Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
111/17.3PTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO;
FALTA DE REGISTO DE DOCUMENTAÇÃO DA AUDIÊNCIA;
NULIDADE
Data do Acordão: 06/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (J L CRIMINAL – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 363.º, 364.º, 379.º E 389-A DO CPP
Sumário:
I – As nulidades da sentença previstas no n.º 1 do art.379.º do CPP são de conhecimento oficioso.
II – A inexistência de documentação, em registo áudio, da sentença proferida oralmente em processo sumário, o que impede não só o conhecimento da fundamentação da sentença, como o exercício do direito ao recurso por parte do arguido, determina a sua nulidade.
Decisão Texto Integral:





Tribunal da Relação de Coimbra
Secção Criminal
Rua da Sofia - Palácio da Justiça - 3004-501 Coimbra
Telef: 239852950 Fax: 239838985 Mail: coimbra.tr@tribunais.org.pt

Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra


Relatório
Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Instância Local Criminal de Coimbra, Juiz 3, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo sumário, o arguido
A…, filho de (…), nascido em (…) com domicílio (…),
imputando-se-lhe a prática, em autoria material, de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art.3º, nºs 1 e 2 do Dec. Lei n.º 2/98 de 03/01 ex vi art.130.º, 3 do Código da Estrada.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 17 de maio de 2017, decidiu condenar o arguido A..., pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do DL 2/98 e art.130.º, nº3 do C.E., na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de € 6, o que perfaz a quantia de € 780,00.

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido A..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:
A. Entende o Arguido que o Tribunal a quo decidiu de forma incorrecta e omitiu pronunciar-se sobre matéria relevante, designadamente, sobre os elementos constantes do processo administrativo que foi apenso aos autos e que o Arguido alegou em sua defesa, em requerimento datado de 22/03/2017.
B. O Arguido foi condenado no âmbito do proc. 61/13.2PTCBR que correu seus termos no extinto 1 ° Juízo Criminal de Coimbra, pela prática de um crime de desobediência p.p. 348° n.º 1 al. a) do CP, por referência aos arts. 152° n.º 1 al. a) e n.º 3 e 153° n.º 1 do CE e art.69° n.º 1 al. c) do CP, na pena de multa de 60 dias e pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses, por decisão transitada em julgado em 06/01/2014, conforme consta do registo criminal constante dos autos.
C. O IMT através de despacho proferido em 10 de Abril de 2014 comunicou ao Arguido o cancelamento do título de condução, nos termos e para efeitos da alínea a) do art.130° n.º 3 do Código da Estrada, decisão com a qual o Arguido nunca se conformou e reagiu processualmente.
D. Existe alguma jurisprudência considerando que a caducidade da carta de condução, por força do disposto no art.130°, n.º 1, al. a) do Código da Estrada, apenas pode ser decidida no processo judicial ou contra-ordenacional respectivo - Ac. da Relação de Guimarães de 11/7/2011, proferido no processo 22/11.6GBCMN.G1 e da Relação de Évora, de 19-12-2013, proferido no processo 227/11.0PATVR.E1.
E. Exemplo deste entendimento, e de que é ainda necessário que tal (caducidade) conste da acusação ou da sentença, é o acórdão da Relação de Évora, de 19-12-2013, proferido no processo 227/11.0PATVR.E1) defendendo que, não constando da acusação nem da sentença a determinação da caducidade da carta de condução, jamais a mesma poderia ser decretada:
“(...) Não contendo a acusação (nem a sentença) factos suficientes para fundamentar a aplicação da medida prevista nos art.122.° e 130.°, n.º 3 al. a), do Código da Estrada, não podia a Senhora Juiz por despacho decidir a sua aplicação. Ao fazê-lo extravasou os limites definidos no objecto do processo, conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, pelo que se impõe, ao abrigo do disposto no art.379.°, n.º 1 al. c), do Código de Processo Penal, anular essa parte do despacho. ( .. .)”.
F. Nos termos do art.2.º, n.º 1, do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, “Os títulos de condução, com excepção dos títulos para condução de veículos pertencentes às forças militares e de segurança, são emitidos, revogados e cancelados pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP, nos termos do Código da Estrada e do presente Regulamento”. Existe uma norma legal atribuindo competência à administração (IMIT-IP) para cancelar os títulos de condução, nos termos do Código da Estrada.
G. O acto do cancelamento pode ser posto em causa nos termos gerais em que podem ser judicialmente impugnados os actos inseridos nesse procedimento administrativo.
H. Sendo o acto de cancelamento da carta de condução um acto administrativo que provoca uma desvantagem para o respectivo titular, na medida em que retira uma faculdade ao administrado, deveria o mesmo ser precedido de audição do interessado, pois a mesma não está expressamente excluída na lei.
I. Na sequência da notificação datada de 11/04/2014, o Arguido remeteu, em 02/05/2014,uma exposição para o IMT, IP, em que, entre outras razões, alegava a nulidade da mesma, por não ser precedida do contraditório (direito de audição) e não indicar a forma de reacção processual, conforme consta do processo administrativo apenso aos autos.
J. Em 21/08/2014,foi enviada ao Arguido uma notificação indeferindo a sua pretensão.
K. Em 10/09/2014,o Arguido apresentou junto do IMT, IP nova exposição contestando a fundamentação da decisão
L. Em resposta, a 01/09/2015, o IMT enviou a mesma comunicação que enviara em 21/08/2014
M. O Arguido, em 17/09/2015, apresentou nova exposição alegando que à data do trânsito em julgado da decisão condenatória, à situação dos autos não era já vigente qualquer previsão de caducidade e a consagração legal de cancelamento não poderia ser aplicada.
N. Em 29/04/2016, o IMT envia nova notificação em resposta aos “requerimentos” apresentados pelo Arguido, onde o relator nota que “a Administração levou um ano e quatro meses a responder ao reclamante, o que não só constitui um desrespeito da norma como se torna injusto para o condutor ...”
O. Dessa notificação consta a ratificação pelo Conselho Directivo do IMT do acto administrativo praticado em 10/04/2014, (considerado inválido) pela Sr.ª Coordenadora do Núcleo de Actividades de Transportes, em substituição do Sr. Director Regional, ou seja, quem emitiu o despacho de 10/04/2014 não tinha competência para o fazer.
P. O Arguido em 16/05/2016, interpôs recurso hierárquico, tendo solicitado na pendência do procedimento administrativo a atribuição de efeito suspensivo.
Q. Por decisão datada de 16/12/2016, o IMT comunicou ao Arguido o indeferimento do recurso hierárquico.
R. Em 05/01/2017, o Arguido remeteu para o IMT impugnação judicial, desconhecendo o destino dado à mesma.
S. A decisão de cancelamento é passível de impugnação judicial, e todos estes elementos constam do processo administrativo 58/2014-DIV que se encontra apenso aos presentes autos, e sobre os mesmos o Tribunal a quo não se pronunciou.
T. Com efeito, todo e qualquer juízo de acusação ou condenação do arguido terá de ser previamente alicerçado na análise do mérito de tal processado junto do IMT, sendo que pelas razões vertidas em tal processo 58/2014-DIV, entende o arguido que tal decisão de cancelamento da sua carta de condução não encontra suporte legal ou factual!
U. Não consta em lado algum da factualidade dada por provada no processo 61/13.2PTCBR que correu seus termos no extinto 1° Juízo Criminal de Coimbra que o arguido tenha comprovadamente ou conduzido após a ingestão de álcool ou recusado a submissão a exame de detecção de álcool na sequência de condução presenciada por órgão de fiscalização.
V. Mostra-se a matéria de facto no referido processo 61/13.2PTCBR que correu seus termos no extinto 1° Juízo Criminal de Coimbra totalmente omissa no tocante ao exercício da condução por parte do arguido, que tenha sido presenciada pelos agentes autuantes uma vez que entre os factos dados por provados sob o ponto 3 (o alegado embate do veículo) e a recusa de submissão ao exame de detecção de álcool (ponto de facto 9) decorreram quase 120 minutos, ou seja, duas horas.
W. Tal factualidade não teve lugar no mesmo circunstancialismo de lugar, pois o embate teve lugar na Rua B…, e o arguido apenas veio a ser encontrado na Rua C… e tal qual ressalta do encadeamento cronológico vertido na douta decisão, apenas já na esquadra é que lhe foi solicitada a realização de exame ao ar expirado.
x. Aquando da presença da Polícia não foi o arguido fiscalizado no exercício da condução, pelo que em boa verdade tão-pouco a ordem era legítima, não se mostrando preenchida qualquer alínea da previsão legal que impõe a submissão a tal teste para detecção de estado de influência alcoólica ou substância psicotrópica.
Y. O pretenso crime cometido pelo arguido não contendeu directamente com o exercício da condução, pois não se tratou de qualquer condução perigosa de veículo, condução de veículo em estado de embriaguez, dano. ofensa à integridade física ou homicídio causados pela prática da condução, etc etc., inexistindo assim verificação plena dos requisitos objectivos de cancelamento, devendo ser reparada a alegada injustiça levada a cabo contra o impugnante.
Z. O arguido invocou a sucessão de leis no tempo com alteração de institutos jurídicos (cancelamento vs caducidade), bastando notar que à data de obtenção da carta, a qual deve delimitar sem margem para dúvidas o período probatório e seus efeitos, qualquer condenação durante o período probatório era fundamento de caducidade e pela nova redacção do DL 138/2012 passou a ser fundamento de cancelamento.
AA. Basta atentar no diverso teor do art.130° n.º1 a) CE antes da entrada em vigor do DL 138/2012 e o n.º 3 a) de tal artigo na nova versão, após tal entrada, sendo que, com o devido respeito, não se mostram salvaguardados os direitos do arguido que assim se vê perante dois regimes díspares entre si e com efeitos jurídicos distintos quando não pode assim haver aproveitamento dos dois regimes pois é claro que com a entrada em vigor do DL 138/2012 deixou de haver fundamento para caducidade, tendo sido criada, ex novo, uma nova sanção jurídica, a qual não poderá ser aplicada retroactivamente, sem violação das mais elementares garantias de defesa!
BB. À data de trânsito em julgado dos factos geradores da condenação não era já vigente qualquer previsão de caducidade e a consagração legal de cancelamento não poderá ser aplicada em violação dos princípios da legalidade (na vertente de exigência de prévia lei certa e escrita) e da aplicação das leis no tempo!
CC. “Caducidade” e “cancelamento” não são sinónimos nem têm regimes semelhantes, dado que a caducidade unicamente atende ao decurso de um qualquer prazo e o expirar do mesmo. sem qualquer menção suplementar ou comunicação suplementar e diferentemente o cancelamento terá de ser motivado e comunicado à outra parte, não sendo mera decorrência necessária.
DD. O arguido sempre esteve de boa-fé, convencido de que a razão estaria do seu lado e nenhum dolo tendo de cometimento de qualquer ilícito, sendo eu nos presentes autos não poderá deixar de ser formulado um juízo de legalidade sobre a pretensão do IMT à qual o arguido sempre se opôs!
EE. O Tribunal a quo deu como provado que a decisão administrativa já tinha transitado em julgado, não indicando quando esse trânsito ocorreu, nem discriminando quando ocorreu tal trânsito.
FF. A sentença é omissa quanto ao processo administrativo cuja junção o Arguido solicitou para aferir da sua conduta e das suas razões, padecendo de nulidade que se invoca.
GG. A nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. c) do n.º 1 do art.379.°), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.
HH. Conforme estabelece o art.379.°, n.º 1, al. c), 1.a parte, do CPP, é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar
II. A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (art.660.°, n.º 2, do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, de que o tribunal deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
JJ. Como uniformemente tem sido entendido no STJ, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença.
KK. A testemunha D…, agente da PSP, referiu que era sua convicção que o “sr. A… não tinha a noção do motivo porque o estávamos a abordar, pensava que se tratava de uma fiscalização normal” (06.50-09.00).
LL. Do depoimento da agente da PSP ressalta a ideia que o Arguido não tinha a noção do porque da fiscalização e só após ser confrontado com a situação é que teve noção dos motivos, tendo referido que tinha um problema com o IMT mas que estava a ser resolvido.
MM. O próprio Arguido referiu que pensava que não estava a cometer nenhum ilícito, pois tinha apresentado impugnação judicial junto do IMT.
NN. O artigo 17.°, n.º 1, do Código Penal estatui que “age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável”.
OO. No presente caso, a conduta em si mesma, cindida da proibição que a atinge, é axiologicamente neutra, é um substracto inidóneo para nele se ancorar o dever-ser ético, e, portanto, também o dever-ser jurídico (Figueiredo Dias. “O problema da consciência da ilicitude em direito penal”, 2ª edição, Coimbra, 1978,398/399).
PP. Está aqui em causa a errónea convicção do agente de que a incriminação não existe, ou de que, existindo, todavia não cobre a conduta intentada, bem como a errónea aceitação quer da existência de um obstáculo à ilicitude que o direito não reconhece, quer de que o âmbito de um obstáculo juridicamente reconhecido é mais amplo do que na realidade o é, cobrindo com a sua força justificadora a conduta intentada.
00. Estamos no âmbito do erro sobre a ilicitude do artigo 17.° quando o agente possui todo o conhecimento razoavelmente indispensável para tomar consciência da ilicitude do tacto e todavia não a alcança. No erro sobre a ilicitude do artigo 17.° não ocorre uma falta de conhecimento que deva ser imputada a uma falta de informação ou de esclarecimento o que se verifica é um erro de valoração.
RR. O que então poderá eventualmente censurar-se ao agente é não uma falta de cuidado, traduzida, por ex., na omissão do dever de se informar e de se esclarecer sobre a proibição legal, isto é, a censura típica da negligência - mas uma falta de consonância da sua consciência ética com os critérios de valor da ordem jurídica. Por isso, quando o agente não atinge essa consciência, apesar de possuir todo o conhecimento necessário para o efeito, põe-se o problema de saber se tal erro de valoração é ou não, censurável.
SS. Claramente, o que se verificou por parte do arguido foi a crença errónea de estar a agir licitamente, ou seja, um erro de valoração.
TT. Para os casos de falta de consciência do ilícito não censurável declara o artigo 17.°, n.º 2, que a culpa do agente fica excluída. A falta de consciência do ilícito censurável pode dar lugar à aplicação de uma pena especialmente atenuada (n.º 2 do preceito em apreço).
UU. Como o crime de condução sem habilitação legal é um crime doloso a conduta em apreço não é punível, mesmo que se diga que o desconhecimento da proibição em causa traduz um comportamento negligente, devendo o Arguido ser absolvido do crime, por manifesto erro sobre a ilicitude do facto.
W. Tem-se por inconstitucional, por violação do art.32° n.º 10 CRP, a interpretação e dimensão normativa da alínea a) do n.º 3 do art.130° CE no sentido de o cancelamento da carta de condução operar ope legis sem necessidade de qualquer notificação prévia ao titular de tal título e da qual conste expressamente tal possibilidade de cancelamento, para efeitos de apresentação de defesa/contraditório por reacção ao acusatório aí plasmado;
WW. Tem-se igualmente por disforme à Lei fundamental, maxime por violação dos arts. 1°, 2° 13° e 18° CRP, o entendimento da mesma norma legal [art.130° n.º 3 a) CE] no sentido de não ser de tutelar a expectativa e confiança depositada pelo arguido em processo-crime que veja transitar em julgado douta decisão condenatória pela prática de crime rodoviário sem que veja ter sido promovido ou doutamente decidido o cancelamento da sua carta de condução, o que apenas vem a suceder por douta decisão administrativa, a posteriori e num quadro de preterição de funções judiciais;
XX. Afigura-se como inconstitucional, desde logo por violação do n.º 4 do art.30° CRP, a interpretação e dimensão normativa do art.130° n.º 3 a) CE no sentido de tal sanção de cancelamento da carta de condução ser automática, sem necessidade de apreciação casuística que aprecie em concreto a culpa do arguido e se possa ter unicamente por assente no teor de douta sentença judicial transitada em julgado sem qualquer possibilidade de prévio oferecimento de defesa, atenta a sua nefasticidade e ausência de proporcionalidade;
YY. Padece ainda a decisão proferida pelo IMT do vício de não indicação de qual a forma de reacção processual, sendo que terá o sistema jurídico de permitir uma segunda instância de jurisdição, direito que se exerce mediante o presente requerimento e entendendo-se que terá efeitos suspensivos sobre a decisão recorrida.
Normas jurídicas violadas: arts. 1°, 2°,16° e 17° CP; arts. 122°, 130° n.º 1,133° n.º 3 a), 152° n.º a), 157° n.º 2, 160° n.º 4 CE; arts. 1°, 2°, 13° n.º 1, 18° n.ºs 1 e 2, 30° n.º 4, 32° n.º 10 CRP; art. 412° n.º 1 CPC; art. 9° CC, art.379° n.º1 al. c) do CPP
Princípios violados e erroneamente aplicados: maxime da culpa, da legalidade, da tipicidade, da igualdade, da proporcionalidade e da interpretação conforme a Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, Deve o presente recurso proceder e consequentemente, ser anulada a sentença por omissão de pronúncia nos termos do art.379° n.º 1 al. c) do CPP.
Caso assim não se entenda deve a sentença ser revogada e consequentemente ser absolvido o Arguido nos tempos do art.17° do C.P., assim se fazendo Justiça

O Ministério Público no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Instância Local Criminal de Coimbra, respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção integral da sentença recorrida.

O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder, mantendo-se a douta sentença recorrida.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., tendo o arguido A... na resposta ao douto parecer renovado o entendimento de que o recurso por si apresentado deve ser julgado procedente.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
Como bem esclarecem os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques, « Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).
No caso dos autos, tendo em consideração as conclusões da motivação as questões suscitadas pelo recorrente A... são as seguintes:
- da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos do art.379° n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal;
- da inconstitucionalidade, por violação do art.32° n.º 10 CRP, na interpretação e dimensão normativa da alínea a) do n.º 3 do art.130° CE no sentido de o cancelamento da carta de condução operar ope legis sem necessidade de qualquer notificação prévia ao titular de tal título e da qual conste expressamente tal possibilidade de cancelamento, para efeitos de apresentação de defesa/contraditório por reação ao acusatório aí plasmado;
- da inconstitucionalidade, maxime por violação dos arts. 1°, 2° 13° e 18° CRP, no entendimento da mesma norma legal [art.130° n.º 3 a) CE] no sentido de não ser de tutelar a expectativa e confiança depositada pelo arguido em processo-crime que veja transitar em julgado douta decisão condenatória pela prática de crime rodoviário sem que veja ter sido promovido ou doutamente decidido o cancelamento da sua carta de condução, o que apenas vem a suceder por douta decisão administrativa, a posteriori e num quadro de preterição de funções judiciais;
- da inconstitucionalidade, desde logo por violação do n.º 4 do art.30° CRP, na interpretação e dimensão normativa do art.130° n.º 3 a) CE no sentido de tal sanção de cancelamento da carta de condução ser automática, sem necessidade de apreciação casuística que aprecie em concreto a culpa do arguido e se possa ter unicamente por assente no teor de douta sentença judicial transitada em julgado sem qualquer possibilidade de prévio oferecimento de defesa, atenta a sua nefasticidade e ausência de proporcionalidade; e
- da existência de erro sobre a ilicitude, a que alude o art.17° do Código Penal;

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Embora sejam estas as questões a decidir objeto de recurso, antes de a conhecer deparasse-nos uma questão prévia, que a proceder impedirá o conhecimento do recurso, ficando o mesmo prejudicado.
O arguido A… foi submetido a julgamento em processo sumário.
O processo sumário é uma forma de processo especial que se entende adequada ao julgamento da pequena e média criminalidade, quando ocorre detenção em flagrante delito.
Tendo na base a ideia de celeridade processual, carateriza-se pela simplificação da tramitação comum, face à existência de prova evidente, no sentido de particularmente facilitada, desde logo pela detenção em flagrante delito.
O legislador, em consonância com as especificidades próprias deste processo especial, estabeleceu no art.389.º-A, do Código de Processo Penal, designadamente e com interesse para a presente questão, o seguinte:
« 1 - A sentença é logo proferida oralmente e contém:
a) A indicação sumária dos factos provados e não provados, que pode ser feita por remissão para a acusação e contestação, com indicação e exame crítico sucintos das provas;
b) A exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão;
c) Em caso de condenação, os fundamentos sucintos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada;
d) O dispositivo, nos termos previstos nas alíneas a) a d) do n.º 3 do artigo 374.º
2 - O dispositivo é sempre ditado para a acta.
3 - A sentença é, sob pena de nulidade, documentada nos termos dos artigos 363.º e 364.º
(…)
5 - Se for aplicada pena privativa da liberdade ou, excepcionalmente, se as circunstâncias do caso o tornarem necessário, o juiz, logo após a discussão, elabora a sentença por escrito e procede à sua leitura.».
Resulta desta norma que a sentença em processo sumário é, em regra, proferida oralmente, e só deve ser elaborada por escrito, e lida em audiência de julgamento, se for aplicada pena privativa da liberdade ou, excecionalmente, se as circunstâncias do caso o tornarem necessário.
Sendo proferida oralmente, para além do dispositivo da sentença dever ficar documentado na ata de audiência de julgamento, toda a sentença deve ficar documentada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, nos termos dos artigos 363.º e 364.º, para que remete o n.º 3 do art.389.º-A, do Código de Processo Penal.
É o que resulta do art.363.º do C.P.P. que estabelece que «as declarações prestadas oralmente em audiência são sempre documentadas na ata, sob pena de nulidade» e do art.364.º, do mesmo Código, que regula a forma da documentação.
O recurso a interpor da sentença está na disponibilidade dos sujeitos processuais que são afetados pela decisão e, assim, a nulidade resultante da omissão ou deficiência da gravação das declarações produzidas em julgamento a que alude o art.363.º do C.P.P., deve ser arguida no prazo de 10 dias, sob pena de ficar sanada, conforme jurisprudência fixada no acórdão do STJ n.º 13/2014, publicado no DR , Série I de 23-9-2014.
Já a sentença produz efeitos, independentemente da vontade dos sujeitos processuais, quer no processo, quer fora dele.
Com o registo áudio ou audiovisual da sentença proferida oralmente pretende-se, essencialmente, fixar e dar a conhecer a sentença na sua integralidade, pelo que deve ficar registado, não só o seu dispositivo - que deve constar também da ata de audiência de julgamento -, mas ainda a sua fundamentação ou seja, os factos provados e não provados, as provas e o seu exame crítico, e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão e , em caso de condenação, os fundamentos sucintos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada.
Inexistindo o registo da mesma, por ausência de registo, áudio ou audiovisual, apenas se conhece o dispostivo da sentença documentado em ata da audiência de julgamento.
Faltando o registo áudio ou audiovisual da fundamentação de facto e de direito da sentença, a sentença é nula, pois de acordo com o art.379.º, n.º1, alínea a), do Código de Processo Penal, é nula a sentença « que (…),em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F».
Com a Lei n.º 59/98 de 25 de agosto, foi introduzido um novo n.º 2 ao art.379.º do Código de Processo Penal, estabelecendo que «As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º.».
Passando este n.º 2 a regular o regime do conhecimento e arguição das nulidades da sentença, a jurisprudência largamente maioritária, designadamente do STJ, passou a decidir desde então que as nulidades da sentença previstas no n.º 1 do art.379.º do C.P.P. são de conhecimento oficioso.
As razões do conhecimento oficioso das nulidades da sentença são as sucintamente explanadas pelo Conselheiro Oliveira Mendes, em obra coletiva de Conselheiros do STJ, que aqui se reproduzem, com a devida vénia:
«Quanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento do n.º 2, estabelece que «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso», o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. A letra da lei é unívoca: «as nulidades da sentença devem ser … conhecidas em recurso». Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de outubro de 2010, proferido no Processo n.º 70/07.0JBLSB1.S1, as nulidades da sentença, conquanto não sejam insanáveis, uma vez que não incluídas nas nulidades previstas no artigo 119.º. do CPP, são cognoscíveis em recurso, mesmo que não arguidas, visto que as nulidades da sentença enumeradas no artigo 379.º, n.º1, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes atos processuais.
Aliás, nem poderia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio do acusatório e mesmo sem dispositivo. A não serem as nulidades da sentença suscetíveis de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, passaríamos a ter decisões, quer absolutórias quer condenatórias, eivadas de vícios e de anomias, algumas inexequíveis, apesar de sindicadas por tribunal superiorCódigo de Processo Penal comentado”, António Henriques Gaspar, José Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires da Graça, Ed. Almedina, 2014, pág.1183). .
No mesmo sentido, entre outros, decidiram os acórdãos do STJ, de 25 de novembro de 1999 (BMJ n.º 491, pág.200), de 14 de maio de 2003 (proc. n.º 518/03 - 3.ª Secção), de 23 de maio de 2007 (proc. n.º 1405/07 -3.ª), de 15-10-2008 (Proc. n.º 2864/08 -3.ª Secção), e de 27-10-2010 (proc. n.º 70/07.0JBLSB.L1.S1), estes últimos consultáveis em www.dgsi/stj.pt.
No presente caso, resulta da ata de audiência de julgamento, de 17 de maio de 2017, que foi proferida oralmente a douta sentença, ficando a constar da ata o respetivo dispositivo.
Mais consta, da ata, que o Ex.mo Advogado do arguido prescindiu da entrega da cópia da gravação nos termos do art.389.º-A, n.º 4 do C.P.P..
O arguido não se conformou com a douta sentença e dela interpôs recurso, pugnando, designadamente, pela sua nulidade, por omissão de pronúncia, bem como por violação de normas que indica.
Acontece que, tendo o relator do presente acórdão solicitado o envio de cópia da gravação da sentença proferida oralmente naquela audiência de julgamento, não foi enviada, com a informação de existir “falta de registo áudio da sentença”.
Ou seja, certamente por lapso de quem procede ao ativar do mecanismo de gravação ou outro motivo, não ficou gravada a sentença de que o arguido vem interpor recurso, fundado certamente em apontamentos que terá tirado quando foi proferida oralmente a sentença.
O certo é que inexiste documentação, em registo áudio, da sentença, que impede não só o conhecimento da fundamentação da sentença, como o exercício do direito ao recurso por parte do arguido A….
Atento o acima exposto, impõe-se declarar, por ser de conhecimento oficioso, a nulidade da sentença e determinar a devolução do processo ao Tribunal de 1.ª instância que a proferiu para a sanar, se possível, através de repetição e documentação da mesma em suporte técnico.
Se tal já não for possível, dado o tempo decorrido, mais não restará que reabrir a audiência de julgamento e, produzida a prova, proferir nova sentença, que fique devidamente documentada em suporte técnico.
Procedendo a questão prévia, como procede, fica prejudicado o objeto do recurso.

Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em declarar, como questão prévia, a nulidade da sentença e determinar a devolução do processo ao Tribunal de 1.ª instância que a proferiu para a sanar, se possível, através de repetição e documentação da mesma em suporte técnico, tudo sem prejuízo da reabertura da audiência de julgamento se tal já não for possível, proferindo-se seguidamente nova sentença que fique documentada em suporte técnico.
Fica prejudicado o conhecimento da questão objeto do recurso interposto pelo arguido A....
Sem tributação.
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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).
Coimbra, 20 de junho de 2018
Orlando Gonçalves (relator)

Inácio Monteiro (adjunto)