Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2278/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRINA FERREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRA CONTRATUAL
PRESCRIÇÃO
VIOLAÇÃO DOS DEVERES LATERAIS
Data do Acordão: 11/09/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO CÍVEL- TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 483.º E 498.º DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: 1. A violação dos deveres laterais ou acessórios constitui violação dos deveres inscritos na relação obrigacional;
2. Por isso, para se saber se há responsabilidade contratual ou extracontratual, importa averiguar, em cada caso, se as partes previram ou o legislador enunciou os deveres que vinculam os contraentes.
3. Se aí não se integram os deveres concretamente violados, resultará da violação um ilícito extracontratual sujeito à prescrição prevista no artigo 498.º do Código Civil.
4. Não constitui violação do dever lateral ou acessório a destruição de uma serventia, uma viga de cimento armado e a parede de uma fossa, na execução contratual de trabalhos de extracção e limpeza de um depósito de lixos, lodo e resíduos.
Decisão Texto Integral: A... veio interpor recurso da decisão proferida na fase de saneamento do processo que, julgando procedente a excepção de prescrição suscitada por B..., a absolveu do pedido.
Na p.i., a autora, ora apelante, pede a condenação da ré, ora apelada, a pagar-lhe 9.034,73 euros, invocando que na execução de trabalhos de extracção e limpeza de um depósito de lixos, lodo e resíduos, a ré, que havia sido contratada para os realizar e realizou, destruiu uma serventia, 44,80 m² de pavimento, uma viga de cimento armado, a parede duma fossa, o que implicou despesas de reparação e paralisação de máquinas e laboração.
Na contestação, a ré contraria os factos invocados pela autora e invoca a prescrição.
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A 1.ª instância deixou assente:
1. O direito de indemnização que a autora pretende fazer valer, decorre de alegado facto lesivo ocorrido nos dias 11 a 13 de Setembro de 2000.
2. A acção deu entrada em juízo em Novembro de 2003.
3. A ré foi citada em Dezembro de 2003.
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A decisão apelada entendeu: «a autora não imputa à ré a não realização da prestação a que se obrigou, limitando-se a afirmar que na realização dos trabalhos de extracção e limpeza acordados o manobrador de máquinas da ré, por não ter acatado as instruções da autora, acabou por atolar a máquina que utilizava na execução desse serviço e que, no decurso das manobras de recurso que efectuou para a desatolar, causou os prejuízos cujo ressarcimento vem peticionado. Ora, esta actuação da ré não consubstancia a violação de nenhum dos deveres acessórios de conduta impostos pelo princípio da boa fé no cumprimento dos contratos.
Sendo assim é de concluir que o direito de indemnização invocado pela autora não se filia num facto gerador de responsabilidade contratual mas, antes, de responsabilidade extra contratual e, nessa medida, o prazo de prescrição desse direito é, não o prazo ordinário de prescrição previsto no art.º 309º e que é de 20 anos, mas sim o previsto no art.º 498º».
Considerando que, à data da propositura da acção, o prazo de três anos estabelecido no referido art.º 498º, já havia decorrido, a decisão apelada julgou verificada a prescrição.
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A apelante apresentou as conclusões de recurso que constam de fls. 55 e 56, sustentando, em síntese:
1. A relação obrigacional é complexa, envolvendo deveres principais, secundários, acessórios da prestação principal e secundários com prestação autónoma.
2. Além daqueles deveres, também os laterais ou acessórios de conduta, integram a relação obrigacional.
3. A celebração do contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes, pressupunha que da realização da prestação não resultassem danos.
4. Para que o contrato se considere integralmente cumprido, não basta a realização da obrigação principal.
5. A ré violou um dever lateral - o de cuidado - sobre ela recaindo a obrigação de indemnizar a autora pelos danos causados, no âmbito da responsabilidade contratual.
6. O prazo de prescrição é o ordinário, e não o do art.º 498º, que respeita à responsabilidade extracontratual.
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A matéria que respeita ao conteúdo complexo da relação obrigacional e aos deveres laterais que a integram é tratada por Almeida Costa em Direito das Obrigações.
Analisando a questão, ensina Almeida Costa: «Avultam, evidentemente, os deveres principais ou primários da prestação. Constituem estes e os respectivos direitos o fulcro ou núcleo dominante, a alma da relação obrigacional, em ordem ao conseguimento do seu fim. Daí que sejam eles que definem o tipo de contrato, sempre que se trate de uma relação dessa natureza. Exemplificando: o dever, que impende sobre o devedor, de entrega da coisa vendida e o dever do comprador de pagamento do preço; o dever, que tem o locador, de cedência do gozo temporário da coisa locada e do locatário de satisfazer a renda ou aluguer.
Observou-se que há também, deveres secundários ou acidentais de prestação, que se mostram susceptíveis de revestir duas modalidades. Distinguem-se, na verdade, dos deveres secundários meramente acessórios da prestação principal, os quais se destinam a preparar o cumprimento ou assegurar a sua perfeita realização (assim, na compra e venda, o dever de conservar a coisa vendida até à entrega ou o dever de embalá-la e transportá-la), os deveres secundários com prestação autónoma. Nesta última categoria, por seu turno, o dever secundário pode revelar-se sucedâneo do dever principal de prestação (o caso da indemnização resultante da impossibilidade culposa da prestação originária, que substitui esta) ou coexistente com o dever principal de prestação (o caso da indemnização por mora ou cumprimento defeituoso, que acresce à prestação originária).
Facilmente se aceita que os deveres de prestação, sob as várias espécies que considerámos, sejam, via de regra, os mais importantes da relação obrigacional. Mas, a par deles, como também se salientou, existem os deveres laterais, derivados de uma cláusula contratual, de dispostivo da lei ad hoc ou do princípio da boa fé. Estes deveres já não interessam directamente ao cumprimento da prestação ou dos deveres principais, antes ao exacto processamento da relação obrigacional, ou dizendo de outra maneira, à exacta satisfação dos interesses globais envolvidos na relação obrigacional complexa.
Os deveres laterais encontram-se sistematizados pelos autores em vários tipos, como os deveres de cuidado, previdência e segurança, os deveres de aviso e informação, os deveres de notificação, os deveres de cooperação, os deveres de protecção e cuidado relativos à pessoa e ao património da contraparte».
Ao tratar da matéria respeitante ao cumprimento defeituoso, Almeida Costa retorna àqueles conceitos.
Pode, pois, ler-se na mesma obra: «Indicou-se que, ao lado do não cumprimento definitivo e da mora, existe a possibilidade de o crédito ser violado por um cumprimento defeituoso ou imperfeito. A doutrina alemã designa-o comummente, sem inteiro rigor, como violação contratual positiva. O dano não resulta aqui da omissão ou do atraso do cumprimento, antes dos vícios ou deficiências da prestação efectuada – que, portanto, se realiza, embora não como se impunha. Mas saliente-se que essa inexactidão do cumprimento se traduz num defeito ou vício da prestação que não envolve uma sua falta de identidade ou quantidade.
Estamos em face, relativamente às outras duas formas mais vulgares de infracção do dever de prestar, de um conceito residual, que abrange a execução defeituosa e a violação de deveres acessórios ou laterais. Acrescenta-se à sua própria configuração, como elemento individualizante, a tipicidade dos danos causados ao credor, visto que ele os não sofreria se o devedor de todo não houvesse efectuado a prestação; dito de maneira diversa, o incumprimento definitivo ou a mora, em si mesmos, não seriam susceptíveis de produzir tais danos. Na verdade, tratando-se de danos derivados da falta de cumprimento perfeito e não de danos específicos ocasionados pelo cumprimento defeituoso, a situação reconduz-se a incumprimento definitivo ou a mora.
Consideremos alguns exemplos: o vendedor que entrega animais doentes que contagiam os outros que o comprador tem nos seus estábulos; o comerciante que fornece géneros deteriorados que o cliente consome com prejuízo para a saúde ou se vê forçado a inutilizar; o contabilista que organiza, no prazo estabelecido ou até antes do decurso deste, um balanço errado da empresa, levando a gerência a tomar decisões ineficazes ou ruinosas; o operário que efectua uma reparação em determinado prédio, mas que, ao sair, danifica um móvel ou, por descuido, lança uma ponta de cigarro que provoca incêndio; a pessoa a quem se empresta um livro e que não informa, ao devolvê-lo, que o mesmo esteve nas mãos de um doente com escarlatina, contagiando-se o comodatante.
A nossa lei faz referência a esta terceira modalidade de violação de crédito (art.º 799º, n.º 1). Porém, unicamente a disciplina a propósito de certos contratos, com a venda de bens onerados (art.º 905º e segs.) ou de coisas defeituosas (arts. 913º e segs.), a doação (art.º 957º) a locação (arts. 1032º e segs.), o comodato (art.º 1134º) e a empreitada (arts. 1218º e segs.). Há que operar, pois, com o que resulta destes preceitos – tendo em conta que alguns deles possuem carácter especial ou excepcional – e das normas gerais sobre o incumprimento.
Também Antunes Varela em Das Obrigações em Geral, traça as diferenças entre deveres principais, primários ou típicos, deveres secundários e deveres acessórios de conduta. Em nota de rodapé, Antunes Varela dá conta: «são vários os nomes sugeridos pelos autores para a categoria dos deveres destacados no texto: deveres de protecção (H. Stoll); outros deveres de conduta (Larenz); deveres laterais (Esser,§ 5, III e Mota Pinto, ob. cit., n.º 46). A primeira designação é demasiado restrita, por haver outros fins, além da protecção contra danos eventuais, que tais deveres prosseguem. A fórmula deveres laterais tem o inconveniente de abranger os deveres de prestação que (como a indemnização dos danos moratórios ou do dano proveniente da chamada violação contratual positiva) se enxertam na relação obrigacional complexa, ao lado da prestação principal.
Por isso, à falta de melhor, se prefere a terminologia sugestiva proposta por Larenz. A propósito destes, ensina Antunes Varela que eles «não interessando directamente à prestação principal, nem dando origem a qualquer acção autónoma de cumprimento (cfr. arts.817º e segs.), são todavia essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra (...). Trata-se de um dever que não respeita directamente, nem à preparação, nem à perfeita (correcta) realização da prestação debitória (principal) (...) Muitos dos deveres acessórios de conduta, inerentes às mais variadas obrigações, encontram-se dispersos pelo Código Civil e pela legislação avulsa. É o que sucede, por exemplo, no contrato de empreitada, em que expressamente se impõe ao empreiteiro o dever, não apenas de executar a obra em conformidade com o convencionado, mas também de realizá-la sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato (art.º 1208º) (...) Mas os deveres acessórios de conduta estão hoje genericamente consagrados, na vastíssima área das obrigações, através do princípio geral proclamado no art.º 762º, segundo o qual no “cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé” e nas diversas disposições legais que completam o mesmo pensamento (...) Quanto à sua disciplina jurídica, a generalidade dos deveres acessórios de conduta não dá lugar, como vimos, à acção judicial de cumprimento (art.º 817º), própria dos deveres de prestação. Mas a sua violação pode obrigar à indemnização dos danos causados à outra parte ou dar mesmo origem à resolução do contrato ou a sanção análoga (cfr. arts. 1003º, a) e 1093º, 1, f), in fine)».
Se bem entendemos o pensamento dos Ilustres Mestres, com a designação de deveres laterais ou de deveres acessórios de conduta, a doutrina alcança um conceito residual na complexidade da relação obrigacional, que foi recebido pelo legislador, embora, só pontualmente, lhe tenha dado expressão normativa.
Partindo da versão dos factos apresentada pela autora, e com recurso aos conceitos adiantados pela doutrina, não repugna aceitar, no imediato, que estamos perante uma violação de deveres laterais ou acessórios de conduta.
Importa não esquecer, porém, que a violação dos deveres laterais ou acessórios, constitui ainda, e apesar do seu carácter residual, violação de deveres inscritos na relação obrigacional.
Se é certo, que os deveres laterais ou acessórios de conduta integram a relação obrigacional, também é certo que apenas contribuem para a definição e determinação dos contornos das relações obrigacionais complexas. Estas, por sua vez, desenham os deveres principais e moldam o desenho dos deveres laterais.
Deste modo, afigura-se-nos necessário seguir um percurso de análise que garanta, de alguma forma, que os deveres laterais cuja violação é invocada, se encontram dentro dos limites da relação contratada.
Em primeiro lugar observando se, para o negócio jurídico celebrado, as partes definiram ou o legislador enunciou os deveres que vinculam os contratantes; em segundo lugar, importa analisar se o (s) dever (es) alegadamente violados se inscreve (m) dentro da relação obrigacional estabelecida, ainda que acessoriamente, ou existe (m) fora dela.
Assim:
Autora e ré não definiram os deveres a que iriam ficar adstritas.
Para o negócio jurídico celebrado - contrato de prestação de serviços - o legislador estabeleceu os deveres enunciados no art.º 1161º do CC, por remissão do art.º 1156º do mesmo compêndio, que manda aplicar com as necessárias adaptações, as disposições sobre o mandato.
O dever que a autora considera ter sido violado, não integra qualquer dos enunciados no art.º 1161º.
Resta, pois, saber, se o alegado dever que não rejeita, no imediato, a aparência de dever lateral ou acessório de conduta, se contém dentro do âmbito do contrato de prestação de serviços.
Aquele tipo de contrato é, por definição, e consoante se exprime o art.º 1154º do CC «aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição».
Se, como hipótese de trabalho, se derem como assentes os factos descritos pela autora, encontrar-se-á uma actuação da ré com dois resultados distintos: um, que satisfaz o interesse da autora e que resulta do cumprimento do contrato celebrado; um outro, que viola direitos da autora.
Não é, porém, toda e qualquer violação que aqui nos importa mas, tão só, a que fere a «exacta satisfação dos interesses globais envolvidos na relação obrigacional complexa».
Ora, o interesse da ré no que respeita à conservação do seu património, tem autonomia relativamente ao interesse em obter o resultado do contrato celebrado. E, se bem que integre os seus interesses globais, ele não está envolvido na relação obrigacional estabelecida entre as partes.
O entrosamento que os deveres laterais com a relação obrigaçional complexa supõe, não permitem uma visão tão alargada do primeiro daqueles conceitos.
Afigura-se-nos, assim, que ao situar a violação invocada pela autora e atribuída à ré, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, a sentença recorrida não merece censura.
Acresce que a seguir a interpretação sustentada pela autora, de que dispõe do prazo ordinário de prescrição, quebrar-se-ia o equilíbrio das soluções propostas pelo legislador, que ainda no âmbito dos contratos de prestação de serviço, prescreve prazos curtos, designadamente, para a denúncia de defeitos e exercício do direito à sua eliminação, à redução do preço, à resolução do contrato e indemnização.
Deste modo, acordam os juizes da secção cível em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em manter a sentença apelada.
Custas pela recorrente.