Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
144/18.2.GBSCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
DETENÇÃO DO ARGUIDO
CONCURSO EFECTIVO DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 01/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 21.º, N.º 1, DO DL 15/93, DE 22-01; ART. 30.º DO CP
Sumário: Em casos, como o ocorrido no âmbito destes autos, em que a actividade de tráfico de estupefacientes cessa por força da detenção (na concreta situação, em flagrante delito) do arguido, as condutas posteriores de igual natureza praticadas pelo mesmo agente constituem, em relação às anteriores, uma unidade resolutiva autónoma, verificando-se, deste modo, quanto à globalidade da acção delitiva do arguido, um concurso efectivo de dois crimes.
Decisão Texto Integral:





Acordam, em Conferência na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. Por Acórdão proferido em 29 de julho de 2020, o Colectivo do Juiz 3 do Juízo Central Criminal de Viseu, deliberou:

«I. Condenar o arguido J. nas seguintes penas parcelares:

a) pela prática, sob a forma de autoria material, na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no art.21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, com referência à tabela I-B anexa a tal diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão efetiva;

b) pela prática, sob a forma de autoria material, na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no art.21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, com referência à tabela I-B anexa a tal diploma legal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão efetiva;

c) Efectuado o cúmulo jurídico das mencionadas penas parcelares e, em conformidade, condenar o arguido J. na pena única de 6 (seis) anos de prisão.

II. Condenar a arguida M. pela pratica, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º, al. a), do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-B anexa a tal diploma legal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão efectiva.

III. Absolver a arguida M. do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 26º do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-B anexa a tal diploma legal.

IV. Condenar o arguido P. pela pratica, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º, al. a), do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-B anexa a tal diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, que se suspende na sua execução, por igual período.

V. Julgar improcedente, por não provado, o pedido de declaração de perda de vantagens patrimoniais e consequentemente absolver os arguidos totalmente desse pedido.


***

VI. Mais se decide declarar perdido a favor do Estado:

(…).

2. Inconformado com a condenação, o arguido J. interpõe o presente recurso, formulando as conclusões que a seguir se transcrevem:

« 1 - O Douto Acórdão condenou o arguido, ora recorrente, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B anexa a tal diploma legal, na pena de 4  anos e 9 meses de prisão efetiva, e, ainda, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes , p. e p. pelo art. 21º n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B anexa a tal diploma legal, na pena de 5 anos de prisão efetiva. Efetuado o cúmulo jurídico das mencionadas penas parcelares na pena única de 6 anos de prisão, não se conformando o arguido com a decisão condenatória proferida.

2 - O presente recurso incide sobre a qualificação jurídica, o deficiente enquadramento jurídico-penal dos factos e da escolha e medida da pena e suas consequências jurídicas, que o arguido considera terem sid0o incorrectamente aplicados.

3- Pois que o arguido considera que, de acordo com a prova produzida, deveriam ter sido considerados não provados os pontos 1, 2 2.”, mas também adquirir meios de sustento para si, uma vez que não tinha atividade profissional regular”, 3.,4, 5. 7.”, local, entre outros, onde o arguido procedia à venda dos produtos estupefacientes”, 8, 9., 10, 11, 12, 13, 15, 17, 24. 25. 26,27, 28. 29. “o arguido J. detinha”, 45 “… à venda, em proporções não concretamente apuradas, aos consumidores que se propusessem adquiri-las, mediante contrapartida monetária ou em valores, atividade esta que exerciam com o propósito concretizado de obtenção de lucros. “,

4 - Assim, não deveria ter sido dado como provado que o arguido ora recorrente tivesse adquirido produtos estupefacientes com o propósito da sua venda, tanto que mais que foi demonstrado pela abundante prova testemunhal e pelas escutas que os consumidores contactavam com o arguido, tal como contactavam com outros consumidores no sentido de encontrarem quem lhes disponibilizasse o estupefaciente de que necessitavam.

5 - Foi ainda demonstrado que oi arguido ora recorrente se tentava furtar a esses contactos, e até retirar alguns consumidores de tal dependência, como aliás fez coma própria arguida M..

6 - Resultou ainda demonstrado que o arguido, com dependência de cocaína, se deslocava ao Porto para adquirir pedras para si, e por uma questão de repartição de custos da viagem, fê-lo algumas vezes acompanhado de outros consumidores.

7 - E que se o arguido admitiu que cedeu a outros consumidores algumas pedras de cocaína pelo valor de dez euros, tendo-a adquirido no Porto pelo valor de cinco euros unitários, sempre teria de ser considerado que essa cedência foi efectuada no âmbito do consumo do arguido e no facto deste ao deslocar-se ao Porto ter despesas com a viagem pelo que quando cedeu algumas pedras o fez por um valor superior sim mas que não lhe garantiu qualquer rendimento que lhe permitisse ou destinasse ao seus sustento ou à melhoria da sua qualidade de vida, nem esse era o seu propósito.

8 - Deveria ter sido ainda provado que o arguido teve rendimentos próprios, contrariamente ao que consta dos factos provados onde se refere que o mesmo não tinha quaisquer rendimentos, pois que foi provado que o arguido trabalhou no café da propriedade do seu pai, tendo ficado a receber o subsídio de desemprego após o encerramento deste e que vivia com a companheira numa habitação própria desta com precárias condições de conforto e habitabilidade e que ainda tinham como receitas do casal o valor de 560,00€ proveniente de arrendamentos da companheira e ainda cerca de 300€ mensais provenientes doa atividade da companheira que lhes permitiam suportar as despesas necessárias à sua modesta sobrevivência.

9 - Não se deu como provado os ganhos com a venda de estupefacientes nem que o arguido tivesse uma vida desafogada com a prática do ilícito.

10 - Fica-se, pois, sem saber, com o rigor que o caso exige, quais ou que tipo de condições económicas de um arguido ou que excepcionalidade em quantidades de cocaína, devem ser ou reunir, para que se aplique o previsto no art.º 21 n.º 1 do DL 15/93 de 22/01 a um arguido acusado nesses termos, porquanto não se provou que J. aqui recorrente, tenha obtido alguns ganhos com a venda de estupefacientes a terceiros.

11 - Não se apurou qualquer sinal exterior de riqueza, que levasse a crer o julgador, de que o recorrente goze ou gozasse de uma situação desafogada, que presumisse a venda de estupefacientes para a subsunção ao preceito legal referido.

12 - A quantidade de cocaína apreendida ao arguido, por si só, não é critério suficiente para imputar ao arguido a intenção de venda.

13 -O arguido confessou ser consumidor, tendo exposto o seu percurso como consumidor, anteriormente de haxixe e posteriormente de cocaína, assim como as desintoxicações que iniciou sem as ter concluído.

14 - Ainda é evidente que a única intenção do arguido era a de abastecer próprio consumo e não a obtenção de lucro.

15 - Também, conforme o tribunal a quo entendeu, não havia criatividade na execução de tráfico quanto aos meios utilizados e as circunstâncias de ação.

16 - Não foi considerado pelo tribunal recorrido que existisse um circuito de venda, um depósito, armazém ou qualquer organização para venda de estupefacientes.

17 - Da mesma forma, não resultou da prova produzida que o arguido tivesse consumido e cedido a qualquer título produtos estupefacientes no período dado como provado no douto acórdão, tanto mais que as testemunhas inquiridas referiram que tal sucedeu o quanto muito no período de um ano que antecedeu a detenção do arguido.

18 - Igualmente não resultou da prova produzida que o arguido tenha entregue produtos estupefacientes a (…) a título de compensação pela colaboração deste no café, pois que esta testemunha referiu que a única coisa que o recorrente lhe tinha dado tinham sido umas “puxas” e que nunca foi em troca do trabalho. Mais disse que pedia ao arguido que lhe desse cocaína e que este recusava, e como teimava com o arguido ele deixava-o dar umas puxas “.

19 - Quanto constante do 5 dos factos dados como provados, contrariamente ao que consta do douto Acórdão, foi antes demonstrado que o recorrente, deslocou- se ao Porto acompanhado de (…) e da arguida M., para adquirem, cocaína para consumo, tendo inclusivamente esta testemunha referido que o recorrente era um grande consumidor, que de meia em meia hora estava a fumar e que o recorrente não era um traficante de droga.

20 - Acresce que não foi demonstrado, sequer remotamente que o arguido recorrente instruísse, ordenasse ou utilizasse a arguida M. seja de que fora fosse para contactos com os consumidores que pode se pode verificar nas escutas eram, sempre da iniciativa dos próprios consumidores e não do arguido. Veja-se que em momento algum este arguido ofereceu produto a quem quer que seja.

21 - Igualmente quanto aos contactos com o arguido P., nada foi demonstrado no sentido de se poder dar como provado que entre este havia qualquer relação que não fosse a de consumidores.

22 - Quanto aos factos ocorridos no dia 05 de fevereiro de 2019, não foi demonstrado a quem pertencia a cocaína apreendida, tanto mais que a mesma se encontrava no veículo de (…), que admitiu ter levantado dois dias antes uma avultada quantia da sua conta bancária que lhe permitira ter adquirido a quantidade apreendida, contrariamente ao arguido J. que não tinha meios financeiros para tal aquisição.

23 - Pelo que sempre tendo em conta o principio in dubio pro reo deveria ter sido dado como não provado que os produtos estupefacientes apreendidos pertencessem ao arguido recorrente.

24 - Tendo em consideração a matéria de facto provada, com as alterações supra requeridas e até independentemente dessa alteração, consideramos que face à quantidade de produtos estupefacientes apreendidos e cedidos bem como a falta de sofisticação dos meios utilizados pelo arguido nessas cedências, e a forma de atuação do arguido aliado à sua toxicodependência, que estamos perante uma  situação de pequeno tráfico completamente distinta da do grande tráfico, razão pela qual a atuação do arguido deveria ter sido enquadrada no previsto no artigo 25.º do DL 15/93 de 22/01.

25 - O art.º 21.º do DL n.º 15/93 define o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefacientes, pelo qual se punem diversas atividades ilícitas, cada uma delas com virtualidade bastante para integrar o elemento objetivo do crime enquanto o art.º 25º, para o qual o recorrente apela, refere-se ao tráfico de menor gravidade, fundamentado na diminuição considerável da ilicitude do facto revelada pela valoração em conjunto dos diversos fatores, alguns deles enumerados na norma, a título exemplificativo (meios utilizados, modalidade e circunstâncias da ação, qualidade e quantidade das plantas, substâncias ou preparados)

26 - A tipificação do art. 25.º, do DL 15/93, parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do art. 21.º e têm resposta adequada dentro da moldura penal prevista na norma indicada em primeiro lugar” “Frase citada em vários Acórdãos, pensa-se que retirada do Ac STJ de 15/12/99 - Proc 912/99

27 - Tal como consta do Acordão STJ – Processo 127/09.3PEFUN.S1: “Diríamos, em suma, que o agente do crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, deverá estar nas circunstâncias seguidamente enunciadas, tendencialmente cumulativas: i) A actividade de tráfico é exercida por contacto directo do agente com quem consome (venda, cedência, etc.), isto é, sem recurso a intermediários ou a indivíduos contratados, e com os meios normais que as pessoas usam para se relacionarem (contacto pessoal, telefónico, internet); j) Há que atentar nas quantidades que esse vendedor transmitia individualmente a cada um dos consumidores, se são adequadas ao consumo individual dos mesmos, sem adicionar todas as substâncias vendidas em determinado período, e verificar ainda se a quantidade que ele detinha num determinado momento é compatível com a sua pequena venda num período de tempo razoavelmente curto; k) O período de duração da actividade pode prolongar-se até a um período de tempo tal que não se possa considerar o agente como “abastecedor”, a quem os consumidores recorriam sistematicamente em certa área há mais de um ano, salvo tratando-se de indivíduo que utiliza os proventos assim obtidos, essencialmente, para satisfazer o seu próprio consumo, caso em que aquele período poderá ser mais dilatado; l) As operações de cultivo ou de corte e embalagem do produto são pouco sofisticadas; m) Os meios de transporte empregues na dita actividade são os que o agente usa na vida diária para outros fins lícitos; n) Os proventos obtidos são os necessários para a subsistência própria ou dos familiares dependentes, com um nível de vida necessariamente modesto e semelhante ao das outras pessoas do meio onde vivem, ou então os necessários para serem utilizados, essencialmente, no consumo próprio de produtos estupefacientes; o) A actividade em causa deve ser exercida em área geográfica restrita; p) Ainda que se verifiquem as circunstâncias mencionadas anteriormente, não podem ocorrer qualquer das outras mencionadas no art.º 24.º do DL 15/93.”

28 - Ora no caso em concerto verificam-se cumulativamente todos os requisitos para aplicação do artigo 25 do DL 17/93 e não do artigo 21 .º.

29 - Acresce que, tal como consta de requerimento apresentado pelo arguido nos autos não deveria ter sido efetuadas a alteração da qualificação jurídica requerida pelo Ministério Público, pois que a referida alteração após o términus da produção da prova testemunhal e após inúmeras sessões de julgamento, não resultou de qualquer produção de prova, sendo apenas uma diferente posição do MP quanto à acusação submetida a julgamento conforme consta da promoção do Ministério Público.

30 - Ora as eventuais falhas de uma acusação não podem ser colmatadas com recurso aos mecanismos do art 358.º do CPP pois a alteação da qualificação jurídica deve resultar da produção da prova e de nenhum outro motivo como seja um diferente entendimento.

31 - A qualificação jurídica ainda que não seja uma alteração de factos está intrinsecamente relacionada com os mesmos e é essencial para a preparação da defesa do arguido.

32 - A alteração da qualificação jurídica com a imputação de dois crimes em concurso real seria uma violação inadmissível das garantias que o objeto processual penal visa oferecer, pelo que a acontecer tal alteração, o que não se aceita, entendemos que não poderá o tribunal aplicar pena mais grave do que a que resultaria se a qualificação na acusação fosse correta.

33.º A alteração requerida e deferida, pelos motivos requeridos se revela uma subversão de todo o regime de alteração não substancial dos factos, criando um efeito surpresa que além de não ter sido devidamente e pessoalmente esclarecido ao arguido o prejudica nas suas garantias de defesa.

34 - Foi, pois, o arguido, condenado em dois crimes de tráfico de estupefacientes p e p pelo art 21 da lei 15/93, em concurso real de crimes, referindo o douto acórdão que um dos crimes dos praticado até ao mês de junho de 2018 (data da submissão do arguido a primeiro interrogatório) e o outro crime a quanto aos factos ocorridos após esse interrogatório até à data da detenção do arguido em 05.02.2019.

35 - Veja-se que semelhante entendimento não foi perfilhado, nem requerido pela Digníssima Magistrada do Ministério Público quanto à arguida M., a qual foi igualmente submetida por duas vezes a interrogatório judicial (nas mesmas datas do aqui recorrente). Quanto a esta nada foi requerido quanto à condenação pela prática de dois crimes em concurso real, tendo esta sido condenada pela prática de um crime.

36 - Verifica-se, pois, uma dualidade de critérios, uma ofensa do principio da igualdade, constitucionalmente garantido pelo artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa que expressamente se invoca.

37 - Verifica-se pois que há uma questão suscitada e a apreciar: - Se a conduta do arguido integra dois crimes continuados, ou se, pelo contrário, integra um concurso real de crimes, nos termos em que foi condenado.

38- Os requisitos do crime continuado, que deveria ter sido aplicado nestes autos pro se encontrarem verificados, mostram-se descritos nos nºs 2 e 3 do artigo 30º, do Código Penal supra transcrito:

1 - Realização plúrima de violação típicas do mesmo bem jurídico, desde que este não proteja bens eminentemente pessoais, o que contempla logo na previsão do crime continuado mais do que uma resolução criminosa, não sendo este facto determinante da atuação em concurso real;

2 - Execução essencialmente homogénea das sobreditas violações, sendo que os factos ocorridos antes e depois do primeiro interrogatório judicial são variantes, ou seja, meras adaptações da conduta do arguido a cada um dos concretos casos

3 - No quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que lhe diminua consideravelmente a culpa.

4 - Um elemento subjectivo que se há-de estender à inteira relação de continuação, abrangendo as hipóteses de um dolo conjunto (planeamento prévio pelo agente das diversas resoluções típicas) ou de um dolo continuado (o plano do agente de que repetiria a realização típica sempre que a ocasião se proporcionasse).

39 - “Refere o Prof. Germano Marques da Silva em “Direito Penal Português, Parte Geral – II Teoria do Crime”, Verbo, 1998, págs 315 e ss, que “(...) como nota característica do crime continuado destaca-se uma pluralidade de acções que, naturalisticamente consideradas, podem constituir o corpus e uma pluralidade de crimes, tantos quantas as acções, mas que a lei unifica e trata como um crime só.

“(...) Têm deste modo de se conjugar todos os elementos (...) apontados não só com uma certa homogeneidade, que pode ganhar relevância à luz de um critério espaço-temporal, pelo menos como ponto de referência negativo, mas também com o circunstancialismo exógeno que faça consideravelmente diminuir a culpa do agente.

40 - Ora, no caso dos autos não se poderá dizer que ocorreu mais do que um desvalor normativo porquanto todos os factos praticados pelo arguido tiveram origem antes e depois do primeiro interrogatório numa mesma circunstância exterior que se trata da abordagem constante e repetida dos consumidores ao arguido, da insistência destes junto do arguido para que lhe cedesse estupefacientes quando estes não tinham para consumo imediato, circunstância essa exterior à vontade do arguido ainda que diretamente relacionada com uma outra de caracter endógeno- a sua dependência de produtos estupefacientes, pelo que não se pode dizer que era cada vez menos exigível que se comportasse de acordo com o direito.

41 - O crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo Artº 21º nº 1 do DL nº 15/93, de 22/01, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos. e o artigo 25, da mesma Lei cuja aplicação se defende nos presentes autos é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

42 - Entende o arguido, com o devido respeito, que a pena de prisão que efetivamente lhe foi aplicada é excessiva.

43 - A determinação da medida da pena, dentro da moldura penal definida na lei, deve ter em consideração a culpa do agente e as exigências de prevenção, geral e especial, - Artºs 40º, nºs 1 e 2 e 71º nºs 1 e 2, ambos do C. Penal.

44 - Sabido que, por um lado, a culpa funcionará como pressuposto da punição e como limite máximo e inultrapassável da pena – “nulla poena sine culpa -, por outro lado, as exigências de prevenção intervêm decisivamente na determinação do quantum da pena concretamente a aplicar ao agente, visando-se com a prevenção geral, enquanto finalidade primordial da pena, a tutela da confiança da comunidade na validade e vigência da norma infringida, enquanto que a prevenção especial assume relevância ao nível da ressocialização do agente.

45 - Nessa determinação a efetuar dentro dos limites da moldura abstrata estabelecida para o crime em apreço, o Tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior e posterior ao facto, especialmente quando se destina a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena, - ex vi do disposto no Artº 71º, nº 2 do Código Penal.

46 - E por toda a matéria considerada provada e não provada entende o arguido que lhe foi aplicada uma pena demasiado gravosa, tendo-o penalizado duramente.

47- Considera, pois, assim, o recorrente que o douto acórdão violou por erro de interpretação e aplicação o preceito legal estatuído no artigo 71.º do Código Penal, que não pode nem deve ser ignorado.

48- Sempre o quantum concreto da pena a aplicar ao arguido deverá entender às necessidades de prevenção, à sua culpa e à proteção de bens jurídicos mas não esquecendo a sua reintegração na sociedade, art.º 40.º n.º 1 CP.

49 - O facto de o arguido ser consumidor de cocaína, diminui consideravelmente a ilicitude no caso em concreto.

50 - Dada toda a factualidade provada, com a alterações requeridas e até independentemente destas alterações vire, a não ser deferidas, hipótese que mera cautela de patrocínio se coloca, não parece que seja com a condenação aplicada de pena sem qualquer possibilidade de sua suspensão que se reabilitará o recorrente.

51 - Considerando as descritas circunstâncias de atuação do arguido, concretamente, o facto do o grau de ilicitude ser pequeno, pois, a quantidade que detinha de produto não era elevada, os proventos também não foram demonstrados, os meios usados eram rudimentares e o recorrente fazia a aquisição para consumo e somente após a insistência de consumidores lhes fez algumas cedência, o que não esteve na géneses da aquisição de tais produtos e ainda a integração familiar e social do arguido na comunidade e a possibilidade ser enquadrado um posto de trabalho após a liberdade e a postura confessória em julgamento, afigura-se, com o devido respeito, adequada a redução da pena de prisão aplicada, fixando-se, consequentemente, numa pena não superior ao meio da pena, prevista para o crime p.e p. pelo artigo 25 do Decreto- Lei 15/93.

52 - Mas ainda que assim não se entenda, e seja considerada a prática do crime p.e p pelo artigo 21 do referida Dec-Lei, deveria nos termos e com os fundamentos supra-expostos ser fixada, consequentemente, no seu limite mínimo.

53 - Dispõe o Artº 40º, nº 1 do C. Penal, o seguinte: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.”

54 - Neste sentido, importa considerar a relevância que estas finalidades assumem no âmbito da suspensão da execução da pena de prisão: Atendendo a que, por um lado, a prevenção geral positiva visa a “proteção de bens jurídicos”, procurando manter e reforçar a crença da comunidade na validade da norma e a confiança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais, restabelecendo a paz jurídica comunitária abalada pelo crime, por outro lado, a prevenção especial positiva, na sua incontornável missão ressocializadora, procura assegurar a reintegração social do delinquente, cumprindo assim uma finalidade reeducativa e pedagógica.

55 - Importa, assim, ter presente o disposto no Artº 50º, nº 1 do C. Penal:

“O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição.”

56 - Provou-se, com realce para o juízo de prognose favorável relativamente a este recorrente, não ter ele antecedentes criminais, ser pessoa bem inserida social e familiarmente, contando com o apoio da família no seu projeto de vida em liberdade, sendo um suporte para a vida da sua companheira que padece de uma doença crónica a qual tem períodos de dependência de terceiros para a execução das tarefas básicas do dia-a-dia tarefas essas que sempre foram dadas pelo arguido, assim como tem promessa de trabalho que lhe permitirá adequar pelo cumprimento das normas jurídicas.

57 - Para além do atual controlo da problemática aditiva, o recorrente, reúne recursos familiares e sociais capazes de funcionar como elementos estruturantes do seu processo de ressocialização, criando condições para o cumprimento de uma medida de execução na comunidade.

58 - Não sendo de descurar ainda o facto de ter já cumprido o arguido, no âmbito deste processo, aproximadamente 18 meses de prisão preventiva, o que, necessariamente, pesou já no íntimo deste e no sentimento social de reprovação. Erigindo ao ordenamento jurídico-penal e constitucional a ressocialização como um direito do cidadão e um dever do Estado, nada justifica que em vista dos pressupostos apurados, esta lhe seja negada, tanto mais sendo a pena de prisão a ultima ratio da política criminal.

59 - Em face dos factos provados, do relatório social e demais circunstâncias que esse Venerando Tribunal entenda considerar relevantes, concluindo-se por um juízo de prognose favorável, crê-se adequada a suspensão da execução da pena do recorrente, mediante regime de prova e com imposição de regras de conduta.

60 - Dispõe o art.º 50°, n.º 1, do C. Penal: "O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".

61 - A suspensão da execução da pena deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime.

62 - Caso assim não se entenda, seria sempre de considerar a aplicação ao arguido o regime de permanência na sua habitação previsto no artigo 43.º n.º 1 alínea b) do CP, por quanto permitiria que ao arguido a inserção familiar sem deixar de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.

63 - A douta decisão decorrida violou assim as disposições legais e princípios jurídico-penais todos constantes dos artigos 30,40, 43, 43 n.º 1 b) 50 e 71 todos do Código Penal, os artigos 21 n.º 1 e 25 do Decreto-lei 15/93 de 22 .01 e ainda o art 13 da Constituição da República Portuguesa

Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso, alterando os factos considerados provados, a qualificação jurídica, e a escolha e a medida da pena e por não se encontrem preenchidos todos os elementos do tipo legal de crime previsto no artigo 21 n. 1 do DL 15/93 de 22/1, tendo o tribunal a quo feito um errado julgamento dos factos e uma subsunção errónea dos mesmos, violando assim os artigos 71.º e 40.ç do Código Penal, deve o caso concerto ser subsumido ao art 25.º do Dl 15/93 de 22.1, - tráfico de menor gravidade - com alteração da moldura penal e consequentemente com a aplicação de uma pena entre o limite mínimo e a metade da moldura penal, suspensa na sua execução ao aqui arguido recorrente ou ainda caso assim não se entenda, aplicando-se o regime de permanência na habitação ao arguido.

Ou caso assim não se entenda, deve ser aplicada uma pena próxima dos limites mínimos previstos no art 21.º n.º 1 do DL 15/93 de 22/01 e suspensa na sua execução ao aqui recorrente, por se verificarem, os pressupostos necessários para tal.»

 

3. O Ministério Público, em primeira instância, respondeu ao Recursos, concluindo pela manutenção do Acórdão recorrido.

4. Nesta Relação, o Digna Procurador-Geral-Adjunto, com os fundamentos aduzidos na resposta ao recurso, conclui pelo não provimento do mesmo.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, nada obstando ao conhecimento de mérito do Recurso.

II. QUESTÕES A DECIDIR

O recorrente traz à discussão as questões de saber:

- Se o tribunal errou na apreciação da matéria de facto,

- Se o tribunal errou na qualificação jurídico-penal dos factos;

 - Se as medidas das penas parcelares e única se mostram desproporcionais relativamente às finalidades da punição;

- Se a pena única devia ser suspensa na sua execução

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A primeira instância julgou a matéria de facto, como segue:

«1. O arguido J., conhecido por “…” desde pelo menos o ano de 2015 e até ao dia 5-02-2019, data da sua detenção, dedicou-se à venda de produtos estupefacientes, maioritariamente cocaína, mas também haxixe, a quem o procurava para tal finalidade, nomeadamente nas áreas do concelho de Santa Comba Dão e concelhos limítrofes.

2. Tal venda visava satisfazer as suas próprias necessidades de consumo de cocaína, mas também adquirir meios de sustento para si, uma vez que não tinha atividade profissional regular.

3. Para adquirir o produto estupefaciente que depois revendia, o arguido J. deslocava-se a vários locais, maioritariamente ao Porto, usando o seu veículo automóvel, da marca (…), de matrícula (…), o qual também usava para fazer as entregas de cocaína aos consumidores, sendo esta viatura indispensável à atividade de tráfico do mesmo.

4. Noutras ocasiões, o arguido solicitava a terceiros, que o transportassem, pagando aos mesmos quantias monetárias, ou cedendo-lhes parte da cocaína que adquiria;

5. Assim, R., no dia 23-07-2018 e M., no dia 5-02-2019, transportaram o arguido J. ao Porto, onde o mesmo adquiriu cocaína para o seu consumo e para a revenda.

6. Para os contactos com os consumidores, o arguido J. usava o telemóvel, com o cartão SIM com o número (…), bem como recorria às redes sociais e à aplicação WhatsApp.

7. O arguido J., antes da sua detenção, auxiliava os seus progenitores na exploração do Café (…), sito em (…), (…), local, entre outros, onde o arguido procedia à venda dos produtos estupefacientes.

8. Na atividade comercial de exploração do citado Café, o arguido J. foi, várias vezes, auxiliado por C., entregando a este, por compensação de tal trabalho, um número não apurado de “pedras” de cocaína ou meras “raspas” para seu consumo.

9. Durante o ano de 2018 e até ser detido, o arguido teve a colaboração da arguida M., consumidora de cocaína, com a qual tinha uma relação amorosa, utilizando-a para estabelecer contactos com os consumidores e proceder a entregas de cocaína, cedendo-lhe, em contrapartida, algumas “pedras”, ou meras “raspas”, para o seu consumo.

10. Assim, nalgumas situações, quando os consumidores C., M., N., CM e P. pretendiam adquirir-lhe cocaína, por vezes, ligavam para a arguida M., indicando-lhes esta se o arguido J. dispunha de cocaína para lhes vender.

11. Noutras situações, como nos casos dos consumidores P. e S., o arguido J. entregava a cocaína à arguida M., a qual, por sua vez, a entregava a tais consumidores, recebendo destes a quantia paga, que entregava ao arguido.

12. O arguido J. colaborou também com o arguido P., entreajudando-se na aquisição da cocaína, deslocando-se em conjunto aos locais onde a adquiriam e indicando-se mutuamente como alternativa, quando não possuíam aquele estupefaciente para venda.

13. No dia 23-07-2018, o arguido J., na companhia da arguida M., deslocou-se ao Porto, em veículo automóvel conduzido por R., para adquirir cocaína, o que fez em local desconhecido daquela cidade;

14. Cerca das 18h20m, na Rua da (…), em Massarelos, Porto, quando os arguidos J. e M. circulavam naquela viatura, conduzida por R., ao serem abordados pelo agente da PSP, J., o arguido J. arremessou para o banco traseiro da viatura um pequeno saco, o qual foi recuperado e detinha no seu interior 15,534 gramas de cocaína (peso líquido) , com o grau de pureza de 52,5%, produto estupefaciente suficiente para 40 doses médias individuais diárias, calculadas de acordo com o mapa a que alude o artigo 9º da Portaria nº 94/96, de 26 de março.

15. A cocaína apreendida era destinada pelo arguido J. ao seu consumo e à venda a terceiros, em troca de quantias monetárias.

16. Submetidos em 24.07.2018 a primeiro interrogatório judicial, aos arguidos J. e M. foram aplicadas as seguintes medidas de coação: apresentações periódicas, aos sábados, na área da sua residência cumulada com a proibição de frequentarem os locais ou bairros da cidade do Porto, conotados com o tráfico de estupefacientes, designadamente, os bairros do Aleixo, Pasteleira, Viso, Sé e Cerco.

17. Apesar disso, o arguido J. não parou de vender cocaína a quem o procurasse para tal.

18. Assim, o arguido J., no dia 4-09-2018, cerca das 17h30m, quando se encontrava ao volante do veículo automóvel, de matrícula (…), na Rua da (…), em (…), (…), preparava-se para proceder à venda, ao condutor do veículo automóvel de matrícula (…), JP, de uma “pedra” de cocaína, pelo preço de €10,00;

19. Nesse instante, foi abordado por elementos do NIC da GNR de Santa Comba Dão, nomeadamente pelo Sargento L e pelo Cabo-Chefe M;

20. Ao aperceber-se da presença de tais militares da GNR, o arguido arremessou para fora da viatura um isqueiro, que foi recuperado e que continha, no seu interior, cocaína com cerca de 0,400gramas.

21. Efetuada busca ao veículo conduzido pelo arguido, verificou-se a presença, atrás do banco do condutor, de uma quantidade de cocaína inferior a 0,100gramas;

22. Submetidas as atrás referidas quantidades de cocaína a exame pericial, verificou-se que as mesmas, com o peso total de 0,477gramas (peso líquido) e com o grau de pureza de 66,4%, eram suficientes para 10 doses médias individuais diárias, calculadas de acordo com o mapa a que alude o artigo 9º da Portaria nº 94/96, de 26 de março.

23. Noutras ocasiões, o arguido procedeu à venda de cocaína aos seguintes consumidores:

- a JP, entre os meses de junho e julho de 2018, em diversos locais, entre os quais a estrada que liga São João de Areias a Parada e o Café (…), pelo menos por 3 vezes, duas “pedras” de cada vez, ao preço de €10,00 por cada “pedra”;

- a TP, em datas não apuradas, mas compreendidas entre 2016 e 5-02-2019, em diversos locais, entre os quais o Intermarché de (…) e as traseiras do Bar (…), ao ritmo de pelo menos 3 “pedras” por semana, ao preço de €10,00 por “pedra”;

- a PM, em data não apuradas, mas compreendidas entre o ano de 2018 e 5-02-2019, em diversos locais, nomeadamente junto ao Centro Comercial (…), um número não apurado de vezes, mas pelo menos 1 vez por mês, 1 ou 2 “pedras” de cada vez, ao preço de €10,00 por cada “pedra”;

- a CH, entre agosto de 2018 e fevereiro de 2019, nomeadamente no Café (…), em São João de Areias, pelo menos uma “pedra” de cocaína, ao preço de €10,00;

- a MA, em datas não apuradas, mas compreendidas entre meados de 2018 e 5-02-2019, em vários locais, entre os quais o Centro Comercial (…), ao ritmo de 2/3 “pedras” por semana, ao preço de €10,00 por “pedra”, sendo que alguma da cocaína que o arguido J. vendeu ao MF era destinada a PA, já que este não adquiria diretamente ao arguido;

- a NS, em datas não apuradas, mas compreendidas entre finais de 2018 e 5-02-2019, em vários locais e nomeadamente na residência do J., em (…), ao ritmo de 2 a 3 vezes por semana, 2 ou 3 “pedras” de cada vez, ao preço de €10,00 por “pedra”;

- a HM, em datas não apuradas, mas compreendidas entre março de 2018 e fevereiro de 2019, em vários locais, entre os quais as imediações da Igreja de (…), ao ritmo de 2 “pedras”, de 2 em 2 dias e ao preço de €10,00 por “pedra”;

- a FG, em datas não apuradas, mas compreendidas entre junho de 2018 e fevereiro de 2019, em vários locais, entre os quais as imediações do rio e ponte em Tábua e em (…), ao ritmo médio de 2 ou 3 vezes por semana, 1 ou 2 pedras de cada vez, ao preço de €10,00 por “pedra”;

- CM, nos meses de janeiro e fevereiro de 2019, em locais não apurados, adquiriu pelo menos 5 vezes ao arguido J. quantidades situadas entre 10 a 40 Euros de haxixe por cada vez;

- AF, em datas e locais não apurados, pelo menos uma “pedra”, pelo preço de €10,00;

- a LM, no último semestre de 2018, em diversos locais, entre os quais o café (…), em (…) e em (…), ao ritmo de 2 “pedras” de 2 em 2 semanas, ao preço de €10,00, por cada “pedra”;

- em datas não apuradas de finais de 2018 a janeiro de 2019, o arguido J. cedeu cocaína a SR pelo menos por 2 vezes.

- em período de tempo situado em pelo menos durante 6 meses, no ano de 2018/2019, MA adquiriu “pedras” de cocaína ao arguido J. em número de vezes não concretamente apurado, adquirindo no mínimo 1 “pedra” de cada vez, chegando a adquirir-lhe 7 ou 8 “pedras” de uma vez, pelo menos 2 ou 3 vezes durante esse período.

24. Entre setembro de 2017 e meados de 2018, o arguido J. teve uma relação amorosa com MD. Durante tal relação, o arguido J. forneceu “raspas” de cocaína gratuitamente à MD., pelo menos por 3 vezes.

25. Em datas não apuradas dos anos de 2015 e 2016, em diversos locais, entre os quais as imediações do café explorado pelo arguido J. e as traseiras do Bar (…), o arguido J. vendeu ainda Haxixe ao referido TP, ao ritmo de 1 vez por semana, comprando este por vezes €10,00 e por vezes €20,00.

26. No dia 5-02-2019, MA, acedendo a pedido do mesmo, transportou o arguido J. ao Porto, no seu veículo de matrícula (…), com a finalidade do arguido J. aí adquirir cocaína;

27. Como forma de pagamento o arguido J. deu-lhe em troca o valor do gasóleo e das portagens e também lhe chegou a dar 6/7 “pedras” de cocaína que fumaram no caminho.

28. Cerca das 18h25m do mesmo dia 5-02-2019, quando o arguido J. e o MH regressavam do Porto, junto à residência do arguido J., sita na Rua (…), nº (…), (…), (…), foram intercetados por elementos do NIC da GNR de Santa Comba Dão.

29. Realizada busca ao veículo verificou-se que, atrás do banco do condutor, o arguido J. detinha 63 “pedras” de cocaína, num total de cerca de 8,547gramas (peso líquido) de cocaína, quantidade de estupefaciente que, atento o grau de pureza de 61,1%, seria suficiente para cerca de 174 doses médias individuais diárias, calculadas de acordo com o mapa a que alude o artigo 9º da Portaria nº 94/96, de 26 de março.

30. Efetuada vistoria ao arguido J., verificou-se ainda que o mesmo detinha consigo:

- um iPhone 5 de cor branca protegido com uma capa de metal e plástico, contendo entre a capa e o telemóvel uma lâmina de x-ato, usado para o corte de produtos estupefacientes e com vestígio de estupefaciente, utilizado pelo arguido no contacto com os adquirentes de estupefacientes;

- um relógio de pulso, usado para a ocultação de produtos estupefacientes;

- duas notas de €10,00, produto da venda de produtos estupefacientes;

31. Realizada busca à residência do arguido J., sita na Rua (…), nº (…), (…), (…), verificou-se que o mesmo aí detinha:

- na cozinha:

- duas navalhas, com vestígios de cocaína, destinados ao corte de tal estupefaciente;

- um saco plástico, com fecho hermético, com vestígios de cocaína, destinado ao acondicionamento de tal estupefaciente;

- no quarto:

- um x-ato, com vestígios de cocaína, destinados ao corte de tal estupefaciente;

- uma pequena faca, com cabo em baquelite castanho, com vestígios de cocaína, destinados ao corte de tal estupefaciente;

- uma caixa em metal com vestígios de cocaína, destinado ao acondicionamento de tal estupefaciente;

- um artefacto habitualmente usado no corte de comprimidos com vestígios de cocaína;

- um canivete com vestígios de cocaína, destinados ao corte de tal estupefaciente;

- um saco, com fecho hermético, com vestígios de cocaína, destinado ao acondicionamento de tal estupefaciente.

32. A arguida M., consumidora de cocaína, desde data não apurada do ano de 2018 e, pelo menos, até à sua detenção, em 5-02-2019, teve uma relação amorosa com o arguido J., dependendo do mesmo emocionalmente;

33. Durante tal período temporal, a arguida M. colaborou com o arguido J., na angariação de clientes, transporte e venda de cocaína;

34. Assim, os consumidores CH, MA, NS e CM, por vezes, quando pretendiam adquirir cocaína ao arguido J., por vezes, ligavam para a arguida M., indicando-lhes esta se o arguido J. dispunha de cocaína para lhes vender;

35. Nalgumas situações, a arguida M. entregava a cocaína aos consumidores, como aconteceu nos casos de PA e SR, com o qual viveu maritalmente, em janeiro de 2019, em (…);

36. Para os contactos com os consumidores, a arguida M. usava o telemóvel, com o cartão SIM com o número (…).

37. Como contrapartida da atividade de angariação, transporte e venda de cocaína, que desempenhava para o arguido J., este cedia à arguida cocaína para o seu consumo.

38. Em data não concretamente apurada durante o ano de 2018, pelo menos por duas vezes, a arguida M. entregou a NS 1 ou 2 “pedras” de cocaína, de cada vez, como forma de pagamento das boleias que este lhe dava para (…), onde a arguida trabalhava, e desta cidade para (…), onde residia.

39. Desde data não apurada e, pelo menos, até 5-02-2019, o arguido P, conhecido por  “…”, dedicou-se à venda de cocaína, a quem o procurasse para tal, nomeadamente junto à sua residência, em (…), (…);

40. Para os contactos com os consumidores, o arguido P. usava o telemóvel, com o cartão SIM com o número (…);

41. Na sua atividade de venda de produtos estupefacientes, o arguido P. colaborou com o arguido J., entreajudando-se na aquisição da cocaína, deslocando-se em conjunto aos locais onde a adquiriam e por vezes indicavam-se mutuamente como alternativa, quando cada um não possuía aquele estupefaciente para venda.

42. O arguido P. vendeu cocaína aos seguintes consumidores:

- a NS, em datas não apuradas, mas compreendidas entre final de 2018 e 5-02-2019, em vários locais, entre os quais na estrada que liga (…) a (…), e perto de (…), por 2 ou 3 vezes, 1 ou 2 “pedras” de cocaína de cada vez, ao preço de €10,00 por cada “pedra”

- a PA, em datas não apuradas mas em finais de 2018 início de 2019, em vários locais, entre os quais as imediações da casa do arguido P. e junto a uma loja de materiais de construção civil, por 2 ou 3 vezes, 3 ou 4 “pedras” de cocaína, ao preço de €10,00 por cada “pedra”;

- a LM, em data não apurada do ano de 2019, em (…), nas imediações da casa do arguido P., pelo menos 2 “pedras”, ao preço de €10,00 por cada “pedra”.

43. Essa venda a LM foi efetuada pelo arguido P. por aquele não conseguir comprar cocaína ao arguido J. e por indicação deste.

44. O NS, por não menos de 4 vezes, transportou o arguido P. ao Porto, a fim de o mesmo adquirir cocaína, recebendo do mesmo 1 ou 2 “pedras” de cocaína, por cada viagem.

45. Os arguidos J. e P. destinavam os produtos estupefacientes que detinham ao consumo dos próprios e à venda, em proporções não concretamente apuradas, aos consumidores que se propusessem adquiri-las, mediante contrapartida monetária ou em valores, atividade esta que exerciam com o propósito concretizado de obtenção de lucros.

46. A arguida M. atuou sempre em conjugação de esforços e de intentos com o arguido J., obedecendo às suas ordens e instruções e com ele colaborando, apesar de bem saber que com a sua conduta facilitava, concretizava, difundia e tornava possível o alargamento da atividade de venda, transporte e cedência de cocaína por parte do arguido J., com o intuito de obter cocaína para seu próprio consumo e, bem assim, entregou a NS produto estupefaciente em troca de transporte que este lhe proporcionava.

47. Todos os arguidos conheciam a qualidade dos produtos estupefacientes que detinham e vendiam.

48. Com as condutas descritas, atuaram todos os arguidos de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a detenção, cedência ou venda de tais produtos, nas circunstâncias relatadas, eram proibidas por lei e criminalmente punidas.

49. Das condições de vida e personalidade dos arguidos

Do arguido J.

(…).

II - Antecedentes criminais

20. O arguido J. não tem antecedentes criminais.

Da arguida M

I - Condições sociais e pessoais

(…).

II - Antecedentes criminais

20. A arguida M. tem vários antecedentes criminais, a saber:

(…).

Do arguido P.

I - Condições sociais e pessoais

(…).

II - Antecedentes criminais

O arguido P. não tem antecedentes criminais.

Factos não provados

(…).

Convicção do tribunal

(…).

IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

O Recorrente impugna os factos provados nos pontos nºs 1; 2 (parte); 3; 4; 5; 7 (parte), 8; 9; 10; 11; 12; 13; 15; 17; 24; 25; 26; 27; 28; 29 (parte); e 45 (parte), socorrendo-se da impugnação ampla prevista no artigo 412º, nº 3 e 4, do Código de Processo Penal.

Para estes casos, impõe o artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal ao Recorrente o ónus de proceder a uma tríplice especificação: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas.
Tal especificação traduz-se na indicação: a) dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados e b) do específico meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

No caso dos autos, o Recorrente não individualiza nem os factos que pretende impugnar (são todos os elencados a fls. 2493), nem o meio de prova que, para cada um, impõe decisão diversa da recorrida.

E, se, com algum esforço se conseguiria percepcionar alguns dos factos concretamente impugnados, o mesmo não sucede quanto aos meios de prova genericamente referenciados (abundante prova testemunhal e escutas) ao longo do recurso, não cumprindo o Recorrente o formalismo previsto no artigo 412º, nº 3, alínea b) do Código de Processo Penal, o que conduz à rejeição da impugnação de facto, sem o convite a que alude o artigo 417º, nº 3, do mesmo diploma.

Na verdade, «se o Recorrente não fez constar na própria motivação os elementos necessários ao cumprimento do disposto no artigo 412º, nº 3 do Código de Processo Penal, há motivo legal de rejeição ou de improcedência do recurso nessa parte, sem que ao Recorrente seja dada a oportunidade de suprir o vício dessa falta (…). O relator não tem o dever de convidar o recorrente a aperfeiçoar a própria motivação de recurso quanto à matéria de facto. – [Acórdão do TRL de 20.10.1999, in CJ, 4, 153 e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, página 1147].

Termos em que se rejeita a impugnação de facto, mantendo-se, na integra, a factualidade fixada pela primeira instância.

2. Qualificação jurídico-penal dos factos

2.1. Insurge-se o recorrente contra a subsunção dos factos ao crime de tráfico de estupefacientes do artigo 21º, nº 1 do D.L. nº 15/93, de 22.01, defendendo a sua integração no tipo privilegiado do artigo 25º do citado diploma legal.

Sobre a correlação entre os ilícitos, acentua o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de outubro de 2008 [proc. nº 08P2961, disponível em www.dgsi.pt] que:

«A essência da distinção entre os tipos fundamental (art. 21º) e privilegiado (art. 25º) reverte ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), aferida em função de um conjunto de itens de natureza objectiva que se revelem em concreto, e que devem ser globalmente valorados por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei (…). As referências objectivas contidas no tipo para aferir da menor gravidade situam-se nos meios, na modalidade ou circunstâncias da acção e na qualidade e quantidade das plantas.».

Efectivamente, a tipificação do artigo 25º (…) parece ter o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza (de elevada gravidade, considerando a grande relevância dos valores postos em perigo com a sua prática e frequência desta), encontre a medida justa da punição para casos que, embora de gravidade significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do art. 21º e encontram resposta adequada dentro das molduras penais previstas no preceito em causa. Ao indagar do preenchimento do tipo legal do art. 25º haverá que proceder a uma valorização global do facto, sopesando todas e cada uma das circunstâncias aí referidas, para além de todas as demais susceptíveis de interferir na graduação da gravidade do facto, designadamente as que traduzam uma menor perigosidade da acção e/ou desvalor do resultado, em que a ofensa ou o perigo de ofensa aos bens jurídicos protegidos se mostre significativamente atenuado. Trata-se de um facto típico cujo elemento distintivo do crime tipo reside, apenas, na diminuição da ilicitude, redução que o legislador impõe seja considerável, indicando como factores aferidores de menorização da ilicitude, a título meramente exemplificativo, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.»

Não sendo a enumeração legal taxativa, tem-se ainda entendido que o critério a seguir para qualificar o facto como menos grave ou leve, deverá ser o da valorização global da ocorrência e das concretas e específicas circunstâncias em que se desenvolveu.

Assim, para além das referências à quantidade e qualidade das substâncias traficadas, pode e deve atender-se ao seu grau de pureza ou perigo que representam em razão da sua natureza mais ou menos viciante e, no tocante à modalidade ou circunstâncias da acção, devem ponderar-se, entre outras, as finalidades e as razões que lhe presidiram [v.g, entre outros, Ac. do STJ de 12/3/2003, 24/10/2007, relatados pelo Sr. Conselheiro Rodrigues da Costa e Santos Cabral, in dgsi.pt].

No caso dos autos, a matéria de facto assente demonstra bem o acerto da decisão o Tribunal a quo, ao afastar, no caso, a ilicitude consideravelmente diminuída.

Com efeito,

O arguido dedicou-se ao tráfico de haxixe e cocaína, regular e reiteradamente, durante um período superior a quatro anos; na área da sua residência e concelhos limítrofes, numa zona do interior do país.

Para tanto, socorria-se da colaboração de vários indivíduos, quer nas deslocações ao Porto onde adquiria estupefaciente (factos provados n.ºs 3, 4, 5, 6, 13, 26 a 28,), quer para estabelecer contactos com os consumidores e proceder a entregas de cocaína (v.g a arguida M., factos provados n.ºs 9, 10, 11, 32, 33, 35, 37 e 46), quer, ainda, para a aquisição de cocaína e sua venda (no caso do arguido P. – factos nºs 12, 41, 45), aproveitando-se da dependência emocional da arguida M., que actuava sob as suas ordens e instruções (facto nº 32, entre outros), quer da dependência de drogas dos consumidores que o procuravam;

Mais utilizava o café explorado pelos pais, telemóveis e redes sociais para chegar a um maior número de consumidores; tendo cedido/vendido produtos estupefacientes a cerca de uma dezena e meia de consumidores identificados.

Nas três ocasiões em que foi interceptado, o arguido detinha na sua posse quantidade de estupefaciente suficiente para 40, 10 e 174 doses médias individuais diárias de cocaína.

Por último, não se poderá esquecer que o Recorrente só cessou esta actividade quando foi sujeito a prisão preventiva, revelando uma falta de interiorização do desvalor da sua conduta, depois de ter sido abordado pelas autoridades policiais.

Pelo que, 

A quantidade de droga (a que foi apreendida e a que foi transacionada com os consumidores que se mostram identificados na matéria de facto provada, envolvendo muito relevantes quantias monetárias na sua compra e venda), a natureza (de elevado grau de pureza no que respeita à cocaína) da droga envolvida na actividade de tráfico, a continuidade regular no tempo e no espaço – com definição clara temporal – com as suas deslocações muito regulares ao Porto para comprar a droga - e do âmbito territorial da venda do produto estupefaciente, o número de consumidores alimentado pela actividade desenvolvida pelo arguido (alimentando o vício de estupefacientes num número muito considerável de pessoas, o que permite afirmar uma grau de ilicitude considerável), os períodos temporais relativamente longos, quer relativamente à actividade ocorrida desde o ano de 2015 até à detenção ocorrida a 23.07.2018 seguida do interrogatório judicial no qual lhe foram aplicadas medidas de coação, quer relativamente à actividade tida posteriormente a tal interrogatório até à detenção ocorrida a 05.02.2019, são tudo factores que agravam a ilicitude do facto, afastando a previsão do artigo 25.º, do Decreto Lei nº 15/93, relativamente às actividades levadas a cabo pelo arguido em tambos os períodos de tempo.

Bem andou, pois, o Tribunal recorrido em subsumir o comportamento do arguido ao crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º, do citado Decreto Lei n.º 15/93, não assistindo razão ao Recorrente.

2.2. Alteração substancial ou não substancial dos factos

O arguido/Recorrente foi acusado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-B, anexa àquele diploma legal.

Na sessão de julgamento de 7 de julho de 2020, o Ministério Público, defendendo que os factos constantes na acusação integravam dois (e não um) crimes de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, requereu fosse comunicado aos arguidos a alteração da qualificação jurídica, ao abrigo do disposto no artigo 359º, nº, e 4, e 4 do Código de Processo Penal.

Pronunciando-se, decidiu o tribunal:

«Os factos aludidos na promoção antecedente encontram-se perfeitamente descritos, desde logo, nos pontos 16 e 17 da acusação, onde se refere, em suma que, não obstante o confronto do arguido J. com a instância judicial aquando do seu primeiro interrogatório, o mesmo decidiu retomar a sua actividade de tráfico, como melhor referido nos pontos seguintes daquela peça acusatória.

Por ser assim, nenhuma alteração dos factos descritos na acusação se verifica, nos termos do art.º 1.º, al. f) do C.P.P., mas tão somente da respectiva qualificação jurídica, a consignar dois crimes de Trafico de Estupefacientes, previsto e punidos pelo art.º 21.º, n.º 1 do D.L 15/93 de 22 de janeiro, sob a forma de concurso real efectivo, o que agora se comunica nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 358.º, n.º 1 e 3 do C.P.P.».

Em resposta, o arguido (…) defendeu-se - fls. 2400 a 2402 -, opondo-se à referida alteração da qualificação jurídica dos factos, por violação das garantias de defesa.

No final, o Tribunal a quo condenou (…) pela prática de dois crimes de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro.

Discordante, defende o Recorrente que a qualificação jurídica dos factos feita na acusação é essencial para a preparação da sua defesa, constituindo a sua alteração uma violação inadmissível das garantias de defesa.

Que dizer?

Antes de mais, importa reter que os factos pelos quais o arguido foi condenado constavam na acusação, não sofrendo qualquer modificação após a produção de prova, pelo que apenas interessa a convolação de um crime de tráfico de estupefacientes para dois crimes de tráfico de estupefacientes, da qual decorre uma divergência entre a qualificação jurídica constante da acusação e a que consta no Acórdão recorrido.

Está expresso, no artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

E, no seu n.º 2, que se ressalva do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

Consagra-se, ainda, no seu n.º 3, que o disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia [preceito introduzido pela Lei nº 59/98, de 25 de agosto, resolvendo a controvérsia gerada na versão originária do Código de Processo Penal sobre o regime aplicável à alteração da qualificação jurídico penal dos factos constantes da acusação. A este propósito, vide Assento nº 2/93; Acórdãos do Tribunal Constitucional de 279/95 e 445/97 - este com força obrigatória geral – e Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 3/2000].  

Ou seja, se no decurso da audiência se verificar uma alteração da subsunção jurídico penal dos factos narrados na acusação, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa [artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ex vi n.º 3, do mesmo Código], assegurando-se, deste modo, as garantias de defesa do arguido [artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa].

Daqui decorre que à mera alteração da qualificação jurídica, embora não seja uma alteração de factos, substancial ou não substancial, é-lhe, porém, aplicado o regime da alteração não substancial dos factos.

No caso dos autos, é inequívoco que, contrariamente ao afirmado pelo Recorrente, a convolação de um crime de tráfico de estupefacientes para dois crimes de tráfico de estupefacientes assentou na factualidade descrita na acusaçãoocorreu após a produção de prova e foi efetivamente comunicada ao arguido, com a concessão de prazo para defesa [cf. fls. 2385 a 2386], assim se salvaguardando os direitos de defesa e do contraditório do Recorrente, que, aliás, exerceu, nos termos que melhor entendeu [fls. 2401 a 2402].


*

O Recorrente tem ainda como violador do principio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, a condenação por dois crimes de tráfico de estupefacientes, por contraposição à condenação da arguida M. pela prática de um só crime.

Mas sem razão.

O principio da igualdade, no domínio da aplicação do direito, único que aqui releva, significa que nessa aplicação não há lugar a discriminação em função das pessoas; todos beneficiam por forma idêntica dos direitos que a lei estabelece, todos por forma idêntica se acham sujeitos aos deveres que ela impõe [Parecer da PGR, Pareceres da PGR, n.º I, pág. 184], o que não se verifica no nosso caso.

Na verdade, os arguidos foram condenados em função dos factos que cada um praticou e não em função das pessoas que são.

As circunstâncias em que o Recorrente desenvolveu a actividade de tráfico de estupefacientes antes e depois do dia 23 de julho de 2018 [data em que foi submetido a um primeiro interrogatório judicial] em nada se assemelham à participação da arguida M. naquela mesma actividade. A acusação diferencia as duas condutas imputando aos arguidos factos diferentes [cf. factos n.ºs 1, a 15, 17 a 31] e crimes diferentes [um crime tráfico para o Recorrente e um crime de tráfico para consumo para a arguida].

No facto nº 17, acusava-se o Recorrente (e não a arguida M.) de, apesar de ter sido submetido a interrogatório judicial em 24 de julho de 2019, continuar a vender cocaína a quem o procurasse, nomeadamente nas circunstâncias descritas nos factos n.ºs 18 a 23, o que, em audiência, despoletou a questão de saber se deveria ser punido pela prática de dois crimes de tráfico em concurso real, ao invés do crime de tráfico imputado na acusação.

É, neste contexto, que o Tribunal recorrido, mantendo a factualidade acusatória, modifica a qualificação jurídica e imputa apenas ao Recorrente, a prática, em concurso real, de dois crimes e não apenas um) previstos e punidos pelo artigo 21.º, do Decreto Lei 15/93, assim justificando a diferença de decisões judiciais relativamente aos dois arguidos, sem qualquer ofensa à violação do principio da igualdade.

2.3. Concurso real de crimes versus crime continuado

Antes de mais, importa referir que, no caso, não está em causa apreciar a natureza do crime de tráfico de estupefacientes - crimes prolongado, habitual, protelado, protraído, de empreendimento, exaurido ou de trato sucessivo [c.f. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de maio de 1993, [CJSTJ 1993, tomo II, pág. 220]; de 18 de abril de 1996 (CJSTJ 1996, tomo II, pág. 170); de 18 de junho de 1998 (CJSTJ 1998, III, pág.168); 14 de fevereiro de 2002 (proc. 4444/01); 3 de julho de 2002 (proc. 1533/02) 26 de janeiro de 2005 (proc.3025/04); 12 de julho de 2006 e 16 de abril de 2009, (proc. Nº 08P3375), estes acessíveis em www.dgsi] – mas tão só se o conjunto de actos de detenção e/ou cedência/venda de cocaína praticados após 23 de julho de 2018 são susceptíveis de integrar um crime de tráfico de estupefacientes autónomo, independente e diferenciado do anterior.

É que o Recorrente apenas traz à discussão a questão de saber se o seu comportamento anterior e posterior a 23 de julho de 2018 integra a comissão de dois crimes de tráfico de estupefacientes simples, como entendeu o tribunal recorrido ou, se pelo contrário, se enquadra numa conduta unificada por uma continuação criminosa.

É este impasse que nos cumpre solucionar.

É sabido que, por regra, a actuação do agente se traduz na violação de uma só norma jurídica mediante a prática de um só acto, estando nós, então, perante um caso de unidade de infracção, existindo, contudo, casos em que ocorre violação da mesma ou de diferentes normas legais, realizada mediante acções separadas, ocorrendo, então um concurso real.

Assim, dispõe o artigo 30.º, 1, do Código Penal, que o número de crimes se determina «pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo numero de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».

Como excepção a este principio, prevê o nº 2 do mesmo preceito e diploma que «constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente».

Ensina Eduardo Correia [Unidade e Pluralidade de Infracções – Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, pág. 337], que se estaremos perante uma unidade jurídica única, uma só infracção, quando se verifique entre as actividades do agente uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência comum e as leis psicológicas conhecidas, se deva presumir tê-las executado a todas sem renovar o respectivo processo de motivação. 

A homogeneidade das diversas formas de comissão é dada por uma unidade de contexto situacional que, por sua vez, pode ser indiciada pela proximidade de espaço e tempo das diversas condutas [Figueiredo Dias, Direito Penal, II, pág. 1030].

O crime continuado, apesar de englobar «actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime — ou mesmo diversos tipos legais de crime, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico —, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções criminosas (...), devem, todavia, ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente; precisamente porque existiu uma situação de fora que, de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito». [Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pág 209].

Encontra-se mais ou menos sedimentado na jurisprudência e doutrina, que o crime continuado impõe a verificação, cumulativa, dos seguintes requisitos:

a) realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que protejam, fundamentalmente, o mesmo bem jurídico;

b) homogeneidade na forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);

c) unidade do mesmo bem jurídico (unidade do injusto do resultado);

c) unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção. As diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma linha psicológica continuada).

d) lesão do mesmo bem jurídico;

e) persistência de uma situação exterior que facilite a execução e diminua consideravelmente a culpa do agente. (Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado 1º vol., pág. 397).

O crime continuado só se verificará se se puder concluir que, face à unidade de resolução, os vários actos serão o resultado de um só processo de deliberação, sem serem determinados por uma nova motivação, que tenha em conta os contra motivos de ordem jurídico-criminal em cada caso.

Na unidade criminosa (…) não basta mostrar que o elemento unificador não implica maior gravidade penal das diversas actividades que se lhe referem – é preciso também demonstrar que esse elemento importa uma reprobabilidade menor que justifique o tratamento dessas actividades como uma só. [Conselheiro Sousa Guedes, no voto de vencido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Abril de 1996, in CJSTJ, tomo II, pág. 173].

Dito isto e de volta ao caso,

Para o Recorrente a existência uma única resolução e de circunstâncias exógenas e endógenas facilitadoras da venda dos estupefacientes a diversos consumidores, diminui consideravelmente a sua culpa, tendo, por isso, cometido um só crime sob a forma continuada.

Todavia, a matéria de facto provada, maxime, os pontos nº 1 a 12; 15 a 17 e 22 a 28, de um lado, traduz dois conjuntos de acções levadas a cabo pelo recorrente incompagináveis com uma única resolução criminosa e, de outro, arreda qualquer condição externa diminutiva da sua culpa.

É que, a prática simultânea e/ou sucessiva dos múltiplos actos tráfico enunciados nos factos nºs 1 a 12; 23 (alguns); 24 e 25, sob um único desígnio criminoso, o de vender estupefacientes, principalmente, cocaína e haxixe, a quem o procurava para tal finalidade, corresponde à comissão de um único crime de tráfico que terminou com a prática do último acto ilícito, qual seja, a posse pelo Recorrente de 15,534 g de cocaína, na sequência do que, foi detido em flagrante delito, submetido a interrogatório judicial e sujeito a medidas de coacção (apresentação periódicas e proibição de frequentar locais conotados com o tráfico de estupefacientes).

O conjunto destes actos determinaram o fim da actividade até então desenvolvida pelo Impugnante.

Neste sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça que, nos Acórdãos de 12 de junho de 2002 (proc. nº 1087/2002) e 3 de julho de 2002, (proc. nº 1533/02), in sumários STJ, 2002, decidindo:

A intervenção policial, a detenção do arguido, a apreensão dos bens relacionados com a actividade criminosa, bem como a apresentação do arguido perante o juiz de instrução, provocaram como que um curto-cirtuito na actividade que o arguido vinha desenvolvendo, fazendo-a cessar, tornando necessária a renovação da resolução criminosa inicial.

Ademais, ressuma expressamente da facticidade provada (nºs 14 a 17), que o Recorrente, apesar das intervenções policiais e judiciais, decidiu continuar a vender cocaína a quem o procurasse para tal, o que veio a suceder, nomeadamente, desde setembro de 2018 a 5 de fevereiro de 20019, data em que foi de novo detido (factos nºs 18 a 22; alguns factos do nº 23 e 26 a 28).

Foi esta nova decisão, este novo momento volitivo autónomo e independente do anterior que induziu o Recorrente à prática dos novos actos de tráfico.

Pelo que, as actuações anteriores a 23 de julho de 2018 e as posteriores a 4 de setembro de 2018, não decorrem  de uma unidade resolutiva (na linha psicológica continuada), perfectibilizando, assim, dois crimes de tráfico e não uma conduta unificada por continuação criminosa, como defendido pelo Recorrente [cf. a este propósito, Eduardo Correia, ob. citada, pág.s 201 e 202 e, entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de janeiro de 2002 (proc. nº 3036/01); 14 de fevereiro de 2002 (proc. nº 4444/01);  de 3 de julho de 2002, (proc. nº 1533/02); 26 de janeiro de 2005 (proc. nº 3025/04); 22 de junho de 2005 (proc. 1669/05) e  12 de julho de 2006 (proc. nº 1709/06)].

Numa outra perspectiva, não podemos deixar de salientar que as intervenções da autoridade policial e da autoridade judiciária constituem uma circunstância externa agravante e não diminutiva da culpa.

Ou, nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de janeiro de 2002 (proc. nº 3036/01), verificando-se a intervenção das autoridades policiais, do sistema judiciário, que necessariamente reafirmam a validade e imperatividade das normas que proíbem o tráfico de estupefacientes, se o arguido retoma o comportamento anterior, há inelutavelmente uma nova decisão apesar do reforço do conteúdo de proibição, com culpa agravada e não diminuída, o que nos leva à punição autónoma da conduta reiniciada.

O arguido, apesar de ter sido detido em flagrante delito, submetido a primeiro interrogatório judicial e sujeito a medidas de coacção não privativas de liberdade e advertido para a gravidade da ilicitude e censurabilidade dos seus actos, renovou a sua vontade de delinquir, mostrando-se indiferente a qualquer quadro externo que aligeirasse a culpa. [Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de julho de 2002, proc. (1533/02) citado e de 24 de maio de 2000, relatado pelo Sr. Conselheiro Leal Henriques, CJSTJ, 2000, Tomo II, pág. 203].

A carga dolosa com que actuou após a intervenção estatal saiu reforçada e agravada, uma vez que ele não se deixou motivar pelos valores da ordem jurídica apesar de eles lhe terem sido lembrados -  Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, pág. 224.

O arguido, ao renovar a sua intenção e vontade de, em liberdade, reiterar a actividade de tráfico, afastou qualquer circunstância externa susceptível de reduzir a culpa nas acções subsequentes a 23 de julho de 2018, sendo irrelevante, para este efeito, que seja toxicodependente (uma solicitação endógena e não exógena para a continuação da prática do crime). - [neste sentido, cf. entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de dezembro de 1993 (proc. 295/92); de 5 de fevereiro de 1997 (proc. nº 32/94) e de 24 de Maio de 2000].

Desta feita;

o comportamento do Recorrente, ao contrário de assumir menor grau de censurabilidade que justifique o tratamento das duas actividades de tráfico como se fossem uma só, revela duas unidades resolutivas autónomas, claramente distintas e diferenciáveis, separadas pelo marco da detenção em flagrante delito no dia 23 de julho de 2018. Após esta data, o arguido voltou a determinar-se (dolo) em prosseguir a actividade de venda de cocaína, concretizando-a com o cometimento dos factos delituosos provados sob os n.ºs 18 a 22; 23 (parte) e 26 a 28, expurgados de qualquer solicitação externa atenuante da culpa, o que traduz um concurso efectivo de duas infracções e não um só crime, na forma continuada.

Bem andou, assim, o Tribunal a quo, em condenar o Recorrente pela prática, em concurso real, de dois crimes de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº1, do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de janeiro.

3. Medida da pena

(…).

V. DECISÃO

Nestes termos, os Juízes, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, acordam em julgar não provido o Recurso interposto por J..

Custas pelo Recorrente, com taxa de justiça individual que se fixa em 4 UCS.

Notifique.

Coimbra, 20 de Janeiro de 2021

Alcina da Costa Ribeiro (relatora)

Ana Carolina Cardoso (adjunta)