Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
172/04.5TAPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE RAPOSO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
SEGURANÇA SOCIAL
NÃO COMUNICAÇÃO DAS REMUNERAÇÕES
Data do Acordão: 10/31/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 105º,AL. B) DO RGIT
Sumário: 1. a al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção do artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro só tem aplicação, havido comunicação das remunerações à instituição de segurança social mas omissão de pagamento das contribuições respectivas.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

I. RELATÓRIO.

1.

No 2° Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Pombal, os arguidos A... e B... foram acusados pelo Ministério Público, que lhe imputou a prática de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos art.s 105°, nº 1 e 107º da Lei 15/2001, de 5 de Junho.

Foi proferido despacho de recebimento da acusação e a designar dia para julgamento.

Posteriormente, o Digno Magistrado do Ministério Público promoveu a notificação dos arguidos nos termos e para os efeitos do disposto no art. 105º nº 4 al. b) da Lei 53-A/2006 de 29.12.

Por despacho de 19 de Janeiro de 2007, considerando a entrada em vigor da Lei n° 53-A/2006 de 29 de Dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2007, e consequente alteração da redacção do n° 4 do art. 105° do Regime Geral das Infracções Tributárias, com o entendimento de que a nova redacção dada ao n° 4 do art. 105° do Regime Geral das Infracções Tributárias -aditamento da alínea b), passando a primitiva redacção para a alínea a) – exige o prévio conhecimento sobre o comportamento adoptado pelos arguidos após a notificação para pagarem para que se possa tratar a factualidade em análise como crime ou contra-ordenação, o Sr. Juiz declarou a extinção da instância.

2.

Inconformado com este despacho, dele interpôs recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da sua motivação as seguintes conclusões:

“1.O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas numa lógica de repartição justa dos rendimentos e da riqueza, reclamando para a sua cobrança um regime punitivo deferido ao Estado entre nós consagrado no Regime Geral das Infracções Tributárias.

2.Esta obrigação de pagamento das prestações contributivas - como à Segurança Social - emerge da Lei, achando-se o seu devedor numa posição próxima da de um fiel depositário.

3.A Lei nº 53-A/2006, de 29.12, que aprovou o Orçamento de Estado para o ano de 2007, introduziu uma alteração no art.105° da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho (RGIT), dele passando a fazer constar no n.º 4 uma (nova) alínea b) que consagra uma condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança (fiscal), regime jurídico aplicável ao crime de abuso à Segurança Social incito no art.l07° do RGIT por força do seu n.º 2.

4.Esta alteração introduzida na punibilidade do crime de abuso de confiança (fiscal) configura um problema de sucessão de leis no tempo a enquadrar no art.2º, n.º 4 do Código Penal, já que se verifica o pressuposto da dupla incriminação do comportamento típico e culposo pela lei antiga e pela nova, sendo indiferente para o facto se, entre os dois diplomas se observar, existe em abstracto uma relação de especialidade ou de especificação.

5.Pelo que, em fase de Julgamento de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, a autoridade jurisdicional deve prover pelo cumprimento da promoção do Ministério Público de comunicação à Administração Fiscal da notificação, que agora é imposta pela alínea b) do n.º 4 do art.105° do RGIT, singular e em legal representação da sociedade arguida (art.6° e 7° do RGIT), para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento do valor da prestação contributiva em dívida acrescido dos juros de mora vencidos sob pena de violação do comando incito no art.7°, n.º 1 e 340°, n.º 1 do Código Penal.

6.Pagamento que a verificar-se no decurso da instância configuraria uma verdadeira causa de extinção da responsabilidade criminal mais favorável aos arguidos que o regime legal anterior.

7.Relegando apenas para a fase de elaboração da sentença a aplicação do regime legal, em concreto, mais favorável aos arguidos, que, com o presente despacho ficou prejudicado”.

3.

Os arguidos não responderam ao recurso.

O Meritíssimo Senhor Juiz sustentou tabelarmente o despacho recorrido.

Na vista a que se refere o art. 416°, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417°, nº 2 do C. Processo Penal.

4.

Colhidos os vistos e remetidos os autos para serem submetidos à conferência, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

5

Conforme jurisprudência constante e pacífica (por todos, Ac. STJ 24.03.1999, CJ VII-I-247), o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do CPP), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do CPP e Ac do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).

A única questão a decidir no presente recurso, face às conclusões apresentadas e que delimitam o seu objecto, é a de saber se a alteração introduzida pela Lei n° 53-A/2006 de 29 de Dezembro ao art. 105°, n" 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias determina, ou não, nestes autos, a extinção da instância, na expressão do despacho recorrido.

6

Para a resolução de tal questão importa ter presente a matéria de facto constante da acusação recebida:

A "B...", com sede com sede social em Pombal, tem por objecto social o estudo, elaboração, instalação, manutenção, assistência e execução de projectos de electricidade, telecomunicações e energia, comércio de equipamentos eléctricos e de telecomunicações.

Nos períodos de Março de 2002 a Dezembro de 2002, a Sociedade arguida procedeu ao desconto nos salários dos seus trabalhadores das contribuições legalmente devidas por aqueles ao Centro Regional da Segurança Social, conforme discriminado no mapa de valores de fls. 21, que aqui damos por reproduzido para todos os efeitos legais, descontos esses que perfizeram o montante global de 3.860,15 Euros.

Sendo:

PERÍODOS MONTANTES das Quotizações (Euros)

Mar./2002 666,80

Abr./2002 467,01

Mai./2002 381,23

Jun./2002 497,15

Jul./2002 260,93

Ago./2002 262,42

Set./2002 262,42

Out./2002 261,23

Nov./2002 514,26

Dez./2002 286,70

Porém, após ter descontado e retido aquelas contribuições, a sociedade arguida, em todo o período referido, não procedeu à entrega dos montantes respectivos ao Conselho Directivo do Centro Regional de Segurança Social, nem até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias imediatos após o decurso daquelas datas.

Não regularizou até ao momento tais situações/omissões, antes se tendo apropriado das importâncias respectivas, que sabia não lhe pertencerem e serem devidas à Segurança Social, afectando as mesmas a outros fins.

A gerência da Sociedade arguida cabia, naquele período, ao arguido A..., sendo o mesmo quem tomava todas as decisões, por conta e no interesse da sociedade arguida.

Actuou o A... com a perfeita consciência de que lhe competia providenciar, em nome e representação da sociedade arguida, pelo cumprimento da mencionada obrigação legal, apesar do que, de modo igualmente consciente e deliberado e com o propósito de alcançar, como alcançou, para o mesmo e para a sua representada um indevido e ilegítimo benefício patrimonial, não permitiu ao Centro Regional da Segurança Social o devido recebimento de tais contribuições, delas se apoderando.

Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.

Atento o exposto, constituíram-se assim os arguidos autores de um crime continuado de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos art.s 105°, n.º1 e 107° da Lei n.º15/2001, de 05 de Junho.

7.

Da acusação (supra transcrita) não consta se os arguidos apresentaram à Segurança Social a declaração das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais.

E, compulsados os autos, verifica-se uma situação singular:

Requisitadas as declarações de remunerações da B..., referentes ao período de Dezembro de 1995, Fevereiro de 1996 a Março de 1996, Julho de 1997 a Outubro de 1997 e Março a Dezembro de 2002 (fls. 32), o pedido é satisfeito a fls. 44 a 61, sem que fosse enviada qualquer declaração de remuneração relativo ao período a que se refere a acusação (Março a Dezembro de 2002).

Novo pedido é efectuado (fls. 101) e, desta vez, em resposta, são juntas declarações de remunerações de fls. 104 a 123.

A explicação para a aparente divergência na resposta só ocorre se atentarmos nos carimbos de entrada apostos nas declarações de remunerações de fls. 105, 107, 109, 111, 113, 115, 117, 119, 121 e 123: 12 de Abril de 2004, ou seja, posteriormente à data da instauração do inquérito que deu origem aos presentes autos, conforme resulta de fls. 1 dos autos.

De qualquer forma, existe discrepância significativa entre o valor das remunerações declaradas e o valor dos descontos que, de acordo com a acusação, não foram entregues ao Conselho Directivo do Centro Regional de Segurança Social.

Conclui-se, assim, que as declarações de remuneração não foram entregues no prazo legal e que as apresentadas posteriormente, após instauração do inquérito, não correspondem à totalidade das declarações devidas.

8.

Cometem o crime de abuso de confiança contra a segurança social “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social”, conforme dispõe o artigo 107.º, n.º 1, do RGIT, sendo aplicável a este crime o disposto nos n.ºs 4, 6 e 7 do artigo 105.º do mesmo diploma.

Na versão primitiva, dizia o n.º 4 daquele artigo 105.º que o facto só era punível se tivessem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.

O n.º 6 do mesmo artigo 105.º estabelecia que «se o valor da prestação (...) não exceder € 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária».

Tem sido entendido que o n.º 4 estabelece uma condição de punibilidade (o decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação) e que o n.º 6 consagra uma causa de extinção da responsabilidade criminal (o pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável até 30 dias após notificação para o efeito pela administração tributária), limitada, todavia, pelo valor da prestação (Susana Aires de Sousa, “Os Crimes Fiscais”, pg.s 137 e 145).

Entretanto, o artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que aprovou o Orçamento Geral do Estado para 2007, alterou a redacção do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, que passou a ter a seguinte redacção:

«Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:

a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;

b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.».

9.

A introdução da mencionada alínea b) é motivo de controvérsia doutrinária e jurisprudencial quanto às suas consequências nos processos pendentes, resultantes de diferentes formas de configurar, em termos dogmáticos, a nova exigência de notificação constante da alínea b) do n.º4, do artigo 105.º, do RGIT: elemento do ilícito típico; condição objectiva de punibilidade; condição de procedibilidade; causa de extinção da responsabilidade…

É, aliás, esta a causa do presente recurso.

Porém, esta controvérsia não afecta a decisão a tomar no presente recurso, como se passará a demonstrar.

Efectivamente, quanto ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, a exigência de notificação introduzida pela Lei 53-A/06, de 29 de Dezembro, respeita à omissão de entrega do valor da contribuição devida apenas se houver prévia declaração das remunerações à instituição de segurança social. A lei é clara ao referir «a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração».

Significa isto que a al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção do artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro só tem aplicação, havido comunicação das remunerações à instituição de segurança social mas omissão de pagamento das contribuições respectivas.

Relativamente às omissões de entrega das contribuições à segurança social não comunicadas, nada mudou com a entrada em vigor da nova alínea b) do n.º4 do artigo 105.º do RGIT, ou seja, a punibilidade criminal desta categoria de omissões continua a depender, como já antes acontecia, apenas do decurso do prazo de 90 dias, contado a partir do termo do prazo legal de entrega da prestação tributária.

Desta forma, a lei nova não afecta as situações em que estejam em causa contribuições relativamente às quais não houve prévia e atempada comunicação de remunerações, continuando a ser criminalmente puníveis nos mesmos termos.

Esta exclusão resulta logo do Relatório do Orçamento Geral do Estado do ano de 2007, onde é afirmada a necessidade de distinguir, ao nível da valoração criminal, a conduta do contribuinte que, cumprindo a obrigação declarativa - através da apresentação da respectiva declaração - não a faz, contudo, acompanhar do correspondente meio de pagamento, daquela outra em que o contribuinte nem sequer cumpriu a obrigação declarativa, com a justificação de que ali, a administração fiscal pode desencadear imediatamente o processo de cobrança coerciva, enquanto aqui existe uma manifesta intenção de ocultar o facto tributário.

Neste sentido se perfila a jurisprudência do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.5.07, in “Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Secções Criminais”, nº 113, pg. 96 e é, também, a posição de Taipa de Carvalho, “O Crime de Abuso de Confiança Fiscal”, pg. 56.

10.

É com base na análise de uma factualidade concreta que se afere da aplicabilidade da lei.

Ora, como se viu supra, dos factos constantes da acusação não resulta que os arguidos tenham apresentado à Segurança Social a declaração das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais. Mais, da análise dos autos resulta (se bem que apenas indiciariamente) não ter havido cumprimento integral e tempestivo da obrigação de apresentação das declarações à Segurança Social.

A aplicabilidade do disposto na al. b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção do artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro pressupõe o atempado e integral cumprimento da obrigação declarativa, o que resulta evidente das razões expostas na parte do Relatório do OGE a que acima se aludiu. Por isso, as declarações existentes nos autos, parcelares e extemporâneas, não produzem quaisquer efeitos para a análise do crime imputado aos arguidos.

11.

Assim, face ao que antecede, formulam-se as seguintes conclusões:

No crime de abuso de confiança contra a segurança social a aplicabilidade do nº 4 al. b) do artigo 105.º do RGIT, na redacção do artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro depende do cumprimento atempado e integral da obrigação de comunicação das remunerações à instituição de Segurança Social;

Não constando da acusação nem resultando indiciado da análise dos autos que os arguidos procederam a essa comunicação atempada e integral, devem os autos prosseguir para julgamento.

III. DECISÃO.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em, concedendo provimento parcial ao recurso, revogar o despacho recorrido, prosseguindo os autos para julgamento.

Sem custas.


Coimbra,

Jorge Raposo

Fernando Ventura

Gabriel Catarino