Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1434/07.TAAVR
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
Data do Acordão: 04/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 401º, ALÍNEA C) E 135º, Nº 1 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Sumário: I. – A legitimidade para interposição do recurso afere-se pela prejuízo directo e efectivo para o titular do direito afectado pela decisão, pois só desse faz a lei – artº 401º, al. c), do CPP – decorrer uma posição jurídica habilitante à interposição de recurso.
II. – Uma instituição bancária tem legitimidade para recorrer do despacho que contém uma ordem judicial de um tribunal de 1ª instância para fornecimento de elementos que se encontram a coberto do sigilo bancário, por se dever considerar ser a ordem ilegal à luz do conflito deveres consubstanciados, por um lado no cumprimento da injunção judicial e por outro, corresponder ao dever de observar sigilo sobre a informação bancária que lhe é imposto pelo regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras e infringir a sua posição de garante.
III. – Em presença deste quadro jurídico-factual e pela possibilidade real e efectiva que dele decorre para a instituição bancária de poder vir a afrontar prejuízos directos e efectivos, em sede de responsabilidade civil, sedimenta-se na respectiva esfera jurídica o direito de recorrer.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
Relatório
Inconformada com o despacho judicial que, na sequência de promoção do Ministério Público, lhe ordenou que fornecesse a ficha de assinaturas e de abertura de duas contas bancárias e respectivos movimentos desde 01/01/2007 até 25/05/2007, bem como que esclarecesse se duas sociedades são titulares de outras contas, veio a Caixa Geral de Depósitos SA interpor recurso, com extracção das seguintes conclusões:
1ª O Tribunal a quo dirige à CGD pedido de informação bancária, sob promoção do M°P°, que é protegida pelo dever de segredo (ficha de assinaturas e de abertura de contas identificadas, e de extracto bancário dessas contas entre 01.01.2007 e 25.05.2007), nos termos do disposto nos artigos 78.° e 79.° do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF).
2ª A CGD está por lei obrigada a invocar o dever de segredo bancário, o que é reconhecido pelo Tribunal, mas não recusou a satisfação de qualquer pedido anterior.
3ª O tribunal a quo nenhuma consideração válida faz sobre a ilegitimidade ou legitimidade da anterior recusa da Caixa Geral de Depósitos perante o disposto no artigo 135°, nº 1, do Código de Processo Penal, e do artigo 195° do Código Penal. Antes, funda uma declaração de ilegitimidade num juízo que pressupõe (obriga a que exista) a legitimidade, confundindo os pressupostos de aplicação dos nºs 2 e 3 do artigo 135° do Código de Processo Penal.
4ª O tribunal a quo viola o disposto no nº3 do artigo 135°, no sentido em que é da competência do tribunal superior decidir da prestação de informação com quebra do dever de segredo profissional, ao simplesmente desaplicá-lo.
5ª Face à legitimidade de uma eventual recusa da CGD, em cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 135.° do Código de Processo Penal, deveria o Tribunal a quo ter suscitado junto do Tribunal da Relação de Coimbra o incidente de prestação de informação com quebra do dever de segredo.
6ª Na verdade, concordando com a interpretação daquela norma feita pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 06/02/2003, relativo ao processo n.º 03P159, in www.dgsi.pt, sumário – ponto III, também a CGD defende que «A decisão sobre o rompimento do segredo é da exclusiva competência de um tribunal superior ou do plenário do Supremo Tribunal de Justiça, se o incidente se tiver suscitado perante este tribunal».
7º O despacho ora recorrido está, nos termos do disposto na alínea e), do artigo 119° do Código de Processo Penal, ferido de nulidade por violação da regra de competência em razão da hierarquia, ínsita no nº 3, do artigo 135°do Código de Processo Penal quer na parte em que decide o conflito dos interesses em jogo, quer na parte em que declara lícita a quebra do segredo bancário, quer ainda na parte em que ordena a entrega da informação bancária protegida pelo segredo bancário.
8º Sendo nulo o despacho, e inexistindo decisão do Tribunal da Relação que determine no caso concreto a quebra do segredo bancário, não pode a CGD considerar-se deste desobrigada, nem desresponsabilizada perante o seu cliente, nos termos do artigo 84° do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras aprovado pelo Decreto-Lei n° 292/98, de 31 de Dezembro.
Ao abrigo da 2ª parte alínea d), do nº 1, do artigo 401º Código de Processo Penal, a CGD tem legitimidade para interpor o presente recurso, e fá-lo tempestivamente.
Termos em que deve o despacho ora recorrido ser declarado nulo e substituído por outro que, nos termos do n.º 2 do artigo 135.° do Código de Processo Penal, declare fundamentadamente ilegítima a invocação do segredo bancário por parte da CGD, legitimando assim a prestação de informação protegida pelo dever de segredo, e ordene a satisfação da ordem contida no despacho, ou que submeta a decisão do Tribunal da Relação a derrogação do sigilo legitimamente evocado, nos termos do artigo 135°, n°3, do mesmo Código de Processo Penal, desresponsabilizando-se em qualquer dos casos a ora Recorrente perante o seu cliente, titular do direito ao segredo bancário, face ao disposto no artigo 84° do RGICSF e no artigo 195° do Código Penal.
Por seu turno, o magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu, apresentando a seguinte síntese[1]:
Em face do regime consagrado no artigo 135° do C.P.P, se for invocada escusa para a não prestação das informações, cabe à autoridade judiciária averiguar da legitimidade do fundamento e caso conclua pela sua ilegitimidade, ordenar que as mesmas sejam prestadas.
Caso se conclua pela legitimidade da escusa deve ser suscitado perante o Tribunal imediatamente superior o competente incidente o qual, após ponderar os interesses em questão determinará ou não a quebrado segredo bancário.
No caso em análise nos autos, o Mmo Juiz de Instrução ordenou a notificação da CGD para forneceu aos autos as informações constantes de fls. 660.
A CGD não juntou aos autos os referidos elementos, nem se escusou a fazê-lo, tendo interposto o presente recurso, razão pela qual, também não se suscitou a intervenção do Tribunal Superior com vista à quebra do segredo bancário.
Pelo que, salvo melhor opinião, entendemos não assistir razão à recorrente, pelo que, o recurso deverá ser julgado improcedente.
6- Em consequência, deverá o douto despacho recorrido ser mantido.
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral adjunto emitiu o seguinte parecer:
Concordando com o entendimento expresso pela Ex.ma Procuradora Adjunta no tribunal recorrido, igualmente se nos afigura que o douto despacho recorrido não violou qualquer disposição legal nem se encontra ferido da nulidade invocada pela recorrente Caixa Geral de Depósitos, SA.
Decorre da fundamentação da motivação e das respectivas conclusões que a recorrente parte do pressuposto de que, em momento anterior à decisão recorrida, se recusara a prestar os elementos solicitados com invocação do dever de segredo bancário.
Se assim fosse, porque a escusa era legítima – artigo 78° nº 2 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras - a decisão sobre a prestação da colaboração caberia efectivamente ao tribunal superior àquele onde o incidente se tivesse suscitado, atento o disposto no artigo 135° nº 3 do CPP.
Acontece que, tanto quanto resulta dos elementos com que vem instruído o recurso, não se vê que a instituição bancária ora recorrente tenha invocado a escusa de prestar as informações pretendidas. O que resulta dos autos é que a recorrente, perante o despacho ora recorrido, de imediato procedeu à sua impugnação por via de recurso, sem que em momento algum anterior tivesse recusado, com base no dever de segredo bancário, fornecer os elementos em causa.
Assim sendo, não nos parece que a douta decisão recorrida tenha violado o formalismo estabelecido no artigo 135° do CPP. Pelo contrário, uma vez que não houve prévia recusa de colaboração por parte da ora recorrente, não vemos que direito da mesma tenha sido afectado pela decisão recorrida, afigurando-se-nos, assim, não ter a mesma, sequer, legitimidade para interpor o presente recurso - cfr. artigo 400 nº 1 alínea d) do CPP.
Em conformidade com o exposto, parece-nos, salvaguardada melhor opinião, que deverá o recurso ser rejeitado nos termos das disposições conjugadas dos arts 420º nº 1 al. b), 414° nº 2 e 400° nº 1 al. d), todos do Código de Processo Penal.
Cumprido o disposto no artº 417º, nº2 do CPP, não houve resposta.
Foram colhidos os vistos e realizou-se conferência.
Fundamentação
Questão prévia: legitimidade do recorrente
Nos termos referidos supra, o Sr. Procurador-Geral adjunto entende que a recorrente Caixa Geral de Depósitos carece de legitimidade para interpor recurso, por não ter sido afectada pela decisão. A ausência das condições necessárias para recorrer, em que se inscreve a ilegitimidade, constitui fundamento de rejeição do recurso (artº 414º, nº2, do CPP), pelo que constitui questão vestibular, a conhecer antes de entrar nos fundamentos avançados pela recorrente.
Nos termos do artº 401º, al. c), do CPP, têm legitimidade para recorrer aqueles que tiverem a defender um direito afectado pela decisão, o que passa pela verificação de prejuízo directo e efectivo com a decisão, e não meramente eventual, pois só esse confere ao afectado posição jurídica habilitante à interposição de recurso[2].
No caso em presença, a Caixa Geral de Depósitos reage contra despacho judicial que lhe dirige uma ordem, a qual reputa de ilegal, e considera encontrar-se perante um conflito de deveres: por um lado, cumprir a injunção judicial, de acordo com o artº 205º, nº2, da CRP, ou, por outro, corresponder ao dever de observar sigilo sobre a informação bancária que lhe é imposto pelo regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras e infringir a sua posição de garante. Nessas condições, a instituição bancária defronta prejuízos directos e efectivos, mormente em sede de responsabilidade civil, em termos que lhe conferem plena legitimidade para o recurso.
Observe-se, aliás, que a legitimidade da Caixa Geral de Depósitos tem sido invariavelmente reconhecida em recursos similares[3], incluindo para a interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência a que se aludira adiante.
Âmbito do recurso
É pacífica a doutrina e jurisprudência[4] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso[5]. Assim, o presente recurso versa a questão de saber se podia o JIC ordenar, sem prévia escusa julgada ilegítima, à CGD a remessa de elementos coberto por sigilo bancário ou, ao invés, por aplicação do disposto no artº 135º, nº3, do CPP, deve desde logo provocar a intervenção de tribunal superior.
Factos relevantes para o recurso
Face aos elementos constantes do presente apenso de recurso, verifica-se o seguinte:
O Ministério Público, afirmando a existência de indícios da prática dos crimes de falsificação de documento, de contrafacção de selos, marca ou chancelas e de burla, p. e p., pelos artigos 256°, nºs 1 al. b) e n°3, 269°, nº 1,217° e 218° do C. Penal, formulou promoção nos seguintes termos: «Assim e uma vez que estes elementos se encontram em sigilo bancário, conclua os autos ao Meritíssimo JIC a quem se requer se digne autorizar a quebra do sigilo bancário por parte das referidas instituições bancárias», com referência à ficha de assinatura de uma conta bancária da Caixa Geral de Depósitos e respectivos movimentos desde 1/1/2007 até 25/5/2007.
Sobre essa promoção, proferiu o M.mo JIC, com data de 12/11/2007, o seguinte despacho, ora recorrido, nos seguintes termos:
Investiga-se nos presentes autos a prática de factos delituosos susceptíveis de configurarem a prática pelo arguido Artur Alexandre Silva Pádua e Rocha dos crimes de falsificação de documento, contrafacção de selos, marca ou chancela e burla, p. e p. pelos artºs. 256º, nº1, al. b) e 3, 269º, nº1 e 218º do Código Penal.
Em face da natureza da factualidade participada verifica-se ser necessário obter os elementos identificados a fls. 660 pois permitirão carrear para os autos prova de importância fulcral à comprovação e identificação do autor dos ilícitos penais em apreço.
As informações solicitadas encontram-se protegidas pelo dever de segredo a que estão sujeitos os agentes das instituições bancárias, visando com ele acautelar o interesse dos clientes destas na salvaguarda da confidencialidade das operações bancárias e na inviolabilidade da relação de confiança entre uma parte e outra estabelecida. Isto mesmo decorre do preceituado no artº 78º do DL nº298/92, de 31.12.
Porém, a obtenção das mencionadas informações tem relevância para o prosseguimento da investigação e apuramento da verdade, mostrando-se no presente caso a satisfação do interesse público na correcta administração da justiça e defesa de valores fundamentais e penalmente tutelados pelo Estado de Direito valor superior ao aludido interesse dos clientes da instituição bancária.
O dever de colaborar com a justiça e de corresponder a ordem de autoridade judiciária (no âmbito da investigação de crimes – em processo que, aliás, se encontra em segredo de justiça), sobrepõe-se pois na situação em causa ao dever de segredo, cujo sacrifício pelos agentes da instituição bancária, nos termos do artº 31º, nº1, al. c) e do artº 36º,nº1, ambos do Cód. Penal, e do art. 79º, nº2, al. d), do DL 298/92, de 31.12 não constitui facto ilícito, por resultar do cumprimento de ordem legítima de autoridade e do dever de colaboração na investigação criminal.
Pelo exposto, determina-se que pela Caixa Geral de Depósitos seja remetida aos presentes autos de inquérito a informação solicitada a fls. 660.
Apreciação
Como já se referiu, a questão passa pela definição do regime relativo à quebra de sigilo bancário em sede de processo criminal.
Dispõe o artº 78º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeira, aprovado pelo D.L. º 298/92, de 31/12, com a epígrafe «Dever de segredo»:
«1. Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
2. Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes de clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
3. O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.»
O preceito seguinte – 79º - contempla, porém, um conjunto de excepções a esse dever:
«1. Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.
2. Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:
Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições;
b) Á Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições;
c) Ao Fundo de Garantia de Depósitos e ao Sistema de Indemnização aos investidores, no âmbito das respectivas atribuições;
d) Nos termos previstos na lei penal e de processo penal.
A referência à lei processual penal efectuada pela al. d) do nº2 do artº 79º, atrás transcrito, remete para o disposto no artº 135º do CPP, com a seguinte redacção:
Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoa a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunha com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostra justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
Tendo em atenção este regime, podia o JIC decidir, sem necessidade de evocação de escusa e sem intervenção de tribunal superior, em situação que afirma contemplada no artº 78º do D.L. 298/92, de 31/12, decidir sobre o interesse preponderante e determinar a quebra de segredo bancário. A resposta é negativa.
Em primeiro lugar, o regime do citado artigo 135º estabelece que a intervenção judicial acontece perante situação de escusa, que não se verificou nestes autos[6], e envolve, como flui do nº2 do preceito, a apreciação da legitimidade dessa atitude, o que passa por determinar se a informação está protegida pelo segredo evocado, se a pessoa em questão está vinculada a esse dever, se não tem aplicação qualquer das exclusões contempladas no artº 79º do D.L. 298/92, de 31/12[7] e, finalmente, que o objecto do processo escapa aos vários domínios em que o legislador escolheu procedimentos especiais de recolha de prova[8].
A partir desse momento, tem sido questionado se a competência para apreciar da prevalência do interesse preponderante cabe exclusivamente a um tribunal superior àquele em que solicitou a informação recusada. E, nos últimos anos, perfilaram-se duas orientações jurisprudenciais distintas: segundo alguns[9], só há lugar ao incidente se não for ordenada a diligência e se não for interposto recurso dessa decisão, argumentando que a sistemática intervenção dos tribunais superiores não encontra justificação, devendo acontecer, em regra, apenas como instância de recurso; para os demais, largamente maioritários[10], e em que nos inserimos, quando confrontado com escusa fundada em dever de sigilo bancário, só quando a considere ilegítima poderá o juiz impor a prestação de depoimento ou o fornecimento das informações ou elementos solicitados. Se aceita a legitimidade da escusa, tem apenas abertas duas opções: ou a investigação já não carece dessa informação ou elementos, ou então remete o incidente para apreciação perante tribunal superior. De outra forma, o nº3 do preceito fica vazio de sentido.
Essa divergência jurisprudencial foi levada à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça e conduziu à prolação de recente acórdão de fixação de jurisprudência 2/2008, datado de 13/02/2008, com a seguinte orientação obrigatória[11]:
Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário.
Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do nº 2 do art. 135º do Código de Processo Penal.
Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.
Assim, ao apreciar dos fundamentos substantivos da quebra de sigilo bancário, como acontece com nitidez quando afirma que o dever de colaborar com a justiça «sobrepõe-se» ao dever de segredo, cujo «sacrifício» não constitui ilícito, e ordena a remessa de informação, o despacho recorrido chamou a si competência reservada ao tribunal imediatamente superior, ou seja, a este tribunal da relação de Coimbra. Incorreu, então, na nulidade prevista no artº 119º, al. e) do CPP.
Aqui chegados, coloca-se a questão de determinar se é necessário dirigir nova solicitação à CGD, esperar pela escusa e só então proferir a decisão imposta pelo artº 135º, nº2 do CPP (legitimidade ou ilegitimidade da escusa). Acontece que, ao afirmar-se obrigada pelo dever de segredo[12] e pretender que seja solicitada a intervenção de tribunal superior, a recorrente emite, em substância, declaração de escusa, pelo que não se vê necessidade de endereçar nova solicitação. De outra forma, ficaria indevidamente comprometida a celeridade do inquérito.
III. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
Conceder provimento ao recurso e revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que aprecie da legitimidade ou ilegitimidade da escusa em fornecer os elementos solicitado e que, caso decida que pela legitimidade, remeta o incidente a apreciação deste tribunal da relação de Coimbra.  


[1] Transcrição.
[2] Ac. da Relação do Porto de 27/10/93, in CJ, ano XViii, tomo 4, pág. 263.
[3] Não é o caso do despacho do Sr. Presidente da Relação de Coimbra de 14/05/2007, Pº 196/07.0YRCBR, pois cuidou de apreciar de recurso interposto por instituição bancária quando estava pendente no tribunal da relação incidente para apreciação da quebra de sigilo.
[4] Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 99/03/24, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247.
[5] Cfr. artºs. 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP e acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.
[6] O que decorre do Ministério Público ter escolhido formular a promoção antes de endereçar qualquer solicitação às autoridades bancárias.
[7] Avulta especialmente a existência de autorização do cliente.
[8] Artºs. 1º da Lei nº5/2002, de 11/1 (criminalidade organizada e económico-financeira); 13º-A do D.L. 316/97, de 19/11 (regime do cheque sem provisão) e 63º-B do D.L. 398/98, de 17/12 (Lei Geral Tributária).
[9] Acs. da Relação de Lisboa de 20/06/2007, Pº4443/2007-3, 29/09/2004, P7008/2004-3 e de  06/02/2003, CJ, ano XXVIII, tomo 4, pág. 130 .
[10] Ac.s do STJ de 12/04/2007, Pº 07P1232, 28/06/2006, Pº06P2178 e de 06/02/2003, Pº03P159, desta Relação de Coimbra de 28/11/2007, Pº 1333/06-8PBLRA, 02/05/2007, P118/07.9YRCBR, de 15/02/2006, Pº4359/05, da Relação do Porto de 22/05/2007, Pº0742529, de 21/03/2007, Pº0740902, 13/12/2006, P0613247, 20/12/2006, P0615336, da Relação de Lisboa de 27/3/2007, Pº 1054/2007-5, de 08/02/2007, Pº 811/2007-9, de 01/03/2007, Pº807/2007-9, 28/02/2007, Pº 1600/2007-3, 06/02/2007, Pº58/2007-5 e da Relação de Guimarães, Pº 1691/06-1 e de 05/02/2007, Pº866/07-1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[11] Publicado no DR, I série, de 31/03/2008.
[12] Cfr. 8ª conclusão.