Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
40/15.5T9CLB-C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: PECULATO
INSTITUIÇÃO PARTICULAR DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
CONCEITO DE FUNCIONÁRIO
Data do Acordão: 02/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CELORICO DA BEIRA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 375.º, N.º 1, E 386.º DO CP
Sumário: IAs Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), no desenvolvimento do seu escopo, não tendo finalidades lucrativas, coadjuvam ou substituem o Estado ou a administração local no desenvolvimento de actividades correspondentes a obrigações fundamentalmente públicas; daí se justifique sejam consideradas pessoas de utilidade pública, desde que devidamente registadas.

II – O facto de gerirem fundos que, pelo menos parcialmente, são procedentes do Estado (directamente entregues ou indirectamente percebidos por força de isenções fiscais), legitima que os seus responsáveis sejam considerados funcionários nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 386.º do CP.

Decisão Texto Integral:









Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

 

Nos autos de processo comum supra referenciados, que correram termos pelo Juízo de Competência Genérica de Celorico da Beira, após julgamento com documentação da prova produzida em audiência foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

(...)

            Pelo exposto, decide-se se julgar a acusação procedente, por provada e, em consequência:

a) Condenar o arguido A., pela prática, como autor material e sob a forma consumada, de um crime de peculato, p. e p. pelos arts. 26.º, 1.ª parte, 375.º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, al. d) do CP, na pena de na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de 2 (dois) anos e 3 (três) meses, subordinada ao dever do arguido entregar à Instituição Particular de Solidariedade Social (…), 15.000,00€ (quinze mil euros), no prazo de vinte e quatro meses a contar do trânsito em julgado da presente decisão, fazendo prova disso nos presentes autos.

b) Condenar o arguido A. no pagamento das custas do processo, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 513.º, n.ºs 1 a 3 do CPP e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III do mesmo Regulamento, fixando-se a taxa de justiça em duas (2) UC.


*

Não se declara perdido a favor do Estado, pelos fundamentos supra expostos, o valor de 15.000.00€.

(…)

           

Inconformado, recorre o arguido retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

1. Insurge-se o Recorrente contra a Sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, que o condenou pela prática, como autor material e sob a forma consumada, de um crime de peculato, p. e p. pelos arts. 26.º, 1.ª parte, 375.º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, al. d) do CP, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de 2 (dois) anos e 3 (três) meses, subordinada ao dever do arguido entregar à Instituição Particular de Solidariedade Social (…), 15.000,00€ (quinze mil euros), no prazo de vinte e quatro meses a contar do trânsito em julgado da presente decisão, fazendo prova disso nos presentes autos, interpondo recurso, de facto e de direito, com reapreciação da prova gravada, para o Tribunal da Relação.

2. Encontra-se errada e incorrectamente julgada a matéria de facto dado como provada nos pontos 4, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14, pelo que não poderiam ter sido dados como provados.

3. Escorrida a motivação da decisão da matéria de facto e o exame crítico da prova produzida, o Recorrente só pode concluir que não foi bem interpretado e entendido no que respeita ao que declarou em sede de audiência de julgamento.

4. Para dar como provados os factos de 4. a 13., o tribunal “a quo” considerou as próprias declarações do Arguido, uma vez que este assumiu que a quantia de €15.000,00 “adveio da conta da Associação e que, como foi operado a um cancro, em 2011, nas suas próprias palavras, “precisava do dinheiro” e “em 2013, deu jeito os 15.000,00€””.

5. O Arguido, em momento algum, proferiu tais palavras, conforme declarações de Arguido, gravadas através do sistema integrado de gravação digital (20190129102649_890079_2870908), disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, desde o minuto 00:00 ao minuto 28:00, conforma acta da audiência de julgamento do dia 29 de janeiro de 2019, declarações que supra se transcrevem parcialmente.

6. Efectivamente, o Arguido assumiu que recebeu os € 15.000,00, e para justificar recordar-se da data em que o pagamento dessa quantia tinha ocorrido, falou na doença oncológica que tinha tido e que, nessa altura passou algumas dificuldades, nomeadamente, financeiras: “foi uma altura em que me fazia falta um bocadinho de recursos.” e não – como se entendeu, mal – como sendo uma desculpa para ter recebido o dinheiro da Associação naquela altura.

7. Mas ainda que assim fosse, tal justificação não teria sido a única apresentada pelo Arguido, tendo referido várias vezes que o pagamento ocorreu em 2013, conforme declarações que supra se transcrevem parcialmente, e porque antes não havia disponibilidade financeira por parte da Associação para efectuar o pagamento, o que foi confirmado por várias testemunhas, conforme depoimento da testemunha (…), gravado através do sistema integrado de gravação digital (20190221100910_890079_2870908), disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, desde o minuto 00:00 ao minuto 55:43, conforma acta da audiência de julgamento do dia 21 de fevereiro de 2019, depoimento que supra se transcreveu parcialmente e conforme depoimento da testemunha (…), gravado através do sistema integrado de gravação digital (201902211120339_890079_2870908), disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, desde o minuto 00:00 ao minuto 41:37, conforma acta da audiência de julgamento do dia 21 de fevereiro de 2019, depoimento que supra se transcreveu parcialmente.

8. Não entende o Recorrente como é que o tribunal “a quo” concluiu que a justificação para o motivo do pagamento foi a sua necessidade dos €15.000,00, porque “precisava do dinheiro” ou “em 2013, deu jeito os 15.000,00 €”, quando aquilo que foi transmitido pelo Arguido foi que se fez pagar dos € 15.000,00, em 2013, porque a situação da Associação era boa, não o tendo feito antes porque isso colocaria em causa a situação financeira da mesma.

9. Aliás, o Arguido tentou, por várias vezes, e só o tendo conseguido após alguma persistência da sua parte, explicar o seu empréstimo de € 15.000,00 à Associação, em 2000, conforme declarações que supra se transcreveram.

10. Ainda assim, o tribunal “a quo” não percebeu o motivo do empréstimo à Associação, não ouvindo o Arguido, ou querendo ouvir outra coisa que não o declarado pelo Arguido, fazendo, desde o início da audiência de julgamento até ao seu fim, tábua rasa do preceituado no número 2 do artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa, "[t]odo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (...)", aliás, conforme se pode confirmar pela audição das declarações de arguido, em que o tribunal “a quo” não se inibiu de ir manifestando opiniões e tecendo comentários donde se podia, claramente, inferir um juízo sobre a culpabilidade, ao arrepio do estipulado no número 2 do artigo 343º do Código de Processo Penal.

11. O Arguido nunca disse que “emprestou” dinheiro aos empreiteiros, às testemunhas (…) e (…) e muito menos, em momento algum, referiu que “emprestou 1.400 contos a um e 1.400 contos a outro”, conforme concluiu o tribunal “a quo”.

12. O Arguido disse que:

Arguido: Eu paguei 1700 contos quase, a um e 1400 a outro.

Senhora Juiz: Não ouvi.

Arguido: Eu paguei 1700 contos, +/-, a um, e 1400 a outro., pelo que, não se percebe como é que o tribunal “a quo” conclui que o crédito era de 2.800 contos e não de cerca de 3000 contos.

14. O Arguido esclareceu, e muito bem, a quem pagou, a que título, substituindo-se à Associação nesses pagamentos, emprestando dinheiro à Associação e não a conhecidos, conforme referido na sentença recorrida.

15. As testemunhas (…) e (…) confirmaram a este tribunal que o pagamento foi feito pelo Arguido, pelas obras realizadas por cada um deles, no edifício da Associação, nos acabamentos do pavilhão, não conseguindo precisar, é certo, a forma e o local do pagamento, o que, aliás, não se estranha, tendo em conta que tal já ocorreu há cerca de 20 anos.

16. Assim, não se entende como pode o tribunal “a quo” dizer que as referidas testemunhas não conseguiram “explicar nem sequer o local em que teriam sido realizadas as obras e que se limitaram a dizer que foram contratados para darem um orçamento?, bastando conferir os depoimentos das testemunhas (…), gravado através do sistema integrado de gravação digital (20190301102248_890079_2870908), disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, desde o minuto 00:00 ao minuto 18:34, conforme acta da audiência de julgamento do dia 1 de março de 2019, e da testemunha (…), gravado através do sistema integrado de gravação digital (20190301104227_890079_2870908), disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, desde o minuto 00:00 ao minuto 14:56, conforme acta da audiência de julgamento do dia 1 de março de 2019, depoimentos que supra se transcreveram parcialmente.

17. A testemunha (…), para além de identificar o local onde foram realizadas as obras, também esclareceu que efectuou a obra de reboco e pintura do edifício da Associação – não se limitando a dizer que foi contratado para dar orçamento, tendo ainda declarado que, apesar de não ter certeza absoluta, terá emitido factura à Associação, mas que decorridos 20 anos, não tem o documento.

18. E até em relação ao montante adiantou que seriam “mil e tal”, sem certezas, é certo, atento o tempo decorrido.

19. Mas também em relação à testemunha (…) se dirá que não é verdade que não tenha conseguido concretizar que obra tinha feito, nem o local.

20. A testemunha quando diz que se “recorda perfeitamente”, conforme transcrito na sentença recorrida, fá-lo em relação ao que andou lá a fazer:

Senhora Juiz: Então recorda-se ou não se recorda?

Paulo: Eu sei que eu fiz lá uma obra para o Sr. Presidente na altura, quando eu…recordo-me perfeitamente do que andei lá a fazer. Fui lá, dei-lhe o orçamento, ele aceitou, e eu fiz-lhe a obra.

21. A referida expressão foi proferida quando a testemunha dizia que sabia bem o que tinha lá ido fazer – que sabia qual tinha sido a obra que tinha ido fazer à associação – não se estando a referir a todos os factos relacionados com esse evento, sendo certo que, quanto ao local e forma do pagamento, assumiu a testemunha não se recordar.

22. Aliás, a resposta genérica da testemunha, às várias vezes que foi perguntado pela obra, entende-se depois, quando responde que o que foi fazer à Associação, “foram os interiores”, na medida em que a testemunha não faz outros trabalhos que não sejam interiores, pelo que, na sua cabeça era óbvia a resposta que, por isso, tardou em chegar.

23. Pelo exposto, não poderia ter sido dado como provado, sem o mínimo de certeza e segurança, no ponto 4., que o arguido tenha depositado o cheque em causa nos presentes autos, “sem motivo justificativo e em proveito próprio”, bem como não deveria ter sido dado como provado, sem o mínimo de certeza e segurança, no ponto 6., que o Arguido “não era credor” da Associação.

24. Mais, referiu o Arguido que, em 2000, não havia Contabilidade Organizada e que, quem fazia a contabilidade era ele e os outros elementos da Associação.

25. Sendo uma IPSS deveria estar sujeita a Contabilidade Organizada, o que não quer dizer que estivesse.

26. O facto de existir uma obrigação legal de ter Contabilidade Organizada não quer dizer, per si, que a Associação tivesse essa Contabilidade.

27. Assim sendo, não podia o tribunal “a quo” fundamentar a sua decisão da seguinte forma: “A testemunha (…), como já dissemos, contabilista da Associação de 2003 a 2016, prestou um depoimento credível e sincero, referindo que, quando chegou à Associação, a mesma já tinha contabilidade organizada e que, por isso, não confirmou os dados para trás e que, em 2013”, na medida em que, como se viu, isso não corresponde ao declarado pela testemunha (…).

29. Entende-se na sentença recorrida que uma acta não é um documento contabilístico.

30. Ora, tal não resulta da prova produzida, nomeadamente, dos depoimentos das testemunhas (…), gravado através do sistema integrado de gravação digital (20190221100910_890079_2870908), disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, desde o minuto 00:00 ao minuto 55:43, conforma acta da audiência de julgamento do dia 21 de fevereiro de 2019, e da testemunha (…), gravado através do sistema integrado de gravação digital (201902211120339_890079_2870908), disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, desde o minuto 00:00 ao minuto 41:37, conforme acta da audiência de julgamento do dia 21 de fevereiro de 2019, depoimentos que supra se transcreveram parcialmente.

31. Assim não se pode concluir outra coisa, perante a prova produzida, que não se poderia ter dado como provado, sem o mínimo de certeza e segurança, no ponto 7., que o motivo do pagamento não se encontra justificado e suportado documentalmente na contabilidade da referida Associação.

32. E entendendo o Recorrente, pelos fundamentos expostos, que o motivo do pagamento se encontra justificado e suportado documentalmente na contabilidade da referida Associação, não poderia, igualmente, ter-se dado como provado, no ponto 8., que o acrescento dos dizeres na Acta n.º 2000, foi feito “para tentar justificar tal pagamento”.

33. No que respeita às actas, da perícia feita não se apurou se foi o Arguido que acrescentou dizeres à acta, nem se concluiu se os dizeres foram acrescentados e tendo-o sido, se o foram em data posterior à sua elaboração.

34. Logo, não poderia o tribunal “a quo” ter concluído como o fez, pois tanto o Arguido, como as testemunhas contabilistas afirmam que, assim que foi detectada a saída dos € 15.000,00 e questionado o Arguido sobre a justificação, este, de forma célere, entregou a documentação, tendo respondido logo, ao telefone que tinha os documentos, nomeadamente, as actas que justificavam o pagamento.

35. O Arguido não teve tempo de “engendrar” um plano para “falsificar” as actas e entregá-las à Contabilidade.

36. Quanto à Acta n.º 62/2013, o tribunal deu como provado que a reunião que deu origem a esta acta nunca ocorreu, baseando-se no depoimento da testemunha (…), a mesma que referiu em julgamento, nunca ter redigido qualquer acta da Direcção e que assinava de cruz todas as actas.

37. Acontece que, confrontado com a Acta 28 do Livro de Actas da Direcção a testemunha assumiu ter a mesma sido redigida por si, conforme depoimento da testemunha (…), gravado através do sistema integrado de gravação digital (20190221100910_890079_2870908), disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, desde o minuto 00:00 ao minuto 11:38, conforma acta da audiência de julgamento do dia 21 de fevereiro de 2019, depoimento que supra se transcreveu parcialmente, pelo que, muito se estranha a credibilidade dada à testemunha.

38. Ora, não havendo facturas, declaração de dívida ou qualquer outro documento que titulasse o crédito do Arguido à Associação, as actas eram os únicos documentos que o Arguido tinha para justificar o pagamento, sendo certo que, não obstante não estar obrigado a tal, ia dando conhecimento da dívida aos membros da Associação, ora de forma verbal, ora através da acta de 2000, algo que o tribunal “a quo”, não conseguiu perceber, apesar de bem esclarecido, conforme declarações de Arguido, gravadas através do sistema integrado de gravação digital (20190129105502_890079_2870908), disponível na aplicação informática em uso neste tribunal, desde o minuto 00:00 ao minuto 1:01:45, conforma acta da audiência de julgamento do dia 29 de janeiro de 2019, declarações que supra se transcreveram parcialmente.

39. Por tudo isto, entende o ora Recorrente que não se poderia ter dado como provado, os pontos 9. a 14. da sentença recorrida.

40. Perante isto, não se poderia, com o mínimo de grau de certeza exigível, dar como provada a factualidade vertida nos pontos 4., 6., 7., 8., 9., 10., 11., 12., 13. e 14. dos factos provados, não se sustentando assim a condenação do arguido, aqui recorrente, pela prática do crime de peculato.

41. Acresce que, vem o arguido condenado da prática de um crime de peculato, previsto e punido pelo número 1 do artigo 375º do Código Penal.

42. Os factos em causa nos presentes autos ocorrem em 2013 e, em momento algum, nos factos dados como provados, se refere que qualidade assumia o Arguido, na Associação, à data da prática dos factos.

43. Entendendo o recorrente que não se encontram preenchidos os elementos do tipo de ilícito objectivo, nomeadamente de o agente ser funcionário, para efeitos do disposto no artigo 386º do Código Penal.

44. Primeiro, porque não consta dos factos provados, em que qualidade é que (…) depositou o cheque na sua conta pessoal, em 2013.

45. Segundo, entende o Recorrente que, mesmo que fosse na qualidade de Presidente, o que, de resto, não resultou provado, o Presidente da Direcção da (…) não pode ser considerado funcionário para efeitos do disposto no artigo 386º do Código de Penal.

46. Para além disso, entende que não se provou a apropriação ilegítima, tendo o Arguido, enquanto credor da quantia de € 15.000,00 à Associação, recebido, legitimamente, na sua conta bancária pessoal, a referida quantia para pagamento da dívida, contraída pela Associação, em 2000.

47. Assim, impunha-se, também, por esta parte a absolvição do Recorrente.

SEM PRESCINDIR,

48. No que respeita à determinação da medida da pena deverá, sempre, a presente decisão ser revogada, na medida em que violou o disposto nos artigos 40º, 71º e 72º do Código Penal.

49. O arguido não regista antecedentes criminais, o que justifica as reduzidas necessidades de prevenção especial aferidas pelo tribunal “a quo”.

50. Quanto ao grau de ilicitude dos factos e o modo de execução o tribunal entende que são medianos, não obstante o dolo revestir a forma de dolo directo.

51. Perante isto, entende o Recorrente que, a aplicação da pena de prisão de dois anos e três meses se revela excessiva.

52. Poder-se-ia ter atenuado especialmente a pena, nos termos do disposto no artigo 72º do Código Penal, na medida em que os factos ocorreram em 2013, e o Arguido, nem antes, nem depois, praticou factos semelhantes, mantendo sempre boa conduta.

53. A Associação de (…) existe e mantém-se, ao longo de 27 anos, graças ao trabalho, esforço e dedicação do Recorrente.

54. Tem um património imobiliário de cerca de € 500.000,00, com caixa corrente de cerca de € 35.000,00, tendo uma situação económico-financeira boa.

55. Assim sendo, entende o Recorrente que, caso V. Exas. decidam pela sua condenação, o será suficiente e adequado por pena de prisão inferior a 2 anos, suspensa na sua execução, como o foi.

56. Quanto à suspensão da execução da pena de prisão, subordinada à entrega à Associação de (…), o Recorrente, atentas as condições económicas do mesmo, declaradas em sede de julgamento e dadas como provadas, não conseguirá dar cumprimento ao decidido.

57. Dividindo os € 15.000,00 por 24 meses, perfaz a quantia mensal de € 625,00.

58. O Arguido não aufere isso mensalmente de reforma (€ 618,00), pelo que, é impossível ao Arguido proceder à entrega desta quantia, representando para o condenado uma obrigação cujo cumprimento não é razoável de se lhe exigir, ao arrepio e clara violação do estipulado no número 2 do artigo 51º do Código Penal, o que se invoca.

59. Termos em que, deverá ser a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que determine uma pena de prisão inferior a dois anos, suspensa na sua execução, sem subordinação ao cumprimento deveres ou observância de regras de conduta, nomeadamente, entrega de uma quantia que o Recorrente não tem capacidade económica para suportar.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. Doutamente suprirão, requer-se a absolvição do Arguido da prática do crime de peculato, atentos os fundamentos acima invocados.

SEM PRESCINDIR, caso V. Exas. assim não o entendam, requer-se a revogação da sentença recorrida no que, à determinação da pena e à suspensão da execução da pena subordinada à entrega de € 15.000,00, durante o prazo de 24 meses, diz respeito.

            O M.P., na sua resposta, pronunciou-se pela improcedência do recurso.

Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se também pela improcedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais.

O âmbito do recurso, segundo jurisprudência constante, afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, donde se segue que no caso vertente há que conhecer do seguinte:

- Ausência de verificação dos requisitos do tipo legal de crime imputado ao arguido, por este não deter a qualidade de “funcionário”;

- Impugnação do julgamento de facto no que concerne aos factos assentes sob os nºs 4, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14.

- Atenuação especial da pena;

- Excesso da medida da pena;

- Excesso da condição imposta para a suspensão da execução da pena.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

            1. Através das actas n.ºs 1 e 2/1992, estando em vigor a versão inicial dos Estatutos, designou-se o arguido como presidente (vitalício) da Associação de (…).

2. A Associação de (…), primeiramente, desde 10.12.1997 e, depois, desde 27.06.2013, encontra-se registada como instituição particular de solidariedade social (IPSS) no livro n.º (…) das Associações de Solidariedade Social, a fl. 45 verso, respectivamente, sob a inscrição n.º (…) e sob o averbamento n.º (…) à inscrição n.º (…).

3. Na sequência da alteração dos estatutos, as eleições para os órgãos sociais da Associação de (…), ocorreram, pela primeira vez, no ano de 2007, tendo sido o arguido (…) eleito presidente da Direcção.

4. No dia 24.07.2013, o arguido depositou, na sua conta bancária pessoal, sedeada na CGD, com o n.º (…), o cheque n.º (…), emitido a 18.07.2013, sacado sobre uma conta bancária titulada pela Associação de (…), no valor de 15.000.00€ (quinze mil euros), sem motivo justificativo e em proveito próprio.

5. O referido cheque encontra-se assinado pelo arguido e por (…).

6. O arguido (…) não era credor de qualquer importância devida pela Associação de (…).

7. O motivo do pagamento mencionado no ponto 4 não se encontra justificado e suportado documentalmente na contabilidade da referida Associação.

8. Para se tentar justificar tal pagamento, em data não concretamente apurada, por pessoa que não foi possível identificar, fez-se constar na Acta n.º (…) do livro de actas da referida Associação os seguintes dizeres: “e tomar conhecimento do empréstimo de 3.000.000$00 do (…) à Associação para as obras a realizar a pagar ao credor quando for possível após as obras.”

9. É visível a diferença de letra e tinta utilizada na Acta (original) n.º (…) do respectivo livro, cuja cópia consta de fl. 356 dos autos, bem como que tais dizeres foram acrescentados em data posterior à sua elaboração.

10. Tal facto serviu para, no dia 18.07.2013, data da emissão do referido cheque, se fazer constar falsamente da Acta n.º (…), redigida e assinada pelo arguido, o motivo de tal pagamento, ou seja, o referido cheque serviria para o pagamento do valor indicado na Acta n.º (…).

11. A reunião a que se refere a Acta n.º (…) nunca se realizou.

12. O arguido (…) agiu sempre com o propósito concretizado de, ilegitimamente, se apropriar de tal quantia em dinheiro, em proveito próprio, no valor de 15.000.00€, que lhe era acessível em virtude das funções que exercia como Presidente, bem sabendo que tal quantia não lhe era devida, nem se encontrava justificada documentalmente.

13. Sabia o arguido que tal quantia não se destinava ao pagamento de quaisquer serviços ou montantes pecuniários por si efectuados em empréstimo àquela Associação que presidia e que se destinava apenas para seu uso pessoal e em prejuízo daquela.

14. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

15. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

16. O arguido encontra-se reformado, auferindo 618,00€ de reforma.

17. O arguido vive com a esposa, em casa própria.

18. O arguido (…) tem a 4.ª classe completa.

19. O arguido foi director de serviço da Associação de (…), em 2009, recebendo, a esse título, 400,50€ líquidos, pelo menos, no mês de Novembro 2009.

20. O arguido foi motorista da Associação de (…), em 2014, recebendo, a esse título, 717,14€ líquidos, pelo menos, no mês de Janeiro de 2014.


Relativamente ao não provado, foi consignado o seguinte:
Com interesse para a boa decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente que:
1. As eleições para os órgãos sociais da Associação de (…) ocorreram, pela primeira vez, por volta do ano de 2000.
2. O arguido actuou sempre no e para o interesse da Associação de (…).
3. O cheque depositado na conta do arguido, no valor de 15.000.00€, foi por conta de um crédito dele sobre a Associação.
4. O arguido adiantou do seu “bolso” a referida quantia para aquisição de algum material para a construção do 1.º pavilhão da Associação que ocorreu entre os anos de 1996 e 2000.
5. O arguido não detém qualquer factura ou recibo referente à aquisição desse material, uma vez que tais documentos não foram emitidos pelos fornecedores.
6. O arguido, com o depósito da quantia de 15.000.00€, apenas quis ser ressarcido do montante que havia emprestado à Associação.

*
Consigna-se que o demais alegado na contestação do arguido (…) é matéria de direito, conclusiva ou sem interesse para a decisão da causa

O julgamento de facto foi fundamentado nos seguintes termos:
(…).
                                                           *

            Vejamos então as questões suscitadas pelo recorrente começando desde logo, por uma questão de lógica racionalidade, pela invocada falta de verificação da qualidade de funcionário, na medida em que tal qualidade condiciona o funcionamento do tipo legal de crime imputado ao recorrente e pelo qual este foi condenado.

            O Código Penal prevê o crime de peculato no art. 375º, nº 1. Releva para o caso a versão vigente à data da prática dos factos, consolidada pela Declaração n.º 73-A/95, de 14 de Junho, em cujos termos “O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

            Decorre da formulação do tipo legal que a verificação deste crime pressupõe uma determinada qualidade do agente, a de funcionário, bem como uma especial relação do agente com o objecto do crime, sendo necessário que em razão das suas funções, o bem lhe tenha sido entregue, tenha a posse do bem ou aquele lhe seja acessível. Para uma melhor aproximação ao tipo legal de crime utilizaremos as palavras de Conceição Ferreira da Cunha: É dupla a protecção concedida pelo tipo legal de peculato: por um lado, tutela bens jurídicos patrimoniais, na medida em que criminaliza a apropriação ou oneração ilegítima de bens alheios; por outro lado, tutela a probidade e fidelidade dos funcionários para se garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração, ou, por outras palavras, a “intangibilidade da legalidade material da administração pública” (FIGUEIREDO DIAS, Actas 1993 438), punindo abusos de cargo ou função. Assim, o peculato integra dois elementos: o crime patrimonial e o abuso duma função pública (ou equiparada, nos termos do art. 386°) [1].

            O conceito de funcionário para os efeitos previstos na lei penal é o explicitado no art. 386.º do Código Penal, sendo à luz deste normativo que haverá que verificar se o ora recorrente detém ou não a qualidade de funcionário para efeitos de imputação do crime de peculato.

Dispõe esse artigo, para os efeitos que agora relevam:

1 - Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:

(…)

d) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.

            (…)

            Sustenta o recorrente que o Presidente da Direcção da Associação de (…) não pode ser considerado funcionário para efeitos do disposto no artigo 386º do Código de Penal. Estriba-se para o efeito na restritiva posição de Damião da Cunha (in «O Conceito de Funcionário para Efeito de Lei Penal e a “Privatização” da Administração Pública»), que entende não estarem compreendidos no conceito alargado de funcionário previsto no art. 386º do Código Penal as entidades privadas, empresariais ou institucionais, ainda que exerçam poderes públicos. Não acompanhamos, no entanto, esta posição, pelas razões que adiante explanaremos.

            Segundo o provado, a Associação de (…), primeiramente, desde 10.12.1997 e, depois, desde 27.06.2013, encontra-se registada como instituição particular de solidariedade social (IPSS) no livro n.º (…) das Associações de Solidariedade Social, a fl. (…), respectivamente, sob a inscrição n.º (…) e sob o averbamento n.º (…) à inscrição n.º (…).

            O regime jurídico das IPSS – Instituições Particulares de Solidariedade Social, consta do DL nº 119/83, de 25 de Fevereiro, sucessivamente alterado e republicado com as alterações introduzidas pelo DL nº 172-A/2014, de 14 de Novembro. Estabelece o art. 7º daquele diploma que o registo das instituições particulares de solidariedade social é obrigatório e deve ser efectuado nos termos regulamentados pelas respectivas portarias. Por seu turno, dispõe o art. 8º que as instituições registadas nos termos regulamentados pelas respectivas portarias adquirem automaticamente a natureza de pessoas colectivas de utilidade pública.

            A opção do legislador assenta em razões que se intuem sem dificuldade de maior.  O Estado português, desde longa data sobreendividado e debatendo-se com uma sistemática escassez de recursos, está, no entanto, constitucionalmente comprometido com a prossecução e desenvolvimento de toda uma série de finalidades de natureza social no domínio da promoção da saúde, protecção na infância e na velhice, entre muitas outras. O reconhecimento da sua incapacidade de corresponder integralmente às obrigações próprias de um Estado social de direito ditaram a necessidade de recurso às instituições de natureza particular que prosseguiam finalidades de solidariedade social. As IPSS, no desenvolvimento do seu escopo, não tendo finalidades lucrativas, coadjuvam ou substituem o Estado ou a administração local no desenvolvimento de actividades que correspondem a obrigações fundamentalmente públicas, o que justifica que sejam consideradas pessoas colectivas de utilidade pública desde que devidamente registadas. As actividades de solidariedade social que desenvolvem estão normalmente enquadradas por acordos ou protocolos de cooperação com o Estado, permitindo o acesso a isenções fiscais e a outros apoios financeiros.  É precisamente o facto de gerirem fundos que, pelo menos parcialmente, são procedentes do Estado (directamente entregues ou indirectamnte percebidos por força de isenções fiscais) e se destinam ao desenvolvimento de uma função que ao Estado compete primordialmente, que justifica que os seus responsáveis sejam considerados funcionários para efeito de aplicação da lei penal, pelo menos no que respeita à gestão dos fundos da instituição. Na medida em que lhes são confiados fundos públicos para aplicação no desenvolvimento da actividade da instituição que dirigem, justifica-se que respondam pela sua gestão do mesmo modo que responderia um funcionário administrativo do Estado.

            A posição sustentada pelo Prof. Damião da Cunha, a que o recorrente se reporta e a que acima se aludiu, procura introduzir uma visão redutora do conceito de funcionário, que quanto a nós não tem acolhimento no art. 386º do Código Penal, cuja redacção foi animada precisamente por propósitos ampliativos daquele conceito, na senda das directrizes internacionais que vinham sendo estabelecidas nesse sentido.  Aliás, a parte final da al. d) do nº 1 daquele artigo refere-se expressamente a quem desempenhar funções em organismos de utilidade pública. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, o organismo de utilidade pública é a pessoa coletiva de direito privado que é objeto de declaração de utilidade pública, precisamente porque a declaração de utilidade pública reconhece a “cooperação” desta pessoa coletiva no exercício da função pública da Administração, nos termos do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 460/77, de 7.11, como por exemplo, as pessoas coletivas de mera utilidade pública, as pessoas coletivas de utilidade pública administrativa e as instituições particulares de solidariedade social (…).[2]

            O recorrente questiona ainda a aplicabilidade da norma ao caso concreto, sustentando não se ter demonstrado se agiu na qualidade de presidente da associação. Falsa questão, diremos nós. Desempenhando o recorrente à data da prática dos factos as funções de presidente da Associação de (…) e estando esta associação regularmente registada como instituição particular de solidariedade social (IPSS), logo, detendo a natureza de pessoa colectiva de utilidade pública, tem plena aplicação o disposto no art. 386º, nº 1, al. d), do Código Penal, devendo o recorrente, enquanto presidente daquela associação, ser considerado funcionário para efeitos de aplicação da lei penal. Saber se agiu ou não na qualidade de presidente quando se “pagou” de uma suposta dívida é questão que não tem cabimento nem tinha que ser demonstrada, contrariamente ao que parece pretender o recorrente, pois que aquele não pode “vestir” a qualidade de presidente da associação para uns actos e “despi-la” para outros.

Vejamos agora a segunda das questões enunciadas, qual seja, a impugnação do julgamento de facto no que concerne à matéria assente sob os nºs 4, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14. Ora, se é certo que o recorrente tem razão no que concerne a algumas questões de pormenor relativas à fundamentação do provado, a matéria de facto, tal como foi descrita no provado, não resulta afectada, como se verá:

Desde logo, insurge-se o recorrente contra a fundamentação do provado na parte em que se menciona que como foi operado a um cancro, em 2011, nas suas próprias palavras, “precisava do dinheiro” e “em 2013, deu jeito os 15.000,00€”. Segundo alega, as suas declarações não terão sido bem interpretadas, na medida em que assumiu que efectivamente recebeu os € 15.000,00, afirmando que “foi uma altura em que me fazia falta um bocadinho de recursos”, mencionando que a Associação já lhe devia o dinheiro há muito tempo e a referência à doença e às dificuldades dela decorrentes teve apenas em vista justificar a lembrança da data em que se realizou o pagamento da Associação ao Arguido, não se tendo tratado de uma desculpa para ter recebido o dinheiro da Associação naquela altura. Por outro lado, também não foi essa justificação a única apresentada, já que o arguido referiu que o pagamento ocorreu em 2013 porque antes não havia disponibilidade financeira por parte da Associação para efectuar o pagamento, mas que em 2013, finalmente, as condições económicas e financeiras da Associação eram boas.

É certo que as afirmações apresentadas entre aspas na fundamentação do provado como sendo do arguido, “precisava do dinheiro” e “em 2013, deu jeito os 15.000,00€”, não correspondem a afirmações por ele proferidas nesses precisos termos, ainda que correspondam ao sentido das suas declarações em resposta ao que lhe foi sendo perguntado. O sentido útil do afirmado pelo arguido é precisamente o de que na sequência da doença oncológica (foi operado a um cancro ao estômago em 2011 e depois piorou, tendo estado muito mal durante mais de um ano) precisava de recursos financeiros e no ano de 2013 a associação tinha condições para lhe pagar essa quantia.

Segundo o recorrente, o tribunal não terá compreendido o sentido das suas afirmações. Contudo, basta atentar no texto imediatamente subsequente para se verificar que o sentido do afirmado pelo arguido e a ideia que aquele pretendia transmitir foram perfeitamente compreendidos; apenas se não aceitou a bondade de tais afirmações, em função da demais prova produzida, disso se dando conta nos seguintes termos: «Saliente-se que as justificações apresentadas pelo arguido para o motivo desse “pagamento” não colhem minimamente, não tendo sido corroboradas nem sequer, como veremos, pelas testemunhas por ele indicadas, na contestação apresentada, não se coadunando com as regras de experiência comum e, demonstrando, até, se atendermos à própria situação relatada, o seu contrário, ou seja, que, efectivamente, como resultou provado, o “pagamento” mencionado não teve motivo justificativo.».

Prossegue o recorrente insurgindo-se contra a fundamentação do provado na parte em que se afirma que  «Perguntado pelo Tribunal pelo crédito que teria sobre a Associação, respondeu o arguido – de modo peremptório e assertivo, mas não crível – que, em 2000, faltavam os acabamentos para o primeiro pavilhão da Associação e que, como “não havia dinheiro” da mesma, o arguido, do seu “bolso”, “emprestou 1.400 contos a um e 1.400 contos a outro” (o que faz 2.800 contos, não percebendo o Tribunal porque motivo então o crédito do arguido sobre a Associação seria de 3.000 contos e não de 2.800 contos), em dinheiro, no interior do pavilhão, às testemunhas (…) e (…) (não existindo, como admitiu o arguido, documento comprovativo disso mesmo) para acabarem os “rebocos e os acabamentos de janelas”.

Ora, tal justificação também não colheu.

Em primeiro lugar, como já dissemos, 2.800 contos não são 3.000 contos.

Em segundo lugar, o arguido afirmou, como vimos, peremptoriamente, que “emprestou 1.400 contos a um e 1.400 contos a outro” quando, alegadamente, estaria em causa um empréstimo à Associação e não a dois seus conhecidos, não conseguindo o Tribunal perceber então a quem teria sido efectuado tal empréstimo.»

Não restam dúvidas sobre a razão que ao recorrente assiste neste particular aspecto. O que resulta da prova gravada é que o arguido afirmou «paguei mil e setecentos contos, mais ou menos, a um e mil e quatrocentos a outro». O tribunal recorrido confundiu de algum modo os valores indicados pelo arguido. Mas mais do que isso, confundiu também as declarações do arguido quando identifica aqueles valores como empréstimos a (…) e a (…), porque o arguido não afirmou que lhes «emprestou» aqueles valores, mas sim que os «pagou». Na verdade, respondendo a pergunta da Mmª Juiz, «O senhor em 2000 emprestou três milhões de escudos?», o arguido respondeu «paguei obras com o valor de três milhões de escudos». E mais adiante, «e como não havia dinheiro, eu paguei-lhes. Emprestei esse dinheiro. Fui eu que lhes paguei a despesa para concluirmos a obra».». O claro sentido das afirmações do arguido é o de que emprestou dinheiro à associação, traduzindo-se esse empréstimo nos pagamentos a (…) e a (…) pelas obras que estes supostamente teriam efectuado no pavilhão da associação.

No que concerne aos aspectos relativos à contabilidade, ouvido o depoimento prestado pela testemunha (…), importa registar que confirmou ter prestado serviços à associação a partir de 2003, referindo que quando iniciou a contabilidade da associação não foi verificar a correcção dos números que estavam para trás. A testemunha era contabilista, não era auditor, como ela própria referiu, e não pôs em causa a bondade dos elementos que lhe foram entregues. Receberam o histórico da contabilidade, que incluía os elementos referentes ao dinheiro em caixa, fornecedores e credores e o arguido (…) não figurava como credor da associação. Em 2013 detectaram (a testemunha usou o plural, explicando depois que trabalhava com colaboradores) o movimento dos € 15.000 num extracto bancário, suscitaram-se dúvidas relativamente a esse pagamento e pediram informações ao ora arguido, que disse que a divida existia e que ia procurar documentação. Como aquele facultou ulteriormente cópia das actas de 2000 e de 2013 e cópia do cheque, com base nesses documentos fizeram o lançamento. Do ponto de vista contabilístico, para a testemunha, a despesa estava justificada.

Do depoimento desta testemunha, resultam ainda três outros elementos relevantes:

- Quando lhe entregaram as contas, não havia contabilidade organizada; a contabilidade era feita pela própria associação (cfr. detalhe no minuto 48 e ss. do seu depoimento);

- Nos primeiros anos em que a testemunha trabalhou para a associação, verificou que esta tinha dificuldades financeiras; até ter um lar de idosos, tinha muitas dificuldades financeiras; depois de ter o lar, com os utentes e com as comparticipações, deixou de as ter.

- O arguido (…) disse-lhe várias vezes que tinha dado muito à associação, que se tinha esforçado muito, mas nunca lhe disse que tinha emprestado dinheiro à associação (e tratando-se de um montante considerável é, no mínimo, estranho, que a ser verdade, o arguido nunca o tivesse mencionado).

É certo que a audição deste depoimento permite concluir pela razão que assiste ao recorrente quando afirma que o tribunal a quo cometeu lapso assinalável ao escrever na sentença recorrida que a testemunha (…), (…), referindo que, quando chegou à Associação, a mesma já tinha contabilidade organizada e que, por isso, não confirmou os dados para trás. Na verdade, segundo o depoimento a que nos reportamos, nem havia contabilidade organizada no momento em que a testemunha iniciou funções como contabilista, nem, logicamente, o facto de a testemunha não ter verificado os movimentos anteriores ao seu início de funções se deveu à existência de contabilidade nesses termos (questão distinta, também abordada na fundamentação, é a da obrigação de a associação, àquela data, ter a obrigação legal de manter uma contabilidade organizada).

É certo que as desconformidades apontadas traduzem erro de valoração da prova. São, no entanto, erros circunscritos, que não inquinam a valoração da prova na sua totalidade e não contendem com a fixação do provado, uma vez que o reflexo destes erros de valoração na matéria de facto que o tribunal veio a ter como assente é nulo. Ou seja, dito de outro modo, ainda que a valoração consignada na sentença tivesse considerado correctamente os depoimentos a que acima nos referimos, sem os erros de percepção que se assinalaram, nem por isso a conclusão a retirar para a fixação do provado seria diversa.

De resto, ressalvadas estas questões pontuais, a prova foi genericamente bem apreciada, nomeadamente, se vista no seu conjunto e de acordo com as regras da experiência comum. Não passa despercebido que o recorrente, sem prejuízo da razão que lhe assiste em aspectos de pormenor, utiliza a impugnação da matéria de facto provada para pôr em crise o modo de formação da convicção do tribunal, objectivo que está manifestamente para além do consentido por esta forma de impugnação. Na verdade, fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP – que não é o caso dos presentes autos – o  recurso relativo à matéria de facto visa apenas verificar e, porventura, suprir eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância. Nessa sindicância da prova, o tribunal de recurso não procura encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e que em recurso é levada ao seu conhecimento. Note-se que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º do CPP, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação. Aliás, vem sendo sucessivamente reiterado pela jurisprudência dos tribunais superiores que quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum.

No caso vertente, analisados os factos provados à luz da fundamentação do provado e analisada a prova produzida, nomeadamente, a indicada pelo recorrente, constata-se que excepção feita aos aspectos de que acima demos conta, e cuja menção na sentença revela efectiva desconformidade com as declarações e depoimentos produzidos em audiência, o tribunal recorrido valorou a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, retirando as conclusões pertinentes, nada autorizando a substituição daquela que foi a sua convicção pela opinião relativa à prova que vem expressada pelo recorrente. A interpretação pessoal que este manifesta relativamente ao significado da prova produzida, expressa uma impugnação atomística que procura rebater o provado e a respectiva fundamentação quase que palavra por palavra, é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido decidiu em matéria de facto, já que não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum nem se detecta que tenha havido erro na apreciação que a 1ª instância fez da prova susceptível de influir na matéria que teve como assente.

As questões de pormenor suscitadas pelo recorrente não conseguem desmentir aquilo que constitui o cerne da questão que foi levada ao conhecimento do tribunal na acusação deduzida: a total ausência de justificação para a emissão do cheque de € 15.000 e subsequente depósito na conta do ora recorrente. Por mais que este se esforce por garantir que a associação tinha uma dívida para consigo e que esta estava devidamente reconhecida pelas actas da Assembleia Geral que apresentou, a verdade é que tal dívida não tem suporte documental na contabilidade da associação. Nem se diga, como insistentemente o faz o recorrente, que está documentalmente demonstrado pela acta nº 17/2000 e pela acta nº 62. Para os contabilistas que questionaram o ora recorrente sobre as razões da emissão do cheque de €15.000, aqueles documentos bastaram. Como bem referiu a testemunha (…), era contabilista, não era auditor. Não lhe competindo pôr em causa o que lhe era transmitido pela direcção da associação, considerou justificado o pagamento. Simplesmente, a menção constante da acta em apreço, nos termos verificáveis a olho nu, era de molde a levantar todas as suspeitas sobre a sua autenticidade. Aquilo que bastou para o contabilista da associação considerar justificado o pagamento, pelas razões que mencionou no seu depoimento, não bastou para o tribunal de 1ª instância considerar justificada a existência da dívida. A prova, no seu conjunto, evidencia as vicissitudes de que padecem as actas nº 17 e nº 62, a ausência de comprovação documental de uma dívida da associação ao arguido, bem como a inconsistência da prova testemunhal a esse respeito produzida. A apreciação conjunta das declarações e depoimentos produzidos, analisados a par da prova documental, a consistência dos depoimentos e as suas inconsistências, tudo valorado de uma forma objectiva e racional, atendendo não apenas ao que directamente se demonstrou como ao que por intermédio de presunção judicial se atinge, não deixam dúvidas relativamente ao sentido da prova e ao bem fundado do raciocínio que subjaz à fundamentação do provado.

Não se vê, pois, que a matéria de facto provada esteja inquinada por erro de julgamento, razão pela qual essa matéria se terá por definitivamente assente.

Apreciemos de seguida a pena imposta ao recorrente em primeira instância, posto que este a impugna, considerando-a excessiva, pugnando ainda pela sua atenuação especial.

O recorrente foi condenado em primeira instância numa pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de 2 (dois) anos e 3 (três) meses, subordinada ao dever de entregar à Instituição Particular de Solidariedade Social “Associação de (…), 15.000,00€ (quinze mil euros), no prazo de vinte e quatro meses a contar do trânsito em julgado da decisão, fazendo prova disso nos presentes autos.

A pena abstracta prevista para o crime de peculato é a de prisão de 1 (um) a 8 (oito) anos.

Esta pena não pode beneficiar de atenuação especial, como é pretendido pelo recorrente, visto não estarmos perante caso de atenuação especial expressamente previsto na lei nem existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, conforme se prevê no art. 72º do código Penal.

Entrando agora no domínio da determinação da pena, importa começar por referir que no direito penal português contemporâneo, sobretudo desde a revisão do Código Penal operada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, o fundamento legitimador da pena, qualquer que ela seja, reside na prevenção. Este diploma abraçou decididamente finalidades exclusivamente preventivas para a aplicação das penas e das medidas de segurança, deixando à culpa o papel de pressuposto da pena e de limite máximo da sua medida, consagrando assim uma concepção preventivo-ética da pena (preventiva, por ser a prevenção o fim legitimador da pena; ética, por esse fim preventivo ser condicionado e limitado pela exigência da culpa).

Em consonância com essa opção dispõe o art. 40º, nº 1, do Código Penal, que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Partindo dos limites definidos na lei, a pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia deponham a favor do agente ou contra ele, ponderando, nomeadamente, as exemplificativamente previstas nas alíneas a) a f) do nº 2 do art. 71º.

As exigências de prevenção afirmam-se numa dupla vertente, as de prevenção geral e as de prevenção especial, assumindo cada uma delas uma específica função.

Destinatários da prevenção geral são todos os membros da comunidade jurídica, (excluído o arguido, especificamente visado pela prevenção especial) e é por recurso às exigências decorrentes da prevenção geral positiva  que se determina o limite mínimo da pena admissível para o caso concreto, visto que a garantia da manutenção da confiança da comunidade na validade da norma  e a dissuasão de potenciais infractores exige um mínimo de punição, variável em função do contexto e do momento histórico, capaz de satisfazer aquela dupla função.

Por seu turno, a prevenção especial, respeitante ao próprio arguido, acumula uma função de ressocialização do delinquente a uma outra, de dissuasão da prática de futuros crimes. Intervém na graduação da pena, funcionando entre o mínimo reclamado pelas exigências de prevenção geral e o máximo consentido pela culpa (cfr. arts. 40º, nº 2 e 71º, nº 1), como factor de determinação do quantum   de pena necessário à ressocialização (entendida como adesão do agente aos valores comunitariamente postergados) e à prevenção da reincidência (que se atinge através duma pena doseada em moldes de representar um sacrifício de tal forma penoso que o agente não quererá repetir).

Assim, desde logo, há que atender à circunstância de o arguido ter actuado com dolo, na sua modalidade mais grave - dolo directo – ainda que a intensidade do dolo não ultrapasse a mediania.

A ilicitude dos factos evidencia-se num grau significativo, atento o significado pecuniário da quantia apropriada à luz do que essa quantia representa para o comum das pessoas.

A ausência de antecedentes criminais deverá ser valorada a favor do arguido, mitigando as exigências de prevenção especial.

Por seu turno, as razões de prevenção geral relativamente ao crime de peculato são significativas, tanto quanto é certo que segundo o Relatório de Segurança Interna 2018 (o mais recente disponível; o relativo a 2019 só deverá ser publicado dentro de alguns meses) no domínio dos crimes de peculato registou-se em 2018 um aumento de 61%, verificando-se que embora o número de crimes participados seja relativamente baixo, é um dos crimes com maior aumento em termos absolutos.

Sabido que o processo de concretização da pena não é aritmético, mas jurídico, os tribunais superiores, ao sindicarem a medida da pena imposta não verificam se a pena corresponde a um rigoroso quantum, mas sim se a pena se encontra dentro da estreita faixa penal determinadas por recurso aos critérios legais. Nesta linha de desenvolvimento, uma primeira constatação é a de que as exigências de prevenção geral positiva relativamente ao tipo de crime ora em análise, ponderada a frequência da sua verificação, e sobretudo o súbito aumento da verificação deste tipo de crime, reclamam para a tutela dos valores jurídico-criminais protegidos um mínimo de pena situado num patamar que se afaste decididamente dos mínimos legalmente previstos.

Por seu turno, a medida da culpa, aferida à luz das circunstâncias concretas do caso, atendidas ainda as demais circunstâncias, nomeadamente, as referentes às condições pessoais do arguido tal como descritas na matéria de facto, impede que no caso concreto se ultrapasse uma fasquia que situaremos na orla dos três anos.

Dentro destes limites e em função das reduzidas exigências de prevenção especial concretamente verificadas, há que concluir que a pena foi correctamente graduada em 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, ajustadamente suspensa por igual período e sob condição de entregar à Instituição Particular de (…), 15.000,00€ (quinze mil euros), no prazo de vinte e quatro meses a contar do trânsito em julgado da decisão.

O recorrente pugna pela eliminação desta condição, sustentando não ter condições para lhe dar cumprimento. Trata-se, não obstante, de montante equivalente àquele de que se apropriou, pelo que nem faria sentido, aplicando uma condição de suspensão desta natureza, fixar montante inferior. É uma condição que reflecte integralmente as preocupações de prevenção e de ressocialização subjacentes à aplicação da pena, que passam pela necessidade de impedir que o agente do crime retire qualquer utilidade económica da prática do ilícito, finalidade que vem sendo acentuada nas mais recentes alterações legislativas visando o combate do chamado crime de colarinho branco e que tendencialmente se deve alargar a toda a criminalidade susceptível de produzir proventos económicos, sabido que a esmagadora maioria dos crimes cometidos em todo o mundo visam, directa ou indiretamente, a obtenção de recursos financeiros.

Nada a apontar, pois, à fixação da referida condição.

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Condena-se o recorrente na taxa de justiça de 3 UC


*

            Coimbra, 12 de Fevereiro de 2020

                (texto processado pelo relator, revisto por ambos os signatários e assinado electronicamente)

Jorge Miranda Jacob (relator)

Maria Pilar Oliveira (adjunta)


[1] - in “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, Tomo III, página 688.
[2] - Comentário do Código Penal, pág. 1234