Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
51/07.4GATND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Data do Acordão: 10/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TONDELA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 311º, N.º 3, AL. B), DO C. PROC. PENAL
Sumário: Perante a imputação, no essencial, genérica, conclusiva, que reproduz basicamente os conceitos legais, sem que os cuide de concretizar, omissa quanto a aspectos fundamentais, designadamente, ao nível do tipo e grau de participação de cada um dos visados, sem suporte bastante para a qualificação jurídica como crime continuado, enferma a acusação do vício estruturante do artigo 311º, n.º 3, al. b), do C. Proc. Penal, sendo como tal manifestamente infundada.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 51/07.4GATND, do 2.ª Juízo do Tribunal Judicial de Tondela, finda a fase de inquérito o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos A..., B..., C..., D..., F... e G..., melhor identificados nos autos, imputando-lhes a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime, continuado, de abuso sexual de pessoa incapaz, p. e p. pelos artigos 165.º, n.ºs 1 e 2 e 30.º, n.º 2, todos do Código Penal – [cf. fls. 321/324].

2. Remetidos os autos à distribuição para julgamento, por despacho judicial de 07.03.2011 - após objecto de correcção pelo despacho de 18.05.2011 - veio a acusação pública, considerada manifestamente infundada, a ser rejeitada, ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. b), do C.P.P., quanto a todos os arguidos – [cf. fls. 454/458, 494].

3. Inconformado com a decisão recorreu o Ministério Público, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

I. O Ministério Público deduziu acusação pública contra os arguidos A..., B..., C..., D..., F... e G..., porquanto, durante a fase de inquérito, foram recolhidos indícios suficientes de os arguidos terão cometido, em autoria material, na forma consumada e continuada, a prática do crime de abuso sexual de pessoa incapaz, previsto e punido pelos artigos 30º, nº 2 e 165º, nºs 1 e 2, do Código Penal.
II. Os fortes indícios assentam nas próprias declarações da ofendida, das testemunhas inquiridas e das próprias declarações dos arguidos proferidas em sede de inquérito que confessaram ter mantido relações sexuais com a ofendida, bem sabendo que a mesma era portadora de deficiência mental.
III. No entender do Ministério Público, encontram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de abuso sexual de pessoa incapaz.
IV. O despacho ora recorrido de rejeição da acusação pública por manifestamente infundada, assenta no disposto na alínea a), do n.º 2 e alínea c), do n.º 3, do artigo 311º, do Código de Processo Penal, ou seja por não ter sido indicadas as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam.
V. Da leitura atenta da acusação, verifica-se que falece tal fundamento.
VI. A narração dos factos constantes da acusação foi a que foi possível obter em sede de inquérito, atenta a deficiência mental de que a ofendida padece e as declarações prestadas pelos arguidos que apenas referiram que mantiveram com a ofendida relações sexuais, por várias vezes, bem sabendo que a mesma era portadora de deficiência mental.
VII. Verificando-se que consta da acusação a narração dos factos imputados aos arguidos, sendo a mesma suficiente, uma vez que nem os próprios arguidos vieram requerer a abertura da instrução relativamente aos mesmos, atento o princípio da vinculação temática, foi fixado o objecto do processo e será sobre estes factos que os arguidos deverão ser julgados.
VIII. Pelo que, falece, também, o argumento da falta da narração dos factos previsto no disposto no artigo 311º, nº 3, alínea b) do Código de Processo Penal.
IX. Por outro lado, tem sido o entendimento da Jurisprudência vigente, nomeadamente do Tribunal da Relação de Coimbra, só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.
X. E os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado, o que não é o caso.
XI. Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada.
XII. A Mma. Juiz ao rejeitar a acusação por manifestamente infundada, pelo facto de na acusação não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam, ou pelo facto de não conter a narração dos factos, violou o disposto nos artigos 165.º, n.ºs 1 e 2, e 30º, n.º 2, do Código Penal e artigos 283º, 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea c), e, eventualmente, alínea b), todos do Código de Processo Penal.
XIII. Assim sendo e em conformidade, a decisão em causa deve ser substituída por outra que não rejeitando a acusação, por inadmissibilidade legal, designe data para a realização da audiência de julgamento.

4. Notificados os interessados, nenhum veio apresentar resposta ao recurso.

5. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal – [cf. fls. 495].

6. Na Relação, a Ilustre Procuradora – Geral Adjunta, emitiu o parecer de fls. 509/510, pronunciando-se no sentido da procedência do recurso.

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência, cumprindo, agora, apreciar.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do C.P.P. e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo licito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].
Assim, no caso em apreço, a questão colocada traduz-se em saber se, por ocasião do saneamento do processo [artigo 311.º do CPP], poderia ter sido rejeitada ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b) do CPP, por manifestamente infundada, a acusação pública.

2. A decisão recorrida

É o seguinte o teor do despacho recorrido:

Questão prévia:
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público deduziu acusação, que consta de fls. 321 a 326, contra os arguidos A..., B..., C..., D..., F... e G..., imputando-lhes a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz, na forma continuada, previsto e punível pelos artigos 165º, nº 1 e 2 e 30º, nº 2 do Código Penal.
A acusação deduzida articula a seguinte factualidade:
“A ofendida H... de 44 anos de idade é pastora e sofre de anomalia psíquica facilmente constatável por quem com ela se relacione, uma vez que apresenta um discurso incoerente.
(…)
Em data não concretamente apurada, mas entre o mês de Janeiro de 2005 e o dia 2 de Agosto de 2008, entre as 16 horas e 30 minutos e o anoitecer, os arguidos A..., B..., C..., D..., F... e G..., deslocaram-se, por diversas vezes ao local denominado …, perto das torres de aproveitamento eólico, sito em …, onde a ofendida H.. .se encontrava a pastorear o seu rebanho, tendo com ela mantido, por várias vezes, cópula, coito oral e coito anal.
A ofendida (…) é portadora de uma deficiência mental moderada, não possuindo capacidade para se auto-determinar sexualmente, não sabendo o que representa o acto sexual, nem sequer as suas implicações e objectivos.
Os arguidos mantiveram relações sexuais com a ofendida, sabendo que esta era portadora de uma anomalia psíquica e aproveitando-se, desse facto, sendo que, mesmo que tivesse existido consentimento por parte da ofendida, o mesmo não seria relevante.
Os arguidos agiram de forma livre e consciente, querendo e conseguindo manter relações sexuais com H..., com o intuito de satisfazerem os seus desejos libidinosos e lascivos, sabendo que aquela era portadora de deficiência mental, que a impedia de ajuizar e de se auto-determinar sexualmente de forma livre, estando por força disso impossibilitada de dar um consentimento válido para as relações sexuais, aproveitando-se os arguidos dessa circunstância para mais facilmente praticar os seus actos.
Mais sabiam os arguidos que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”
Refere o artigo 165º, nº 1 e 2 do Código Penal que:
“1 – Quem praticar acto sexual de relevo com pessoa inconsciente ou incapaz, por outro motivo, de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade, é punido com pena de prisão de seis meses a oito anos. 2 – Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos”.
O bem jurídico protegido pela referida incriminação é a liberdade sexual de outra pessoa.
O tipo objectivo consiste na prática de acto sexual de relevo (nº 1) de cópula, coito anal, coito oral e penetração vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos (nº 2) com uma vítima incapaz de resistência, aproveitando-se o agente dessa incapacidade.
O tipo subjectivo inclui qualquer forma de dolo. O agente deve conhecer e querer aproveitar o estado de incapacidade de resistência da vítima.
Acresce que como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, p. 454 “Pode verificar-se a continuação do crime de abuso sexual da pessoa incapaz de resistência, uma vez que a não resistência da vítima cria uma situação que favorece a reiteração criminosa”.
Ora, na acusação deduzida não se encontra suporte fáctico bastante integrador do ilícito praticado pelos arguidos (se foi cada um deles em autoria, se foram todos ou apenas alguns em co-autoria), designadamente de que modo ocorreram os actos consubstanciadores de cópula, coito oral e coito anal, sendo a acusação completamente omissa nessa parte.
Na verdade, não é referido de que forma tais actos foram praticados pelos arguidos, sendo omissas quais as condutas ou conduta utilizada pelos arguidos, designadamente a forma como os actos de cópula, coito oral e anal ocorreram, em que é que os mesmos se consubstanciaram, se foram praticados todos os actos de todas as vezes, ou só alguns, por todos os arguidos ou só por alguns, conjuntamente ou separadamente, se todos/ou alguns dos arguidos praticaram os factos (omitidos na acusação) nos mesmos dias ou em dias diversos.
Acresce que, não obstante imputar aos arguidos a prática de um crime continuado, a única alegação a esse propósito é a de que os arguidos “se deslocaram, por diversas vezes ao local denominado …, perto das torres de aproveitamento eólico, sito em …, onde a ofendida H...se encontrava a pastorear o seu rebanho, tendo com ela mantido, por várias vezes, cópula, coito oral e coito anal”.
Ora, também quanto aos elementos do crime continuado é a acusação omissa, não se extraindo daquela alegação que os arguidos tenham tido um propósito reiterado de “execução de forma essencialmente homogénea do mesmo crime”, o que supõe a similitude do modus operandi do agente e, designadamente, dos meios utilizados na prática do crime.
Pois, como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque (in, obra cit. p. 139) “se durante a execução de um crime o agente alarga o âmbito da actividade criminosa, por a situação externa proporcionar esse alargamento, não há crime continuado (…)”.
Acresce que, como refere o mesmo autor “A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca (…)”.
Assim terá de concluir-se que os factos que constam da acusação, não detém factualidade suficiente da descrição/narração dos factos subjacentes à prática do ilícito em causa, pois, como referimos a acusação padece de insuficiência de factualidade, mostrando-se impregnada de conclusões jurídicas, sem contextualizar os factos concretos praticados pelos arguidos nem o modus operandi dos mesmos.
Ora, estatui o art.º 311.º, do CPP que: “1 – Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 – Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; (…)
3 – Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
Acresce que, o artigo 283º, nº 3 al. b) do CPP estabelece que “A acusação contem, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (…)”.
No caso em apreço, e como supra se referiu a acusação não contém a narração suficiente dos factos integrantes do ilícito imputado aos arguidos, motivo pelo qual e em face do disposto no artº 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. c do C.P.P., a acusação é, manifestamente infundada e como tal terá de ser rejeitada.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 311º, nºs 2, al. a) e 3, al. b) do Código de Processo Penal rejeita-se a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos melhor identificados nos autos, por ser manifestamente infundada.
Notifique e após trânsito remeta os autos aos serviços do Ministério Público.”

3. Apreciando

Vem o presente recurso interposto do despacho judicial proferido em 07.03.2011, após objecto de correcção por despacho de 18.05.2011 [ambos devidamente notificados], no qual, por manifestamente infundada, foi a acusação pública rejeitada ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b) do CPP.
Assim, e não obstante o teor da petição recursiva, nenhum relevo pode ser atribuído à invocada violação da al. c) do n.º 3 do citado diploma legal, porquanto resulta suficientemente esclarecido, após a correcção operada pelo despacho de 18.05.2011, que a referência feita no despacho recorrido à al. c) do n.º 3 do artigo 311.º do CPP se ficou a dever a lapso material, o que, aliás, já decorria, de forma mais do que evidente, do teor daquele.
E porque não está em causa qualquer sindicância aos indícios da imputada conduta criminosa [o que, de resto, dificilmente se compreenderia à luz da reforma do CPP de 1998, introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25.08, a qual determinou a caducidade do Assento do STJ n.º 4/93], tão pouco a falta de indicação das disposições legais aplicáveis e/ou as provas, mostram-se destituídas de objecto as conclusões do recurso apresentadas nos pontos II, IV [in fine], XII [enquanto se reporta à al. c) do n.º 3 do artigo 311.º do CPP].
Fica-nos, então, por apreciar a invocada violação do disposto nas normas conjugadas dos artigos 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b) e 283.º do CPP, 165.º, n.ºs 1 e 2 e 30.º, n.º 2 do Código Penal, ou seja saber se ocorria fundamento para a acusação pública ter sido rejeitada por manifestamente infundada, em consequência de não conter a narração dos factos.

Vejamos.

Convém esclarecer que o despacho em crise não emerge de qualquer interpretação divergente, por parte da Senhora Juiz, dos factos imputados na acusação pública, circunstância que, a verificar-se, poderia significar a violação do princípio do acusatório, num dos seus traços essenciais, enquanto implica uma clara distinção entre a entidade que investiga os factos e, sendo o caso, acusa, e a entidade que os julga.
Não se faltará à verdade, se se afirmar existir uma quase unanimidade no sentido de que na fase de saneamento do processo [artigo 311.º do CPP] está vedado ao juiz rejeitar a acusação, considerando-a manifestamente infundada, por, perfilhando uma outra interpretação, de entre as plausíveis, daquela diverge, entendendo, em consequência, que os factos não constituem crime – [cf. v.g. os acórdãos da Relação de Lisboa de 02.12.2009, 11.02.2010, 07.12.2010 e da Relação de Coimbra de 25.03.2010, proferidos respectivamente nos processos n.º 734/07.TAPDL.L1 – 3.ª, 105/08.0PCPDL.L1-9, 475/08.0TAAGH.L1 – 5 e 127/09.3SAGRD.C1].
Contudo, não é, manifestamente, esse, o caso dos autos.
O que no despacho recorrido se afirma é algo de muito diferente e que, por isso, se impõe retomar.
A dado passo, ficou consignado:
“Ora, na acusação deduzida não se encontra suporte fáctico bastante integrador do ilícito praticado pelos arguidos 8se foi cada um deles em autoria, se foram todos ou apenas alguns em co-autoria), designadamente de que modo ocorreram os actos consubstanciadores de cópula, coito oral e coito anal, sendo a acusação completamente omissa nessa parte.
Na verdade, não é referido de que forma tais actos foram praticados pelos arguidos, sendo omissas quais as condutas ou conduta utilizada pelos arguidos, designadamente a forma como os actos de cópula, coito oral e anal ocorreram, em que é que os mesmos se consubstanciaram, se foram praticados todos os actos de todas as vezes, ou só alguns, por todos os arguidos ou só por alguns, conjuntamente ou separadamente, se todos/ou alguns dos arguidos praticaram os factos (omitidos na acusação) nos mesmos dias ou em dias diversos.
Acresce que, não obstante imputar aos arguidos a prática de um crime continuado, a única alegação a esse propósito é a de que os arguidos “se deslocaram, por diversas vezes ao local denominado …, perto das torres …, sito em …, onde a ofendida H...se encontrava a pastorear o seu rebanho, tendo com ela mantido, por várias vezes, cópula, coito oral e coito anal”.
Ora, também quanto aos elementos do crime continuado é a acusação omissa, não se extraindo daquela alegação que os arguidos tenham tido um propósito reiterado de “execução de forma essencialmente homogénea do mesmo crime”, o que supõe similitude do modus operandi do agente e, designadamente, dos meios utilizados na prática do crime.
Pois, como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque (in, obra cit. p. 139) “se durante a execução de um crime o agente alarga o âmbito da actividade criminosa, por a situação externa proporcionar esse alargamento, não há crime continuado (…)”.
Acresce que, como refere o mesmo autor “A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca (…)”.
Assim terá de concluir-se que os factos que constam da acusação, não detém factualidade suficiente da descrição/narração dos factos subjacentes à prática do ilícito em causa, pois, como referimos a acusação padece de insuficiência de factualidade, mostrando-se impregnada de conclusões jurídicas, sem contextualizar os factos concretos praticados pelos arguidos nem o modus operandi dos mesmos.”
O certo é que todas as objecções supra enunciadas não foram objecto de “contestação” por parte do Ilustre recorrente, o que se compreende já que representam, fielmente, o que da acusação consta.
Não obstante, parece resultar ser seu entendimento que não tendo sido possível, no âmbito do inquérito, melhor e maior concretização factual, tal havia de vir a ser alcançado em sede de julgamento, até porque os arguidos nem sequer requereram a abertura da instrução e em processo penal vigora o princípio da vinculação temática.
Ou seja, em parte substancial e, acrescentemos, desde já essencial, à conformação dos factos e da eventual responsabilidade de cada um dos seus agentes, a investigação transitaria para a fase de julgamento, numa lógica que extravasa do principio, concernente à prova, da investigação ou da verdade material.
Perante isto, coloca-se-nos a dúvida sobre o sentido atribuído pelo Ilustre recorrente aos princípios da acusação/ vinculação temática e, não menos relevante, do direito de defesa.
A acusação, como refere o Prof. Germano Marques da Silva, é formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado (…) É um pressuposto indispensável da fase de julgamento e por ela se define e fixa o objecto do julgamento[cf. Curso de Processo Penal, III, pág. 118].
Já sobre o princípio da acusação discorre o Ilustre Prof. limita (…) o objecto da decisão jurisdicional e essa limitação é considerada como garantia da imparcialidade do tribunal e de defesa do arguido. Imparcialidade do tribunal na medida em que apenas terá de julgar os factos objecto da acusação, não tendo qualquer “responsabilidade” pelas eventuais deficiências da acusação, e garantia de defesa do arguido na medida em que a partir da acusação sabe de que é que se tem de defender, não podendo ser surpreendido com novos factos ou novas perspectivas dos mesmos factos para os quais não estruturou a defesa[cf. ob. cit, I, pág. 68].
Ora, como enfatiza o despacho recorrido a acusação, para além de, no essencial, não concretizar as específicas condutas relativamente a cada um dos arguidos, ser omissa quer quanto à forma de execução das mesmas, quer quanto ao tipo e graus de participação, de não contextualizar as respectivas condutas – o que não foi impeditivo da imputação de um crime continuado [defendendo nós, na senda de abundante jurisprudência e por respeito ao principio do acusatório, a impossibilidade de o juiz, por ocasião do saneamento a que alude o artigo 311.º do CPP, proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos levada a efeito na acusação] – traduz um repositório de factos genéricos, conclusivos e conceitos de direito, de tal forma que inviabiliza o exercício do direito de defesa por parte dos arguidos.
Como impressivamente vem referido no acórdão do STJ de 18.06.2009, proferido no proc. n.º 159708.9PQLSB.S1, numa situação em que na acusação não vinham descritos factos suficientes tendentes à condenação como reincidente, X. Em caso de insuficiência factual da acusação, se o tribunal a quo alargar a investigação para além dos limites de factos traçados por aquela estará a violar, além da garantia constitucional consagrada no art.º 32.º, n.º 5, da CRP, o art.º 339.º, n.º 4, do CPP e a tornar nula a decisão de procedência que vier a firmar, nos termos dos arts. 359.º e 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo Código. XI. Assim, nestes autos, é, pois, na acusação que radica de forma processualmente relevante a insuficiência factual, quer para completo e inequívoco preenchimento dos pressupostos formais da reincidência, quer para a integração do respectivo pressuposto material. E a consequência dessa insuficiência é a de ter de ser julgada manifestamente infundada (…).
Por outro lado, também o Supremo Tribunal de Justiça tem recorrentemente afirmado a não valia das imputações genéricas, com utilização de fórmulas vagas, conclusivas, sem especificação das concretas condutas, por as mesmas não serem passíveis de um efectivo contraditório e, logo, do direito de defesa, constitucionalmente consagrado – [cf. acórdãos do STJ de 02.04.2008 e 06.11.2008 proferidos respectivamente nos processos P.07P4197 e P.08P2804].
Por elucidativo do que se vem de dizer, transcreve-se as seguintes passagens do acórdão do STJ de 13.04.2011, in proc. n.º 6929/09.3TAVNG.S1:
Como este Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo a imputação e prova de factos genéricos são insusceptíveis de fundamentar a aplicação de uma pena, visto que a individualização e clareza dos factos objecto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender.
O princípio ou cláusula geral constante do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, impõe que ao arguido, como sujeito processual sejam assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade de vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia (…).
Por isso, perante a imputação e prova de factos não concretizados, temporal e espacialmente não demarcados, em que o arguido é colocado numa posição de não os poder contraditar, ou seja, de deles não se poder defender, não é admissível a incriminação e a condenação.
Concluindo, dir-se-á que, perante a imputação, no essencial, genérica, conclusiva, que reproduz basicamente os conceitos legais, sem que os cuide de concretizar, omissa quanto a aspectos fundamentais, designadamente ao nível do tipo e grau de participação de cada um dos visados, sem suporte bastante para a qualificação jurídica como crime continuado, enferma a acusação do vício estruturante do artigo 311.º, n.º 3, al. b) do CPP, sendo como tal manifestamente infundada, não merecendo, em consequência censura, o despacho recorrido, que, assim, o declarou.
Não se mostram, pois, violados os artigos 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b) e 283.º do CPP, 165.º, n.ºs 1 e 2 e 30.º, n.º 2 do Código Penal.

III. Decisão

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Sem tributação

Maria José Nogueira (Relatora)
Isabel Valongo