Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1658/19.2T8LRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
Data do Acordão: 12/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DO COMÉRCIO DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 235º E 239º, Nº 3, DO CIRE.
Sumário: 1. Na fixação do rendimento disponível deverá atender-se como limite mínimo de referência o correspondente à retribuição mínima nacional garantida.

2. Tratando-se de um valor a fixar casuisticamente pelo tribunal, atentas as específicas circunstâncias do insolvente e do seu agregado familiar, não são de atender as concretas despesas alegadamente suportadas pelo insolvente, mas tão só as abstratamente adequadas a assegurar uma vivência condigna.

3. A fixação de um rendimento indisponível em valor superior ao vencimento mensal auferido pelo insolvente tem a utilidade de determinar, desde logo, que todas as quantias que o insolvente venha a receber a que título for, esporadicamente ou de forma permanente, se consideram cedidas ao fiduciário apenas na medida em que excedam aquele valor.

Decisão Texto Integral:










Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

M..., solteira, veio apresentar-se à insolvência, formulando pedido de exoneração do passivo restante, alegando factos tendentes a justificar a concessão deste benefício e pedindo que lhe seja fixado um rendimento disponível no valor equivalente a dois salários mínimos nacionais, com base no seguinte condicionalismo socioeconómico:

por força de um contrato de trabalho celebrado por seis meses, aufere o vencimento mensal ilíquido de 600,00€, o qual, acrescido do valor do subsídio de alimentação, ascende a um total de 624,00€; as despesas ordinárias do seu agregado familiar rondam os 700,00€.

Declarada a insolvência da Requerente, o Administrador da Insolvência pronunciou-se no sentido de nada ter a opor ao requerido.

Nenhum dos credores se manifestou relativamente a tal pretensão da insolvente.

O Juiz a quo proferiu despacho a deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando que o rendimento  disponível que a insolvente venha a auferir em quantia superior a 700,00€ se considera concedido ao fiduciário.

Inconformada com tal decisão, a Requerida dela interpôs recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:

...

Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr. artigos 635º e 639º do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é uma só:
1. Se é de alterar a decisão recorrida que fixou o rendimento indisponível no montante de 700,00€, por se afigurar insuficiente.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
 O Tribunal a quo deu como provado os seguintes factos, com interesse para a decisão recorrida e que não foram objeto de impugnação:
 1) - A requerente nasceu no dia 13.03.1975 e é solteira;
2) - Tem uma filha, ..., nascida a 29.11.2014;
3) - Residem ambas em casa dos pais da requerente, os quais não lhe cobram qualquer renda, auxiliando-a com as despesas de alimentação, vestuário e saúde;
4) - Mostra-se inscrita no IEFP, IP, tendo outorgado, no dia 22.02.2019, contrato de trabalho a termo certo, por um período de seis meses, renovável por idêntico ou diverso período, com a empresa ..., para o exercício das funções de aprendiz de fabrico de caixas de madeira;
5) - Aufere, a título de ordenado base, acrescido do valor do subsídio de alimentação, a quantia mensal líquida de €624,00;
6)- Não tem qualquer outra fonte de rendimentos;
7) - Não é titular de quaisquer bens móveis ou imóveis;
8) – A requerente alega que as despesas normais do seu quotidiano ascendem a €500,00, a que acrescem as despesas com roupa e saúde do agregado familiar no valor de €200,00.
9) – A requerente habita em casa dos pais, entregando-lhes todos os meses a quantia de €150,00 para os ajudar a fazer face às despesas.
10) - Os créditos reconhecidos ascendem a €24.073,31.
O procedimento de exoneração do passivo restante, introduzido na nossa legislação pelo CIRE (aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18 de Março, e objeto de sucessivas alterações), corresponde à Discharge na lei norte americana e à Restschuldbefreiung da lei alemã[1], traduzindo uma ideia de “fresh start” em que ocorre a extinção das dívidas e a libertação do devedor por forma a que este não fique inibido de começar de novo e poder retomar a sua atividade económica.
Os diferentes regimes de tratamento do sobre-endividamento da pessoa singular podem agrupar-se em duas categorias: i) o modelo (puro) do fresh start e ii) o modelo derivado do earned start ou da reabilitação.
“O primeiro baseia-se na ideia de que a liquidação patrimonial e o pagamento das dívidas devem ter lugar ter lugar no curso do processo de insolvência, sendo que, uma vez concluído, restem ou não dívidas por pagar, o devedor deverá ser libertado de forma a poder retomar, com tranquilidade, a sua vida. O modelo da reabilitação assenta ainda no fresh start mas desenvolve um raciocínio diferente: o raciocínio de que o devedor não deve ser exonerado em quaisquer circunstâncias pois, em principio, os contratos são para cumprir (pacta sunt servanda). Em conformidade com isto, o devedor deve passar por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afetada ao pagamento das dívidas remanescentes. Só findo este período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício[2]”.
Temos assim alguns ordenamentos jurídicos que concedem um perdão imediato e incondicional do remanescente da dívida e outros regimes, mais penalizadores e responsabilizadores dos sobreendividados, impondo um período longo durante o qual o devedor deve afetar a parte penhorável do seu salário ao pagamento das dívidas não pagas no decurso do processo de insolvência[3].

O art. 235º do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas)[4] atribui ao devedor que seja uma pessoa singular a possibilidade de lhe vir a ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
Ou seja, em linguagem comum, como afirma Assunção Cristas, “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente[5]”.
Trata-se, assim, de uma “versão bastante mitigada”[6] do modelo do fresh start, na medida em que, a seguir à liquidação, decorre um “período probatório” de cinco anos, durante o qual o devedor deverá afetar o seu rendimento disponível ao pagamento das dívidas aos credores que não foram integralmente satisfeitas no processo de insolvência. Só depois de decorrido tal período e se a sua conduta tiver sido exemplar, poderá o devedor requerer a exoneração, obtendo, assim, o remanescente não pago.
Como consta do Preâmbulo não publicado do Decreto-Lei que aprova o Código da Insolvência[7], “A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o credor permaneça, durante um período de cinco anos – designado período de cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume entre várias outras obrigações a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (…), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, e tendo o devedor adoptado um comportamento liso para com os credores, cumprindo todos os deveres que sob ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor de eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento”.
Tratando-se de um benefício concedido pelo legislador, o devedor terá de se esforçar por merecer a concessão do mesmo – perdão total das dívidas não integralmente satisfeitas – e aquela dependerá da efetiva cedência do “rendimento disponível”, tal como se acha definido no nº3 do art. 239º do CIRE, durante o período de cinco anos posterior ao encerramento do processo de insolvência.
A concessão de tal benefício surge como a contrapartida do sacrifício do devedor que, durante o período de cessão se encontra sujeito, entre outras, à obrigação de “exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado” e à obrigação de “entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão” – als. b) e c), do nº4 do art. 239º.
Expostos os motivos e objetivos que subjazem à consagração de tal instituto, passemos à análise da concreta questão objeto do presente recurso, respeitante à determinação dos rendimentos a ceder durante o período de cinco anos de “provação”.
Alegando suportar despesas ordinárias no valor de 700,00€, que reside em casa dos pais com a sua filha menor e que, embora atualmente aufira somente a quantia de 624,00€, confia na transitoriedade dessa situação, requereu a Insolvente/Apelante a fixação de um rendimento indisponível em montante equivalente a duas vezes o salário mínimo nacional.
A decisão recorrida, considerando que nem todas as despesas enunciadas ou comprovadas deverão justificar o rendimento indisponível no período da cessão e que o insolvente deve adaptar o seu estilo de vida ao padrão social condizente com a situação em que se colocou, que o salário mínimo nacional, fixado para 2019 em 600,00€, constituirá um valor referencial a ter em conta como indicativo do montante mensal considerado essencial a um mínimo de subsistência condigna, determinou que o rendimento disponível a ceder pela devedora seja integrado por todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título, desde que em quantia superior a 700,00€.
Insurge-se a Apelante contra o decidido alegando serem inúmeras as despesas que surgem com uma filha menor, sendo expectável que as mesmas variem com as necessidades daquela que, já no próximo ano, iniciará o ensino básico, pelo que, o fixado valor de 700,00€ se afigura insuficiente, defendendo como adequada a exclusão do rendimento disponível de, pelo menos, o equivalente a um salário e meio.
Encontrando-se em causa a decisão que defere liminarmente a cessão do rendimento disponível que o devedor venha a auferir no prazo de cinco anos para efeitos da concessão do benefício da exoneração do passivo restante, a única questão controvertida passa pela determinação de quais os rendimentos a excluir da cessão, por via da alínea i) do nº 3 do artigo 239º do CIRE.
Segundo o nº 3 do artigo 239º do CIRE, por rendimento disponível entende-se o conjunto de todos os rendimentos que provenham, a qualquer título, ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o art. 115º cedidos a terceiros, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e dos seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua atividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
A razão de ser da exclusão de certos rendimentos [como é o caso da prevista na al. i)] assenta na designada função interna do património (base ou suporte de vida do seu titular) e na sua prevalência sobre a função externa (garantia geral dos credores)[8].
Sendo o rendimento disponível integrado por todos os rendimentos que o devedor aufira, a qualquer título, dele será excetuado “o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.
Se o legislador estabeleceu um limite máximo para a exclusão do rendimento disponível a ceder pelo insolvente (o equivalente a três vezes o salário mínimo nacional, coincidente com o valor máximo de impenhorabilidade previsto no nº2 do artigo 824º do CPC[9]), optou por não fixar qualquer limite mínimo, em nosso entender, pelo facto de não nos encontramos perante uma prestação coativamente imposta por lei, assentando a cedência do rendimento disponível num ato inicial voluntário do insolvente, como contrapartida de um benefício a que o mesmo pretende aceder[10] – o perdão das dívidas, com a extinção do passivo sobrante.
Não indicando o artigo 239º, nº 3, al. a), i), qualquer limite mínimo, fazendo apenas referência ao referido conceito geral e abstrato – “o montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar –, é deixado ao juiz a tarefa de, caso a caso e atentas as circunstâncias específicas de cada devedor, concretizar e quantificar esse mesmo conceito[11]”.
Não fixando o legislador qualquer limite mínimo, remetendo-nos para um conceito aberto e indeterminado – o direito a um mínimo de sobrevivência que radica no princípio da dignidade da pessoa humana –, haverá que proceder à sua objetivização, de modo a evitar desigualdades no tratamento da questão.
A jurisprudência[12] vem assentando na ideia de que, se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deverá atender[13] a esse salário mínimo nacional para, no caso concreto, determinar, a partir dele, qual o quantum que deve ser considerado compatível com o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar[14].
Também a doutrina[15] sustenta que não se deverá nunca por nunca, fixar um quantitativo inferior ao salário mínimo nacional que esteja em vigor.
No procedimento conducente à exoneração do passivo restante são também tidos em consideração os interesses dos credores a verem os seus créditos satisfeitos, buscando-se um ponto de equilíbrio entre tais interesses e o direito do insolvente e do seu agregado a ter um sustento que lhe permita viver com um mínimo de dignidade[16].
Um olhar pela jurisprudência permite-nos ainda assentar nas seguintes ideias que constituirão um denominador comum na definição do concreto montante a excluir do rendimento disponível a ceder pelo insolvente:
1. Na fixação do rendimento disponível, deve ter-se em consideração as condições pessoais do devedor e do seu agregado familiar (idade, estado de saúde, situação profissional, rendimentos), pelo que o valor a excluir não poderá deixar de ter em consideração o número de membros do agregado familiar e respetivos rendimentos. Alguma jurisprudência[17] recorre a fórmulas matemáticas, nomeadamente a escala de Oxford, fixada pela OCDE, para a determinação da capitação dos rendimentos do agregado familiar – em que o índice 1 é atribuído ao 1º adulto do agregado familiar, o índice 0,7, para os restantes adultos, atribuindo 0,5 por cada criança. Outras decisões partem do valor equivalente a um salário mínimo por adulto do agregado e 0,5 por cada criança (atendendo-se, ainda, no caso de insolvência de só um dos progenitores, à capacidade do outro progenitor de contribuição para o sustento dos filhos)[18].
2. A fixação de um rendimento indisponível não visa assegurar a manutenção do padrão de vida anterior à declaração de insolvência, mas apenas uma vivência minimamente condigna, cabendo ao visado adequar-se à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos e o seu nível de vida, em general e na medida do possível, à realidade em que se encontra[19]. Sendo o critério a usar pelo julgador o da dignidade da pessoa humana, este encontra-se associado à dimensão dos gastos necessários à subsistência e custeio das necessidades primárias e não assente em referências grupais ou padrões de consumo próprios da classe social antes integrada, nível de vida correspondente ou a uma específica formação profissional ou atividade ou hábitos de vida pretéritos[20].
3. Não haverá que atender às concretas despesas comprovadas ou meramente alegadas pelo insolvente, procurando-se antes a determinação do que é razoável gastar para prover ao seu sustento e do seu agregado familiar que, eventualmente, tenha a seu cargo[21]. Quanto a eventuais despesas extraordinárias deverão ser atendidas pelo tribunal, já não no âmbito do ponto i), mas com recurso ao disposto na al. ii) que determina a exclusão de “outras despesas ressalvadas pelo juiz, a requerimento do devedor[22]”.
No caso em apreço, partindo destes critérios, tenderíamos a considerar adequada a exclusão do rendimento disponível de um montante mensal equivalente a 1,25 do salário mínimo mensal[23] – considerando-se que o progenitor também assumirá a obrigação de concorrer para o sustento da menor e, na ausência de outros elementos concretos, presumindo-se que o fará em igual medida à da insolvente –, encontramos um valor de 7500,00€.
Auferindo a insolvente unicamente o valor de 600,00€, poderemos questionar-nos sobre se, auferindo rendimentos inferiores aquilo a que se possa considerar como o mínimo indispensável a uma vivência digna, pode ou deve o tribunal fixar o rendimento indisponível nesse valor abstratamente adequado às inovadas condições de facto, quando na realidade, aufere rendimentos inferiores – ou se, se deve limitar a reconhecer a indisponibilidade dos valores auferidos pelo insolvente.
Depois de a aqui relatora ter sustentado já resposta negativa[24], as concretas questões que posteriormente se foram colocando à jurisprudência – nomeadamente respeitantes à inclusão dos subsídios de férias ou de natal ou de ajudas de custo ou subsídios de outra natureza –, impõem uma reformulação de tal posição. A fixação de qual o valor que, naquele caso concreto, o tribunal entende por adequado a garantir o direito a uma vivência condigna – e apesar de o insolvente, aquando da fixação do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, auferir um rendimento inferior –, tem a utilidade de, desde logo, arredar qualquer dúvida relativamente a quaisquer outros rendimentos que, esporadicamente ou de forma permanente, venha a auferir.
Assim sendo, por ex., no caso em apreço, a fixação do rendimento indisponível em valor equivalente ao 1,25 salário mínimo (ainda que na maior parte dos meses tal montante não venha a ser atingido), teria como consequência que, no mês em que vier a ser pago o valor correspondente ao subsídio de natal ou de férias, será, desde logo líquido que tudo o que vier a receber até ao valor de 750,00€ poderá ser por si retido a tal título.
Daqui, desde logo, resulta não fazer sentido, por contraditório (como se constata na decisão recorrida), determinar a exclusão do rendimento disponível de uma quantia mensal de 700 € (quando o valor mensalmente auferido pela insolvente não atinge tal montante) e, em simultâneo, dele excluir expressamente o valor dos subsídios de natal e de férias. Se o tribunal considerar que determinada quantia corresponde ao valor abaixo do qual deixa de se mostrar garantido o mínimo de subsistência do insolvente e seu agregado, terá o mesmo direito a reter qualquer quantia que vier a auferir, independentemente da sua natureza, desde que se contenha e na medida em que não ultrapasse esse valor “indisponível”.
Como se afirma no Acórdão do TRP de 23-09-2019[25], os subsídios de férias ou de natal (tal como eventualmente outras atribuições patrimoniais) serão excluídos da indisponibilidade quando – apenas quando –, o montante singelo do rendimento já alcança o montante fixado como rendimento indisponível.
Com efeito, o valor do salário mínimo nacional é aqui tido em consideração como mero valor “de referência”, a partir do qual é fixado o montante mensal que o insolvente tem direito a reservar para si e que se encontrará excluído da obrigação de entrega ao fiduciário, ficando de fora quaisquer considerações sobre a natureza da retribuição (sendo indiferente o título a que lhe advenha, subsídios, salários, ajudas de custo, horas extraordinárias).
É certo que a fixação de um montante indisponível em valor igual ou superior aos rendimentos auferidos pelo devedor poderá importar que, a final, decorridos os cinco anos, venha a obter a concessão do benefício da exoneração do passivo restante sem que algum valor tenha sido de facto cedido ao fiduciário, e sem que os credores tenham visto os seus créditos satisfeitos ainda que parcialmente. Contudo, a adoção de solução contrária, levaria a vedar àqueles que auferissem quantia equivalente ou igual ao salário mínimo nacional a possibilidade de se socorrerem do instituto da exoneração do passivo restante.

A apelação é de proceder parcialmente.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revoga-se a decisão recorrida na parte em que fixa o montante do rendimento disponível, determinando constituir rendimento disponível a entregar ao fiduciário tudo o que a insolvente venha a auferir em quantia superior a 750.00€.

Custas a suportar pela apelante e pela massa insolvente, na proporção de metade, sem prejuízo do disposto no artigo 248º CIRE.    

                                                 Coimbra, 18 de dezembro de 2019

Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº 7 do CPC.

1. Na fixação do rendimento disponível deverá atender-se como limite mínimo de referência o correspondente à retribuição mínima nacional garantida.

2. Tratando-se de um valor a fixar casuisticamente pelo tribunal, atentas as específicas circunstâncias do insolvente e do seu agregado familiar, não são de atender as concretas despesas alegadamente suportadas pelo insolvente, mas tão só as abstratamente adequadas a assegurar uma vivência condigna.

3. A fixação de um rendimento indisponível em valor superior ao vencimento mensal auferido pelo insolvente tem a utilidade de determinar, desde logo, que todas as quantias que o insolvente venha a receber a que título for, esporadicamente ou de forma permanente, se consideram cedidas ao fiduciário apenas na medida em que excedam aquele valor.


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[1] Tal modelo é expressamente referenciado no ponto 45 do Preâmbulo do Dec. Lei nº 53/2004, que aprova o CIRE.
[2] Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina 2019-Reimpressão, p. 559. Em igual sentido, Catarina Serra e Maria Manuel Leitão Marques, segundo as quais a filosofia do fresh start, encara o sobre-endividamento como um risco natural da economia de mercado, particularmente associada à expansão do mercado do crédito – o crédito é uma atividade que se faz com risco e, por isso, o sobre-endividamento é um risco antecipado e calculado pelos credores: “o consumidor que ousa recorrer ao crédito e é mal sucedido não deve ser, por isso, excessivamente penalizado e, sobretudo, não deve ser excluído do mercado por um tempo demasiado longo – “Regular o sobreendividamento” in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações Sobre o Anteprojecto de Código”, Ministério da Justiça – Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pp.88-91.
[3] Catarina Serra e Maria Leitão Marques, dando como ex. do primeiro o norte-americano e, em certa medida o inglês, e integrando o segundo, a Alemanha e a Áustria – artigo e local citado, p. 94-95, nota (5).
[4] Código a que pertencerão todas as disposições citadas sem menção de origem.
[5] Assunção Cristas, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, in THEMIS 2005, Edição especial, “Novo Direito da Insolvência”, Almedina, pág. 167.
[6] Na expressão de Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, estudo citado, pág. 94.
[7] Da autoria de Osório de Castro, e que se mostra publicado in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações Sobre o Anteprojecto de Código”, Ministério da Justiça – Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pág. 233.
[8] Cfr., neste sentido, Lectícia Marques, “Fresh Start: a exoneração do passivo restante ou uma nova oportunidade concedida a pessoas singulares”, 2009, pág. 19, disponível in www.repositório-aberto.up.pt., e José Gonçalves Ferreira, “A Exoneração do Passivo Restante”, Coimbra Editora, pág. 91, e quanto à distinção entre a função interna e a função externa do património, cfr. Luís Carvalho Fernandes, “Exoneração do Passivo Restante na Insolvência das Pessoas Singulares no Direito Português”, in Coletânea de Estudos sobre a Insolvência”, QUID JURIS, pág. 295.
[9] No sentido de que se trata de um limite máximo, se pronunciam Luís A. Carvalho Fernandes, “Exoneração do Passivo Restante na Insolvência das Pessoas Singulares no Direito Português”, in Coletânea de Estudos sobre a Insolvência”, QUID JURIS, pág. 295, e Assunção Cristas, “Exoneração do Passivo Restante”, artigo publicado na revista THEMIS, da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição Especial, Almedina, pág. 174.
[10] Embora a doutrina venha entendendo que a cessão não tem fonte negocial, mas legal, no sentido em que a cessão não depende da vontade do devedor, logo de qualquer ato seu, salvo, naturalmente, pelo que respeita ao facto de a exoneração ter sido por ele pedida – cfr., Luís Carvalho Fernandes, estudo e local citados, p. 294.
[11] Acórdão do TR de Guimarães, relatado por Maria Rosa Tching, disponível in www.dgsi.pt.
[12] Cfr., entre muitos outros, Acórdão do STJ de 02-02-2016, relatado por Fonseca Ramos, disponível in www.dgsi.pt.
[13] A ele se recorrendo como mero referencial, não serão, nesta sede, de aplicar automaticamente as regras de impenhorabilidade de salários e outros rendimentos consagradas no artigo 738º do NCPC – anterior 824º – (impenhorabilidade de 2/3 do vencimento ou outros rendimentos periódicos, ou de um valor inferior à remuneração mínima mensal garantida), juntamente com a avaliação dos gastos necessários à subsistência e custo das necessidades primárias do devedor e do seu agregado familiar.
[14] Como já se pronunciou inúmeras vezes o Tribunal Constitucional, “o salário mínimo nacional, contendo em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos” não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim como, também uma pensão de invalidez, doença, velhice ou viuvez cujo montante não seja superior ao salário mínimo nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao mínimo considerado necessário para a subsistência do respetivo beneficiário – Acórdão do Tribunal Constitucional nº177/2002, de 23.04, relatado por Maria dos Prazeres Beleza.
[15] José Gonçalves Ferreira, “A exoneração do passivo restante”, Coimbra Editora, p.94.
[16] Cfr., Mafalda Bravo Correia, “Critérios de Fixação do rendimento disponível no âmbito do procedimento de exoneração o passivo restante na Jurisprudência e sua conjugação com o dever de prestar alimentos.”, in Julgar – nº 31- 2017, p.118. No sentido da inexistência de qualquer inconstitucionalidade material na ponderação dos interesses em jogo do devedor insolvente e dos credores na previsão do instituto da exoneração do passivo restante, se pronunciou Paulo Mota Pinto, “Exoneração do passivo restante: Fundamento e constitucionalidade”, in “III Congresso de Direito da Insolvência”, Coord. Catarina Serra, Almedina, pp.175-195.
[17] Cfr., entre outros, Acórdão do TRL de 11-10-2016, relatado por Carla Câmara, Acórdão do TRG de 08-05-2015, relatado por Manuela Fialho, disponíveis in www.dgsi.pt.
[18] Na determinação de tal montante, o Acórdão TRL de 20-09-2012, propôs ainda como critério orientador que o rendimento per capita do agregado familiar do insolvente não deve, em princípio, ser inferir a ¾ do indexante dos apoios sociais, de acordo com o disposto no artigo 824º, nº4, do CPC, na redação do DL nº 226/2008, de 20 de Novembro, norma esta que foi eliminada pelo atual Código – Acórdão relatado por Tomé Ramião, disponível in www.dgsi.pt.
[19] Acórdão TRE de 04.12.2014, relatado por Cristina Cerdeira, e Acórdão TRG de 19-03-2013, relatado por António Santos, disponível in www.dgsi.pt.
[20] Acórdão do TRC de 31-01-2012, relatado por Carlos Marinho, disponível in www.dgsi.pt.
[21] Como se afirma no Acórdão do TRC de 31.01.2012, não pode existir qualquer correspondência entre o valor a fixar e o montante global das despesas indicadas pelo devedor, por falta de suporte legal
[22] Onde se inserirão despesas extraordinárias por doença aguda ou crónica, incapacidade, etc.
[23] Fixado pelo DL nº 117/2018, de 27 de Dezembro, para o ano de 2019, no valor de 600,00 €.
[24] Acórdão do TRC de 12-01-2016, disponível in www.dgsi.pt.
[25] Chamando a atenção para o tratamento a dar aos subsídios de natal e de férias, cfr. o Acórdão de 23-09-2019, relatado por José Eusébio Almeida, disponível in www.dgsi.pt.