, no momento na sentença ( arts.653 nº1 e 663 CPC), pois é nesta que se define o respectivo direito e se declara a extinção da servidão.

Ainda que uma solução alternativa passe pela realização de obras de acessibilidade ao prédio dominante, este facto concorre para o juízo de ponderação sobre a desnecessidade, e como tal deve ser concretamente alegado pelo requerente. Ou seja, o juízo da desnecessidade não pode ser diferido para momento posterior à efectuação das obras, porque é elemento constitutivo do direito.

         De resto, também no regime anterior, em que a extinção da servidão se fazia em acção de arbitramento, o nº1 do art.1057 CPC dispunha que a sentença que autorize a cessação ou mudança de servidão não produz efeito sem que estejam concluídas as obras de que dependa a cessação ou a mudança. Mas a realização das obras fazia-se na fase executiva, sendo condição de eficácia da sentença, enquanto que era na fase declarativa que ficava decidida a cessação.

         Acontece não ter sido alegado que tipo de obras, a sua dimensão, custos e prejuízos para o prédio dominante, conforme se anotou na sentença.

         O apelante, estribando-se no Ac da RP de 21/11/05 ( proc. nº0455736), disponível em www dgsi.pt, remete para o dono do prédio dominante o ónus da alegação e prova da desproporcionalidade da exigências das obras necessárias, com o argumento da revogação do art.1057 do CPC pela reforma de 1995, que “ deve ser entendida como passando a ser da responsabilidade do prédio dominante a realização das obras necessárias a garantir a acessibilidade ao mesmo”, significando também que “ passou a ser da responsabilidade do dono do prédio dominante a alegação e prova da desproporcionalidade da exigência das obras necessárias”.

         Contudo, este argumento carece de consistência e não parece dogmaticamente correcto, segundo os princípios gerais do direito probatório.

         A repartição do ónus da prova entre as partes faz-se segundo o critério da “ teoria da norma”, devendo processar-se de harmonia com a previsão (geral e abstracta) traçada na norma jurídica que serve de fundamento à pretensão de cada uma delas ( cf., por ex., ANTUNES VARELA, RLJ ano 116, pág.333 e segs. e 117, pág.26 e segs).

Nesta medida, ao autor compete provar os factos que, segundo a norma substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico por ele pretendido, ou seja, terá o ónus de provar os factos constitutivos correspondentes à situação de facto traçada na norma substantiva em que funda a sua pretensão ( art.342 nº1 do CC ). Ao réu incumbirá a prova dos factos correspondentes à previsão (abstracta) da norma substantiva em que baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva do efeito jurídico pretendido pelo autor ( art.342 nº2 do CC ). E em caso de dúvida, os factos devem ser considerados constitutivos do direito ( art.342 nº3 do CC ).

         O ónus da prova dos elementos necessários à avaliação da desnecessidade e sobre o juízo de proporcionalidade, designadamente sobre a viabilidade de eventuais obras e de que o incómodo e dispêndio com a alteração não são excessivos, compete ao requerente da extinção, por consubstanciarem factos constitutivos do seu direito ( art.342 nº1 CC ). E o custo das obras não pode deixar de ser da responsabilidade do titular do prédio serviente, por argumento de maioria de razão com o previsto para a mudança de servidão ( art.1568 CC ) ( cf., neste sentido, Ac RC de 28/9/2004, C.J. ano XXIX, tomo I, pág.18, Ac RC de 6/12/2005, C.J. ano XXX, tomo V, pág.30, Ac RP de 12/12/2006, em www dgsi.pt ).

         Por conseguinte, cabe ao titular do prédio serviente, requerente da extinção da servidão, alegar que a servidão de passagem é desnecessária e, dependendo essa desnecessidade da realização de obras, que das mesmas não resultará incómodo excessivo para o prédio dominante, bem como alegar que está disposto a suportar o respectivo custo.

         Ora, dada a omissão destes elementos destinados ao juízo de proporcionalidade, cujo ónus da prova incumbia ao Réu, sucumbe a pretensão reconvencional.

         Acresce que o Réu reconvinte nem sequer manifestou sua disponibilidade no pagamento do custo das obras necessárias, endossando irritamente a sua responsabilidade para os Autores.

         Improcede a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

         2.4. – Síntese conclusiva:

1. A extinção da servidão de passagem por desnecessidade (art.1569 nº2 do CC ) deve ser objectiva, efectiva e actual, relevando tanto a desnecessidade superveniente, como a originária.

2. Para o efeito, não basta a simples demonstração de que o prédio dominante confina com um caminho público.

3. Se uma solução alternativa passar pela realização de obras de acessibilidade ao prédio dominante, este facto concorre para o juízo de ponderação sobre a desnecessidade, e como tal deve ser concretamente alegado pelo requerente, não podendo ser diferido para momento posterior à efectuação das obras, porque é elemento constitutivo do direito.

         4. Compete ao requerente da extinção o ónus da prova dos elementos indispensáveis ao juízo da desnecessidade e da proporcionalidade, nomeadamente quanto à realização de obras de acessibilidade no prédio dominante, por consubstanciarem factos constitutivos do direito.

         5. O custo das obras é da responsabilidade do titular do prédio serviente, requerente da extinção.


III – DECISÃO

         Pelo exposto, decidem:


1)

         Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

2)

         Condenar o apelante nas custas.