Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1885/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: FALÊNCIA
FIADOR
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 06/22/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTºS 8º, Nº 3, 27º, Nº 2, 156º, Nº 1 E 158º, AL. E) DO CPEREF, APROVADO PELO DL Nº 132/93, DE 23/04, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELO DL Nº 315/98, DE 20/10 E 627º, Nº 2, 638º E 640º, AL. A) DO CÓD. CIVIL.
Sumário: Na vigência do CPEREF aprovado pelo DL nº 132/93, de 23/04, com as alterações introduzidas pelo DL nº 315/98, de 20/10, o credor tem legitimidade para requerer a falência de fiador que não goze do benefício de excussão prévia.
Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO
A "Caixa Geral de Depósitos, SA", com sede na Avenida João XXI, nº 63, 1017, Lisboa, requereu, com base nos artºs 3º, 8º e 27º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), o decretamento da falência de A e mulher, B, residentes na Praça de Ceuta, nº7, Bairro Norton de Matos, em Coimbra, alegando que na sequência de um contrato de mútuo que celebrou com uma sociedade terceira, emprestou a esta a quantia de 159.615,32 Euros (capital), tendo nesse contrato, os ora requeridos assumido responsabilidade solidária como fiadores e principais pagadores; que aquela mutuária, deixou de pagar aos seus credores, encontrando-se em situação de grave ruptura económica, o que determina que os aqui requeridos sejam devedores da referida quantia e acréscimos de indemnização moratória, encontrando-se, no entanto, os mesmos, em situação de insolvência, pois que apenas possuem um prédio, que já se encontra onerado com várias inscrições hipotecárias e não têm meios próprios de liquidez nem dispõem de crédito bancário para solver as dívidas.
Feitas as citações previstas no artº 20º e dada vista dos autos ao Ministério Público, nos termos do artº 22º, ambos do CPEREF, foram justificados créditos por parte do Banco Totta & Açores, S.A., Victor Manuel Martins da Costa e mulher, Lídia Maria Lobo de Oliveira e José Martins Borges Pinto e mulher Maria da Conceição Taborda Nogueira Pinto.
Os requeridos deduziram oposição alegando, além do mais sem relevância para o presente recurso, que falta à requerente legitimidade activa, pois a relação de fiança, não lhe concede a indispensável qualidade de credora dos demandados.
A requerente respondeu, defendendo ser parte legítima.
Foi, depois, proferida a decisão de fls. 148 a 150 julgando procedente a excepção da ilegitimidade activa e absolvendo os requeridos da instância.
Irresignada, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. recorreu e, no final da alegação apresentada, formulou as conclusões seguintes:
1) Sendo proposta uma acção contra os fiadores e principais pagadores e não tendo estes impugnado essa qualidade, deve ser entendido que transitou em julgado a aceitação de que são devedores, nos mesmos termos que a devedora;
2) Para efeitos do disposto no artigo 8° do C.P.E.R.E.F., aprovado pelo Decreto-lei n° 132/93, de 23 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei n° 315/98, de 20 de Outubro, o pedido de falência pode ser requerido pelo credor contra a devedora, ou devedor, assumindo essa qualidade o fiador, ou fiadores que, enquanto devedores solidários, - 101° do Código Comercial entre outros – e nos termos do artigo 27° do mesmo Código, também podem ser declarados em estado de falência;
3) Assim, quando os fiadores se obrigaram como principais pagadores, tal significa que são solidários com a devedora no cumprimento da obrigação, sendo indiferente que o credor execute o devedor ou os devedores solidários (os fiadores);
4) Tal sucede mesmo no caso de o devedor ter constituído garantia real para segurança de empréstimo, o credor não está vinculado ao disposto no artigo 835° do Código de Processo Civil, mas pode instaurar execução apenas contra os obrigados solidários, art° 640° do CC.
Nestes termos, nos melhores de direito, com o douto suprimento de Vªs. Ex.as,
Deve a decisão proferida, por violação dos artigos 8° e 27°, do C.P.E.R.E.F. , e do artigo 101° do Código Comercial,. 627.° n.° 1, art. 634° e art.° 640.° todos do Código Civil, ser revogada e ordenado o prosseguimento dos autos com prolação de sentença sobre o mérito do pedido.
Os recorridos responderam defendendo a manutenção da decisão impugnada.
Foi proferido despacho de sustentação.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se o credor tem ou não legitimidade para requerer a falência de fiador que não goze do benefício de excussão prévia.
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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
Os elementos factuais relevantes para a decisão do presente agravo são os que resultam do antecedente relatório e ainda os seguintes:
3.1.1. Por contrato datado de 31 de Março de 1998, a Caixa Geral de Depósitos, S.A., no exercício da sua actividade creditícia, concedeu à sociedade por quotas “LARVIPESCA – Fábrica de Produtos para Pesca, Lda” um empréstimo até ao montante de esc. 32.000.000$00;
3.1.2. Nesse contrato intervieram, nele apondo as suas assinaturas na qualidade de fiadores, além de outros, os requeridos João Taborda e esposa Carlota Ramos Albertino Taborda;
3.1.3. É do seguinte teor a cláusula 25.2, subordinada à epígrafe “Garantias específicas”:
“a) FIANÇA: Os contratantes, atrás identificados para o efeito, constituem-se fiadores solidários e principais pagadores do capital atrás mencionado na cláusula do MONTANTE, dos juros remuneratórios e moratórios, incluindo juros capitalizados, comissões e demais encargos, que venham a ser devidos à Caixa pelo mutuário, e dão antecipadamente o seu acordo a alterações dos prazos, a moratórias e a quaisquer outras modificações que forem fixadas ou convencionadas entre a Caixa e o referido devedor.”
3.1.4. A Caixa Geral de Depósitos, S.A. instaurou, em 09/05/2002, no Tribunal Judicial de Penacova, onde corre com o nº 348/2002, acção executiva para pagamento de quantia certa contra “LARVIPESCA – Fábrica de Produtos para Pesca, Lda”, João António Albertino Taborda e mulher Maria Margarida Carvalhal Gonçalves da Costa Ferreira Taborda e João Taborda e mulher Carlota Ramos Albertino Taborda, visando a cobrança da quantia de 179.649,82 euros, sendo 137.247,17 euros de capital e 42.402,65 euros de juros, resultante de incumprimento do contrato referido nos pontos antecedentes.
3.1.5. No artigo 12º do requerimento executivo a exequente alegou que os executados João António Albertino Taborda e mulher Maria Margarida Carvalhal Gonçalves da Costa Ferreira Taborda e João Taborda e mulher Carlota Ramos Albertino Taborda se responsabilizaram solidariamente como fiadores e principais pagadores pelo pagamento de tudo o que, por força do contrato, lhe viesse a ser devido.
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3.2. De direito
O Dec. Lei nº 53/2004, de 18/03, revogou o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (artº 10º, nº1) e aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (artº 1º).
Contudo, para além de não ter ainda entrado em vigor (artº 13º), a nova legislação não se aplica aos processos pendentes (artº 12º, nº 1).
Tendo o requerimento da falência com que se iniciou o presente processo entrado na Secretaria dos Juízos Cíveis de Coimbra em 11/09/2003, não restam quaisquer dúvidas de que a lei aplicável é o CPEREF, aprovado pelo Dec. Lei nº 132/93, de 23/04, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 315/98 (sendo essa a lei a que nos reportaremos sempre que, doravante, refiramos as disposições sem outra menção).

Na decisão recorrida considerou-se – e, a nosso ver, bem – que, de acordo com os artºs 8º, nº 3 e 27º, nº 2, “a lei faz depender a legitimidade para alguém requerer a falência de outrem, de uma circunscrita e específica qualidade (relacional) : a de credor.
Importava, pois, saber se a Caixa Geral de Depósitos, S.A. tinha, relativamente aos requeridos, tal qualidade, disso dependendo a existência ou a carência de legitimidade activa.
E, após pertinentes considerações sobre as características da fiança, entendeu-se que, mesmo não gozando do benefício de excussão prévia, “o fiador é um garante, não é devedor - ele apenas garante uma dívida alheia, sendo, só por isso e nessa estrita medida, responsável ( sendo que tal responsabilidade não tem origem numa dívida)”. E que “mesmo quando este se obriga como «principal pagador», não existe entre ambos solidariedade”.
Consequentemente, concluiu-se que “a requerente não tem a qualidade de credora dos requeridos” e que lhe falece “legitimidade processual para requerer a falência dos mesmos”.

Antes da entrada em vigor do Dec. Lei nº 132/93, que aprovou o CPEREF, vigoravam nesta matéria os artºs 1135º a 1325º do Cód. Proc. Civil, decorrendo dos artºs 1176º, nº 1 e 1315º que, excluídos os casos de apresentação do comerciante al. c) e de requerimento do Ministério Público al. b), a legitimidade para requerer a falência e a insolvência pressupunha a qualidade de credor.
Mas negava-se ao credor legitimidade para requerer a falência do fiador porque, nos termos do artº 1200, nº 1, al. b), as fianças de dívidas eram resolúveis em benefício da massa. Ou seja, “tal credor não podia invocar essa sua qualidade para requerer a declaração de falência ou insolvência do devedor, porque, sendo a fiança resolúvel, no preciso momento em que procedesse o seu pedido, desaparecia o seu interesse objectivo em tal declaração, pela resolução da fiança a favor da massa” Ac de Unif. De Jurisp. Do STJ, de 25/02/97, in BMJ, nº 464, pág. 49..
Actualmente, isto é, na vigência do CPEREF, os actos que podem ser resolvidos em benefício da massa falida estão enumerados nas três alíneas do nº 1 do artº 156º, entre eles não constando as fianças, as quais, de acordo com o artº 158º, al. e), apenas se presumem celebradas de má fé, para os efeitos de impugnação pauliana e só nos casos de terem sido outorgadas pelo falido nos dois anos anteriores à abertura do processo conducente à falência e não respeitarem a operações negociais com real interesse para ele Ac. STJ de 07/11/2002, www.dgsi.pt/jstj, (Relator: Cons. Ferreira de Almeida). No ponto V do sumário deste Acórdão afirma-se expressamente que “os avales, a par das fianças de dívidas, não são de presumir como celebrados de má fé para efeitos de impugnação pauliana, pelo que os credores dos avalistas detêm legitimidade para requererem a sua falência, sendo, em tal situação, legítima (que não abusiva) a exercitação de tal direito, nos termos e para os efeitos do art. 334, do C.Civil”. .

Como se refere na decisão recorrida e escreve o Prof. Almeida Costa Direito das Obrigações, 3ª edição, pág. 628., os traços básicos do regime jurídico da fiança podem exprimir-se sinteticamente através de duas características: a acessoriedade e a subsidiariedade.
A primeira está expressamente consagrada no nº 2 do artº 627º do Código Civil, onde se afirma que “a obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor” e consiste no facto de a fiança ficar subordinada e acompanhar a obrigação afiançada ou, por outras palavras, traduz-se no facto de, em geral, as vicissitudes da obrigação principal afectarem a obrigação do fiador. Assim, a título de exemplo, observe-se que da dita acessoriedade resultam, entre outras, as seguintes consequências:
- a vontade de prestar fiança está sujeita à forma exigida para a obrigação principal (artº 628º, nº 1);
- a fiança não pode ser contraída em condições mais onerosas do que a dívida principal (artº 631º, nº 1);
- a invalidade da obrigação principal acarreta a invalidade da fiança (artº 632º, nº1).
A acessoriedade constitui uma característica essencial da fiança Prof. Almeida Costa, em Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 628., faz parte da natureza da fiança, não podendo ser afastada por vontade das partes P. Sendim e E. Mendes, Natureza do aval, 1991, pág. 37 e Pedro R. Martinez e P. Fuzeta da Ponte, Garantias de cumprimento, 1994, pág. 30., pelo que a obrigação do fiador é sempre acessória da dívida principal.

Por seu lado, a subsidiariedade traduz-se na circunstância de a obrigação assumida pelo fiador ser, normalmente, subsidiária da dívida principal e concretiza-se no chamado benefício da excussão (o qual não tem relação com a acessoriedade).
O benefício da excussão está previsto no artº 638º nos termos seguintes:
“1. Ao fiador é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito.
2. É lícita ainda a recusa, não obstante a excussão de todos os bens do devedor, se o fiador provar que o crédito não foi satisfeito por culpa do credor”.
O benefício em causa consiste, portanto, no direito que pertence ao fiador de recusar o cumprimento enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal e ainda, mesmo depois dessa excussão, se provar que o crédito não foi satisfeito por culpa do credor.
Mas, embora normalmente o seja, nem sempre a obrigação do fiador é subsidiária da dívida principal. O artº 640º indica dois casos O Prof. Almeida Costa, em Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 631, nota (4) de rodapé, refere outros casos. em que o não é. Aí se estabelece:
“O fiador não pode invocar os benefícios constantes dos artigos anteriores:
a) Se houver renunciado ao benefício da excussão e, em especial, se tiver assumido a obrigação de principal pagador;
b) Se o devedor ou o dono dos bens onerados com a garantia não puder, em virtude de facto posterior à constituição da fiança, ser demandado ou executado no território continental ou das ilhas adjacentes”.
Os fiadores que, nos termos do artº 640º, al. a), tenham renunciado ao benefício da excussão e, em especial, tenham assumido a obrigação de principais pagadores, equiparam-se, do ponto de vista do credor, a devedores solidários embora, porque a sua obrigação continua a ser acessória, no rigor jurídico, o não sejam O Prof. Almeida Costa, em Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 632, ressalvando, em nota de rodapé, que a posição do fiador que se obrigou como principal pagador não se identifica, porque permanece acessória, com a do condevedor solidário, afirma expressamente, no texto, que, em tal caso, “o fiador equipara-se, do ponto de vista do credor, a um verdadeiro devedor solidário”.
Aliás, uma das formas usadas para renunciar ao benefício da excussão é obrigar-se como devedor solidário (cfr. Vaz Serra, Exposição de Motivos, BMJ, nº 71, pág. 107, Ac. Rel. Lisboa de 13/04/2000, CJ, XXV, II, 132)
Cfr. Tb. Ac. Rel. Lisboa de 10/11/1992, CJ, XVII, V, 119..

No caso dos autos, face ao teor da cláusula 25.2 do contrato celebrado entre a Caixa Geral de Depósitos, S.A. e a “LARVIPESCA – Fábrica de Produtos para Pesca, Lda”, os fiadores João Taborda e mulher Carlota Ramos Albertino Taborda constituíram-se principais pagadores, isto é, de acordo com a al. a) do artº 640º, renunciaram ao benefício da excussão prévia e aceitaram colocar-se, relativamente à credora, em posição de total e perfeita paridade com a devedora principal.
O conteúdo da obrigação jurídica dos requeridos para com a requerente decorre, como é óbvio, da referida cláusula 25.2 do contrato que, na qualidade de fiadores, assinaram e não da falta de impugnação da alegação vertida no artigo 12º do requerimento da execução nº 348/2002. Com efeito, por um lado, nas execuções não existe ónus de impugnação que conduza à admissão por acordo dos factos não impugnados (artº 490º do CPC); por outro, os factos admitidos por acordo num processo não têm necessariamente de considerar-se admitidos por acordo em processo diferente, ainda que com as mesmas partes; e, finalmente, porque sobre tal questão não recaiu qualquer decisão susceptível de formar caso julgado, seja formal, seja material (artºs 671º e seguintes).
Face ao teor da aludida cláusula 25.2. do contrato, do ponto de vista da credora, não há distinção entre a obrigação da “LARVIPESCA – Fábrica de Produtos para Pesca, Lda” e a dos fiadores, nomeadamente os requeridos.
Tal significa, a nosso ver, que a requerente Caixa Geral de Depósitos, S.A. tem, perante os requeridos, a qualidade de credora a qual lhe confere, de acordo com os artºs 8º, nº 3 e 27, nº 2, legitimidade para promover a declaração de falência daqueles.

Entendemos, pois, que assiste razão à recorrente, mostrando-se procedentes as conclusões da sua alegação e merecendo o agravo provimento.
A decisão recorrida não poderá, portanto subsistir, antes devendo ser revogada, a fim de os autos prosseguirem seus termos, designadamente os previstos nos artºs 24º e 25º do CPEREF.
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4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em conceder provimento ao agravo e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida a fim de, como se referiu, os autos prosseguirem seus termos, designadamente os previstos nos artºs 24º e 25º do CPEREF.
As custas são a cargo dos agravados.