Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
273/07.8TBOHP – C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
CULPOSO
INABILITAÇÃO
ADMINISTRADOR
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 06/23/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: N.º 2 DO ARTIGO 186.º, ALÍNEA B) DO N.º 2 DO ARTIGO 189.º DO CIRE E ARTIGOS 26.º E 18.º, N.º 2, DA CRP
Sumário: 1) A verificação, através dos correspondentes factos, das situações previstas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, determina a qualificação da insolvência como culposa, sem admissão de prova em contrário.

2) Já as situações do n.º 3 do mesmo artigo acarretam, tão-só, uma presunção “juris tantum” de culpa grave, passível, por conseguinte, de ser arredada mediante prova em contrário.

3) De qualquer forma, nestas hipóteses, a qualificação da insolvência como culposa depende da existência de um nexo de causalidade entre as situações previstas e a ocorrência ou o agravamento da insolvência.

4) A expressão “a contabilidade, apesar de devida, não está organizada” é conclusiva, não podendo servir de suporte factual à configuração do circunstancialismo a que alude o artigo 186.º, n.º 2, alínea h), do CIRE.

5) A norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE é inconstitucional, por violação dos artigos 26.º e 18.º, n.º 2, da CRP, enquanto impõe ao juiz que, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador de sociedade comercial declarada insolvente.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

            Declarada a insolvência de A..., com sede no lugar e freguesia de ...., em acção que lhe foi movida por B... , sociedade anónima com sede no lugar de ...., foi aberto incidente de qualificação de insolvência, onde a Sra. Administradora juntou parecer no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa, alegando, para tanto, o seguinte:

            A insolvente está em falência técnica desde o ano de 1999, altura em que o capital próprio constante do balanço é negativo em 8.950.798$00, uma vez que o passivo a curto prazo é de 72.703.686$00 e o activo de, apenas, 64.352.888$00.

            A contabilidade, apesar de devida, não está organizada.

            As dívidas fiscais ascendem a um total de € 254.866,50 e iniciam-se no ano de 1999.

            As dívidas à Segurança Social são no montante de € 75.738,44 e iniciam-se no ano de 2000.

            Os créditos reclamados elevam-se a € 744.054,44.

            Houve incúria e imprudência da parte dos sócios da insolvente, dado que conheciam as graves dificuldades económicas e financeiras que a empresa atravessava e não requereram em tempo útil qualquer providência de recuperação da empresa, nem se apresentaram voluntariamente à insolvência.

            Foi violado o artigo 18.º, n.º 1, do CIRE, que impõe ao devedor se apresente à insolvência no prazo de 60 dias a contar da data do conhecimento de tal situação.

            Identificou como devendo ser afectados pela qualificação da insolvência como culposa os sócios da insolvente, C... e D... .

            O digno agente do MP aderiu aos fundamentos de facto e de direito expendidos pela Sra. Administradora.

            Cumprido o disposto no artigo 188.º, n.º 5, do CIRE, apresentaram-se a deduzir oposição os referidos sócios C e D... e, ainda, E..., sócio fundador, mas que cedeu a sua quota em 14.09.1999.

            Alegaram, em resumo, que a gerência de facto foi sempre exercida por E..., que tudo fez para viabilizar a situação económica da insolvente.

           
No despachado saneador foram afirmadas a validade e a regularidade da lide.
A selecção da matéria de facto foi objecto de reclamação, totalmente indeferida.
Realizado o julgamento e fixada, sem reparos, a matéria de facto, foi proferida sentença que qualificou como culposa, sendo a culpa grave, a insolvência de A..., declarou afectado pela qualificação E..., decretou a inabilitação do mesmo por um período de trinta meses e declarou-o, ainda, inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa por igual período de tempo.
Da decisão interpôs recurso E..., o qual apresentou em tempo oportuno sua alegação, concluída desta forma:
1) Para a verificação das presunções inilidíveis constantes do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, é necessário que se apurem em julgamento factos que conduzam a essa conclusão.
2) Na aplicação concreta das presunções, deve atender-se às circunstâncias próprias da situação de insolvência, apontando nesse sentido o recurso que nelas se faz a conceitos indeterminados, como é o caso de “incumprido em termos substanciais”.
3) Ficou provado, apenas, que a contabilidade não está organizada.
4) Não resultaram provados factos que permitam concluir pelo incumprimento em termos substanciais da obrigação de ter contabilidade organizada, como exige a alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
5) As alíneas a) e b) do artigo 186.º, n.º 3, do CIRE referem-se a presunções ilidíveis, que são, apenas, um dos requisitos para considerar-se culposa a insolvência.
6) Nestes casos, não basta a verificação destas situações, sendo necessária a prova de que a situação de insolvência foi criada ou agravada pela actuação com culpa grave, conforme estatui o n.º 1 do falado artigo 186.º.
7) Não há nos autos prova do nexo de causalidade entre a presumida culpa grave e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor.
8) Não se encontram preenchidos os requisitos do n.º 1 e da alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, pelo que a insolvência terá de ser considerada fortuita.
9) Independentemente disso, a sua decretada inabilitação é inconstitucional, por violação dos artigos 26.º, n.ºs 2 e 4, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
10) A inabilitação tem carácter punitivo, não visando a protecção e defesa do inabilitado, dos interesses dos credores, da integridade da massa ou sequer dos interesses gerais do tráfego comercial.
Não houve resposta à alegação do recorrente.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
São questões a requerer solução:
a) A qualificação da insolvência;
b) A inconstitucionalidade da norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE.


II. Na sentença recorrida foram dados por provados os seguintes factos:

            1. A insolvente constituiu-se no ano de 1997, com o objecto social de construção e obras públicas.

2. Os sócios iniciais eram E..., F... e C.

3. Em 14.09.1999, o sócio E... renunciou às funções de gerente, mas autorizou a manutenção do seu nome na denominação da empresa.

4. A insolvente confunde-se no mercado e nas relações comerciais com uma outra empresa denominada E..., L.da, que se dedica à construção civil e da qual é sócio-gerente E....

5. A insolvente utiliza o Código de Classificação das Actividades Económicas n.º 45212, que é o da construção e engenharia civil.

6. A actividade da insolvente foi fundamentalmente a compra e venda de matéria prima para a estrutura de obras de construção civil (nomeadamente, areia, ferro, betonilha, etc.) e a prestação de serviços de retroescavação.

7. Era detentora de vários bens móveis, nomeadamente, uma pá carregadora e acessórios, uma auto betoneira, dois semi-reboques, um deles de dois eixos para máquina, os quais ainda constam do seu activo, mas cujo paradeiro se desconhece.

8. O valor do imobilizado corpóreo em Dezembro de 2005 era de € 238.074,89 (duzentos e trinta e oito mil e setenta e quatro euros e oitenta e nove cêntimos), mas no mapa de amortizações constava, apenas, o de € 232.354,98 (duzentos e trinta e dois mil, trezentos e cinquenta e quatro euros e noventa e oito cêntimos).

9. As últimas contas de exercício da insolvente depositadas na Conservatória do Registo Comercial de Oliveira do Hospital datam do ano de 1999.

10. O capital próprio que está no balanço de 1998 é negativo em 8.950.798$00 (oito milhões, novecentos e cinquenta mil e setecentos e noventa e oito escudos).

11. O passivo a curto prazo ascende a 72.703.686$60 (setenta e dois milhões, setecentos e três mil e seiscentos e oitenta e seis escudos e sessenta centavos).

12. A contabilidade, apesar de devida, não está organizada.

13. A insolvente não tem qualquer património, além dos veículos apreendidos.

14. Foram instaurados contra a insolvente vários processos de execução fiscal e de contra-ordenação, por falta de entregas de imposto sobre o valor acrescentado e sobre o rendimento das pessoas colectivas e por falta de pagamento de contribuições.

15. As dívidas fiscais ascendem a um total de € 254.866,50 (duzentos e cinquenta e quatro mil e oitocentos e sessenta e seis euros e cinquenta cêntimos).

16. As dívidas à Segurança Social ascendem a € 75.738,44 (setenta e cinco mil e setecentos e trinta e oito euros e quarenta e quatro cêntimos).

17. Foi sempre E... quem exerceu a gerência de facto da ora insolvente.

18. Os seus filhos, C e D..., assinavam os documentos sem nunca se envolverem directamente na condução dos negócios da sociedade.

III. O direito

a) A qualificação da insolvência

 

A sentença recorrida qualificou como culposa a insolvência de A..., com fundamento na verificação do circunstancialismo da alínea h) do n.º 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), diploma de que serão os demais preceitos a citar sem indicação de origem.

No entender da apelante, nenhum dos apontados fundamentos se verifica, devido à ausência de matéria de facto capaz de corporizar a previsão dos normativos invocados na sentença recorrida.

Vejamos quem tem razão.

Nos termos do artigo 185.º, a insolvência tem duas classificações possíveis: a culposa e a fortuita.

O artigo 186.º, por seu turno, para além de definir o conceito de insolvência culposa – diz o n.º 1 que “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” –, estabelece um conjunto de factos típicos que conduzem, seja à consideração da insolvência como culposa (n.º 2), seja à presunção de culpa grave dos administradores do devedor que não seja uma pessoa singular (n.º 3).

O n.º 2 estabelece, em termos objectivos (desde que comprovados os factos integrantes de cada uma das suas alíneas), uma presunção “juris et de jure” de insolvência culposa; o n.º 3 consagra, tão-só, uma presunção “juris tantum” de culpa grave dos administradores (cfr., neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, volume II, página 14, e Menezes Leitão, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, página 175).

Numa hipótese (a do n.º 2), a verificação dos factos implica necessariamente a qualificação da insolvência como culposa; na outra (a do n.º 3), faz, apenas, presumir a culpa grave dos administradores, que podem ilidi-la através de prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, do CC).   

Mas, ainda que provada a culpa grave (nas hipóteses do n.º 3, é claro), daí não se segue, sem mais, a qualificação da insolvência como culposa; para que isso aconteça, é necessário, ainda, que fique demonstrada a existência de um nexo de causalidade entre a conduta incumpridora dos administradores da devedora e a situação de insolvência (neste sentido, por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14.06.2006, CJ, Ano XXXI, Tomo III, página 288, e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20.10.2007, CJ, Ano XXXII, Tomo IV, página 189).

Assentes estas ideias, retornemos à situação em apreço e analisemo-la à luz da fundamentação utilizada na decisão recorrida e da argumentação que lhe foi oposta pelo recorrente, começando, por uma questão de ordem, pela hipótese a que alude a alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º.

Segundo este normativo, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

Depois de se opinar, correctamente, que o legislador estabeleceu no n.º 2 daquele preceito uma presunção “juris et de jure” do carácter culposo da insolvência, escreveu-se assim na sentença: «neste âmbito, apurou-se que a contabilidade da requerida, apesar de devida, não está organizada, o que permite concluir, sem mais, pela verificação da presunção em análise e pela necessária qualificação como culposa da insolvência».

A posição do apelante é a de que o tribunal não tinha matéria de facto para concluir como concluiu, pois que aquela em que se estribou não passa ela mesma de uma conclusão, ou de um conceito abstracto desprovido de factos reais concretos.

E, na realidade, assim é. O que na sentença foi apresentado como facto – “a contabilidade, apesar de devida, não está organizada” –, e nada mais existe, é o próprio direito, ou, noutros termos, a exigência legal constante do preceito aplicável ao caso.  

Ora, isso nada tem a ver com matéria de facto, onde cabem, apenas, as ocorrências concretas da vida real e, ainda, o estado, a qualidade ou a situação real das pessoas ou das coisas, ali se abarcando, quer os acontecimentos do mundo exterior, quer os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (neste sentido, Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, páginas 406/407, e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, volume III, página 268).

Visto como tal, o facto, não obstante nem sempre ser fácil definir as fronteiras que o separam do direito, distingue-se deste, quanto mais não seja, por ser inteligível por si, sem necessidade de outras explicações, ao invés do que sucede com os chamados conceitos, cujo conteúdo só se alcança verdadeiramente depois de um adequado trabalho de integração ou de complementação.

Por isso que, diz Alberto dos Reis, não devam entrar na matéria de facto noções, fórmulas, categorias, figuras ou conceitos jurídicos, que esse é o campo do direito; “só…factos positivos, materiais e concretos; tudo o que seja juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória” (Código de Processo Civil Anotado, volume III, página 212).

Dizer, em sede de facto, que a contabilidade não está organizada não passa de uma petição de princípio; dá-se por provado aquilo que se quer demonstrar, quando o que fazia falta era o “quod demonstrandum”.

Afinal, porque é que a contabilidade não está organizada? Que princípios ou regras da sua elaboração foram desrespeitadas?

É isso, precisamente, o que falta saber. É verdade que o problema surgiu logo no parecer da Sra. Administradora, que não soube, ou não quis, identificar a situação concreta, nomeadamente no que diz respeito aos factos relevantes, como lhe era imposto pelo n.º 2 do artigo 188.º; limitou-se a dizer “a contabilidade apesar de devida não está organizada” e o tribunal aceitou a afirmação como se de matéria de facto se tratasse, quando nenhuma realidade da vida ali se achava plasmada.

O curioso é que, mais tarde, quando notificada para prestar esclarecimentos de diferente natureza, a Sra. Administradora até acabou, embora de forma vaga, por dizer onde estava o busílis da questão, ao avançar com a ideia de que a não organização da contabilidade se prendia com a falta de documentos e de balancetes analíticos, quer mensais, quer anuais.

Só que o Ex.mo Juiz, porventura, desatento, em vez de aproveitar o ensejo tão oportunamente aparecido para, ao abrigo do princípio do inquisitório (artigo 11.º), estender a actividade instrutória à nova matéria, concretizando-a, deixou ficar tudo com estava.

E, assim sendo, estamos em presença de uma mera conclusão e não ante factos de onde se possa extrair que a falta de contabilidade organizada.

Não provado o incumprimento da obrigação em apreço, falha a presunção (as presunções tiram-se dos factos, como reza o artigo 349.º do Código Civil) em que o tribunal fez assentar a decisão.

Donde, a conclusão, esta inevitável, de que, ao contrário do que se decidiu, se não verifica a situação jurídica tipificada na alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º, o que quer dizer que, por esta via, não pode a insolvência ser qualificada como culposa.

O segundo e o terceiro fundamentos da qualificação assentaram na previsão do n.º 3 do mesmo preceito, que presume a existência de culpa grave dos administradores do devedor que tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência – alínea a) – e a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial – alínea b).
No essencial, considerou-se indiscriminadamente o mesmo grupo de factos para ambas as situações – as últimas contas do exercício da insolvente depositadas na Conservatória do Registo Comercial datam de 1999, o capital próprio que está no balanço de 1998 já é negativo em 8.950.798$00, o passivo a curto prazo ascende a 72.703.686$60, a contabilidade, apesar de devida, não está organizada, a insolvente não tem qualquer património, além dos veículos apreendidos, foram instaurados contra a insolvente vários processos de execução fiscal e de contra-ordenação por falta de entrega de IVA, IRC e pagamento de contribuições, as dívidas fiscais ascendem a € 254.866,50 e iniciam-se em 1999 e as dívidas à Segurança Social ascendem a € 75.738,44 e iniciam-se no ano de 2000 –, raciocinando-se, depois, deste modo:
De acordo com o disposto no artigo 18.º, a insolvência deve ser requerida nos 60 dias seguintes à data do conhecimento dessa situação, tal como vem descrita no artigo 3.º, n.º 1 (impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas), ou à data em que devesse conhecê-la, presumindo-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado das obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º (artigo 3.º, n.º 1); no caso, as prestações tributárias e as contribuições para a segurança social encontram-se em dívida desde 1999 e 2000, respectivamente; acresce que a devedora figura entre as entidades referidas no n.º 2 do artigo 3.º e tinha passivo superior ao activo de acordo com o balanço de 1998; a insolvência acabou por ser requerida por um credor em 2007, pelo que é fácil de concluir que o prazo legalmente imposto foi ultrapassado. Nessa conformidade, verificam-se as presunções das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º, que não foram ilididas, pelo que há que concluir pelo carácter culposo da insolvência, sendo a culpa grave.
Contra tal raciocínio se insurge o apelante, que entende não estarem preenchidos os requisitos das mencionadas alíneas, devido à falta de prova da existência de um nexo de causalidade entre a conduta da devedora e a situação de insolvência.
E a verdade é que a razão continua a estar do seu lado.
Tirando as conclusões, a lógica da decisão até é linearmente acertada. De facto, conforme preceitua o artigo 18.º, n.º 1, o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento dessa situação, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º – impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas –, ou à data em que devesse conhecê-la, sendo que, quando o devedor seja titular de uma empresa, como é o caso, se presume de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de alguns dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º (dívidas tributárias, contribuições e quotizações para a segurança social e créditos dos trabalhadores, entre outras).
Ora, em face da matéria de facto provada, parece não haver dúvidas de que a devedora se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas – logo, em situação de insolvência – muito antes de ter sido requerida a declaração de insolvência por um credor; repare-se no longo período de tempo que decorreu desde que as dívidas tributárias e as referentes à segurança social deixaram de ser pagas.
O problema está em saber se o incumprimento do dever de apresentação à insolvência agravou esse estado. Como acima se disse, as circunstâncias da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º fazem presumir a culpa grave dos administradores, mas só permitirão configurar a insolvência como culposa, se existir nexo de causalidade entre elas e o estado de insolvência.
É sabido, em geral, que quanto mais prolongada é uma situação de crise económica e financeira, mais difícil ela se vai tornando. Uma empresa que não cria riqueza bastante para pagar as dívidas mais comezinhas acumula novas dívidas e a acumulação de dívidas agrava, inevitavelmente, o estado de insolvência.
Mas essa não é uma verdade universal (não é, seguramente, um facto notório), até porque há muitos e bons exemplos de empresas que, parecendo condenadas ao fracasso, ressurgiram por obra das mais variadas circunstâncias.
De qualquer modo, para se poder concluir que o incumprimento do dever de requerer a insolvência agravou o estado desta, sempre seria necessário conhecer a evolução, passo a passo, da situação produtiva e económico-financeira da empresa, o que não se apurou nos autos, ainda que de forma minimalista.
Nexo de causalidade entre a falta de apresentação à insolvência e a insolvência em si ou o seu agravamento não existe, portanto, ou não está demonstrado, o que, para o caso, vale exactamente o mesmo.
 
O que acabou de se dizer tem inteira aplicação à hipótese da alínea b) do mesmo número: a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, e de as submeter à devida fiscalização ou de as depositar.
Sendo certo que a obrigação de depositar as contas deixou de ser cumprida a partir do ano de 2000 – as últimas depositadas foram as de 1999 –, não o é menos que se ignora (em termos factuais, é claro) se daí resultaram quaisquer consequências, nomeadamente, se a omissão deu origem à insolvência ou ao agravamento da mesma. 

As conclusões do recurso hão-de, assim, proceder. A procedência acarretará, como é óbvio, que a insolvência haja de ser qualificada como fortuita e a que as decretadas medidas de inabilitação e de inibição para o exercício do comércio não se possam manter.

b) A inconstitucionalidade da norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º

            A questão deixou de ter interesse prático para o apelante, dada a qualificação da insolvência como culposa.
            Sempre se dirá, de toda a maneira, que, aquando da sua prolação, a sentença ia em contraciclo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, que, de modo uniforme, vinha decidindo pela inconstitucionalidade do citado normativo, por violação dos artigos 26.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (a título de exemplo, os acórdãos 564/07, 570/08, 571/08, 581/08, 582/08, 584/08 e 585/08 e as decisões sumárias 615/07, 85/08, 267/08, 288/08, 321/08, 323/08, 371/08, 376/08, 421/08 e 425/08, em www.tribunalconstitucional.pt).
            Presentemente, o problema está completamente  ultrapassado, com a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade do referido normativo, pelo Acórdão 173/2009, de 2 de Abril de 2009, publicado no DR n.º 85, I Série, de 4 de Maio do corrente ano.


IV. Resumindo:

1) A verificação, através dos correspondentes factos, das situações previstas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, determina a qualificação da insolvência como culposa, sem admissão de prova em contrário.
2) Já as situações do n.º 3 do mesmo artigo acarretam, tão-só, uma presunção “juris tantum” de culpa grave, passível, por conseguinte, de ser arredada mediante prova em contrário.
3) De qualquer forma, nestas hipóteses, a qualificação da insolvência como culposa depende da existência de um nexo de causalidade entre as situações previstas e a ocorrência ou o agravamento da insolvência.
4) A expressão “a contabilidade, apesar de devida, não está organizada” é conclusiva, não podendo servir de suporte factual à configuração do circunstancialismo a que alude o artigo 186.º, n.º 2, alínea h), do CIRE. 
5) A norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE é inconstitucional, por violação dos artigos 26.º e 18.º, n.º 2, da CRP, enquanto impõe ao juiz que, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador de sociedade comercial declarada insolvente.


V. Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, em consequência do que se revoga a sentença recorrida e se qualifica a insolvência como fortuita.
Custas pela massa.