Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
148/07.0TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
CADUCIDADE DA DECLARAÇÃO DE UTILIDADE PUBLICA
OBRA CONTINUA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 03/11/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 5º, Nº3, E 13º, NºS 3 E 7, DO CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES (D. L. Nº 168/99, DE 18/09)
Sumário: I – De acordo com o disposto no artº 13º, nº 3, do CE99, a declaração de utilidade pública caduca se não for promovida a constituição da arbitragem no prazo de um ano ou se o processo de expropriação não for remetido ao tribunal competente no prazo de 18 meses, em ambos os casos a contar da data da publicação da declaração de utilidade pública.

II – Porém, no nº 7 desse mesmo artº 13º, do CE99, estabelece-se que, tratando-se de uma obra contínua, a caducidade da DUP não pode ser invocada depois de a obra ter sido iniciada em qualquer local do respectivo traçado, salvo se os trabalhos forem suspensos ou estiverem interrompidos por prazo superior a 3 anos.

III – Entende-se por obra contínua aquela que tem configuração geométrica linear e que, pela sua natureza, é susceptível de execução faseada ao longo do tempo, correspondendo a um projecto articulado, global e coerente –artº 5º, nº 3, do CE99.

IV – No CE91 a caducidade da DUP não previa a excepção estabelecida no nº 7 do artº 13º do CE99.

V – Suscitando-se a questão da aplicação desses dois códigos no tempo, no que tange às normas adjectivas aplica-se o princípio geral relativo ao direito processual, isto é, a lei nova é de aplicação imediata.

VI – A regra que estabelece a caducidade da DUP regula directamente o conteúdo da situação do expropriado, abstraindo dos factos que lhe deram origem, razão pela qual a lei aplicável é a que vigorar à data da apreciação dessa caducidade.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

        A..., instaurou acção declarativa de condenação, com processo comum e forma ordinária, contra o Município da Guarda, com sede na Praça do Município, na Guarda, pedindo que:

(a) se declare a caducidade da declaração de utilidade pública n.º 177/98, publicada no Diário da República nº 112/98, IIª Série, de 15 de Maio de 1998, através da qual foi declarada a utilidade pública e atribuído carácter urgente à expropriação da parcela n.º 14, a desanexar dos prédios identificados nos artigos 1º e 2º da petição inicial; e, em consequência dessa declaração,

(b) se declare que se mostram extintos todos os efeitos da dita declaração de utilidade pública, bem como todos os actos dela dependentes; e

(c) se declare que, por força de tal declaração de caducidade, a autora readquiriu de forma plena todos os direitos sobre os imóveis expropriados, nas condições e com a amplitude que tinham à data da declaração de utilidade pública.

         Para tanto, alega, em síntese, que, publicada, em 15/05/1998, a declaração de utilidade pública (doravante, por facilidade, DUP) e logo tomada posse administrativa da parcela de terreno, o réu executou, há mais de quatro anos, uma via de circulação terrestre no local, que se encontra já aberta ao público; e que, não tendo sido alcançado acordo quanto ao montante indemnizatório, a expropriante nunca promoveu a constituição do colégio arbitral ou remeteu o processo de expropriação a tribunal.

         O Município da Guarda, regularmente citado, contestou por excepção e por impugnação. Excepcionando, arguiu a ilegitimidade passiva, por não ser ele o autor da DUP. Impugnando, alegou que a A. autorizou a tomada de posse dos terrenos e que a obra construída, concluída há mais de 4 anos e aberta ao trânsito, não pode ser destruída, restando à autora o direito de ser indemnizada pelo valor da parcela, valor este relativamente ao qual têm posições divergentes.

         A A. replicou pugnando pela improcedência da excepção e requerendo, para a hipótese de assim não se entender, a intervenção do Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional.

         Realizou-se uma audiência preliminar, expressamente convocada com vista à apreciação da questão da competência material do tribunal, nela tendo sido tentada, sem êxito, a conciliação das partes.

         Foi proferido despacho saneador em que se decidiu ser o tribunal materialmente competente; ter o R. legitimidade passiva; verificarem-se os demais pressupostos processuais; e, por fornecerem já os autos os elementos necessários ao conhecimento do mérito da causa, julgar a acção improcedente e absolver o R. do pedido.
         Inconformada, a A. apelou e, na alegação apresentada, formulou as conclusões seguintes:
         1) O Tribunal a quo decidiu-se pela absolvição do pedido por considerar que a caducidade da DUP suscitada pela Ré não poderia ser excepcionada uma vez que a obra levada a cabo na parcela expropriada era contínua nos termos em que a define o nº 7 do art. 13 do Código das Expropriações na redacção que lhe foi dada pelo D.L. 168/99 de 18/9.
         2) Porém, não só tal característica – o carácter contínuo da obra – não foi vertida no elenco dos factos considerados assentes na fundamentação, como não vêm igualmente aí vertidos quaisquer factos materiais susceptíveis de a qualificar enquanto tal – enquanto obra contínua.
         3) De resto, nem a própria recorrida, Ré nos presentes autos, levou aos autos em qualquer peça articulada ou requerimento quaisquer factos susceptíveis de qualificar tal obra como contínua.
         4) Nem tão pouco invocou tal excepção – obra contínua – em quaisquer peças ou requerimentos por si aduzidos.
         5) Assim, nesta parte, a douta sentença recorrida inobservou o disposto na segunda parte do art. 664º do Código de Processo Civil que determina não poder o Tribunal a quo alicerçar a sua decisão em factos que não foram alegados pela parte a quem tal invocação aproveitaria – proibição da ciência privada do julgador.
         Noutra parte,
         6) A douta sentença recorrida alicerçou o mérito da sua decisão absolutória no corpo do nº 7 do art. 13º do D.L. 168/99 de 18/9.
         7) Todavia a questão da CADUCIDADE não deveria ter sido valorada e julgada autonomamente, ou seja, desgarrada dos factos que lhe dão origem.
         8) Com efeito, a CADUCIDADE, compreendida toda a dinâmica factual que a enforma e a ela está inerente, não pode abstrair-se do facto que lhe dá origem isto é, da DUP.
         9) Assim, no que à caducidade do acto da DUP diz respeito, deveria a douta sentença recorrida aplicar o regime previsto no Código das Expropriações de 1991 – subjacente ao D.L. 438/91 de 9/11 – o que vai de encontro ao principio geral do direito administrativo que refere que, os actos administrativos se regem pela lei vigente à data da sua prática, além de que está em causa um direito de natureza análoga a direitos, liberdades, e garantias, cujas restrições e limitações estão sujeitas aos limites dos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade.
         10) Por conseguinte, deveria na douta sentença recorrida se ter decidido pela procedência da invocada excepção de caducidade da DUP.
         Assim,
         11) A douta decisão recorrida, por nem sequer ter sido alegado pela recorrida, e não constar do elenco dos factos assentes, não se deveria ter pronunciado acerca do carácter contínuo da obra,
         12) Na douta decisão recorrida dever-se-ia ter optado por aplicar ao caso sub judice a Lei 438/91 de 9/11, concretamente o nº 3 do seu art. 10º, e não o nº 7 do art. 13º do D.L. 168/99 de 18/9.
         13) Assim, no douto aresto recorrido, mostram-se inobservados os preceitos constantes dos arts. 664º do Código de Processo Civil; art. 12º do Código Civil, nº 3 do art 10º do D.L 438/91 do 9/11, e arts. 20º, 62º e 268º da C.R.P.
         14) Por consequência, revogando a decisão de primeira instância, e substituindo-a por outra que julgue absolutamente procedente todos os pedidos formulados pela recorrente, maxime a caducidade da DUP, farão VOSSAS EXCELÊNCIAS JUSTIÇA.
         O recorrido respondeu defendendo a manutenção, na íntegra, da sentença sob recurso.
         Foi pela recorrente junto um parecer destinado “a alicerçar a sua pretensão revogatória” do saneador-sentença recorrido.
         Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.

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         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as seguintes questões:
         a) Se, “in casu”, é aplicável o Código de Expropriações aprovado pelo Dec. Lei nº 438/91, de 09/11 ou o aprovado pela Lei nº 168/99, de 18/09;
         b) Se, “in casu”, pode classificar-se de contínua a obra em vista da qual foi proferida a DUP e, no caso afirmativo, se tal facto – carácter contínuo da obra – pode ser levado em consideração na decisão.
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         2. FUNDAMENTAÇÃO
         2.1. De facto
         Na decisão recorrida foram considerados assentes, porque admitidos por acordo ou provados por documentos, com relevo para a boa decisão da causa, os seguintes factos:

a) Por despacho do Sr. Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, proferido no dia 17 de Abril de 1998, publicado no Diário da República, IIª Série, de 15/5/1998, a pedido da Câmara Municipal da Guarda e destinada à construção da VICEG – via de cintura externa da Guarda (1ª fase), foi declarada a utilidade pública, com carácter urgente, da expropriação da parcela de terreno n.º 14, com a área de 4262 m2, que faz parte dos prédios denominados (cfr. doc. de fls. 57):

- «Quinta da Calçada», inscrito na matriz predial rústica da freguesia da Sé, concelho da Guarda, sob o artigo 2814º e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 00728/01071987, ali inscrito pela ap. n.º 10/210390 a favor de A...;

- «Quinta da Silveirinha», inscrito na matriz predial rústica da freguesia da Sé, concelho da Guarda, sob o artigo 2075º e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º 01438/230890, ali inscrito pela ap. n.º 16/230890 a favor de A...;

b) A aquisição do direito de propriedade sobre os prédios referidos em a), pelas inscrições referidas em a), encontra-se registada em nome da autora – cfr. docs. de fls. 10 a 13;

c) Na data da publicação da DUP, a entidade expropriante tomou a posse administrativa da referida parcela de terreno – admitido por acordo;

d) Tendo aí procedido à execução das obras a que se propôs, trabalhos estes que se mostram concluídos há mais de 4 anos – admitido por acordo;

e) Desde então até à presente data essa via encontra-se aberta ao trânsito – admitido por acordo;

f) A autora e o réu não chegaram a acordo relativamente à aquisição amigável de tal parcela, nunca tendo acordado ou fixado por qualquer meio o montante indemnizatório devido pela expropriação da parcela – admitido por acordo;

g) O réu nunca promoveu a constituição da arbitragem – admitido por acordo;

h) Nunca remeteu o processo de expropriação para tribunal – admitido por acordo;

i) Nunca prestou a caução relativa ao valor da expropriação da parcela – admitido por acordo.


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         2.2. De direito

         2.1.1. Lei aplicável

Tendo a DUP sido publicada em 15/05/1998, vigorava nessa data o Código das Expropriações aprovado pelo Dec. Lei nº 438/91, de 09/11 (CE91). Contudo, quando a acção foi intentada, em 17/01/2007, encontrava-se em vigor, desde 17/11/1999, o Código das Expropriações aprovado pela Lei nº 168/99, de 18/09 (CE99).

         Surge, pois, um problema de aplicação da lei no tempo, já que na decisão sob recurso foi aplicado o CE99 e a recorrente sustenta que seria aplicável o CE91.

         A questão é de extrema relevância porque a decisão sob recurso julgou a acção improcedente com base no artº 13º, nº 7 do CE99, onde se estabelece que, tratando-se de obra contínua, a caducidade da DUP não pode ser invocada depois de aquela ter sido iniciada em qualquer local do respectivo traçado, salvo se os trabalhos forem suspensos ou estiverem interrompidos por prazo superior a três anos. 

         E o CE91, embora previsse no seu artº 10º, em termos semelhantes mas não totalmente coincidentes aos do artº 13º do CE99, a caducidade da DUP, não previa a excepção estabelecida no nº 7 deste último preceito.

         Ou seja, no domínio do CE91 não se fazia qualquer distinção, no que tange à caducidade da DUP, entre obra contínua ou não contínua, podendo sempre o interessado invocar a caducidade se a entidade expropriante não tivesse promovido a constituição de arbitragem no prazo de um ano ou o processo de expropriação não fosse remetido ao tribunal competente no prazo de dois anos, em ambos os casos a partir da data da publicação do acto de declaração.

         Há, portanto, que enfrentar a enunciada questão de aplicação da lei no tempo.

         É praticamente consensual na doutrina e na jurisprudência que a expropriação deve reger-se, nomeadamente no que respeita às regras jurídicas sobre a indemnização, dada a sua natureza substantiva, pela lei vigente à data da publicação da DUP[1].

         No que respeita ao cálculo do montante da indemnização a lei é mesmo expressa, estabelecendo que, sem prejuízo da pertinente actualização, é o mesmo efectuado com referência à data da DUP – artºs 23º, nº 1 do CE91 e 24º, nº 1 do CE99.

         Essa regra, contudo, não é absoluta, comportando excepções.

         Assim, no que tange às normas adjectivas, não havendo direito transitório que dite actuação diversa, aplica-se o princípio geral relativo ao direito processual, ou seja, a lei nova é de aplicação imediata. Como ensina o Prof. Oliveira Ascensão[2], “em coerência com a presunção de que a lei nova traz um critério de actuação mais perfeito do que o praticado até então, aplica-se esta desde logo aos processos que estão a correr, cujos trâmites se devem adaptar aos que foram agora prescritos”.

         Relativamente à caducidade da DUP, há que começar por constatar que a figura da caducidade se integra na parte geral do direito, respeitando às várias áreas por ele abrangidas, não sendo exclusivo de qualquer dos seus ramos, nomeadamente das expropriações.

         Por isso, a sucessão de leis sobre caducidade não pode deixar de ter um tratamento uniforme, sem atentar ao ramo específico do direito concretamente em causa. E essa uniformidade encontra-se através da aplicação, prevista genericamente para todo o universo do direito, pelas regras constantes do artº 12º do Código Civil.

         Aí se estatui:

         1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.

         2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.

         Não há dúvida de que o facto constitutivo da relação jurídica de expropriação é a DUP[3]. Mas com ela a relação jurídica apenas se inicia, originando, durante a sua vida, situações jurídicas que com ela se não confundem.

         “Afirma-se que a lei aplicável às expropriações por utilidade pública é a que vigorar à data da respectiva declaração. Mas uma coisa é regular o acto expropriativo, outra regular as situações jurídicas resultantes da declaração de utilidade pública. O critério geral do artigo 12º do Código Civil, como critério universal da lei portuguesa, também tem aqui aplicação.

         Consequentemente, a lei que regula o acto expropriativo só visa os factos novos: é o que se quer dizer quando se afirma que é aplicável a lei que vigorar à data da declaração de utilidade pública. Mas a regra que estabelece a caducidade regula directamente o conteúdo da situação do expropriado, abstraindo dos factos que lhe deram origem. Quer dizer, atende-se à situação daquele cuja esfera jurídica foi atingida pelo acto de expropriação, nada relevando agora a consideração do acto em si. Nos termos do mesmo nº 2, regula-se o conteúdo da relação – abstraindo dos factos que lhe deram origem. A lei aplica-se então às próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”[4].

         Como se refere no acórdão da Relação do Porto de 07/07/2005[5], a regra que estabelece a caducidade regula directamente o conteúdo da situação do expropriado, abstraindo dos factos que lhe deram origem.

         Conclui-se, portanto, contra o defendido pela recorrente, que, no caso em apreciação, no que se refere à caducidade da DUP da expropriação, é aplicável o CE99 e não o CE91.


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         2.2.1. Carácter contínuo da obra e admissibilidade de utilização desse facto

         De acordo com o artº 13º, nº 3 do CE99, sem prejuízo do disposto no nº 6[6], a declaração de utilidade pública caduca se não for promovida a constituição da arbitragem no prazo de um ano ou se o processo de expropriação não for remetido ao tribunal competente no prazo de 18 meses, em ambos os casos a contar da data da publicação da declaração de utilidade pública.

         Porém, segundo o nº 7 do mesmo preceito legal, tratando-se de obra contínua, nos termos do nº 3 do artigo 5º, a caducidade não pode ser invocada depois de aquela ter sido iniciada em qualquer local do respectivo traçado, salvo se os trabalhos forem suspensos ou estiverem interrompidos por prazo superior a três anos.

         Entende-se por obra contínua aquela que tem configuração geométrica linear e que, pela sua natureza, é susceptível de execução faseada ao longo do tempo, correspondendo a um projecto articulado, global e coerente – artº 5º, nº 3.

         Como consta da própria DUP, a expropriação da parcela de terreno nº 14, que faz parte dos prédios da recorrente denominados «Quinta da Calçada» e «Quinta da Silveirinha», destinava-se à obra de construção da VICEG – via de cintura externa da Guarda – 1ª fase.

         É seguro, pois – e a recorrente parece conformar-se com tal juízo – que se trata de uma obra contínua, naquele específico sentido previsto no artº 5º, nº 3.

         Mas, diz a recorrente, esse facto – carácter contínuo da obra – não foi alegado pela R./recorrida nem consta do elenco dos factos considerados assentes na fundamentação da decisão sob recurso. Por isso, face ao mandamento ínsito no artº 664º do Cód. Proc. Civil, não podia o juiz servir-se dele na decisão.

         No entanto, foi o própria recorrente que alegou na petição inicial que a expropriação em causa se destinou à execução da 1ª fase da obra de construção de Via de Cintura Externa da Guarda – VICEG, tendo, na data da publicação da DUP, a entidade expropriante entrado na posse da parcela e aí procedido, de imediato, à execução das obras a que se propôs (artºs 6º e 7º). E a recorrida, na contestação, reafirmou o aludido destino da parcela expropriada e confirmou que a obra – construção da 1ª fase da VICEG – foi executada e concluída há mais de quatro anos, tendo desde então e até à presente data essa via sido aberta ao trânsito.

         E no elenco dos factos provados que constitui a fundamentação de facto da decisão recorrida consta precisamente que a expropriação se destinou à construção da VICEG – via de cintura externa da Guarda (1ª fase), tendo na data da publicação da DUP a entidade expropriante tomado posse administrativa da referida parcela de terreno, e aí procedido à execução das obras a que se propôs, cujos trabalhos se mostram concluídos há mais de 4 anos, encontrando-se, desde então até á presente data, essa via aberta ao trânsito (cfr. ponto 2.1., als. a), c), d) e e), supra].

         Tal factualidade, cuja alegação pelas partes nos articulados e inclusão pelo tribunal “a quo” no elenco dos factos provados feito na decisão recorrida é inegável, é a necessária e suficiente para permitir concluir, em sede de fundamentação de direito, pela natureza contínua da obra e, consequentemente – não tendo sido alegado nem provado[7] que os trabalhos, antes da respectiva conclusão, tivessem estado suspensos ou interrompidos por prazo superior a três anos (parte final do nº 7 do artº 13º do CE99) – pela inadmissibilidade de invocação da caducidade da DUP.

         É certo que, muito correctamente, não foi alegado, nem consta dos factos provados, expressis verbis, que a obra era contínua. Tal alegação e eventual inclusão nos factos provados não passariam de uma incorrecção processual, já que, na circunstância, se trataria claramente de um conceito conclusivo e de direito. Ao qual haveria que chegar, como se chegou, em sede de fundamentação jurídica, através de factualidade concreta – essa sim, alegada e integrada na fundamentação de facto.

         Realça-se que a inadmissibilidade de invocação da caducidade da DUP em caso de obra contínua, prevista no nº 7 do artº 13º do CE99[8], não contende com os direitos, liberdades e garantias do expropriado nem viola quaisquer princípios constitucionais, nomeadamente os da adequação, necessidade e proporcionalidade.

         Pelo contrário, esses princípios resultariam violados se, dando-se razão à recorrente – que optou por não exigir a justa indemnização –, fosse declarada a caducidade da DUP e, apesar de estar assente que na parcela expropriada foi construído um troço da VICEG, há mais de quatro anos aberta ao trânsito, se reconhecesse, como ela pediu, que readquiriu de forma plena todos os seus direitos sobre os imóveis expropriados, nas condições e com a amplitude que tinham à data da DUP.

         Nega-se, também quanto a esta questão, razão à recorrente.

         Soçobrando todas as conclusões da alegação de recurso e não se mostrando violadas quaisquer normas, nomeadamente as indicadas pela recorrente na conclusão 7ª, improcede a apelação, com a consequente manutenção da decisão recorrida.


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         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.

         As custas são a cargo da recorrente.


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                                                        Coimbra,


[1] Acórdãos do STJ de 18/06/1974 (BMJ, 238,165), 09/07/1974 (BMJ, 239,88) e 20/10/80 (BMJ, 301, 309); Acórdãos da Rel. de Lisboa de 23/02/1989 (CJ, XIV, 1, 138) e 10/03/1994 (CJ, XIX, II, 83); e Fernando Alves Correia, “As grandes linhas da recente reforma do Direito Urbanístico Português”, pág. 70.
[2] Introdução ao Estudo do Direito, Ano lectivo de 1970/1971, Revisão parcial em 1972/1973, edição dos Serviços Sociais da Universidade de Lisboa, pág. 423.
[3] Acórdãos do STJ de 04/01/79 (BMJ, 283, 172) e de 15/10/91 (BMJ, 410, 478).
[4] “Reforma Agrária e Expropriação por Utilidade Pública”, parecer do Prof. Oliveira Ascensão, publicado na CJ, XVII, II, pág. 36.
[5] Proc. nº 0523469, Nº Conv. JTRP00038269, relatado pelo Des. Cândido Lemos, in www.dgsi.pt/jtrp. Cfr. também o acórdão da mesma Relação de 6/5/96, aí citado, em cujo sumário se afirma que “a questão da caducidade, sendo de natureza substantiva deve, no entanto, ser regulada pela lei nova porque não está relacionada com a concreta expropriação que teve lugar, mas reporta-se ao conteúdo da relação de caducidade quando o expropriado se disponha a invocá-la”.
[6] No nº 6 estabelece-se que “renovada a declaração de utilidade pública, o expropriado é notificado nos termos do n.° 1 do artigo 35.° para optar pela fixação de nova indemnização ou pela actualização da anterior, nos termos do artigo 24.°, aproveitando-se neste caso os actos praticados”.
[7] Ónus que, de acordo com as regras dos artºs 341º e seguintes do Cód. civil, recairia sobre a recorrente.
[8] Importa acentuar que não está em causa a inadmissibilidade genérica da caducidade da DUP. Está em causa tão só e apenas a inadmissibilidade da caducidade da DUP em caso de obra contínua, nos exactos termos do nº  7 do artº 13º do CE99.