Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2053/14.5T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS COMPLEMENTARES
CONTRADITÓRIO
CAUSALIDADE ADEQUADA
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS REFLEXOS
TERCEIRO
Data do Acordão: 12/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JC CÍVEL 
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.483, 495 Nº3, 496 Nº2, 563 CC, 5 CPC
Sumário: 1.- Se o facto que se pretende seja dado por provado tiver a natureza de essencial/principal da causa de pedir e não foi alegado pela parte demandante não pode ser considerado na sentença respectiva, sob pena de violação do art. 5º, nº 1, do NCPC; se tiver, porventura, a natureza de concretizador ou complementar e resultar da instrução da causa e que as partes conheceram, só podem ser considerado, nos termos do art. 5º, nº 2, b), do NCPC, se o julgador avisar as partes que está disponível para o considerar factualmente ou as partes requereram que tal aconteça e assim possa haver lugar ao exercício do respectivo contraditório.

2.- O art. 563º do CC, que reza que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, consagra a teoria da causalidade adequada na formulação negativa, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostrar indiferente para a verificação do dano.

3.- No nosso ordenamento jurídico o nexo de causalidade apresenta-se com uma dupla função: como pressuposto da responsabilidade e como medida da obrigação de indemnizar.

4.- Se a A., na altura com 13 anos, com as severas limitações de que ficou a padecer em resultado de acidente de viação e suas sequelas, mesmo assim conseguiu fazer um percurso escolar até chegar a médica de reabilitação, não se pode dizer que o facto do acidente e suas consequências foi de todo indiferente à mesma não ter chegado a alcançar especialidades médicas mais exigentes, para efeitos de cálculo indemnizatório por dano futuro devido a desvalorização profissional.

5.- O art. 496º, nº 2, e 4, 2ª parte, do CC, sendo uma norma excepcional é igualmente imperativa; consequentemente não é possível a uma afilhada de facto receber indemnização por danos morais pelo falecimento da sua “madrinha”.

Decisão Texto Integral:



I - Relatório

1. S (…), residente em (...) , deduziu incidente de LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA contra a ré L (..:) COMPANHIA DE SEGUROS SA, com sede em (...) pedindo que na procedência do mesmo seja a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de 550.000 €, acrescida de juros desde a notificação.

Como suporte de tal pretensão alegou que na respectiva acção a ré foi condenada, entre o mais, a pagar-lhe as importâncias, a liquidar em execução de sentença, a título de indemnização pelos DANOS MORAIS e PATRIMONIAIS resultantes para a mesma de acidente de viação, cuja extensão e avaliação total não eram ainda possíveis de apurar no momento em que foi proferida a sentença.

Seguidamente enunciou os factos que suportam a sua pretensão, quantificando em 265.000 € a indemnização a título de incapacidade permanente geral, 80.000 € a título de desvalorização profissional, 45.000 € pelo quantum doloris, 50.000 € a título de danos estéticos, 30.000 € com base nos danos morais próprios, 30.000 € em relação à perda da sua “mãe adoptiva” e 50.000 € derivados dos percalços da vida escolar. Que a indemnização deve ser actualizada.

A Ré deduziu oposição, dizendo, além do mais, desconhecer a maior parte dos factos alegados pela autora.  

*

A final foi proferida sentença que julgou o incidente de liquidação parcialmente procedente e consequentemente fixou o montante da indemnização da responsabilidade da R. em benefício da A. na quantia de 394.000 €, acrescida dos juros legais a incidirem sobre 274.000 € desde a data de notificação e desde esta data sobre 120.000 €, ambas até efectivo e integral pagamento.

*

2. A R. interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

3. A A. contra-alegou, concluindo que:

(…)

4. A A. recorreu subordinadamente, apresentando as seguintes conclusões:

(…)

5. Inexistem contra-alegações da parte da R.

II – Factos Provados

1 Pela sentença proferida nesta acção em 16 de Junho de 2008, transitada em julgado, a então R e ora requerida L (…)- Companhia de Seguros, SA foi condenada, entre o mais, “a pagar à Autora S (…)nascida em 7 de Setembro de 1986, as importâncias, a liquidar em execução de sentença, a título de indemnização pelos sobreditos danos morais e patrimoniais resultantes para si do acidente”, este ocorrido em 26 de Dezembro de 1999 na área da então comarca de (...) .

2 Na parte declarativa condenatória e com relevo nesta sede de liquidação ficou provada a seguinte materialidade, na formulação do Mmº Juiz que proferiu a sentença, ao abordar os “danos morais e patrimoniais de S (…)”

- a S (...) nasceu em 07.09.1986, tendo 13 anos de idade na data do acidente;

- com apenas três meses de idade foi e ficou a viver com o Autor e sua mulher M (…) como se filha (única) do casal se tratasse;

- com 13 anos de idade, rapariga alegre, bonita, saudável, mimada e a quem nada faltava, a S (…), naquele trágico Domingo, dia 26.12.1999, à tarde, acompanhava o casal quando todos foram surpreendidos pela colisão violenta da viatura em que seguiam e da qual resultou o falecimento imediato de M (…)

- em resultado do acidente, a S (...) ficou em estado de coma;

- logo transportada para o Centro de Saúde de (...) , daí foi imediatamente transferida para o Hospital de (...) , onde viria a recuperar a consciência;

- aqui foi-lhe diagnosticada lesão do baço, tendo sido submetida a intervenção cirúrgica para extracção deste órgão, com correcção da luxação cervical, ficando com ventilação mecânica, colar cervical e tracção contínua;

- no dia seguinte ao acidente foi transferida para os H.U.C., ali ficando internada e submetida a tratamento até 19.04.2000;

- sofreu traumatismo crânio-encefálico que lhe provocou hemi-plegia direita (da qual recuperou ao fim de cinco meses) e que obrigou à implantação de material de osteossíntese para fixação directa entre as vértebras C2 e C3;

- sofreu ainda traumatismo abdominal como hemoperítoneu, traumatismo torácico, lesão da coluna cervical, traumatismo da coluna vertebral, fractura da clavícula direita, fractura de diversas costelas, ferida palpebral à esquerda e outras lesões referidas no relatório médico legal de fls, 310--314 que aqui se dão por inteiramente reproduzidas;

- sofreu também lesões ao nível do plexo braquial esquerdo com paralisia do membro superior esquerdo (da qual recuperou parcialmente), tendo sido submetida na Clínica (...) a intervenção cirúrgica que consistiu em neurólise do plexo braquial à esquerda por apresentar lesões das raízes de C8 e DI, beneficiando de alta no dia 21.06.2000 com indicação para efectuar fisioterapia e tratamentos;

- após alta hospitalar (19.04.2000), a S (...) iniciou tratamentos de fisioterapia em (...) , aos quais ainda se submetia à data da propositura da acção (16.12.2002);

- sofreu alterações das suas capacidades cognitivas pelo menos até 8.10.2002, apresentando ainda hoje cefaleias, tonturas e episódios de lipotimia com perda do conhecimento frequentes;

- à data da propositura da acção (16.12.2002), a S (…) não conseguia saltar, correr ou flectir o seu corpo como anteriormente ao acidente, apresentando descoordenação motora, marcha irregular e dificuldades na fala;

- também à data da propositura da acção, a S (…) vinha e continuaria, sob orientação médica, a efectuar um programa de reabilitação, não sendo ao tempo possível determinar o seu termo, nem as sequelas permanentes de que ficaria portadora;

- sofreu também choque psicológico com o acidente e as suas consequências ao nível da sua saúde, choque esse de que entretanto recuperou, ficando o irremediável sofrimento pela perda de M (…);

- graças à sua força de vontade, a S (…) evitou até agora qualquer reprovação ou perda de ano escolar;

- felizmente tem vindo a melhorar da descoordenação motora, mas actualmente ainda apresenta dificuldades em correr, saltar e flectir o corpo nos movimentos que impliquem a utilização da parte afectada da coluna vertebral;

- a sua vida escolar ficou e continua afectada;

- as lesões e os tratamentos a que foi sujeita provocaram-lhe dores físicas, sendo de grau 7/7 o quantum doloris;

- desde o acidente até 21.06.2000, em consequência das lesões e sequelas que sofreu, a S (…) esteve dependente do auxilio de terceiros para a execução dos actos do seu quotidiano (designadamente higiene, alimentação e vestuário).

3 A Autora deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital de (...) , pelas 15:19 horas do dia 26/12/1999, vítima de acidente de viação, de que resultou TCE grave, com alteração profunda do estado de consciência (Escala de Coma de Glasgow > 3), traumatismo vertebromedular com choque medular secundário a fractura de C2 e luxação C2-C3 (com hemiparésia esquerda), traumatismo torácico, com fractura de arcos costais e condrocostais e volet costal à esquerda, traumatismo abdominal com lesão do baço, hemoperitoneu e laceração da serosa gástrica, fractura de clavícula esquerda com luxação acrómio-clavicular e lesão do plexo braquial esquerdo com arrancamento das últimas raízes (de média gravidade nas raízes CS, C6 e C7, muito grave nas raízes CS e DI).

4 Foi submetida a laparotomia exploradora emergente, com esplenectomia e rafia da serosa gástrica, tendo sido internada na UCIP, sob ventilação mecânica.

Realizou TAC cerebral que revelou contusão e hematoma cervical posterior e possível traço de fractura temporal esquerdo.

5 Foi transferida para os Hospitais da Universidade de (...) no dia 27/12/1999, referenciada para a especialidade de Neurocirurgia, tendo ficado internada no Serviço de Neurotraumatologia, sob tração cervical.

6 Em 12/01/2000 foi submetida a intervenção cirúrgica para fixação posterior CI-C3 com sistema apofix e cirurgia ao plexo braquial esquerdo, permanecendo internada no Serviço de Medicina Intensiva até 19/04/2000.

7 Durante o internamento foram registadas as seguintes complicações: insuficiência respiratória tendo realizado entubação oro-traqueal e drenagem torácica e crise convulsiva tónico-clónica generalizada.

8 Iniciou programa de reabilitação no Serviço de Medicina Física e de Reabilitação dos H.U.C em 27/01/2000, vindo a ter alta para o domicílio em 14/04/2000, com indicação de continuar os tratamentos de reabilitação numa clínica em (...) .

9 Em Abril de 2000 foi observada pela primeira vez pelo Dr (…), em consulta de Fisiatria, na Clínica de Medicina Física e de Reabilitação da (...) , na qual apresentava tetraplegia de predomínio dos membros direitos, com possibilidade de efectuar todos os movimentos, mas com diminuição da destreza e da velocidade e a força muscular era cotável em 4, excepto a nível do membro superior esquerdo onde era de 4 a nível proximal e de 2 ao nível da extensão do antebraço. Não tinha movimentos activos, evidenciando atrofia dos músculos intrínsecos a nível da mão esquerda. Apresentava défices de visão, com informação da oftalmologia de previsível recuperação em períodos de 6 a 12 meses. Sofria de hipofonia e a marcha era insegura de base alargada e com steppage à esquerda.

10 Foi presente em consulta de traumatismo vertebro-medular (TVM) nos H.U.C em 16-05-2000, data em que apresentava melhoria dos défices apresentados.

11 Em 19-06-2000 foi submetida a intervenção cirúrgica, no Instituto de Cirurgia Reconstrutiva da Clínica de (...) , para tratamento de lesão do plexo braquial com melhoria do défice neurológico.

12 No início de Julho de 2000 foi realizada a neurólise do plexo braquial esquerdo, com intuitos paliativos, constatando-se arrancamento pré-ganglionar das raízes CS e Dl esquerdas. O membro inferior esquerdo apresentava tremor e clónus esgotável e a Te cervical mostrou subluxação de C2-C3, com consolidação viciosa (em cifose) de C2 e angulação levógira da articulação atlo-axoideia; a radiografia da coluna evidenciou rectificação cervical (com cifose C2) e cifose dorso-lombar.

13 Foi reavaliada na consulta externa de Neurocirurgia dos H.U. C. e em 10/10/2000, apresentando nesta data melhoria do défice neurológico e queixas de cervicalgias de características mecânicas, Não evidenciava défices cognitivos aparentes, sendo portadora de quadro de monoparésia do membro superior esquerdo de predomínio nos territórios C8 e DI, com défice de preensão e da capacidade manipulativa da mão esquerda. Encontrava-se independente nas actividades de vida diária que realizava de modo mais lento, tendo alta da consulta de TVM, com indicação para retomar a actividade escolar e manter reabilitação em clínica convencionada pela companhia de seguros.

14 Foi observada pela última vez no Instituto de Cirurgia Reconstrutiva da Clínica de (...) em 13/12/2000, data em que apresentava uma boa recuperação da força muscular do ombro e cotovelo esquerdos, com limitação marcada ao nível do punho e ausência de recuperação da mão. Evidenciava ainda escoliose dorso-lombar.

15 A seguir a Autora manteve programa intensivo de reabilitação integral na Clínica de Medicina Física e de Reabilitação da (...) , em regime de "hospital de dia II, até ao Verão de 2003, altura em que passou a realizar tratamentos duas ou três vezes por semana; desde o Verão de 2004 passou a ter consultas periódicas de reavaliação, tendo sido acompanhada por ortodôncia por disfunção têmpora-mandibular, continuando a frequentar sessões de reabilitação agora na x (...) , com periodicidade não apurada e que duraram até finais de 2005.

16 Em 2005, as lesões estavam aparentemente estabilizadas a nível do membro superior esquerdo, com força muscular proximal de 4 e de 2 a 3 ao nível da extensão do antebraço esquerdo, paralisia da mão esquerda e atrofia dos músculos do antebraço e dos músculos intrínsecos da mão. A marcha apresentava um padrão razoável, com espasticidade cotável em 2 na escala de Ashworth, Não conseguia correr.

17 A RM crânio-encefálica, realizada em 22/12/2009, não revelou a presença de lesões endocranianas nomeadamente expansivas, vasculares ou de natureza traumática, identificando-se apenas uma pequena área de hipersinal em T2 a nível cerebeloso profundo à esquerda, eventualmente correspondendo ti uma pequena lesão ou apenas espaço peri-uascular alargado.

18 A RM da coluna cervical realizada em 22/12/2009, apresentava rectificação da curvatura cervical, admitindo-se discreta acentuação da cifose dorsal e discreta angulação anterior do corpo de C2 em relação a O, acompanhando pequeno desvio anterior do arco posterior de Cl, espetos que foram atribuídos a sequela de traumatismo; o arco posterior de Cl e também o arco posterior de C3 contactam a face posterior do cordão medular, aparentemente sem sinais evidentes de lesão ou deformação da medula e o espaço subaracnóideu anterior mostra-se patente até C3; desde o plano do disco 0-C4 até ao plano superior de D4, observa-se extensa colecção em topografia inira-canalar anterior e extra-dural ( ... ) associada a moldagem significativa do muro posterior dos corpos vertebrais, (oo.) que condiciona moldagem com desvio posterior e ligeiramente para a direita da medula, não se identificando contudo significativas alterações da emissão de sinal normal da medula, ( ... ) esta colecção estende-se ainda aos canais de conjugação esquerdos de C6 a D3, moldando-os e expandindo-os, e apresenta pequenos componentes extra-foraminais em C6-C7 e C7¬DI. Não foram observados, após injecção de contraste, realces anómalos; esta colecção é sugestiva de corresponder a extenso pseudo-meningocelo pós-traumático, com provável avulsão de raízes do plexo braquial, atendendo ao contexto (...). Identificam-se ainda pequenas protusões disco-osteofitárías canalares de predomínio direito em 05-D6 e, com menor expressão, em 06-07 e 08-D9, com discreta moldagem do espaço subaracnôideu anterior.

19 A electromiografia dos membros superiores, efectuada em 23/12/2009, revelou lesão das raízes cervicais esquerdas aos níveis C7, crónica, grave e C8 muito grave; lesão do nervo acessório direito, crónica, de gravidade moderada o relatório das radiografias efectuadas à coluna vertebral, ombro direito e clavícula direita em 08/01/2010, refere rectificação da curvatura fisiológica da coluna cervical, material cirúrgico para fixação de Cl-C3 na região posterior do pescoço, escolioee dorsal inferior dextro-convexa, com um ângulo de curvatura aproximadamente 10,8°, inscrevendo-se no grupo I da classificação de Lipman-Cobb; discreto desnivelamento da bacia encontrando-se o teta acetabular esquerdo cerca de 3,6mm acima do direito; apresentava ainda irregularidade do contorno e da estrutura óssea da porção mediana da clavícula em relação provável com traumatismo não recente.

20 No dia 05/04/2010 recorreu ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar da (...) por espasmos nos membros inferiores quando se punha de pé ou esticava as pernas. Referiu que tomava Sirdalud mas que naquele dia "não tinha feito efeito". Foi submetida a estudo analítico e a tratamento relaxamento com diazepam e metamizol por via endovenosa.

21 Segundo relatório clínico subscrito pelo Dr. (…), em 23/04/2010 a S (…)apresentava parestesias nos dois membros superiores, mais intensas à direita, espasmos nos quatro membros em especial na mão direita (com posição irredutível em flexão dos dedos e punho), diminuição da destreza normal à direita e paralisia da mão esquerda. Referia ainda crises agudas de clónus incontroláveis, com total incapacidade para a marcha e medo/pânico relativamente ao aparecimento de tais crises. Apresentava queixas de desequilíbrio na marcha, com medo de quedas e incapacidade para correr, bem como cervicalgias e lombalgias, de carácter mecânico e postural. O exame objectivo realizado revelou atrofia dos músculos intrínsecos da mão, do antebraço e da região escapular à esquerda, paralisia da mão esquerda, força muscular de grau 2 à extensão do antebraço esquerdo e força de grau 4 nos restantes movimentos do membro superior esquerdo, com adejo da omoplata. Hipostesia táctil do hemicorpo esquerdo, sem sensibilidade profunda. A marcha evidenciava discreto padrão espástico de base alargada, com incapacidade para a corrida, para a marcha com olhos fechados e para equilíbrio em apoio mono-podálico. Apresentava tetraplegia espástica de grau III na escala de Ashworth, com clónus nas patelas e pés. Diminuição global da mobilidade cervical, com sinais de sofrimento do raquis (tensão para-vertebral e dor à palpação dos diversos segmentos). Postura em cifose dorsal/lombar e anteprojecção cervical com discreto desvio cervical levógiro. Ansiedade/medo de novas crises "paralisantes". A espasticidade era então controlada por tratamento medicamentoso (badofen) e de Medicina Física e de Reabilitação (técnicas cínesíologícas de inibição da espasticidade), estando medicada ainda com analgésicos e miorrelaxantes "on demande", conforme as queixas álgicas nociceptivas e pregabalina para as queixas neuropáticas. Colocada a questão de necessidade de cirurgia descompressiva caso a espasticidade se tornasse medicamente incontrolável. Como sequelas irreversíveis foram consideradas as raquialgias mecânicas e posturais, a tetraplegia espástica (grau 4, exceto membro superior esquerdo) com hipostesia à esquerda e abolição da sensibilidade profunda, a lesão das raízes C8 e D1 à esquerda com paralisia da mão esquerda, a parésia do antebraço esquerdo (grau 2-3) e as sequelas de TCE, com rebate psicológico e crises de ansiedade e pânico. Indicada a necessidade de medicação de forma continuada e crónica, de acompanhamento fisiátrico e de tratamentos continuados de Medicina Física e de Reabilitação para as queixas neuropáticas e nociceptivas e inibição da espasticidade.

22 Na sequência de observação presencial, e relatório clínico subscrito pelo médico Neurocirurgião Dr. (…), datado de 10/11/2013, a S (…) apresentava atrofia muscular ao nível da região escapular esquerda e dos músculos intrínsecos da mão esquerda, com paralisia da mão e força de grau 2 à extensão do antebraço esquerdo. Evidenciava ainda hipostesia do hemicorpo esquerdo, hiperr9eflexia e espasticidade nos 4 membros (exceptuando a mão esquerda) com clónus esgotável nos pés, abolição da sensibilidade profunda com dificuldade em fazer marcha de olhos fechados ou no escuro. O EMG revelava lesão muito grave das raízes C7 e C8 esquerdas e do nervo acessório direito crónica de gravidade moderada, condizendo com o exame clínico. Do ponto de vista neurocirúrgico apresentava sequelas graves e irreversíveis, sem qualquer possibilidade de tratamento médico ou cirúrgico, condicionando grave incapacidade funcional para a vida diária e profissional.

23 E também na sequência de observação presencial e seu relatório, por parte do Dr (…), em 10/12/2014, a Autora apresentava um quadro clínico em tudo sobreponível ao descrito em 23/04/2010, reiterando a necessidade de medicação de forma continuada e crónica associada a acompanhamento fisiátrico e tratamentos continuados de Medicina Física e de Reabilitação.

24 À Autora não foram detectados antecedentes patológicos e/ou traumáticos.

25 A Autora, à data do exame médico- 12 de Outubro de 2015 –como na actualidade, apresenta dificuldade na marcha, bem como em subir e descer escadas ou rampas, além de dificuldade em permanecer na posição ortostática por longos períodos devido a "dor nas costas", parando por breves períodos para aliviar a dor.

26 Ela não consegue correr tão pouco consegue agarrar em objectos com a mão esquerda pois apenas é capaz de os transportar com a palma da mão virada para cima.

27 Por vezes e em situações de maior tensão tem dificuldade em concentrar-se, evitando medicação.

28 Na coluna cervical tem frequentes crises, que aliviam com a toma de medicamento, mas apresenta dores no antebraço e mão esquerdos, diárias, mesmo em repouso, associadas a sensação de choques eléctricos.

29 Ainda a Autora tem regularmente sensação de "endurecimento" da coxa, perna e pé esquerdos, com espasmos e tremores, estes quase diariamente e quando faz um percurso mais extenso, com estes a começarem a tremer incontrolavelmente, em crises que demoram alguns minutos, que a seguir passam, obrigando-a a, de imediato, largar ou suspender o que então esteja a fazer e que, quando são mais agudas, obrigam a receber tratamento hospitalar de urgência, tudo gerando cansaço na Autora e angústia pela situação e medo da duração ou que se repita.

30 Também a Autora necessita de ajuda para qualquer actividade em que tenha que utilizar as duas mãos, tais como apertar botões, o “soutien” ou o calçado, colocar pulseiras ou fios, pentear-se “devidamente”- para além da passagem no cabelo da escova -e tem muitas dificuldades em vestir-se, despir-se e tomar banho, descascar alimentos, cortar com uma faca alimentos e não usa saltos altos, conduzindo automóveis com caixa automática.

31 Aquando da efectivação do exame médico a Autora apresentou-se com marcha claudicante (de tipo parético-espástico), sem recurso a ajudas técnicas.

32 E como lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento apresenta as seguintes:

- no pescoço: cicatriz nacarada de características cirúrgicas, longitudinal, ligeiramente endurecida ao toque desde a região suboccipital até ao terço distal da região cervical posterior, medindo 9 cms x 2 cms;

- na Ráquis: limitação das mobilidades da coluna cervical, nomeadamente ao nível das rotações e flexões laterais nos últimos graus; mobilidades da coluna lombar sem limitações (Índice de Schober de 10/15cm);

- Tórax: ligeira deformidade do terço distal da região clavicular direita; cicatriz nacarada com áreas rosadas, com vestígios de pontos de sutura, adoptando um formato de "S deitado", estendendo-se desde o terço proximal da região clavicular esquerda até à linha axilar anterior, ao nível da axila ipsilateral, medindo 30 cms x 3 cms, associada a alteração da sensibilidade ao toque; cicatriz nacarada existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo e se exclui a pré-existência do dano corporal.

33 Em função da data da consolidação médico-legal das lesões ter ocorrido em 31-12-2005, considerando que apresentava aparente estabilização das lesões reportada ao ano de 2005, a Autora sofreu os seguintes períodos de “doença”:

Défice Funcional Temporário Total: teve lugar entre 26/12/1999 e 10/10/2000, sendo assim fixável num período 290 dias, a que deverão ser acrescidos mais 8 dias para eventual extracção do material de osteossíntese que ainda possui na coluna cervical;

Défice Funcional Temporário Parcial: teve lugar entre 11/10/2000 e 31/12/2005, sendo assim fixável num período 1907 dias, a que deverão ser acrescidos mais 22 dias para convalescença de eventual extracção do material de osteossíntese que ainda possui na coluna cervical;

Repercussão Temporária nas Actividades de Formação Total: ocorreu no período compreendido entre 26/12/1999 e 10/10/2000- data em que terá retomado a actividade escolar -sendo assim fixável num período 290 dias, a que deverão ser acrescidos mais 8 dias para eventual extracção do material de osteossíntese que ainda possui na coluna cervical;

Repercussão Temporária nas Actividades de Formação Parcial: ocorreu no período remanescente até à data da alta, sendo assim fixável em 1907 dias, a que deverão ser subtraídos os períodos oficiais de férias escolares mas a que deverão ser acrescidos mais 22 dias para convalescença de eventual extracção do material de osteossíntese que ainda possui na coluna cervical.

34 Em sede de Quantum doloris a perícia fixou-a no grau 6 numa escala máxima de sete graus.

35 No âmbito do período de danos permanentes e particularmente em sede de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, considerando a Tetraparésía espástica grau 4 com hemihipostesia esquerda e marcha de tipo parético-espástico, a Monoparésia do membro superior esquerdo, com mão em garra, por plexopatia braquial, o compromisso cognitivo e mnésico compatível com Síndrome Pós-Concussional, a Rigidez da coluna cervical por artrodese C1-C3, com radiculopatia cervical e finalmente a Esplenectomia assintomática, ela foi fixada em 54 pontos.

36 Por sua vez em sede de Repercussão Permanente na Actividade de Formação e Profissional esta foi fixada no grau 5 de um máximo de 7, sendo que as sequelas resultantes são compatíveis com o exercício das actividades escolares que a examinada frequentava à data do acidente, bem como com o exercício da sua actividade profissional actual como Médica, mas exigem esforços suplementares, a que acresce o facto da Autora ver cerceadas as suas expectativas de realização pessoal e profissional, dada a manifesta impossibilidade em enveredar por especialidades Médicas mais exigentes, que exijam uma boa funcionalidade dos membros e da coluna cervical.

37 No tocante ao Dano Estético Permanente ele foi fixado no grau 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta a marcha parétíco-espastíca, a anisocória (com diminuição do diâmetro pupilar à esquerda), as amiotrofias do membro superior esquerdo com mão em garra, a espasticidade segmentar generalizada, bem como a localização e dimensão das cicatrizes acima descritas.

38 Por sua vez na parte relativa às Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas e de Lazer o seu quantum foi fixado no grau 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta as repercussões que as sequelas determinaram na sua vida de relação, impedindo a prática das aulas de piano, bem como a possibilidade de se dedicar a actividades lúdicas, tais como frequentar uma discoteca ou passear com os amigos.

39 Nas Dependências Permanentes de Ajudas ponderaram-se a necessidade da Autora realizar terapêutica crónica com analgésicos (Naproxeno), relaxantes musculares (Baclofen) e Pregabalina- ajuda medicamentosa -, a necessidade de acompanhamento fisiátrico e tratamentos continuados de Medicina Física e de Reabilitação- tratamentos médicos regulares –o uso de talheres adaptados- ajudas técnicas –e ainda a necessidade de ajuda de terceira pessoa para algumas das actividades da vida diária.

40 Ainda a Autora S (…) foi sujeita a observação neurológica, manifestando-se pessoa com idade aparente coincidente com a real, cooperante no exame, consciente, orientada no espaço e no tempo, com discurso espontâneo fluente e estruturado, humor estável com boa disponibilidade afectiva.

41 Neste domínio anotaram-se os seguintes elementos físico-cognitivo deficitários:

Memória anterógrada verbal- perturbada;

Memória de trabalho- perturbada;

Amnésia circunstancial para o acidente e anterógrada;

Cálculo- Lentificação com erros;

CoIuna vertebral- rigidez da coluna cervical com perturbação da mobilidade;

Marcha- de tipo parético-espástico;

Prova de Romberg e teste de Quicks- perturbados pelo défice motor;

Postura- mão em garra à esquerda;

Tónus- espasticidade segmentar generalizada;

Amotrofias generalizadas do membro superior esquerdo;

Força Muscular - tetraparésia 04 de predomínio direito;

Reflexos Miotáticos - hiperreflexia generalizada patológica; Sensibilidade termo-álgica- hemihipostesia esquerda.

42 E em conclusão “o exame neurológico revela compromisso cognitivo e mnésico compatível com síndrome pós-concussional a que se associam tetraparésia espástica G4 pós-traumática, rigidez cervical enquadrável nas raquialgias residuais e radiculopatia cervical pós-traumática”.

43 A Autora, em função da dimensão e visibilidade das cicatrizes que ficaram no seu corpo, não usa nem “biquínis”, nem roupas decotadas e deixou crescer o cabelo para tentar ocultar algumas daquelas cicatrizes, sentindo-se “complexada” com tal situação e receio que terceiros a estejam a ver e desconsiderar.

44 Desde a data do acidente- 26 de Dezembro de 1999 -até à data da alta hospitalar- 21 de Junho de 2000 -em consequência das lesões e sequelas determinadas pelo acidente a Autora S (…)esteve totalmente dependente do auxilio de terceiros para a execução dos actos do seu quotidiano, designadamente os relacionados com a sua higiene, a sua alimentação e o seu vestuário.

45 Em 31 de Março de 2006 a Autora ainda apresentava cefaleias, tonturas e episódios de lipotimia com perda do conhecimento frequentes e que no presente ainda vai tendo episódicamente.

46 À data do acidente a Autora S (…) era uma adolescente, rapariga alegre, bonita, saudável e mimada

47 O 1º A da acção e a mulher M (…) eram padrinhos de baptismo da S (…) que com eles vivia desde os três meses de idade e e que aos três anos de idade lhes foi confiada para tratarem dela como se seus pais fossem.

48 A falecida M (…) gozava de um estatuto social de generalizada consideração e respeito, sendo uma pessoa afável, simpática e trabalhadora, enérgica e empreendedora, saudável e que nunca tivera qualquer doença, tinha gosto pela vida e era feliz e que nunca chegou a ter filhos, devido a problemas de infertilidade de que padecia.

49 Nestas condições a M (…) empenhava-se na educação e formação da S (…) a quem nada faltava ao tempo do acidente, quando já tinha 13 anos de idade e assumiu-se, para com a S (…), como o apoio indispensável e sólido, sob todos os aspectos, com que a S (…) contava na sua vida quotidiana, no seu crescimento, na respectiva formação, nos seus estudos e também para a sua vida futura, inicialmente bébé de tenra idade, depois menina e entretanto adolescente.

50 A S (…) via a M (…) como sua verdadeira mãe e o seu falecimento provocou na S (…) grandes angústias e tristezas, bem como um profundo sentimento de perda de apoio, de carinho, de orientação, de assistência e de companhia.

51 À data do acidente a Autora S (…) era estudante do 8° ano de escolaridade.

52 Após a alta hospitalar a S (…)teve explicações particulares a pelo menos três disciplinas e, graças essencialmente à sua grande força de vontade evitou, até 2003, qualquer reprovação ou perda de ano escolar.

53 No final do ano lectivo 2003/2004 concluiu o 12º ano em (...) mas, nos exames nacionais a que então e em seguida se apresentou, para tentar aceder ao Ensino Superior, as suas notas foram insuficientes.

54 Pese embora este facto, ao abrigo do regime legal especial para portadores de deficiência física ou sensorial- como era o seu caso -a S (…)conseguiu ser admitida ao correspondente Contingente Especial para ingresso no Ensino Superior público, por despacho conjunto dos Directores Gerais de Inovação e Desenvolvimento Curricular e do Ensino Superior proferido em 7 de Setembro de 2004.

55 E no âmbito deste Contingente Especial conseguiu ingressar no Curso de Ciências Bio-Químicas da Universidade (...) , na x (...) , mas no final do ano lectivo respectivo- 2004/2005 -não conseguiu obter aprovação em nenhuma das disciplinas curriculares do 1º semestre do mesmo, cujas aulas frequentou.

56 No final do ano lectivo de 2004/2005 repetiu os exames nacionais do 12º ano nas disciplinas de Biologia e de Química, tendo então obtido aprovação, com notas positivas, em ambas.

57 Por força desta aprovação e ainda do facto de já estar inscrita na referida Universidade ao abrigo do mencionado Contingente Especial, foi-lhe então permitido transitar para o Curso de Medicina ministrado naquela, tendo tido o seguinte percurso académico:

- no 1º ano, que frequentou no ano lectivo de 2005/2006, conseguiu aprovação a duas disciplinas;

- no ano lectivo seguinte- 2006/2007 –obteve aprovação em mais uma disciplina do mesmo 1º ano;

- no ano lectivo 2007/2008 voltou a falhar a aprovação na disciplina principal do 1º ano do curso em referência- “Corpo Humano: dos Sistemas às Moléculas I” –sendo que, sem aprovação nesta disciplina, não lhe foi permitido inscrever-se no 2º ano do Curso;

- no ano lectivo 2008/2009 conseguiu obter essa aprovação e transitar para o 2º ano do Curso.

58 A partir do momento em que começou a frequentar esse 2º ano do Curso- ano lectivo de 2009/2010 -nunca mais voltou a reprovar e no ano lectivo de 2012/2013 conseguiu concluir integralmente o 5º ano curricular desse Curso de Medicina e no ano lectivo de 2013/2014 estava inscrita no 6º ano desse Curso, que curricularmente é preenchido com a frequência de um estágio num Hospital- efectuou-o em (...) , no Hospital de (...) , integrado no Centro Hospitalar de (...) - (...) –tendo apresentado a sua tese ou dissertação de mestrado, que foi aprovada.

59 Actualmente a Autora S (…) exerce a profissão de médica, como interna de formação especifica de medicina física e reabilitação, no Hospital de (...) , na cidade do (...) , auferindo uma remuneração mensal líquida de cerca de €1.300,00.

60 Com a sua deslocação e estadia na x (...) , a partir do ano lectivo 2004/2005 foi a primeira vez que a Autora estava sozinha e tinha de valer-se por si própria para tudo, tendo deixado de poder contar com os apoios para a sua vivência quotidiana pessoal e escolar que sempre foram postos à sua disposição enquanto permaneceu em (...) .

61 No período escolar na x (...) esteve instalada num apartamento arrendado, situado num piso rés do chão, adaptado à sua situação física, no qual passou a morar com duas colegas e amigas, que antecipadamente se dispuseram a auxiliá-la nas diversas tarefas do seu quotidiano, onde todas cozinhavam e comiam normalmente as suas refeições, deslocando-se todos os fins de semana a (...) perfazendo cerca de 250 kms, ida e volta.

62 Com a sua estadia na x (...) a Autora tinha os seguintes gastos mensais médios: renda da casa (€300,00), alimentação (€200,00), deslocações a casa ao fim-de-semana (€350,00) e propinas escolares e despesas com materiais e livros específicos (€100,00).

63 Em função da paralisia da sua mão esquerda, da diminuição da força muscular do membro superior direito, a reduzida destreza da mão direita e as lesões cervicais, lombares e medulares que a afectam, a Autora S (…)está absolutamente impossibilitada de exercer profissionalmente qualquer especialidade médico-cirúrgica como seja fazer cirurgias de qualquer espécie, obstetrícia, ortopedia, oftalmologia ou anestesiologia ou prestar serviços no INEM ou em movimentos médicos de socorro e/ou solidariedade social.

64 Na sua actividade como médica, a Autora terá sempre muitas dificuldades para examinar uma garganta- por necessitar de utilizar numa mão uma espátula e na outra um foco de luz –ou efectuar uma sutura- qualquer médico utiliza normalmente uma linha/fio que tem de enfiar numa agulha (operação em que são necessárias as duas mãos) e depois manobra essa agulha com um das mãos e com a outra repuxa a zona a suturar.

*

Não se provou que:

1 A S (…) não consegue, com os olhos fechados ou no escuro, ter uma marcha em linha recta ou minimamente orientada.

2 A Autora revela uma total incapacidade para se equilibrar em apoio monopodálico (só num pé).

3 Por via da falta do baço a Autora está obrigada a ter uma alimentação muito restritiva e cuidada, não podendo comer verduras, citrinos ou comidas “picantes”, continuando a ter diarreias crónicas.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Determinação de um montante líquido de indemnização a favor da A.

2.1. Pretende a A. que se acrescente aos factos provados um facto adicional, que enuncia, por o mesmo ter resultado da instrução da causa ou da prova produzida em audiência de julgamento (cfr. conclusões de recurso I a III).
A consideração de tal facto, essencial ou principal para cálculo do valor dos danos futuros, por incapacidade permanente e desvalorização profissional, importaria, neste momento, violação do princípio do dispositivo, previsto no art. 5º, nº 1, do NCPC, o que não pode ser atendido.

É claro que não pode esquecer-se o que determina o nº 2 de tal normativo. Ora, considerando-se, porventura, que a recorrente podia objectar que tal facto é concretizador ou complementares de outros alegados por ela, facto esse que resultou da instrução da causa e que as partes conheceram, pelo que pode ser considerado nos termos do mesmo artigo, seu nº 2, b), dir-se-á o seguinte. Mesmo que pudesse ser visto como facto complementar e que resultou da instrução da causa, a verdade é que nem o juiz avisou as partes que estava disponível para o considerar factualmente nem a A. requereu que tal acontecesse (veja-se as duas actas de julgamento onde, sobre este aspecto, nada é dito pelo sr. Juiz ou pelas partes). E só neste circunstancialismo se poderia equacionar a aplicação de tal preceito, como defendemos mais desenvolvidamente e decidiu este colectivo, recentemente, no Acórdão proferido em 9.1.2018, no Proc.825/15.2TBLRA, consultável em www.dgsi. pt.

Não pode proceder, por isso, a impugnação da decisão de facto nesta parte.  

2.2. Pretende a A., também, que se dê por provados os três factos dados por não provados, com base em prova documental – relatórios clínicos de fls. 918, de 23.4.2010, de fls. 1011, de 10.11.2013, e fls. 1020, de 10.12.2014 – e declarações de parte da A. e depoimento da testemunha (…) (cfr. conclusões de recurso IV e V).

(…)

Consequentemente há que fazer reflectir tal matéria apurada nos seguintes factos provados adicionais (a negrito, ficando os não provados em letra minúscula):

65 A S (...) não consegue, com os olhos fechados ou no escuro, ter uma marcha em linha recta ou minimamente orientada.

66 A Autora revela uma total incapacidade para se equilibrar em apoio monopodálico (só num pé).

67 Por via da falta do baço a Autora está obrigada a ter uma alimentação restritiva e cuidada, tendo diarreias ocasionais.

3.1. Na sentença recorrida escreveu-se que:

INCAPACIDADE PERMANENTE E DESVALORIZAÇÃO PROFISSIONAL

*

Nesta sede avança-se com pedido compartimentado de, respectivamente, €265.00,00 e €80.000,00, também com expressa remissão para artigos da petição inicial, no qual se aborda a temática em causa.

E da sua análise decorre que nos primeiros se compreendem essencialmente os factos que respeitam às sequelas de que a S (…) ficou a padecer, com limitações para a sua actividade profissional habitual, emergente do défice funcional permanente de 54 pontos, enquanto que no segundo, também por tais factos, se questiona as opções profissionais que podia ter tomado, no exercício da sua profissão de médica- maxime a opção por determinadas áreas de especialização –e que com o dito défice funcional lhe foram vedadas- pelo menos algumas delas, como sejam a de cirurgiã.

A este respeito temos como dado assente que a força do trabalho humano é fonte de rendimentos e como tal a redução de oportunidades de possíveis acréscimos patrimoniais futuros é indemnizável como dano patrimonial reflexo autónomo.

Ora com o devido respeito por opinião contrária estão, assim, e em causa, duas faces da mesma moeda, que como tal importam uma solução unitária.

Daí que abordemos esta matéria num único prisma, assente que a este título se reclama a quantia de €345.000,00.

Nesta sede, sem atentar, por ora, nos factos concretos, havemos de considerar o Acórdão do STJ de 27/10/2009, em cujo sumário se pode ler, entre o mais, que

“7. O dano biológico traduz-se na diminuição somático-psiquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre.

8. O dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial tal como compensado a título de dano moral. A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.

9. E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial sendo certo que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso com o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspectivas de carreira, desencantos…) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.

10. E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.

11. Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta directa – ou indirectamente – no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza necessariamente numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral”.

No caso vertente, salvo o devido respeito por melhor opinião, este dano deve ser levado em conta ou consideração por banda dos danos patrimoniais, pois que de facto e como ressalta à evidência, a Autora era ainda jovem estudante, continuou o seu percurso escolar, veio a obter formação académica na área da medicina e como tal as lesões e o dito défice funcional traduzem lesão que interfere no seu estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma, comportando nessa medida uma perda patrimonial futura ou frustração de um lucro.

Por via da perspectiva perfilhada nesta parte específica do pedido e de um ponto de vista da lógica da vida, cremos ser apodíctico dizer que os danos consideram-se presentes se já se encontram ocorridos/verificados no momento da sua ocorrência/verificação, sendo futuros no caso contrário. Nesta sede e na esteira do Acórdão da Relação de Guimarães de 27/2/20012 (in www.dgsi.pt) “A indemnização por perda de lucros cessantes justifica-se ou porque a incapacidade parcial permanente provoca uma diminuição concreta de proventos do lesado ou porque provoca uma sobrecarga de esforço físico daquele que se reflecte na sua capacidade de ente produtivo”.

Nele pode ler-se, a dado trecho, que é “entendimento praticamente unânime o de que o lesado que tenha ficado incapacitado e que exerça uma profissão à data do acidente tem direito a ser indemnizado, na medida em que tal incapacidade constitua um dano (patrimonial) futuro (cfr. artº 564º, nº 2, do Código Civil…)”.

(…)

Avancemos, pois, neste domínio.

E o início do percurso só pode ser mesmo pela enunciação dos factos, para a sua subsequente subsunção a tais regras.

Assim sendo quais os factos apurados?

Antes de mais a S (…) nasceu em 07.09.1986 e por isso tinha 13 anos de idade na data do acidente, sendo certo que aquando da efectivação do exame médico apresentou-se com marcha claudicante (de tipo parético-espástico), sem recurso a ajudas técnicas.

Porém, ela Autora, à data do exame médico- 12 de Outubro de 2015 –como na actualidade, apresenta dificuldade na marcha, bem como em subir e descer escadas ou rampas, além de dificuldade em permanecer na posição ortostática por longos períodos devido a "dor nas costas", parando por breves períodos para aliviar a dor, não consegue correr tão pouco consegue agarrar em objectos com a mão esquerda pois apenas é capaz de os transportar com a palma da mão virada para cima.

E por vezes e em situações de maior tensão tem dificuldade em concentrar-se, evitando medicação.

Já na coluna cervical tem frequentes crises, que aliviam com a toma de medicamento, mas apresenta dores no antebraço e mão esquerdos, diárias, mesmo em repouso, associadas a sensação de choques eléctricos e tem regularmente sensação de "endurecimento" da coxa, perna e pé esquerdos, com espasmos e tremores, estes quase diariamente e quando faz um percurso mais extenso, com estes a começarem a tremer incontrolavelmente, em crises que demoram alguns minutos, que a seguir passam, obrigando-a a, de imediato, largar ou suspender o que então esteja a fazer e que, quando são mais agudas, obrigam a receber tratamento hospitalar de urgência, tudo gerando cansaço na Autora e angústia pela situação e medo da duração ou que se repita.

Finalmente a Autora necessita de ajuda para qualquer actividade em que tenha que utilizar as duas mãos, tais como apertar botões, o “soutien” ou o calçado, colocar pulseiras ou fios, pentear-se “devidamente”- para além da passagem no cabelo da escova -e tem muitas dificuldades em vestir-se, despir-se e tomar banho, descascar alimentos, cortar com uma faca alimentos e não usa saltos altos, conduzindo automóveis com caixa automática.

Sucede que como lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento a S (…) apresenta as seguintes:

- no pescoço: cicatriz nacarada de características cirúrgicas, longitudinal, ligeiramente endurecida ao toque desde a região suboccipital até ao terço distal da região cervical posterior, medindo 9 cms x 2 cms;

- na Ráquis: limitação das mobilidades da coluna cervical, nomeadamente ao nível das rotações e flexões laterais nos últimos graus; mobilidades da coluna lombar sem limitações (Índice de Schober de 10/15cm);

- Tórax: ligeira deformidade do terço distal da região clavicular direita; cicatriz nacarada com áreas rosadas, com vestígios de pontos de sutura, adoptando um formato de "S deitado", estendendo-se desde o terço proximal da região clavicular esquerda até à linha axilar anterior, ao nível da axila ipsilateral, medindo 30 cms x 3 cms, associada a alteração da sensibilidade ao toque; cicatriz nacarada existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo e se exclui a pré-existência do dano corporal.

Por outro lado e já no âmbito do período de danos permanentes e particularmente em sede de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, considerando a Tetraparésía espástica grau 4 com hemihipostesia esquerda e marcha de tipo parético-espástico, a Monoparésia do membro superior esquerdo, com mão em garra, por plexopatia braquial, o compromisso cognitivo e mnésico compatível com Síndrome Pós-Concussional, a Rigidez da coluna cervical por artrodese C1-C3, com radiculopatia cervical e finalmente a Esplenectomia assintomática, ela foi fixada em 54 pontos.

Acresce que a Repercussão Permanente na Actividade de Formação e Profissional foi fixada no grau 5 de um máximo de 7, sendo que as sequelas resultantes são compatíveis com o exercício das actividades escolares que a examinada frequentava à data do acidente, bem como com o exercício da sua actividade profissional actual como Médica, mas exigem esforços suplementares, a que acresce o facto da Autora ver cerceadas as suas expectativas de realização pessoal e profissional, dada a manifesta impossibilidade em enveredar por especialidades Médicas mais exigentes, que exijam uma boa funcionalidade dos membros e da coluna cervical como seja a cirurgia geral ou de alguma especialidade.

Sem embargo em função da paralisia da sua mão esquerda, da diminuição da força muscular do membro superior direito, a reduzida destreza da mão direita e as lesões cervicais, lombares e medulares que a afectam, a Autora S (…) está absolutamente impossibilitada de exercer profissionalmente qualquer especialidade médico-cirúrgica como seja fazer cirurgias de qualquer espécie, obstetrícia, ortopedia, oftalmologia ou anestesiologia ou prestar serviços no INEM ou em movimentos médicos de socorro e/ou solidariedade social.

E ainda na sua actividade como médica ela terá sempre muitas dificuldades para examinar uma garganta- por necessitar de utilizar numa mão uma espátula e na outra um foco de luz –ou efectuar uma sutura- qualquer médico utiliza normalmente uma linha/fio que tem de enfiar numa agulha (operação em que são necessárias as duas mãos) e depois manobra essa agulha com um das mãos e com a outra repuxa a zona a suturar.

Resta dizer que actualmente a Autora S (…) exerce a profissão de médica, como interna de formação especifica de medicina física e reabilitação, no Hospital de (...) , na cidade do (...) , auferindo uma remuneração mensal líquida de cerca de €1.300,00.

*

Tal como resulta do escrito encontramo-nos perante dano futuro no âmbito de um largo período de previsão, respeitante a ganhos ou rendimentos que as lesões, sequelas e grau de défice funcional permanente da integridade físico-psiquica limitarão necessáriamente, pelo que a solução mais ajustada é a de conseguir a sua quantificação imediata, embora com a inerente dificuldade de cálculo.

Como elemento auxiliar nesta parte da decisão anote-se que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/5/2009 (in www.dgsi.pt) no qual se sumaria, a dado trecho, que

“I) - …

II) – Havendo dano biológico importa atender às repercussões que as lesões causaram à pessoa lesada; tal dano assume um cariz dinâmico compreendendo vários factores, sejam actividades laborais, recreativas, sexuais, ou sociais.

III) – A incapacidade parcial permanente, afectando ou não, a actividade laboral, representa, em si mesmo, um dano patrimonial futuro, nunca podendo reduzir-se à categoria de meros danos não patrimoniais.

IV) – …”

E no seu desenvolvimento pode ler-se que “como, lapidarmente, se pode ler no Acórdão deste STJ, de 18.3.97, in CJSTJ, 1997, II, 24: «Os danos patrimoniais futuros não determináveis serão fixados com a segurança possível e a temperança própria da equidade, sem aderir a critérios ou tabelas puramente matemáticas».

A perda da capacidade de ganho constitui um dano presente, com repercussão no futuro, durante o período laboralmente activo do lesado, e durante todo o seu tempo de vida”.

E prossegue escrevendo que “o que está em causa é o dano biológico que implica que se atenda às repercussões que a lesão pode proporcionar à pessoa lesada; tal dano assume um cariz dinâmico compreendendo vários factores, sejam actividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais”, pois que “o dano biológico traduz-se na diminuição somático-psíquico do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre”- cfr Acórdão do Supremo Tribunal de 4.10.2005 (Processo 05A2167), in www.dgsi.pt.

Assim sendo “o dano biológico repercute-se na qualidade de vida da vítima afectando a sua actividade vital, é um dano patrimonial já que as lesões afectam o seu padrão de vida. Se a Autora, não obstante estar reformada precisar de trabalhar, a sua aptidão funcional está comprometida em 40% havendo, para este efeito, que ponderar não apenas o tempo de actividade em função do tempo de vida laboral, mas todo o tempo de vida.

Ademais, no caso dos autos, a incapacidade afectou a vida pessoal da Autora ao ponto de não poder, sequer, cuidar da sua higiene pessoal, precisando do auxílio de terceira pessoa para executar as lides caseiras”.

E acrescenta-se, citando o Prof Sinde Monteiro (in “Estudos sobre a Responsabilidade Civil”, página 248) que “a indemnização por danos patrimoniais futuros é devida mesmo que não se prove ter resultado da incapacidade física diminuição dos proventos da vítima”, afirmando tratar-se da distinção entre “dano biológico” e o “dano moral”.

Num outro aresto do Supremo Tribunal de Justiça- este datado de 4.10.2007 (Proc 07B2957, in www.dgsi.pt) -diz-se que “o dano biológico derivado de incapacidade geral permanente, de cariz patrimonial, é susceptível de justificar a indemnização por danos patrimoniais futuros independentemente de o mesmo se repercutir na vertente do respectivo rendimento salarial”.

Nessa medida “a incapacidade parcial permanente afectando, ou não, a actividade laboral, representa, em si mesma, um dano patrimonial futuro, nunca podendo reduzir-se à categoria dos danos não patrimoniais.

(…)

Ora na esteira do que acima escrevemos acerca do dano biológico naturalmente que nesta dimensão ou perspectiva, ele tem de ser havido como dano de natureza patrimonial.

Uma vez definido âmbito dos factos da vida que estão ou são abrangidos por danos desta natureza, naturalmente que é chegado o momento de efectuar a sua quantificação.

Como fazê-lo?

*

A este respeito importa dizer que a indemnização de danos futuros, v. g. perda de rendimentos do trabalho, têm sido objecto de vários critérios, seguidos na jurisprudência, como seja o primeiro, no caso a soma dos salários ou partes de salários que deixarão de ser recebidos pela vítima até ao termo da sua vida activa provável- cfr Acórdão do STJ de 15/5/86, in BMJ, 357,412.

Todavia não podemos deixar aqui de aludir a um outro critério qual seja a de que a indemnização a pagar, quanto aos danos futuros, por frustração de ganhos, deve representar um capital produtor de um rendimento que se extinga no fim do previsível período da vida activa da vitima- aquele em que a Autora se manterá profissionalmente activa -e que garanta as prestações periódicas correspondentes à respectiva perda de ganho.

Acontece que este critério também não é seguro porque o rendimento do dinheiro (normalmente juros dos depósitos bancários) varia ao longo do tempo, não estando o Tribunal, em condições, de obviar às taxas de juros adoptadas hoje em dia pelas instituições bancárias, muito inferiores aquelas praticadas em outros tempos, facto ainda mais vincado nos tempos presentes, com uma prática de taxas de juros remuneratórias pouco superiores ou a rondarem, na generalidade dos casos, o um por cento.

Vale isto por dizer que este critério é igualmente falível, precisamente porque não se pode prever com segurança a variação do valor da moeda mas não só: o lesado a quem é entregue o capital produtor do rendimento indemnizatório pode não conseguir fazê-lo produzir o rendimento estimado ou, pelo contrário, ser profundo conhecedor do sistema financeiro e conseguir aplicações, especulativas ou não, cujo rendimento efectivo ultrapassará largamente o rendimento estimado- note-se a tal respeito e comprovando o escrito que as taxas de inflação em Portugal variaram substancialmente pois que em 2011foi de 3,6%, em 2012 2,7%, em 2013 0,20%, em 2014 foi de 0,01%, em 2015 e 2016 de 0,7%.

Não se afigurando nenhum dos critérios infalível, do qual o Tribunal pode socorrer-se, este lançar mão de um deles não significa, contudo, que deva ser seguido à risca- no Acórdão do STJ de 06/07/2000 (in Col de Jurisprudência, 2000, 2, 144) escreve-se que: “I – A indemnização em dinheiro do dano futuro de incapacidade permanente corresponde a um capital produtor do rendimento que a vítima não irá auferir, capital esse que se extinga no final provável do seu período de vida. II – A equidade intervém necessariamente no cálculo desse capital, pois há que assentar no tempo provável de vida da vítima, na diferença que, em cada época futura, existirá entre o rendimento auferido e o que auferiria se não fosse a lesão, e, finalmente, na evolução do valor da unidade monetária que se irá exprimir. III – O recurso à utilização de tabelas financeiras, no cálculo da indemnização, facilitando a introdução de elementos concretizadores, deve ter carácter meramente auxiliar e os seus resultados corrigidos se o julgador os achar desajustados relativamente ao caso concreto que lhe é submetido a julgamento”.

Sem embargo tais cálculos têm sido sintetizados em fórmulas matemáticas as quais, partindo dos dados fixos da taxa de juro e do período da ocorrência dos danos, obtêm um factor a multiplicar pelo dano anual, assim se obtendo o montante destinado à indemnização- ver nesse sentido Dr Oliveira Matos, in “Código da Estrada anotado”, 6ª edição, pg 464 e Acórdão do STJ de 4/2/93.

Esta fórmula é a seguinte: C=P x (1:i-1 + i: (1+ i) x N x i) + p (1+i) - N, em que C é o capital total a depositar; P são os danos anuais do lesado; I a taxa de juro e N o número de anos em que se manterão os danos.

Tal perspectiva é desenvolvida no Acórdão da Relação de Coimbra de 5/03/2013 (in www.dgsi.pt) onde se pode ler que “a atribuição da indemnização por danos futuros emergentes de acidente em que a lesada, que então tinha 32 anos de idade, ficou com uma IPP de 4%, demandando esforços acrescidos para o exercício da actividade profissional que desempenhava, deve começar por calcular-se com recurso ao uso de fórmulas matemáticas, considerando um período de vida activa até aos 70 anos de idade, e tendo em conta o aumento da esperança média de vida, temperando o cálculo assim obtido com recurso à equidade e não procedendo a qualquer desconto decorrente do imediato recebimento do capital, porquanto também não é possível fazer uma adequada previsão sobre qual a evolução da remuneração do lesado num longo período de vida activa”.

E ainda na questão de tabelas atentemos na realidade da vida, no que tange à esperança média de vida, de harmonia com as “Tábuas de Mortalidade para 2011-2013” do Instituto Nacional de Estatística.

Na verdade os valores definitivos da esperança média de vida à nascença para aquele período foram de 80 anos para ambos os sexos, de 76,91 anos para os homens e de 82,79 anos para as mulheres, sendo que no triénio anterior- de 2008 a 2010 –ela era de 79,20 anos para ambos os sexos, com 76,14 anos para os homens e 82,05 anos para as mulheres.

Mas nas tábuas de mortalidade para Portugal, para o período de referência 2013-2015, o valor da esperança de vida à nascença foi estimado em 80,41 anos para ambos os sexos, sendo de 77,36 anos para os homens e de 83,23 anos para as mulheres.

E ainda de acordo com esta entidade na última década a esperança de vida à nascença da população residente aumentou cerca de três anos, mais concretamente 3,36 anos para os homens e 2,58 anos para as mulheres relativamente aos valores estimados para o período 2001-2003 (73,55 e 80,21 anos para homens e mulheres, respectivamente)- ver em www.ine.pt.

Todavia para efeitos laborais ou profissionais o limite é dos 70 anos.

Retornando aos critérios dir-se-á, como já escrevemos, que nenhum deles é infalível e rigoroso na avaliação dos danos indemnizáveis, porquanto não pode considerar todas as variáveis existentes e futuras, nomeadamente o comportamento futuro da taxa de juro, da taxa de inflação e da rentabilidade da actividade económica do lesado.

Contudo, não temos dúvida em dizer que acima de tudo, em função de normativo legal e ainda do carácter refractário de tais aspectos a valores de ponderação objectivos, concretos, certos, seguros e imutáveis, o Tribunal deve lançar mão de critérios de equidade para elemento temperador de realidades voláteis.

Ora no caso concreto, indiscutido que ocorre o nexo causal, pondera-se:

- a idade da Autora à data do evento e que era de 13 anos, sendo que aquando da determinação das sequelas e particularmente no momento de fixação do défice funcional permanente ela tinha 29 anos de idade;

- a esperança média de vida profissional em Portugal, fixada em 70 anos;

- o seu rendimento líquido actual- €1.300,00 mensais -o seu grau de incapacidade ou o respectivo Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 54 pontos, devidos a Tetraparésía espástica grau 4 com hemihipostesia esquerda e marcha de tipo parético-espástico, a Monoparésia do membro superior esquerdo, com mão em garra, por plexopatia braquial, o compromisso cognitivo e mnésico compatível com Síndrome Pós-Concussional, a Rigidez da coluna cervical por artrodese C1-C3, com radiculopatia cervical e ainda a Esplenectomia assintomática;

- a Repercussão Permanente na Actividade de Formação e Profissional de grau 5 de um máximo de 7, portadora de sequelas compatíveis com o exercício das actividades escolares que a examinada frequentava à data do acidente, bem como com o exercício da sua actividade profissional actual como Médica, mas exigindo esforços suplementares;

- o cercear das expectativas da Autora de realização pessoal e profissional, por manifesta impossibilidade em enveredar por especialidades Médicas mais exigentes, que exijam uma boa funcionalidade dos membros e da coluna cervical, ou seja, a diminuição da força muscular do membro superior direito, a reduzida destreza da mão direita e as lesões cervicais, lombares e medulares que afectam a Autora S (…) e inerente impossibilidade absoluta de exercer profissionalmente qualquer especialidade médico-cirúrgica como seja fazer cirurgias de qualquer espécie, obstetrícia, ortopedia, oftalmologia ou anestesiologia ou prestar serviços no INEM ou em movimentos médicos de socorro e/ou solidariedade social;

- na sua actividade como médica as dificuldades para examinar uma garganta- por necessitar de utilizar numa mão uma espátula e na outra um foco de luz –ou efectuar uma sutura- qualquer médico utiliza normalmente uma linha/fio que tem de enfiar numa agulha (operação em que são necessárias as duas mãos) e depois manobra essa agulha com um das mãos e com a outra repuxa a zona a suturar;

- a taxa média de inflação no nosso país;

- o salário mínimo mensal actualmente fixado em €580,000;

- o dispêndio ou a cativação de parte do rendimento obtido com a actividade profissional para as necessidades próprias da Autora;

- as suas condições de saúde ao tempo do acidente, que não acusavam nenhum elemento sensível;

- o lapso temporal entretanto decorrido entre a data do acidente e a presente data.

Tudo ponderado, sem excepcional preocupação com o cálculo aritmético, sempre balizados por um critério de EQUIDADE, e portanto também num juízo de equidade, nos sobreditos termos, por um lado, e os factores de orientação legal, postulados nos artigos 562º, 563º, 564º e 566º, reputa-se adequado um valor indemnizatório que se quantifica em €250.000,00”.

3.1.1. Neste campo a A./recorrente pretende seja arbitrado um montante indemnizatório superior ao que lhe foi atribuído pelo tribunal a quo, na ponderação procedente da alteração da matéria de facto, com aquele que pretendia fosse aditado (conclusão VII de recurso e correspondente exposição do corpo das alegações).

Todavia, como vimos, a impugnação de facto nesta parte foi julgada improcedente. Inexiste, pois, o pressuposto em que a recorrente baseava o seu recurso para o pretendido aumento indemnizatório.

Como tal, o seu recurso improcede nesta parte.

3.1.2. Por sua vez, a R./recorrente pretende seja reduzido o referido montante arbitrado, no máximo para 150.000 €, por a sentença ter levado em consideração as opções profissionais que a mesma poderia ter tomado no exercício da mesma, nomeadamente ser cirurgiã. Isto porque ainda antes da A. enveredar pela carreira de médica, já a sua condição a impossibilitava de enveredar por especialidades médicas mais exigentes, impossibilidade essa absoluta de exercer profissionalmente qualquer especialidade médico-cirúrgica como seja fazer cirurgias de qualquer espécie, obstetrícia, ortopedia, oftalmologia ou anestesiologia ou prestar serviços no INEM ou em movimentos médicos de socorro e/ou solidariedade social, tendo ainda assim escolhido enveredar exactamente pela sua actual actividade profissional, não resultando provado que a autora tivesse seguido por uma destas vias e que apenas não o tenha feito por via da sua condição, resultante do acidente. Além disso, por aplicação da proposta razoável da Portaria 377/2008, estaríamos a falar de um valor de referência que rondaria os 100.000 € (cfr. conclusões de recurso 1. a 10).

Começando a nossa apreciação por esta última parte, diremos, como justamente salienta a recorrida nas suas contra-alegações e é jurisprudência corrente, que para a aludida ponderação indemnizatória, o tribunal não está adstrito aos critérios estabelecidos pela dita Portaria, pois as tabelas aí plasmadas são meramente orientadoras, e por outro lado, mais decisivo, os valores indicados nessa Portaria têm um âmbito específico de aplicação extrajudicial (entre seguradora e lesados) e não substituem os critérios legais previstos no Código Civil.

Quanto ao argumento verdadeiramente substantivo oposto pela R./seguradora, importa relembrar o que determina o art. 563º do CC, que reza, sobre o nexo de causalidade, que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Este normativo consagra a teoria da causalidade adequada na formulação negativa, como tem sido entendido pela praticamente unânime doutrina e jurisprudência.

O Acórdão do S.T.J. de 7.4.2005 – Proc. 05B294 – em www.dgsi.pt, sentenciou:

“O artigo 563 do Código Civil consagra a doutrina da causalidade adequada na sua formulação negativa, que não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, pelo que admite:

- não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não;

- como ainda a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano”.

Como sentenciou o mesmo STJ – Acórdão de 20.6.2006, na CJ, 2006, II, pág.119:

“I – Tal como decorre da redacção do artigo 563º do Código Civil o nosso sistema jurídico acolheu a doutrina da causalidade adequada, a qual, todavia, não pressupõe a exclusividade de uma causa ou condição.

II – Muito embora tal conceito legal comporte qualquer das formulações da referida teoria – na formulação positiva ou negativa –, vem-se, porém, entendendo que, provindo a lesão de um facto ilícito (contratual ou extracontratual), seja de acolher e seguir a formulação negativa, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostrar indiferente para a verificação do dano.

III – Causalidade adequada essa que se refere – e não apenas ao facto ou dano isoladamente considerados – a todo o processo factual que, em concreto, conduziu ao dano.

IV – Muito embora sejam as circunstâncias a definir a adequação da causa, contudo, não se deve perder de vista, por um lado, que para a produção do dano pode haver a colaboração de outros factos, contemporâneos ou não, e, por outro, que a causalidade não tem necessariamente de ser directa e imediata, bastando que a acção condicionante desencadeie outra condição que, directamente, suscita o dano (causalidade indirecta).

V – Sempre que ocorra um concurso de causas adequadas, qualquer dos seus autores é responsável pela reparação de todo o dano.

VI – No nosso ordenamento jurídico o nexo de causalidade apresenta-se com uma dupla função: como pressuposto da responsabilidade e como medida da obrigação de indemnizar.” – (sublinhámos os pontos II a IV e VI).

Também no Acórdão do S.T.J. de 17.4.2007 – Proc. 07A701 – no aludido sítio, pode ler-se:

“A teoria da causalidade adequada apresenta duas variantes: uma formulação positiva e uma formulação negativa.

Segundo a formulação positiva (mais restrita), o facto só será causa do dano, sempre que verificado o facto, se possa prever o dano como consequência natural ou como efeito provável dessa verificação.

Na formulação negativa (mais ampla), o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto.

Por mais criteriosa, deve reputar-se adoptada pela nossa lei a formulação negativa da teoria da causalidade adequada (Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 9ª ed., págs 921, 922 e 930; Pedro Nunes de Carvalho, “Omissão e Dever de Agir em Direito Civil”, pág. 61; Ac. S.T.J. de 15-1-02, CJ Ac. S.T.J., X, 1º, 36: Ac. S.T.J. de 1-7-03, proferido na revista nº 1902/03, da 6ª secção, também relatado pelo mesmo Relator, entre outros)”.

E no Ac.do STJ, de 4.6.09, Proc. 09B529, no mesmo sítio diz-se:

“Note-se, finalmente, pois é importantíssimo, que o nosso ordenamento jurídico consagra a doutrina da causalidade adequada, na sua formulação negativa: «o facto só deixará de ser causa adequada do dano, desde que se mostre, por sua natureza, de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais» (1).

Para além disso, a doutrina em causa não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano; podem ter colaborado na sua produção outros factos concomitantes ou posteriores (2), como se reconheceu, ainda recentemente, no Acórdão deste Supremo Tribunal de 31.03.2009 (3) (…): No referido acórdão decidiu-se «O processo de determinação do nexo de ligação do facto ao dano comporta duas fases: numa, a inicial, averigua-se no plano naturalístico se certo facto concreto é ou não efectivamente condicionante de um dano; noutra, posterior, determina-se se esse facto, considerado em abstracto e geral, é ou não apropriado a provocar tal dano.

(1) ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 9ª edição, pg. 708.

(2) Cfr., neste sentido, na doutrina e por todos, ALMEIDA COSTA, Direito da Obrigações, pg 708 da 9ª edição e, na Jurisprudência, a título exemplificativo, os Acs. STJ proferidos nas Revistas 2855/04, de 4.11.2004 e 4063/04, de 13.01.2005. Nem é de admirar, dado que o conceito de causa adequada é um conceito normativo, criado para mitigar os exageros da doutrina da equivalência da condições ou da conditio sine qua non, enunciando-se como toda a condição que em abstracto, se mostra adequada a produzir um dano ou prejuízo.

(3) Disponível em www.dgsi.pt. (Revista 2421/08-2).”

Finalmente no mesmo sentido, vai igualmente o Ac. do STJ, de 21.4.09, Proc.09A449, ainda no mencionado sítio.

Tendo presente estes ensinamentos, em termos de causalidade adequada, não duvidamos que o acidente ocorrido com a A. e as suas consequências e sequelas determinou e condicionou o futuro da mesma e as opções que tinha à sua disposição. Isso mesmo flui dos factos provados 36., 63. e 64.

O facto de a A. ter ficado impossibilitada em enveredar por especialidades médicas mais exigentes, que exijam uma boa funcionalidade dos membros e da coluna cervical não resultou de qualquer acto de vontade ou escolha da A., o que acontece é que as sequelas de que padece, derivadas do acidente, lhe cercearam as possibilidades que tinha de aceder a tais especialidades médicas mais exigentes. E não se diga que ela não poderia aceder às mesmas, ou era altamente incerto que tal acontecesse, pois os factos provados 51. a 59. demonstram que essas possibilidades eram reais e de contorno muito previsível. Na verdade, se com todas as limitações de que ficou a padecer a A. mesmo assim conseguiu fazer o percurso que fez até chegar a médica não se pode dizer que o facto do acidente e suas consequências foi de todo indiferente à mesma não ter chegado a alcançar tais especialidades médicas mais exigentes. 

Concluímos, pois, pelo explanado, que não se vê razão para arredar do montante indemnizatório arbitrado qualquer valor a título de desvalorização profissional como a R. pretende, improcedendo esta parte do recurso.     

3.2. Na mesma sentença recorrida disse-se que:

DANOS MORAIS PRÓPRIOS, QUANTUM DOLORIS e DANO ESTÉTICO

*

Tal como decorre do articulado inicial, a Autora elenca ou enumera um conjunto de factos que engloba em sede de “quantum doloris”, “danos estético” e “danos morais próprios”.

Porém e como resulta, cremos, da perspectiva ou entendimento que acima expusemos, ao abordarmos jurídicamente a matéria da responsabilidade civil extracontratual, na óptica dos danos ressarcíveis, todos aqueles danos se reconduzem verdadeiramente a uma única categoria, isto é, são três faces de uma mesma e única realidade: os danos morais ou não patrimoniais.

Nessa perspectiva julgamos mais curial não os autonomizarmos e como tal, na sua apreciação conjunta ou una, neles estão compreendidos três montantes distintos: €45.000,00 (quantum doloris), €50.000,00 (dano estético) e €30.000,00 (danos morais próprios) ou seja um total de €125.000,00.

Ora em sede legal dir-se-á que estas parcelas do pedido englobam nela um conjunto de elementos, como sejam o DFPIFP, sofrimentos, dores, tratamentos médicos e internamento, bem como sequelas, de ordem física ou psíquica, e ainda elementos ligados à aparência física ou visual do(s) sinistrado(a), traduzida sem sequelas emergentes das lesões causadas pelo e no acidente.

Sucede que este dano é de inquestionável ou de muito difícil quantificação, visto que ele comporta, reitera-se, o chamado prejuízo de afirmação pessoal, o “quantum doloris”, dano estético ou esforços acrescidos, na medida em que briga com o bem-estar psíquico do sinistrado, etc, etc, isto é, a dor é, só por isso, matéria de evidente e inequívoca subjectividade, pois que cada e toda a pessoa humana sente o estímulo doloroso de maneira diferente, na perspectiva de um padrão médio de conduta do ser humano.

Aliás pensamos que não se pode rotular de estultícia pensar-se que a mesma dor e o mesmo estimulo doloroso podem ser sentidos/sofridos de maneira ou modo muito diverso, por duas pessoas, desde logo em função da diversa situação em que cada um deles a vivencia.

E não só: temos como evidente, salvo o devido respeito por opinião contrária, até como dado da normalidade das coisas, que a subjectividade do próprio sinistrado, porque não conhece senão as dores que ele próprio já experienciou, fá-lo-á queixar-se ou lamentar-se que elas são as piores que podem existir, em qualquer lugar, momento ou circunstância pois que, repete-se, ele não conhece outras. Nessa decorrência existe um amplo campo de subjectividade na determinação de um quantum uma vez que, estando nós confrontados com uma dimensão da natureza humana não mensurável, ainda ninguém encontrou/localizou/criou uma tabela, aferida ou organizada de acordo com um conjunto de padrões ou parâmetros ou elementos objectivos ou quantitativos ou mesmo aritméticos, cuja ponderação transporte para a fixação desta vertente da indemnização uma componente exclusivamente objectiva.

Ainda assim há elementos mínimamente objectivos que nos auxiliam nesta tarefa e que, por exemplo, contendem com a natureza e dimensão da lesão versus dor, ou da sua localização.

Na medida do escrito e de um ponto de vista objectivo, a natureza e a gravidade de uma lesão pode ser inequivocamente dolorosa, como se exemplifica com uma queimadura de 3º grau, produzida num ser humano comum o qual, por muito resistente que seja à dor a pessoa em causa, nunca poderá deixar de ser validada como dolorosa- e valorada de modo gradativo, consoante a queimadura seja do 1º ou 2º grau, tal como influenciará a parte do corpo no qual ela foi infligida.

Mutatis mutandis no que diz respeito a tratamentos que sejam levados a cabo para debelar a lesão: ninguém questionará que uma fractura da coluna vertebral que demande, para cura, por exemplo, a utilização, por três ou quatro meses, de colete gessado, com imobilização na mesma posição, é uma situação dolorosa para qualquer ser humano comum, ademais de flagrantemente incómoda.

E o mesmo se diga de situações como aquela na qual se configura a necessidade de duas ou três intervenções cirúrgicas, com anestesia local ou geral, ou um recobro normal ou com infecções, etc, duração de períodos de internamento, consecutivos ou intercalados, proximidade ou distanciamento com a família, actividades ou condutas que eram desenvolvidas antes mas deixaram de ser possíveis, existência de sequelas permanentes, etc, etc.

Que elementos temos nesta sede?

De modo sintetizado são os seguites:

- entrada no Serviço de Urgência do Hospital de (...) , pelas 15:19 horas do dia 26/12/1999, de que resultou TCE grave, com alteração profunda do estado de consciência (Escala de Coma de Glasgow > 3), traumatismo vertebromedular com choque medular secundário a fractura de C2 e luxação C2-C3 (com hemiparésia esquerda), traumatismo torácico, com fractura de arcos costais e condrocostais e volet costal à esquerda, traumatismo abdominal com lesão do baço, hemoperitoneu e laceração da serosa gástrica, fractura de clavícula esquerda com luxação acrómio-clavicular e lesão do plexo braquial esquerdo com arrancamento das últimas raízes (de média gravidade nas raízes CS, C6 e C7, muito grave nas raízes CS e DI);

- sujeição a laparotomia exploradora emergente, com esplenectomia e rafia da serosa gástrica, tendo sido internada na UCIP, sob ventilação mecânica, a TAC cerebral (que revelou contusão e hematoma cervical posterior e possível traço de fractura temporal esquerdo);

- transferida para os Hospitais da Universidade de (...) no dia 27/12/1999, referenciada para a especialidade de Neurocirurgia, tendo ficado internada no Serviço de Neurotraumatologia, sob tração cervical;

- em 12/01/2000 submetida a intervenção cirúrgica para fixação posterior CI-C3 com sistema apofix e cirurgia ao plexo braquial esquerdo, permanecendo internada no Serviço de Medicina Intensiva até 19/04/2000;

- durante o internamento foram registadas as seguintes complicações: insuficiência respiratória tendo realizado entubação oro-traqueal e drenagem torácica e crise convulsiva tónico-clónica generalizada;

- iniciou programa de reabilitação no Serviço de Medicina Física e de Reabilitação dos H.U.C em 27/01/2000, vindo a ter alta para o domicílio em 14/04/2000, com indicação de continuar os tratamentos de reabilitação numa clínica em (...) ;

- em Abril de 2000 observada pelo Dr. (…), em consulta de Fisiatria, na Clínica de Medicina Física e de Reabilitação da (...) , apresentava tetraplegia de predomínio dos membros direitos, com possibilidade de efectuar todos os movimentos, mas com diminuição da destreza e da velocidade e a força muscular era cotável em 4, excepto a nível do membro superior esquerdo onde era de 4 a nível proximal e de 2 ao nível da extensão do antebraço. Não tinha movimentos activos, evidenciando atrofia dos músculos intrínsecos a nível da mão esquerda. Apresentava défices de visão, com informação da oftalmologia de previsível recuperação em períodos de 6 a 12 meses. Sofria de hipofonia e a marcha era insegura de base alargada e com steppage à esquerda;

- na consulta de traumatismo vertebro-medular (TVM) nos H.U.C em 16-05-2000, apresentava melhoria dos défices apresentados;

- em 19-06-2000 submetida a intervenção cirúrgica, no Instituto de Cirurgia Reconstrutiva da Clínica de (...) , para tratamento de lesão do plexo braquial com melhoria do défice neurológico;

- no início de Julho de 2000 foi realizada a neurólise do plexo braquial esquerdo, com intuitos paliativos, constatando-se arrancamento pré-ganglionar das raízes CS e Dl esquerdas, o membro inferior esquerdo apresentava tremor e clónus esgotável e a Te cervical mostrou subluxação de C2-C3, com consolidação viciosa (em cifose) de C2 e angulação levógira da articulação atlo-axoideia; a radiografia da coluna evidenciou rectificação cervical (com cifose C2) e cifose dorso-lombar;

- reavaliada na consulta externa de Neurocirurgia dos H.U. C. e em 10/10/2000, apresentava melhoria do défice neurológico e queixas de cervicalgias de características mecânicas, não evidenciava défices cognitivos aparentes, sendo portadora de quadro de monoparésia do membro superior esquerdo de predomínio nos territórios C8 e DI, com défice de preensão e da capacidade manipulativa da mão esquerda. Encontrava-se independente nas actividades de vida diária que realizava de modo mais lento, tendo alta da consulta de TVM, com indicação para retomar a actividade escolar e manter reabilitação em clínica convencionada pela companhia de seguros;

- observada pela última vez no Instituto de Cirurgia Reconstrutiva da Clínica de (...) em 13/12/2000, apresentando boa recuperação da força muscular do ombro e cotovelo esquerdos, com limitação marcada ao nível do punho e ausência de recuperação da mão e evidenciava ainda escoliose dorso-lombar;

- manteve programa intensivo de reabilitação integral na Clínica de Medicina Física e de Reabilitação da (...) , em regime de "hospital de dia II, até ao Verão de 2003, altura em que passou a realizar tratamentos duas ou três vezes por semana; desde o Verão de 2004 passou a ter consultas periódicas de reavaliação, tendo sido acompanhada por ortodôncia por disfunção têmpora-mandibular, continuando a frequentar sessões de reabilitação agora na x (...) , com periodicidade não apurada e que duraram até finais de 2005;

- em 2005 as lesões estavam aparentemente estabilizadas a nível do membro superior esquerdo, com força muscular proximal de 4 e de 2 a 3 ao nível da extensão do antebraço esquerdo, paralisia da mão esquerda e atrofia dos músculos do antebraço e dos músculos intrínsecos da mão, a marcha apresentava um padrão razoável, com espasticidade cotável em 2 na escala de Ashworth mas não conseguia correr;

- RM crânio-encefálica, realizada em 22/12/2009, não revelou a presença de lesões endocranianas nomeadamente expansivas, vasculares ou de natureza traumática, identificando-se apenas uma pequena área de hipersinal em T2 a nível cerebeloso profundo à esquerda, eventualmente correspondendo ti uma pequena lesão ou apenas espaço peri-uascular alargado;

- RM da coluna cervical realizada em 22/12/2009, apresentava rectificação da curvatura cervical, admitindo-se discreta acentuação da cifose dorsal e discreta angulação anterior do corpo de C2 em relação a O, acompanhando pequeno desvio anterior do arco posterior de Cl, espetos que foram atribuídos a sequela de traumatismo; o arco posterior de Cl e também o arco posterior de C3 contactam a face posterior do cordão medular, aparentemente sem sinais evidentes de lesão ou deformação da medula e o espaço subaracnóideu anterior mostra-se patente até C3; desde o plano do disco 0-C4 até ao plano superior de D4, observa-se extensa colecção em topografia inira-canalar anterior e extra-dural ( ... ) associada a moldagem significativa do muro posterior dos corpos vertebrais, (oo.) que condiciona moldagem com desvio posterior e ligeiramente para a direita da medula, não se identificando contudo significativas alterações da emissão de sinal normal da medula, ( ... ) esta colecção estende-se ainda aos canais de conjugação esquerdos de C6 a D3, moldando-os e expandindo-os, e apresenta pequenos componentes extra-foraminais em C6-C7 e C7¬DI. Não foram observados, após injecção de contraste, realces anómalos; esta colecção é sugestiva de corresponder a extenso pseudo-meningocelo pós-traumático, com provável avulsão de raízes do plexo braquial, atendendo ao contexto (...). Identificam-se ainda pequenas protusões disco-osteofitárías canalares de predomínio direito em 05-D6 e, com menor expressão, em 06-07 e 08-D9, com discreta moldagem do espaço subaracnôideu anterior;

- electromiografia dos membros superiores, efectuada em 23/12/2009, revelou lesão das raízes cervicais esquerdas aos níveis C7, crónica, grave e C8 muito grave; lesão do nervo acessório direito, crónica, de gravidade moderada o relatório das radiografias efectuadas à coluna vertebral, ombro direito e clavícula direita em 08/01/2010, refere rectificação da curvatura fisiológica da coluna cervical, material cirúrgico para fixação de Cl-C3 na região posterior do pescoço, escolioee dorsal inferior dextro-convexa, com um ângulo de curvatura aproximadamente 10,8°, inscrevendo-se no grupo I da classificação de Lipman-Cobb; discreto desnivelamento da bacia encontrando-se o teta acetabular esquerdo cerca de 3,6mm acima do direito; apresentava ainda irregularidade do contorno e da estrutura óssea da porção mediana da clavícula em relação provável com traumatismo não recente;

- em 05/04/2010 recorreu ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar da (...) por espasmos nos membros inferiores quando se punha de pé ou esticava as pernas, tomava Sirdalud que naquele dia "não tinha feito efeito", submetida a estudo analítico e a tratamento relaxamento com diazepam e metamizol por via endovenosa;

- relatório clínico subscrito pelo Dr. (…), em 23/04/2010 assina que a S (...) apresentava parestesias nos dois membros superiores, mais intensas à direita, espasmos nos quatro membros em especial na mão direita (com posição irredutível em flexão dos dedos e punho), diminuição da destreza normal à direita e paralisia da mão esquerda. Referia ainda crises agudas de clónus incontroláveis, com total incapacidade para a marcha e medo/pânico relativamente ao aparecimento de tais crises. Apresentava queixas de desequilíbrio na marcha, com medo de quedas e incapacidade para correr, bem como cervicalgias e lombalgias, de carácter mecânico e postural. O exame objectivo realizado revelou atrofia dos músculos intrínsecos da mão, do antebraço e da região escapular à esquerda, paralisia da mão esquerda, força muscular de grau 2 à extensão do antebraço esquerdo e força de grau 4 nos restantes movimentos do membro superior esquerdo, com adejo da omoplata. Hipostesia táctil do hemicorpo esquerdo, sem sensibilidade profunda. A marcha evidenciava discreto padrão espástico de base alargada, com incapacidade para a corrida, para a marcha com olhos fechados e para equilíbrio em apoio mono-podálico. Apresentava tetraplegia espástica de grau III na escala de Ashworth, com clónus nas patelas e pés. Diminuição global da mobilidade cervical, com sinais de sofrimento do raquis (tensão para-vertebral e dor à palpação dos diversos segmentos). Postura em cifose dorsal/lombar e anteprojecção cervical com discreto desvio cervical levógiro. Ansiedade/medo de novas crises "paralisantes". A espasticidade era então controlada por tratamento medicamentoso (badofen) e de Medicina Física e de Reabilitação (técnicas cínesíologícas de inibição da espasticidade), estando medicada ainda com analgésicos e miorrelaxantes "on demande", conforme as queixas álgicas nociceptivas e pregabalina para as queixas neuropáticas. Colocada a questão de necessidade de cirurgia descompressiva caso a espasticidade se tornasse medicamente incontrolável. Como sequelas irreversíveis foram consideradas as raquialgias mecânicas e posturais, a tetraplegia espástica (grau 4, exceto membro superior esquerdo) com hipostesia à esquerda e abolição da sensibilidade profunda, a lesão das raízes C8 e D1 à esquerda com paralisia da mão esquerda, a parésia do antebraço esquerdo (grau 2-3) e as sequelas de TCE, com rebate psicológico e crises de ansiedade e pânico. Indicada a necessidade de medicação de forma continuada e crónica, de acompanhamento fisiátrico e de tratamentos continuados de Medicina Física e de Reabilitação para as queixas neuropáticas e nociceptivas e inibição da espasticidade;

- observação presencial e relatório clínico subscrito pelo médico Neurocirurgião Dr. (…)datado de 10/11/2013, constata atrofia muscular ao nível da região escapular esquerda e dos músculos intrínsecos da mão esquerda, com paralisia da mão e força de grau 2 à extensão do antebraço esquerdo. Evidenciava ainda hipostesia do hemicorpo esquerdo, hiperr9eflexia e espasticidade nos 4 membros (exceptuando a mão esquerda) com clónus esgotável nos pés, abolição da sensibilidade profunda com dificuldade em fazer marcha de olhos fechados ou no escuro. O EMG revelava lesão muito grave das raízes C7 e C8 esquerdas e do nervo acessório direito crónica de gravidade moderada, condizendo com o exame clínico. Do ponto de vista neurocirúrgico apresentava sequelas graves e irreversíveis, sem qualquer possibilidade de tratamento médico ou cirúrgico, condicionando grave incapacidade funcional para a vida diária e profissional;

- observação presencial e relatório, por parte do Dr (…), em 10/12/2014, consigna que a Autora apresentava um quadro clínico em tudo sobreponível ao descrito em 23/04/2010, reiterando a necessidade de medicação de forma continuada e crónica associada a acompanhamento fisiátrico e tratamentos continuados de Medicina Física e de Reabilitação;

- na data do exame médico- 12 de Outubro de 2015 –como na actualidade, apresenta dificuldade na marcha, bem como em subir e descer escadas ou rampas, além de dificuldade em permanecer na posição ortostática por longos períodos devido a "dor nas costas", parando por breves períodos para aliviar a dor, não consegue correr tão pouco consegue agarrar em objectos com a mão esquerda pois apenas é capaz de os transportar com a palma da mão virada para cima;

- em situações de maior tensão tem dificuldade em concentrar-se, evitando medicação;

- frequentes crises na coluna vertebral, que aliviam com a toma de medicamento, mas apresenta dores no antebraço e mão esquerdos, diárias, mesmo em repouso, associadas a sensação de choques eléctricos;

- tem regularmente sensação de "endurecimento" da coxa, perna e pé esquerdos, com espasmos e tremores, estes quase diariamente e quando faz um percurso mais extenso, com estes a começarem a tremer incontrolavelmente, em crises que demoram alguns minutos, que a seguir passam, obrigando-a a, de imediato, largar ou suspender o que então esteja a fazer e que, quando são mais agudas, obrigam a receber tratamento hospitalar de urgência, tudo gerando cansaço na Autora e angústia pela situação e medo da duração ou que se repita;

- necessita de ajuda para qualquer actividade em que tenha que utilizar as duas mãos, tais como apertar botões, o “soutien” ou o calçado, colocar pulseiras ou fios, pentear-se “devidamente”- para além da passagem no cabelo da escova -e tem muitas dificuldades em vestir-se, despir-se e tomar banho, descascar alimentos, cortar com uma faca alimentos e não usa saltos altos, conduzindo automóveis com caixa automática;

- aquando da efectivação do exame médico apresentou-se com marcha claudicante (de tipo parético-espástico), sem recurso a ajudas técnicas;

- lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento tais como:

- no pescoço: cicatriz nacarada de características cirúrgicas, longitudinal, ligeiramente endurecida ao toque desde a região suboccipital até ao terço distal da região cervical posterior, medindo 9 cms x 2 cms;

- na Ráquis: limitação das mobilidades da coluna cervical, nomeadamente ao nível das rotações e flexões laterais nos últimos graus; mobilidades da coluna lombar sem limitações (Índice de Schober de 10/15cm);

- Tórax: ligeira deformidade do terço distal da região clavicular direita; cicatriz nacarada com áreas rosadas, com vestígios de pontos de sutura, adoptando um formato de "S deitado", estendendo-se desde o terço proximal da região clavicular esquerda até à linha axilar anterior, ao nível da axila ipsilateral, medindo 30 cms x 3 cms, associada a alteração da sensibilidade ao toque; cicatriz nacarada existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo e se exclui a pré-existência do dano corporal;

- data da consolidação médico-legal das lesões em 31-12-2005, com Défice Funcional Temporário Total e Repercussão Temporária nas Actividades de Formação Total entre 26/12/1999 e 10/10/2000 (290 dias a que deverão ser acrescidos mais 8 dias para eventual extracção do material de osteossíntese que ainda possui na coluna cervical), Défice Funcional Temporário Parcial e Repercussão Temporária nas Actividades de Formação Parcial entre 11/10/2000 e 31/12/2005 (1907 dias, a que deverão ser acrescidos mais 22 dias para convalescença de eventual extracção do material de osteossíntese que ainda possui na coluna cervical);

- Quantum doloris do grau 6 numa escala máxima de sete;

- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, de 54 pontos, por força de Tetraparésía espástica grau 4 com hemihipostesia esquerda e marcha de tipo parético-espástico, Monoparésia do membro superior esquerdo, com mão em garra, por plexopatia braquial, compromisso cognitivo e mnésico compatível com Síndrome Pós-Concussional, Rigidez da coluna cervical por artrodese C1-C3, com radiculopatia cervical e Esplenectomia assintomática;

- Repercussão Permanente na Actividade de Formação e Profissional de grau 5 de um máximo de 7, sendo que as sequelas resultantes são compatíveis com o exercício das actividades escolares que a examinada frequentava à data do acidente, bem como com o exercício da sua actividade profissional actual como Médica, mas exigem esforços suplementares, a que acresce o facto da Autora ver cerceadas as suas expectativas de realização pessoal e profissional, dada a manifesta impossibilidade em enveredar por especialidades Médicas mais exigentes, que exijam uma boa funcionalidade dos membros e da coluna cervical;

- Dano Estético Permanente de grau 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta a marcha parétíco-espastíca, a anisocória (com diminuição do diâmetro pupilar à esquerda), as amiotrofias do membro superior esquerdo com mão em garra, a espasticidade segmentar generalizada, bem como a localização e dimensão das cicatrizes acima descritas;

- Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas e de Lazer do grau 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta as repercussões que as sequelas determinaram na sua vida de relação, impedindo a prática das aulas de piano, bem como a possibilidade de se dedicar a actividades lúdicas, tais como frequentar uma discoteca ou passear com os amigos;

- Dependências Permanentes de Ajudas com necessidade da Autora realizar terapêutica crónica com analgésicos (Naproxeno), relaxantes musculares (Baclofen) e Pregabalina- ajuda medicamentosa -, necessidade de acompanhamento fisiátrico e tratamentos continuados de Medicina Física e de Reabilitação- tratamentos médicos regulares –uso de talheres adaptados- ajudas técnicas –e ainda a necessidade de ajuda de terceira pessoa para algumas das actividades da vida diária;

- sujeita a observação neurológica, manifestou-se pessoa com idade aparente coincidente com a real, cooperante no exame, consciente, orientada no espaço e no tempo, com discurso espontâneo fluente e estruturado, humor estável com boa disponibilidade afectiva, com Memória anterógrada verbal e de trabalho perturbada, Amnésia circunstancial para o acidente e anterógrada, Lentificação com erros no cálculo, na CoIuna vertebral rigidez com perturbação da mobilidade, marcha de tipo parético-espástico, com prova de Romberg e teste de Quicks perturbados pelo défice motor, na postura apresenta mão em garra à esquerda, espasticidade segmentar generalizada, Amotrofias generalizadas do membro superior esquerdo, na Força Muscular tetraparésia 04 de predomínio direito, nos Reflexos Miotáticos tem hiperreflexia generalizada patológica e na Sensibilidade termo-álgica apresenta hemihipostesia esquerda;

- exame neurológico a revelar compromisso cognitivo e mnésico compatível com síndrome pós-concussional a que se associam tetraparésia espástica G4 pós-traumática, rigidez cervical enquadrável nas raquialgias residuais e radiculopatia cervical pós-traumática;

- em função da dimensão e visibilidade das cicatrizes que ficaram no seu corpo, não usa nem “biquínis” nem roupas decotadas, deixou crescer o cabelo para tentar ocultar algumas daquelas cicatrizes, sentindo-se “complexada” com tal situação e receio que terceiros a estejam a ver e desconsiderar;

- desde a data do acidente- 26 de Dezembro de 1999 -até à data da alta hospitalar- 21 de Junho de 2000 -em consequência das lesões e sequelas determinadas pelo acidente dependência total do auxilio de terceiros para a execução dos actos do seu quotidiano, designadamente os relacionados com a sua higiene, a sua alimentação e o seu vestuário;

- em 31 de Março de 2006 apresentava cefaleias, tonturas e episódios de lipotimia com perda do conhecimento frequentes e que no presente ainda vai tendo episodicamente;

- à data do acidente era uma adolescente, rapariga alegre, bonita, saudável e mimada;

- percurso escolar substancialmente alterado com o acidente, pois que à data do acidente era estudante do 8° ano de escolaridade, após a alta hospitalar teve explicações particulares a pelo menos três disciplinas e, graças essencialmente à sua grande força de vontade evitou, até 2003, qualquer reprovação ou perda de ano escolar;

- no final do ano lectivo 2003/2004 concluiu o 12º ano em (...) mas, nos exames nacionais a que então e em seguida se apresentou, para tentar aceder ao Ensino Superior, as suas notas foram insuficientes mas, ao abrigo do regime legal especial para portadores de deficiência física ou sensorial- como era o seu caso -conseguiu ser admitida ao correspondente Contingente Especial para ingresso no Ensino Superior público, por despacho conjunto dos Directores Gerais de Inovação e Desenvolvimento Curricular e do Ensino Superior proferido em 7 de Setembro de 2004, ingressou no Curso de Ciências Bio-Químicas da Universidade (...) , na x (...) , mas no final do ano lectivo respectivo- 2004/2005 -não conseguiu obter aprovação em nenhuma das disciplinas curriculares do 1º semestre do mesmo, cujas aulas frequentou;

- no final do ano lectivo de 2004/2005 repetiu os exames nacionais do 12º ano nas disciplinas de Biologia e de Química, tendo então obtido aprovação, com notas positivas, em ambas e assim, por força desta aprovação e ainda do facto de já estar inscrita na referida Universidade ao abrigo do mencionado Contingente Especial, foi-lhe então permitido transitar para o Curso de Medicina ministrado naquela, tendo tido o seguinte percurso académico:

- no 1º ano, que frequentou no ano lectivo de 2005/2006, conseguiu aprovação a duas disciplinas;

- no ano lectivo seguinte- 2006/2007 –obteve aprovação em mais uma disciplina do mesmo 1º ano;

- no ano lectivo 2007/2008 voltou a falhar a aprovação na disciplina principal do 1º ano do curso em referência- “Corpo Humano: dos Sistemas às Moléculas I” –sendo que, sem aprovação nesta disciplina, não lhe foi permitido inscrever-se no 2º ano do Curso;

- no ano lectivo 2008/2009 conseguiu obter essa aprovação e transitar para o 2º ano do Curso;

- a partir do momento em que começou a frequentar esse 2º ano do Curso- ano lectivo de 2009/2010 -nunca mais voltou a reprovar e no ano lectivo de 2012/2013 conseguiu concluir integralmente o 5º ano curricular desse Curso de Medicina e no ano lectivo de 2013/2014 estava inscrita no 6º ano desse Curso, que curricularmente é preenchido com a frequência de um estágio num Hospital- efectuou-o em (...) , no Hospital de (...) , integrado no Centro Hospitalar de (...) - (...) –tendo apresentado a sua tese ou dissertação de mestrado, que foi aprovada.

*

Que dizer a respeito deste quadro factual?

Apenas que ele é objectivo, deveras impressivo e impressiona sobremaneira, vista a carga negativa da situação, com marcas vincadas na pessoa da Autora S (…) para toda a vida, sobretudo tendo em atenção que à data dos factos ela era uma menina, a iniciar a adolescência, cujo futuro risonho se adivinhava, como de resto o seu percurso escolar, até então e subsequente, demonstra, ainda que à custa essencialmente de um seu grande esforço- a este propósito recorde-se que a testemunha Dr (…), o médico fisiatra que acompanhou a S (…) durante anos, disse, a respeito das sequelas físicas “é incrível como ela conseguiu superar isso tudo”, afirmação de respeito e admiração pela S (...) que repetiu adiante quando disse que “se há pessoa que eu admiro é a S (…)…nunca pensei sequer que ela conseguisse tirar uma licenciatura, muito mais medicina”, além de que a circunstância de ter estado vários dias em coma, facto que deixa marcas também a nível cerebral “e ela conseguiu ultrapassar isso tudo…por isso a minha grande, grande admiração, mesmo, por ela”.

Efectivamente colhe-se da análise dos factos acabados de enunciar que a Autora S (…) teve lesões de especial gravidade, com incidência no membro superior esquerdo, em ambos os membros inferiores, ao nível da coluna vertebral, relevando especialmente que esteve em coma durante dias e dias, que foi submetido a 3 intervenções cirúrgicas, os tratamentos a que teve de se sujeitar, durante anos, bem como os sucessivos exames médicos e meios complementares de diagnóstico, o período de internamento no Hospital, num total de 115 dias, as complicações que teve no decurso do internamento, os períodos temporais em que esteve totalmente dependente da ajuda de terceiras pessoas, ou posteriormente apenas parcialmente, as dores suportadas e os sofrimentos e angústias decorrentes daqueles, o claudicar na marcha, as sequelas com reflexo negativo na vivência presente e futura da Autora, com limitação das suas perspectivas profissionais e extra-profissionais, com constrangimento, desgosto e tristeza, etc, etc.

Por outro lado não se pode olvidar o facto de durante o tempo em que esteve internado a Autora ter estado privado da companhia dos seus entes queridos, facto que também contribui, de modo acentuado, para uma sensação de mal-estar e de injustiça.

O conjunto de todos estes elementos conduziram a uma substancial alteração do seu quadro de vida, num momento em que estava no inícío da adolescência, numa jovem de 13 anos, que era boa aluna e que ansiava pela continuação de um percurso escolar irrepreensível, e finalmente o Défice Funcional de que ficou portadora, superior a metade da capacidade total do ser humano. Todos estes factos criaram, inequívocamente, a meu ver, uma situação de grande sofrimento físico e psíquico, pelo que sendo aqueles inscritos na materialidade elucidativos do sofrimento físico e moral e da angústia porque passou, eles assumem-se de substancial e indiscutível gravidade, impondo que a medida do seu ressarcimento seja elevada.

Num juízo de equidade e ponderado o acervo fáctico, nos sobreditos termos, por um lado, e os factores de orientação legal, postulados nos artigos 494º, 496º e 566º, reputa-se adequado um valor indemnizatório que se quantifica em €100.000,00”.

3.2.1. Neste campo a A./recorrente pretende seja arbitrado um montante indemnizatório superior ao que lhe foi atribuído pelo tribunal a quo, na ponderação procedente da alteração da matéria de facto, com aqueles três factos que pretendia passassem de não provado a provado (conclusão VII de recurso e correspondente exposição do corpo das alegações). Sendo que efectivamente foram dados por provados mais três factos (os 65. a 67.).

Ora, compulsando com atenção, a fundamentação da decisão recorrida, atrás transcrita, verifica-se que os actuais factos 65. e 66., embora por modo enviesado, acabaram por ser considerados na mesma, como decorre da leitura completa do 19º travessão a seguir à parte em que se escreve “Que elementos temos nesta sede?”. Inexiste, pois, o pressuposto em que a recorrente baseava o seu recurso para o pretendido aumento indemnizatório, com base nos dois referidos factos.

Remanesce o facto provado 67., todavia o mesmo reportado à necessidade de a A. ter uma alimentação mais cuidada e ter diarreias ocasionais. Ter uma alimentação cuidada é até exigência preventiva de uma desejada boa saúde e as diarreias ocasionais, que acontecem com normalidade a qualquer ser humano, não justificam de per si um aumento da indemnização já fixada.

Como tal, recurso da A. improcede nesta parte.

3.2.2. Por sua vez, a R./recorrente pretende seja reduzido o referido montante arbitrado, por a sentença ter levado em consideração o insucesso escolar da A., porquanto o mesmo poderia verificar-se em caso de pessoas que não padecem de qualquer fatalidade, não se tendo provado que a mesma não teria o mesmo percurso ou não reprovaria não fosse o acidente (cfr. conclusões de recurso 11. e 12.).

Não pode ser acolhida esta argumentação, atento o que já acima expressámos sobre a causalidade adequada, na sua formulação negativa.

E mais uma vez relembramos o que decorre dos factos provados 51. a 61. E o que eles demonstram é que a A. anteriormente ao acidente, tinha aproveitamento escolar e, após o acidente, passou a precisar de receber explicações, dadas as sequelas de que era portadora, tendo, com esse apoio, conseguido não perder ano nenhum no percurso do secundário, e, já na fase universitária, deslocada para fora da sua área de residência, deixou de contar com o apoio e suporte do seu padrinho para desempenhar as tarefas básicas do dia-a-dia e deixou de contar com aquelas explicações. Na x (...) a A. teve de se instalar num apartamento arrendado, adequado à sua condição física, sendo aí auxiliada por duas colegas que moravam consigo. E nos primeiros anos do próprio curso de medicina teve grandes dificuldades de adaptação, acabando por não passar do 1º ano durante três anos sucessivos. Tudo isto denota claramente que está mais que demonstrado o nexo causal entre o acidente que vitimou a A. e o insucesso escolar da mesma e que depois também a impediu de entrar mais cedo no mercado de trabalho e de auferir mais cedo os proventos do seu trabalho.

Não procede, por isso, esta parte do recurso da R.     

3.3. Relativamente aos danos morais da A. com o falecimento da M (…) a R./recorrente defende que não há lugar a eles (cfr. conclusões de recurso 13. a 17.).

A decisão recorrida atribuiu indemnização de 20.000 € à A. com base em diversa argumentação jurídica: numa analogia entre o que dispõe o art. 495º, nº 3, do CC – indemnização patrimonial a favor dos que podiam pedir alimentos ao lesado ou a quem este os prestava em cumprimento de uma obrigação natural – e o que dispõe o art. 496º, nº 2, - indemnização, por morte da vítima, a favor das pessoas aí referidas (cônjuge, filhos ou outros descendentes, pais ou outros ascendentes, irmãos ou sobrinhos) -; consideração de arestos do STJ, designadamente de 8.9.2009, em CJ, Acds. do STJ, T.III, pág. 43, e da Relação de Coimbra, designadamente de 20.10.2015, Proc.335/2009, em www.dgsi.pt, ambos baseados também em doutrina que citam, tirados no contexto de uma relação conjugal e mais ainda do particular aspecto da sexualidade conjugal, de que um dos cônjuges ficou privado em virtude do outro ter ficado incapacitado; AUJ do STJ nº 6/2014, (em Diário da República 98/2014, Série I de 2014-05-22), baseado também em doutrina que cita, que fixou que “os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave”.

Não há dúvida que a A. sentiu enorme sofrimento psicológico com a perda da M (…), sua madrinha (facto provado 50.). Entendemos, mesmo assim, face aos dados legais que não lhe deve ser atribuída qualquer indemnização por dano moral, nos termos do art. 496º, nº 2 e 4, 2ª parte do CC.

Comece por dizer-se que a argumentação jurídica apresentada na sentença recorrida pretende chegar ao núcleo do problema por aproximação, aportando conjugadamente elementos que supostamente permitem chegam à conclusão a que se chegou. Mas não é convincente.

Desde logo não há verdadeiramente uma analogia entre o que dispõe o art. 495º, nº 3, que regula para a indemnização por danos patrimoniais, a pessoas que podiam exigir ou recebiam alimentos do falecido, e o art. 496º, nº 2, que regula para a indemnização por danos morais a familiares da vítima. São dois casos distintos assim previstos pelo legislador, com fundamento naturalmente em exigências diversas. Depois, o que os arestos citados e o AUJ abordam é a situação derivada do referido art. 496º, mas não do nº 2, e sim do nº 1, derivado dos danos não patrimoniais sofridos por outrem nos casos em que a vítima sobrevive, e não nos casos em que a vítima falece.

E mesmo naqueles casos de sobrevivência, a jurisprudência e a doutrina em que se estriba - em larga parte o estudo do Cons. Abrantes Geraldes, em Temas da Responsabilidade Civil, II Vol., Indemnização de Danos Reflexos - chega à conclusão que são compensáveis os danos morais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida, designadamente quando fique gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia que interfira fortemente na esfera jurídica de terceiros. Concluindo-se, ainda, em tal estudo que tal direito de indemnização deve ser circunscrito, por ora, às pessoas indicadas no aludido nº 2 do art. 496º.

Daqui decorre, que a decisão recorrida ao apelar a tais arestos e AUJ e doutrina que cita acaba por desfocar o centro da questão, levando-a para os danos morais eventualmente devidos a terceiros nos casos em que a vítima sobrevive, quando o que está em jogo é realidade diversa, e ainda por cima saindo para fora do perímetro que em termos de direito e lei se poder aceitar como sendo esses terceiros lesados, extrapolando para fora do círculo dos parentes indicados no falado nº 2 do art. 496º.

Concentrando a nossa atenção no nosso caso, danos morais eventualmente devidos a afilhada que perdeu a sua madrinha, diremos que não vemos lei nem direito para tanto.

Acompanhando o Ac. do STJ de 26.2.2004, Proc.4298/03, em www.dgsi.pt, aí diz-se o seguinte:

“No notável estudo com que participou na homenagem ao Professor Inocêncio Galvão Telles, o Dr. António Abrantes Geraldes analisa, em profundidade, o tema da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais de terceiros em caso de lesão corporal (ed. LA Almedina 2003), e concluiu que á luz do nosso direito positivo "são ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida por lesões de natureza física ou psíquica graves, nos termos gerais do artº. 496º, nº. 1 do CC, designadamente quando fique gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia. Tal direito deve ser circunscrito às pessoas indicadas no nº. 2 do artº. 496º.

No percurso que seguiu para chegar a esta conclusão, o autor considerou, em geral, a realidade de todos conhecida de que, nas mais variadas circunstâncias, os danos não patrimoniais sofridos pelos cônjuges e familiares próximos das vítimas, são, não raras vezes, de bem maior intensidade do que o que estas suportam.

E no sentido do alargamento da norma de modo a abranger tais danos invocou a doutrina de vários autores, designadamente a de Vaz Serra, Ribeiro de Faria e Américo Marcelino.
As razões que recomendam tal alargamento são de tal modo evidentes, relevando de modo impressionante, os danos sofridos pelos pais de uma criança vítima de acidente que ficou para sempre incapacitada com sequelas irreversíveis, psíquicas e físicas, que não é razoável defender-se que o legislador não os previu.

Acresce, quanto a Vaz Serra - com participação activa nos trabalhos preparatórios do Código Civil - que foi rejeitada a proposta que então formulou relativamente à norma em questão que foi a de que (vide BMJ nº. 83 pgs. 96) no caso de dano que atinja uma pessoa de modo diferente do previsto no 2º (morte) têm os familiares dele direito de satisfação pelo dano a eles pessoalmente causado.”.

E continuando a acompanhar tal aresto diremos que não pode, assim, razoavelmente invocar-se, a falta de previsão do legislador quanto às situações que, fundadamente, reclamam o alargamento da aplicação da norma.

A restrição que ela impõe foi, e é, uma opção consciente do legislador e, face aos princípios gerais em matéria de interpretação da lei (art. 9º do CC) que elegem como critério último a reconstituição do pensamento do legislador, não estando sequer em causa uma eventual obscuridade ou ambiguidade do texto normativo, não é legítimo alargar o campo da sua aplicação, por interpretação extensiva sequer, nos termos pretendidos, sob pena de estarem os tribunais a invadir áreas que lhe estão vedadas e de violarem o princípio constitucional da separação dos poderes.

A norma do art. 496º, nº 2, e 4, 2ª parte, sendo uma norma excepcional é igualmente taxativa ou imperativa. E até foi objecto de alteração de redacção recentemente em 2010 com a Lei 23/10, de 30.8, e nela o legislador não “mexeu” na parte substantiva, excepto para estender aos unidos de facto o mesmo direito, o que quer dizer que se fosse outra a intenção do legislador não deixaria de estender esse benefício a outras pessoas, tais como os afilhados de facto.

Conclui-se, pois, que não existem fundados motivos para alargar o âmbito da aplicação da norma do art. 496º do CC no sentido pretendido pela A., pelo que procedem, no essencial, as conclusões do recurso, importando alterar a sentença nesta parte, com a consequente absolvição da R. quanto ao montante de 20.000 € fixados na decisão recorrida.      

3.4. Na mesma sentença exarou-se ainda que:

DANOS PATRIMONIAIS DECORRENTES DO INSUCESSO ESCOLAR

*

Nesta parcela, quantificada em €50.000,00, está em causa um conjunto de gastos e despesas, suportados pela Autora, a que se alude no artigo 133º- “quanto aos danos resultantes dos factos alegados nos anteriores artºs 79º a 102º, inclusive, foram quatro anos que a S (...) «perdeu» inglória e lamentavelmente na sua vida, ainda por causa do acidente, pelo que não devem ser valorados em menos de €50.000,00 (cinquenta mil euros), correspondente a cerca de €1.000,00 por cada mês”.

Sucede que no tocante aos factos incluídos nos referidos artºs 79º a 102º eles compreendem a seguinte materialidade, dada como provada e sempre aferida à Autora S (…)

- à data do acidente era estudante do 8° ano de escolaridade;

- após a alta hospitalar teve explicações particulares a pelo menos três disciplinas e, graças essencialmente à sua grande força de vontade evitou, até 2003, qualquer reprovação ou perda de ano escolar;

- no final do ano lectivo 2003/2004 concluiu o 12º ano em (...) mas, nos exames nacionais a que então e em seguida se apresentou, para tentar aceder ao Ensino Superior, as suas notas foram insuficientes mas, pese embora este facto, ao abrigo do regime legal especial para portadores de deficiência física ou sensorial- como era o seu caso –foi admitida ao correspondente Contingente Especial para ingresso no Ensino Superior público, por despacho conjunto dos Directores Gerais de Inovação e Desenvolvimento Curricular e do Ensino Superior proferido em 7 de Setembro de 2004;

- no âmbito deste Contingente Especial ingressou no Curso de Ciências Bio-Químicas da Universidade (...) , na x (...) , mas no final do ano lectivo respectivo- 2004/2005 -não conseguiu obter aprovação em nenhuma das disciplinas curriculares do 1º semestre do mesmo, cujas aulas frequentou;

- no final do ano lectivo de 2004/2005 repetiu os exames nacionais do 12º ano nas disciplinas de Biologia e de Química, tendo então obtido aprovação, com notas positivas, em ambas;

- a conjugação desta aprovação e o facto de já estar inscrita na referida Universidade ao abrigo do mencionado Contingente Especial, permitira-lhe transitar para o Curso de Medicina ministrado naquela, tendo tido o seguinte percurso académico:

no 1º ano, que frequentou no ano lectivo de 2005/2006, conseguiu aprovação a duas disciplinas;

no ano lectivo seguinte- 2006/2007 –obteve aprovação em mais uma disciplina do mesmo 1º ano;

no ano lectivo 2007/2008 voltou a falhar a aprovação na disciplina principal do 1º ano do curso em referência- “Corpo Humano: dos Sistemas às Moléculas I” –sendo que, sem aprovação nesta disciplina, não lhe foi permitido inscrever-se no 2º ano do Curso;

no ano lectivo 2008/2009 conseguiu obter essa aprovação e transitar para o 2º ano do Curso;

- a partir do momento em que começou a frequentar esse 2º ano do Curso- ano lectivo de 2009/2010 -nunca mais voltou a reprovar e no ano lectivo de 2012/2013 conseguiu concluir integralmente o 5º ano curricular desse Curso de Medicina e no ano lectivo de 2013/2014 estava inscrita no 6º ano desse Curso, que curricularmente é preenchido com a frequência de um estágio num Hospital- efectuou-o em (...) , no Hospital de (...) , integrado no Centro Hospitalar de (...) - (...) –tendo apresentado a sua tese ou dissertação de mestrado, que foi aprovada;

- com a sua deslocação e estadia na x (...) , a partir do ano lectivo 2004/2005 foi a primeira vez que a Autora estava sozinha e tinha de valer-se por si própria para tudo, tendo deixado de poder contar com os apoios para a sua vivência quotidiana pessoal e escolar que sempre foram postos à sua disposição enquanto permaneceu em (...) ;

- no período escolar na x (...) esteve instalada num apartamento arrendado, situado num piso rés do chão, adaptado à sua situação física, no qual passou a morar com duas colegas e amigas, que antecipadamente se dispuseram a auxiliá-la nas diversas tarefas do seu quotidiano, onde todas cozinhavam e comiam normalmente as suas refeições, deslocando-se todos os fins de semana a (...) perfazendo cerca de 250 kms, ida e volta;

- com a sua estadia na x (...) a Autora tinha os seguintes gastos mensais médios: renda da casa (€300,00), alimentação (€200,00), deslocações a casa ao fim-de-semana (€350,00) e propinas escolares e despesas com materiais e livros específicos (€100,00).

Que dizer a este respeito, particularmente da sua ressarcibilidade?

Antes de mais refira-se que como resulta da sentença proferida na fase declarativa do processo, e que acima transcrevemos nela a Ré foi condenada “a pagar à Autora as importâncias a liquidar em execução de sentença, a título de indemnização pelos sobreditos danos morais e patrimoniais resultantes para si do acidente”.

Sucede que os “sobreditos danos morais e patrimoniais”, abordados no item daquela sentença denominado “danos morais e patrimoniais da S (...) ”- datada de 16/6/2008, confirmada no que a esta parte da condenação diz respeito, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão a fls 760 e com data de 17/2/2009 -compreendem, entre o mais, factos ou considerandos factuais tais como “graças à sua força de vontade, a S (…) evitou até agora qualquer reprovação ou perda de ano escolar” ou “ a sua vida escolar ficou e continua afectada”.

Na medida do exposto, dúvidas se nos não suscitam, salvo o devido respeito por melhor e mais fundada opinião, que estas despesas patrimoniais estão ou são devidas, afigurando-se-nos que são dano próprio da Autora S (…), que à data de prolação da sentença ainda não eram conhecidos ou não se haviam produzido, sendo certo que elas mantêm com o acidente dos autos a legal e natural relação causa-efeito.

A este respeito e factualmente, pese embora a especial força, garra e vontade da S (…) no sentido de obter aproveitamento escolar, a verdade é que tal sucedeu enquanto estudou na sua área de residência ou, na terminologia de um recente governante deste país, na sua “zona de conforto”.

Mas esse facto não invalida a enorme força de vontade que teve de demonstrar para conseguir ultrapassar todo um conjunto de sequelas físicas, psíquicas, traumas de vária ordem, a acrescer às naturais dificuldades de quem sai da sua residência e vai frequentar o ensino universitário, em localidade suficientemente distante que obriga à sua permanência nesse local, no período lectivo.

Efectivamente, socorrendo-nos de perto da alegação da Autora, assente que o insucesso escolar apenas aconteceu nos primeiros quatro anos em que frequentou o Ensino Superior na x (...) , era a primeira vez na sua vida que estava sozinha e tinha de valer-se por si própria, sem poder contar com os apoios para a sua vivência quotidiana pessoal e escolar e que sempre teve à sua disposição enquanto viveu em (...) , facto que não é dramático nem transcendental.

Já não assim no quadro físico e psicológico em que ocorreu tal deslocação.

Aqui importa ponderar que as graves lesões corporais e psicológicas que a afectavam exigiam- e exigiram e facto -um “longo, doloroso e desgastante processo de adaptação a esta sua nova, mas necessária, forma de viver”, sem o suporte e o apoio perante do seu “pai adoptivo” ou, após a morte da “mãe adoptiva” da pessoa que aquele contratou “a tempo inteiro para desempenhar as tarefas que a sua falecida mulher M (…) antes executava na «Residencial» onde o casal e a S(…) também moravam”.

Acrescente-se o desaparecimento do apoio prestado pelas suas “explicadoras” o qual, conjugado com a sua enorme ou inquebrável força de vontade, permitiu-lhe “prosseguir a sua carreira escolar sem «perder» ano nenhum”.

Na inversa e na x (...) a S (…) teve de se instalar (e esteve sempre instalada) num apartamento arrendado, situado num piso rés do chão, com compartimentação e equipamentos adequados, tanto quanto possível, à sua situação física, ali passando a morar com duas colegas e amigas, que antecipadamente se dispuseram a auxiliá-la nas diversas tarefas do seu quotidiano.

Ora a conjugação de todos estes factos e factores gera uma necessidade de adaptação muito sólida e consistente e, perante este quadro de uma jovem com as fragilidades físicas e na saúde por demais patentes, só alguém com muita determinação e força anímica consegue vencer e ultrapassar, naquele lapso temporal de 4 anos todas as adversidades e frustrações relacionadas com a sua adaptação a uma vida autónoma e independente, tudo a culminar com a finalização do curso de medicina.

Assim sendo e em face deste quadro, relevando particularmente a circunstância de não ter reprovado ou perdido qualquer ano até ao 12º ano de escolaridade, inclusivé, ademais da já vincada e valorizada capacidade extraordinária de motivação, subscrevemos a conclusão da Autora, na sua alegação, no sentido de que “a perda dos primeiros quatro anos escolares na Universidade (...) foi ainda uma consequência do acidente de viação que sofreu”.

Como tal esse lapso temporal de adaptação à nova realidade da sua vida, importou custos e despesas- logo danos/prejuízos económicos/patrimoniais -assumindo-se como um atraso ou adiamento no seu ingresso na profissão, nos quais se compreendem, como alegado pela Autora, os custos da sua presença na x (...) durante esses quatro anos- inúteis, na óptica da sua vida escolar ou activa –ou ainda “a perda de remunerações ou rendimentos, que normalmente poderia passar a auferir quatro anos mais cedo do que o que vai acontecer e que nunca seriam inferiores a €1.000,00 por mês”.

E num juízo de ponderação entre o ter e o haver, na consideração de que se nada tivesse ocorrido em contrário a Autora sempre teria despesas com o seu quotidiano, reputa-se adequado fixar o dano resultante da valoração de parcela do pedido em €500,00, mensais, assim se quantificado este dano em €24.000,00.”.

A R./recorrente pretende, quanto ao montante indemnizatório relativo aos danos patrimoniais emergentes decorrentes do insucesso escolar, que ele não seja atribuído ou, então, atribuído apenas em 4.800 €, excluindo-se os lucros cessantes (cfr. conclusões de recurso 18. a 23.).

Mais uma vez não se pode acolher a argumentação da R.

Já anteriormente concluímos (no ponto 3.2.2) com base na causalidade adequada, na sua formulação negativa, que está demonstrado o nexo causal entre o acidente que vitimou a A. e o insucesso escolar da mesma. O que desde logo não permite, como a R. pretende, que nenhum montante indemnizatório seja atribuído neste particular aspecto.  

E também no mesmo ponto se concluiu que esse insucesso escolar também a impediu, depois, de entrar mais cedo no mercado de trabalho e de auferir mais cedo os proventos do seu trabalho.

O julgador calculou o dano patrimonial em 24.000 €, valor que julgou adequado quanto à consideração das despesas desnecessárias que a A. teve de fazer por ter permanecido 4 anos a mais na x (...) no seu percurso escolar e por via disso ter chegado com tal tempo de atraso ao mercado de trabalho, com a consequente perda de rendimentos. A R. pretende que se atribua, nesta hipótese apenas montante não superior a 4.800 € correspondente a 4 anos de propinas escolares. O que não se pode aceitar, de maneira alguma, porque nesta posição da R. a mesma acaba por incompreensivelmente esquecer as parcelas atinentes à renda da casa, alimentação, deslocações a casa ao fim-de-semana e despesas com materiais e livros específicos, além da já referida chegada com atraso ao mercado de trabalho.  

Não procede, por isso, esta parte do recurso da R.     

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Se o facto que se pretende seja dado por provado tiver a natureza de essencial/principal da causa de pedir e não foi alegado pela parte demandante não pode ser considerado na sentença respectiva, sob pena de violação do art. 5º, nº 1, do NCPC; se tiver, porventura, a natureza de concretizador ou complementar e resultar da instrução da causa e que as partes conheceram, só podem ser considerado, nos termos do art. 5º, nº 2, b), do NCPC, se o julgador avisar as partes que está disponível para o considerar factualmente ou as partes requereram que tal aconteça e assim possa haver lugar ao exercício do respectivo contraditório;

ii) O art. 563º do CC, que reza que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, consagra a teoria da causalidade adequada na formulação negativa, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostrar indiferente para a verificação do dano.

iii) No nosso ordenamento jurídico o nexo de causalidade apresenta-se com uma dupla função: como pressuposto da responsabilidade e como medida da obrigação de indemnizar;

iv) Se a A., na altura com 13 anos, com as severas limitações de que ficou a padecer em resultado de acidente de viação e suas sequelas, mesmo assim conseguiu fazer um percurso escolar até chegar a médica de reabilitação, não se pode dizer que o facto do acidente e suas consequências foi de todo indiferente à mesma não ter chegado a alcançar especialidades médicas mais exigentes, para efeitos de cálculo indemnizatório por dano futuro devido a desvalorização profissional;

v) O art. 496º, nº 2, e 4, 2ª parte, do CC, sendo uma norma excepcional é igualmente imperativa; consequentemente não é possível a uma afilhada de facto receber indemnização por danos morais pelo falecimento da sua “madrinha”.  

IV - Decisão

 

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso da A. e procedente, parcialmente, o recurso da R., assim se alterando parcialmente a decisão recorrida, e, em consequência condena-se a R. a pagar à A. o montante de 374.000 €, sendo os juros legais desde a data da decisão sobre 100.000 €, no demais se mantendo a decisão recorrida.

*

Custas por A. e R., na proporção do vencimento/decaimento.

*

                                                                                Coimbra, 11.12.2018

                                                                                Moreira do Carmo ( Relator )

                                                                                Fonte Ramos

                                                                                Maria João Areias