Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2145/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: SERRA LEITÃO
Descritores: CONFISSÃO JUDICIAL ESCRITA
FORÇA PROBATÓRIA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 10/20/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 334º; 358º, Nº 1; E 393º, Nº 2, C. CIV. .
Sumário: I – Uma confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente, sendo inadmissível a produção de prova testemunhal no que respeita aos factos contidos na confissão .
II – A confissão judicial feita através de depoimento de parte apenas pode versar sobre factos pessoais do confitente ou de que este devesse ter conhecimento – artº 554º do CPC .

III – Para se verificar o abuso de direito não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económica do direito, sendo suficiente que se excedam esses limites, embora não deixem de relevar factores subjectivos para se concluir se houve ou não o abuso .

Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes da Secção Social do T. Relação de Coimbra
A..., residente na Soianda n.º 4 A – 2305-329 Casais Tomar, instaurou contra “B..., com sede na Rua de Coimbra, 2300-471 Tomar, acção declarativa sob a forma de processo comum, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 12.504,86 € (doze mil, quinhentos e quatro euros e, oitenta e seis cêntimos), relativa a créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação, acrescida dos juros de mora legais desde a data da citação até integral pagamento.
Para tanto, veio invocar o seguinte, resumidamente:
- A sua relação de trabalho subordinado para com a R.;
- A rescisão do contrato de trabalho mediante a invocação de salários em atrasos (ao abrigo do art. 6.º, al. a) da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho);
- Os créditos salariais emergentes da cessação e, os já vencidos nessa ocasião.
Realizada a audiência de partes, não foi possível solucionar consensualmente o pleito e o processo prosseguiu com a contestação da Ré.
A ré contestou em tempo defendendo-se, da seguinte forma:
- O montante do valor relativo à retribuição;
- Admitindo serem devidos parte dos créditos salariais peticionados pela A;
- Não ser devido o direito à indemnização, uma vez que a A. não aguardou o decurso do prazo exigido legalmente sobre o vencimento da primeira prestação não paga;
Formulou pedido reconvencional, pedindo que a A. fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização por falta de cumprimento do aviso prévio.
A autora veio apresentar articulado de resposta à contestação, pugnando pela versão dos factos contida na petição inicial pedindo ainda que a R. seja condenada como litigante de má fé na forma dolosa, em multa não inferior a 2.000,00 € e indemnização condigna a seu favor.
Prosseguindo o processo seus regulares termos, veio a final a ser proferida decisão que julgando a acção parcialmente procedente:
- condenou a Ré a pagar á A a quantia de 12.033,98 € (doze mil e, trinta e três euros e, noventa e oito cêntimos), com juros moratórios legais desde a citação até integral pagamento
- Absolveu a autora do pedido reconvencional.
Inconformada apelou a Ré alegando e concluindo:
A)- No decurso da produção da prova em audiência de discussão e julgamento, surgiram factos confessados pela ora apelada, no seu depoimento de parte, em resposta à matéria dos quesitos 3º e 5º da base instrutória, que eram relevantes para a boa decisão da causa, mais precisamente para aferir da eventual existência de um abuso daquela quanto ao exercício do direito previsto no artº 3º nº 1 da LSA e do consequente direito à indemnização por antiguidade prevista no artº 6º a) daquele diploma legal;
B)- Porém apesar de se tratar de matéria de conhecimento oficioso, a douta decisão em crise, não se pronunciou sobre esses factos provados por confissão, nem sobre a questão referente ao sobredito abuso do direito, quando a ora apelada confessou ter conhecimento de que a ora apelante perdeu a concessão Opel, ao abrigo da qual exercia toda a sua actividade comercial e que esta empresa passava por dificuldades financeiras, que aliás, provaram-se notórias;
C)- Como tal, salvo o devido respeito, a douta decisão em crise padece da nulidade prevista no artº 668º nº 1 d) do CPC, justificando-se assim que este Venerando Tribunal, salvo o seu melhor e mui douto entendimento, se substitua ao Digníssimo Tribunal “ a quo”, dando como provados os sobreditos factos confessados e decidindo a questão que não foi oficiosamente apreciada;
D)- A resposta dada ao quesito 3º da base instrutória pela douta decisão sobre a matéria de facto que alicerça o Ponto 10) da motivação constante da douta sentença recorrida, salvo o devido respeito, carece de ser modificada, porquanto o digníssimo Tribunal “ a quo”, não valorou devidamente as provas produzidas em sede de audiência de julgamento
E)- Com efeito, a ora apelada, no depoimento de parte reduzido a escrito a fls. 141, instada sobre a matéria constante daquele quesito 3º e que lhe era desfavorável( maxime para aferir sobre a questão do abuso do direito) confessou ter conhecimento que a apelante perdeu o contrato Opel, ao abrigo do qual esta exercias toda a sua actividade comercial
F)- Pelo que, tendo sido produzida prova plena sobre aquele facto- artº 358º nº 1 do CCv- não poderia a douta sentença recorrida dar como provado que a apelante exercia apenas “ grande parte” da sua actividade comercial ao abrigo da concessão Opel, com base nos depoimentos das testemunhas da Ré;
G)- No que tange ao direito, face à factualidade dada como provada, a douta sentença recorrida considerou que por estarem preenchidos “ in casu”, os pressupostos previstos no artº 3º nº 1 da LSA, a ora apelada podia rescindir o contrato de trabalho que celebrou com a apelante, reconhecendo-lhe, em consequência, o direito ao percebimento da indemnização por antiguidade a que alude o artº 6º a) da LSA
H)- Salvo o devido respeito, não partilhamos daquele douto entendimento porquanto o Digníssimo Tribunal “ a quo” não ponderou , nem se pronunciou sobre a existência de um abuso de direito por parte da ora apelada, ainda que alicerçado num conceito objectivo deste instituto plasmado no artº 334º do CCv
I)- No que se reporta à interpretação e aplicação daquele instituto ao caso concreto, importa salientar que, no plano subjectivo ficou provado que a ora apelada sabia que a empresa tinha perdido a concessão Opel( ao abrigo da qual exercia toda a sua actividade) e que padecia de dificuldades económicas, pelo que também podia prever que, ao exercer aquele direito que a LSA lhe confere iria agravar o passivo da empresa e prejudicar os trabalhadores que ali continuaram e continuam a trabalhar;
J)- No plano objectivo também ficou provado que a empresa apelante ficou amputada economicamente( por perder a sua fonte de rendimentos) e padecia de manifestas dificuldades financeiras- ponto 12 da fundamentação de facto da sentença em crise- as quais decorrem do projecto de viabilidade da empresa junto aos autos, de onde é possível extrair o seu elevado passivo, a ausência de meios financeiros e a gravidade do seu quadro económico- financeiro, o qual resultou da perda da concessão Opel;
K)- Ora, a douta sentença recorrida não teve em consideração as circunstâncias ou o contexto específico em que a empresa se encontrava e que, pelo menos, objectivamente, tornam manifesto e ilegítimo o exercício daquele direito pela apelada, por acabar por prejudicar os direitos e interesses dos demais trabalhadores da empresa a quem a apelante teria de deixar de pagar salários, para poder pagar a indemnização a que aquela tem direito
L)- Pelo que o Digníssimo Tribunal “ a quo” , salvo o devido respeito não considerou a desproporção objectiva entre a utilidade do direito da recorrida( agindo no seu exclusivo interesse) e as consequências que os demais trabalhadores da empresa têm que suportar e isto, mesmo que a apelada não tivesse consciência das mesmas
M)- Não se quer com isto dizer que a trabalhadora não podia rescindir o seu contrato de trabalho se a situação da empresa não fosse tão grave ou ainda que esta fosse obrigada a trabalhar sem receber a respectiva remuneração, pois que poderia legitimamente optar por suspender a sua prestação de trabalho, sem prejudicar o seu direito àquela e ao respectivo vínculo laboral e sem prejudicar os demais trabalhadores da empresa;
O)- Pelo que, por tudo o que ficou exposto, impunha-se pois uma decisão contrária na parte recorrida e como tal a absolvição da ora apelante, no que se reporta ao pagamento à apelada da indemnização por antiguidade prevista no artº 6º a9 da LSA
P)- Ao ter decidido de forma contrária ao acima exposto, a douta decisão recorrida violou o disposto nos artºs 334º e 358º nº 1 do CCv, bem como o disposto no artº 660º nº 2 do CPC
Nestes termos deverá:
1)- Ser declarada nula por omissão de pronúncia a douta decisão recorrida e em consequência, ao abrigo do disposto no artº 715º do CPC, julgar-se provados os factos confessados pela ora apelada a fls. 141 e decidir-se a questão do abuso de direito;
2)- Modificar-se ao abrigo do disposto no artº 712º nº 1 b) do CPC a douta decisão sobre a matéria de facto, julgando-se provado que em finais de Maio de 2002, a Ré foi confrontada com a intenção de rescisão unilateral do contrato de concessão Opel, ao abrigo do qual exercia toda a sua actividade comercial
3)- Ser a ora apelante absolvida do pagamento à apelada da indemnização por antiguidade prevista no artº 6º a) da LSA.
Não houve contra alegações.
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais tendo o Ex. mo Sr. PGA emitido douto parecer no sentido da respectiva improcedência, cumpre decidir:
Dos Factos
Foi a seguinte a factualidade dada como assente na 1ª instância
1- A A. trabalhou sob a direcção e fiscalização da R., desde 24 de Agosto de 1988 até 19 de Novembro de 2002 e ultimamente tinha a categoria profissional de escriturária
2-A partir do mês de Setembro de 2002, a R. deixou de pagar quer pontualmente quer a totalidade, das retribuições a que a A tinha direito;
3-Em 31 de Outubro de 2002 a R. pagou à autora por conta das retribuições a que tinha direito referentes a Setembro de 2002, a quantia de 250,00 €;
4-A R. também não pagou à autora a retribuição a que tinha direito referente ao mês de Outubro de 2002 e 19 dias de Novembro de 2002;
5- A A. rescindiu o seu contrato de trabalho, alegando justa causa mediante carta registada com aviso de recepção enviada à Ré e ao IDICT- Sub delegação de Tomar-
6-Até à presente data apesar do solicitado no documento n.º 3, as retribuições em atraso não foram pagas à autora;
7- A R. aceita que deve à autora a retribuição e subsídio de almoço do mês de Setembro de 2002( € 278, 50), do mês de Outubro de 2002(€ 201, 76) e do mês de Novembro de 2002( € 355, 53), perfazendo a quantia total de € 835, 79 e a título de proporcionais do direito a férias, respectivo subsídio e subsídio de natal, a quantia de €
1409, 97, tudo perfazendo o total de € 2. 244, 97.
8)- A A no dia 3/10/02 ficou incapacitada para o exercício da sua actividade profissional sendo que tal incapacidade por estado de doença, foi prorrogada em 15/10/02, com termo em 22/10/02
9- A A. auferia a retribuição mensal fixa de 536,83 €, a que acrescia a quantia de 4,67 € a título de subsídio de refeição, por cada dia útil de trabalho efectivamente prestado;
10- Em finais de Maio de 2002 a R. foi confrontada com a intenção de rescisão unilateral do contrato de concessão Opel, ao abrigo do qual desenvolvia grande parte da sua actividade comercial;
11-Tendo tal rescisão produzido plenos efeitos em 30 de Agosto de 2002;
12-Em consequência, a R. passou a sentir manifestas dificuldades financeiras;
13- Durante o período referido em 8) a autora auferiu o respectivo subsídio de doença
Do Direito
Sabe-se que é pelas conclusões das alegações, que se delimita o âmbito da impugnação- artºs 684 n.º 3 e 690º nºs 1 e 3 ambos do CPC-.
Pelo que e no caso concreto são as seguintes as questões a dilucidar:
- nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia;
- alteração da matéria de facto ao abrigo do disposto no artº 712º nº 1 b) do CPC
- abuso de direito por parte da A, ao peticionar a indemnização por antiguidade a que alude o artº 6 a) da LSA.
Vejamos então, começando pelo primeiro ponto dos indicados.
Pretende como se viu a apelante que a decisão impugnada padece de nulidade por não se ter pronunciado sobre a questão da A agir com abuso de direito ao pretender receber a aludida indemnização por antiguidade.
E na verdade, nos termos do artº 668º nº 1 d) do CPC a sentença é nula quando o juiz não se pronuncia sobre questões de que deva tomar conhecimento.
Mas como nos parece evidente, as ditas questões têm que ser por via de regra aquelas que as partes colocam nos seus articulados.
Ora e no presente processo a temática relativa ao “abuso de direito” não foi levantada em ocasião alguma.
O que vale dizer que- sendo esta excepção de conhecimento oficioso- o Ex. mo Juiz do Tribunal recorrido apenas teria que curar dela( já que por iniciativa dos litigantes sobre esse ponto, nada lhe era requerido) se entendesse que a mesma se verificava,
Não sucedeu assim , já que nem ao de leve a sentença recorrida aflora tal tema.
Problema diverso é o de se saber se a A abusou ou não do direito que tem.
Mas tal nada tem a ver com a nulidade da sentença, antes se prende com o mérito da causa.
Em suma: a sentença não sofre do invocado vício.
Requer depois a recorrente a modificabilidade da fundamentação de facto, ao abrigo do disposto no artº 712º nº1 b) do CPC.
Ora é consabido que de acordo com o CPC ( e não havendo como não houve, gravação de prova), a regra é a da imodificabilidade das respostas dadas na 1ª instância- artº 712 nº 1 do CPC-
Só assim não será nas hipóteses previstas naquele artº, podendo ainda de acordo com o mesmo normativo a Relação anular a decisão do Tribunal “ a quo”, quando repute, obscuras, deficientes ou contraditórias as respostas dadas, ou quando entenda que se devem formular quesitos novos.
Na decisão em análise, não se vê, nem sequer aliás houve qualquer alegação nesse sentido, que as respostas daquele Tribunal, estejam eivados de qualquer daqueles vícios.
Resta pois saber se é possível proceder à alteração das respostas dadas.
Em nosso entender- e salvo sempre o devido respeito por opinião diversa- não o é.
É certo que nos termos do citado artº 712º nº 1 b), pode a factualidade ser alterada em sede de recurso, sempre que do processo contem elementos que imponham uma resposta diversa da que foi dada.
E a recorrente pretende com base em confissão judicial escrita da A, que deve considerar-se como demonstrado que, em Maio de 2002 viu-se confrontada com a rescisão unilateral do contrato de concessão Opel, ao abrigo do qual exercia toda a sua actividade comercial.
Ora bem.
É fora de dívida que uma confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente( artº 358º nº 1 do CCv), sendo inadmissível a produção de prova testemunhal no que respeita aos factos contidos na confissão( artº 393º nº2 do CCv).
Todavia a confissão judicial, que é feita através do depoimento de parte, apenas pode versar , como é lógico, sobre factos pessoais do confitente, ou de que este devesse ter conhecimento( artº 554º do CPC).
Não é , em nosso modesto entender e salvo o devido respeito, o caso que se nos depara.
Na verdade a A e Ré são entidades distintas.
E portanto quer o contrato de concessão que existia entre a Opel a e Ré quer a sua rescisão unilateral por banda daquela, não podem evidentemente de forma alguma ser considerados factos pessoais A, mera funcionária da Ré que era, sem quaisquer funções de legal representação ( ou até mera gerência) desta.
Por outro lado não ficou minimamente demonstrado( nem sequer se alegou fosse o que fosse a esse propósito) que por força das suas funções a A deles devesse ter conhecimento.
Logo tudo aquilo que a este propósito foi mencionado pela A no seu depoimento de parte, não assume qualquer relevo, ou pelo menos não pode gozar da tal força probatória plena a que alude o artº 358º nº1 do CCv., devendo até em bom rigor considerar-se como não escrito.
Não estamos pois perante o circunstancialismo previsto no dito artº 712º nº 1 b), não sendo assim possível à 2º instância alterar a factualidade carreada para os autos no tribunal recorrido , pois e desde logo, ali foi produzida prova testemunhal com características de oralidade , que é livremente apreciada pelo julgador( artº 396º do CCv) e por isso mesmo insindicável por via de recurso.
E assim sendo é com base em tal fundamentação de facto, tal como foi descrita na 1ª instância, que se deve decidir, a última temática abordada pela Ré nesta apelação e que se prende com a existência de abuso de direito quando a A peticiona a condenação da Ré no pagamento da indemnização a que alude o artº 6 a) da LSA.
Para resolver tal problemática dever-se-á atentar, em nossa opinião nos seguintes factos:
- Em finais de Maio a Ré foi confrontada com a intenção de rescisão unilateral do contrato de concessão Opel, ao abrigo do qual desenvolvia grande parte da sua actividade comercial, tendo tal rescisão produzido plenos efeitos em, 30/8/02
- Em consequência a Ré passou a sentir manifestas dificuldades financeiras,
- Em 31/10/02 a Ré pagou à A por conta das retribuições a que tinha direito referentes a Setembro de 2002, a quantia de € 250
Resta portanto apurar se perante toda esta fundamentação de facto, se pode considerar que a A abusou do direito que exercitou, ao rescindir o contrato, como o fez e ao peticionar a indemnização prevista no artº 6 a) da LSA.
Note-se que apenas se conhece deste tema, porque a figura em causa, configura uma excepção peremptória de conhecimento oficioso, como se disse.
Não fora assim e o curar de tal temática estava vedado a este tribunal de recurso, por não ter sido levantada pela Ré no momento e sede próprios.
E como se sabe, os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova- cfr. R. Bastos “ Notas ao CPC” Vol. III pág. 266 e Ac R.P. C.J. IV –3, 989-.
Vejamos pois.
Conforme dispõe o arte 334º do CCv, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa - fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O CCv, adoptou uma concepção objectivista ou pelo menos mista do abuso, o que quer dizer, que para esse abuso se verificar não é necessária a consciência de se excederem
com o seu exercício, os tais limites impostos pela boa- fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; é suficiente que se excedam esses limites, embora não deixem de relevar factores subjectivos- p. ex. a intenção com que o titular do direito tenha agido- para se concluir se houve ou não abuso de direito- cfr. A Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 2ª ed. Pág. 277-.
A cláusula do abuso de direito( figura que pressupõe a existência deste, contrariamente ao que durante muito tempo se defendeu, pois – dizia-se- o direito cessa onde o abuso começa-), assume a natureza que se pode definir como uma cláusula geral de “ segundo grau” , possibilitadora de um controlo da aplicação a hipóteses concretas , das restantes normas de modo a obstar a que por via de tal aplicação, os ditos limites venham a ser excedidos de forma intolerável. ( cfr. Ac. T. Constitucional, DR II, 16/3/00)
Contudo e como se referiu para que se possa afirmar que alguém age com abuso de direito é necessário, que o faça de molde a que o desvio do fim económico e/ ou social do direito, seja feito em termos clamorosamente ofensivos da justiça- M. Andrade, in Teoria Geral das Obrigações- pág. 63 , referindo Vaz Serra uma “ clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”- in “ Abuso de Direito, BMJ, 68, 253-.
Temos assim e como doutamente se menciona no Ac STJ , de 17/10/01, in C.J./STJ IX, III, 266, que “ o conceito de abuso de direito é particularmente exigente quanto ao grau de ofensa da boa- fé, dos bons costumes e quanto ao sentido do desvio do fim económico ou social do direito”.
Ora e de acordo com o disposto no artº1º n.º 1 da L. 17/86 ( de que serão todos os artºs a partir de agora indicados, sem menção de origem),que veio reger os efeitos jurídicos especiais produzidos pelo não pagamento pontual da retribuição devida aos trabalhadores por conta de outrem, permite –lhes ( artº 3ºnº 1) a opção pela suspensão ou pela rescisão do contrato de trabalho, desde que, a falta de pagamento pontual da retribuição se prolongue por mais de 30 dias.
E como é consabido a mencionada Lei 17/86, surgiu em altura de forte crise económica, em que proliferavam as situações de salários em atraso ( o tal não pagamento atempado da retribuição, em flagrante violação de um dever fundamental da entidade patronal, para com o trabalhador).
O quadro descrito, traduzia-se em casos de dramática carência, social e juridicamente injustos a todas as luzes.
E foi perante tal “ panorama” que o legislador se viu obrigado a agir, tentando minimizar os nefastos efeitos de tão grave- como relativamente invulgar até então pelo menos no nosso País - situação.
E fê-lo nomeadamente facilitando a possibilidade do trabalhador se libertar ( definitiva ou temporariamente )do vínculo que o ligava à entidade patronal.
Na verdade aquando da promulgação do aludido diploma vigorava o D.L. 372-A/75 de 16/7, que no seu artº 25 nº 1 b), estabelecia que o trabalhador podia rescindir o contrato por falta culposa de pagamento pontual, por parte da empregadora, sem aviso prévio.
E posteriormente, o D.L. 64-A/ 89 de 27/2, veio também a considerar como motivo de rescisão com justa causa, a falta pontual de pagamento, quer devido a culpa da entidade patronal, quer esse incumprimento se revele não culposo- cfr. artº 35 nºs 1 a) e 2 c) do citado D.L.
Porém, ao socorrer-se deste regime legal, não basta a prova do incumprimento pela empregadora; é necessária a demonstração de que ele tem a virtualidade de tornar impossível a subsistência do vínculo laboral, conforme resulta claramente do disposto no nº 4 do citado artº 35º, conjugado com o nº 5 do artº 12 ainda do mesmo D.L..
Com isto se significa que vigoravam à data da rescisão do contrato em causa dois regimes legais, podendo o trabalhador, em caso de não pagamento de retribuição optar por o que considerasse mais favorável.
Pela utilização da L. 17/86, basta, ( seu nº 3) que a tal falta de pagamento pontual, se prolongasse por mais de 30 dias não fazendo a lei depender a possibilidade de rescisão, nem do valor das prestações em dívida, nem sequer da falta de cumprimento ser total ou parcial.
E nada permite ao intérprete distinguir essas situações, atendendo nomeadamente ao quadro factual existente quando essa lei foi criada e o fim a que ela se destinou- como se disse facilitar a desvinculação do trabalhador – pondo cobro a situações que poderiam atingir elevado dramatismo de ordem social – conclusão esta que mais reforçada sai se se tiver em atenção que no domínio do D.L. 7-A/86 de 14/1, aí sim o legislador diferenciava as situações de incumprimento total e parcial, já que o prazo relevante da mora para efeitos rescisórios era diverso, consoante se tratasse de uma ou outra situação- 30 e 90 dias respectivamente -.
Esta distinção terminou com a LSA, como resulta expressamente do seu preâmbulo.
É por outro lado jurisprudência dominante- e doutrina diríamos que unânime- que a possibilidade de rescisão do contrato, ao abrigo desta lei, é independente da existência de culpa da entidade patronal, no dito incumprimento- cfr. p. ex. ( C.Js, XX, IV, 156 e XX, V, 310) e M- Fernandes Dtº de Trabalho I, 1991, 497 .
Ora no caso concreto, provado ficou que na altura em que a A enviou a sua declaração rescisória à sua entidade patronal estava em dívida há mais de 30 dias mais de metade da retribuição média relativa ao mês de Setembro de 2002 e também já a respeitante ao mês de Outubro.
É verdade que a Ré entretanto pagara € 250 por conta do devido relativo ao mês de Setembro..
Contudo esta importância é bastante inferior ao salário mínimo aplicável à actividade que a A exercia e que vigorava para o ano de 2002 , o qual ascendia a € 348( D.L. 325/01 de 17/12).
E como se sabe esta r.m.g. constitui aquilo que o legislador considera como o menor vencimento possível para que um trabalhador possa fazer face, com alguma dignidade( que não pode deixar de ser inerente a todo o ser humano pelo simples facto de o ser) aos encargos básicos da sua vida pessoal e familiar.
Menos que isso será entrar já no domínio da “ indignidade” no sentido acima exposto, evidentemente.
Sabe -se também que o salário assume na esmagadora maioria das vezes, para o trabalhador a única fonte de rendimentos.
Ora assim sendo e perante o quadro descrito, não era exigível à A que se mantivesse ao serviço da empresa, tanto mais que não se provou que algumas garantias tivesse que em prazo razoável viesse a receber aquilo a que tinha direito , portanto que a situação financeira da Ré se normalizasse e de qualquer jeito o salário que auferia dado o conhecido valor do custo de vida, não era de molde a que ela pudesse suportar, sem graves danos na sua condição pessoal do ponto de vista económico por um período de tempo relativamente curto que fosse, essa falta de pagamento da retribuição que lhe era devida.
Acresce que e mesmo que se aceite( e não temos no processo nenhum elemento que aponte em sentido diverso) que a Ré não teve qualquer responsabilidade em tal rescisão da concessão e que esta se ficou a dever a meros interesses( mesmo que ilegítimos fossem) da concedente, o certo é que como ao abrigo da LSA não releva a culpa da entidade patronal no incumprimento, não é por essa via que se pode concluir que a conduta do A seria ilegítima.
Igualmente e porque não se sabe ( a Ré sob tal ponto de vista nada logrou provar) qual o verdadeiro quadro económico da Ré, não se pode afirmar que com o percebimento da indemnização por antiguidade, a A está a impedir o pagamento dos salários dos restantes trabalhadores, sendo sempre de admitir, ainda que hipoteticamente que independentemente disso, os mesmos não seriam pagos( pelo menos de modo minimamente satisfatório).
E nem sequer se pode referir que com o pagamento da dita indemnização está a pôr em causa, ainda que parcialmente , a viabilização da Ré, porque igualmente neste ponto minguam ( melhor dito inexistem) factos donde tal se pudesse inferir, com um mínimo de certeza.
Como igualmente não se apurou se os tais trabalhadores na sua totalidade se mantiveram na empresa, ou se, como fez o A, alguns, ou vários rescindiram também os seus contratos e peticionaram igualmente o pagamento das respectivas indemnizações por antiguidade.
O que podemos afirmar neste ponto é que pelo menos um outro trabalhador optou pela mesma conduta da A, o que aliás deu origem a um processo judicial, que subiu a esta Relação como Rec. de Apelação 2231/05.
Por isso - e salvo o devido respeito- não se vislumbra, onde tenha a A agido com abuso de direito.
Em suma: perante toda a factualidade dada como assente, tendo em atenção por um lado os objectivos e os interesses que a LSA pretendeu atingir e acautelar e por outro( reafirma-se) que o salário tem por finalidade essencial a satisfação das necessidades do trabalhador e do seu agregado familiar, ao rescindir o contrato e portanto ao peticionar o direito que lhe assiste á indemnização por antiguidade- artº 6º a) já referido- e que é mera consequência legal do primeiro ( rescisão contratual) o A não abusou do direito que lhe assistia, ou seja não ofendeu da tal forma manifestamente clamorosa, o sentimento jurídico dominante.
Por isso, não pode a pretensão da Ré ser acolhida.
Termos em que e terminando, se julga improcedente a apelação.
Custas pela impugnante, sem prejuízo do apoio judiciário de que goza.