Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
566/19.1EACTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO LIMA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
RESPONSABILIDADE DAS PESSOAS COLECTIVAS
FREGUESIA
JUNTA DE FREGUESIA
Data do Acordão: 01/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 7.º DO RGCO; ART. 235.º, N.ºS 1 E 2, DA CRP; ARTS. 5.º, N.ºS 1, E 6.º, N.º 2, DA LEI N.º 75/2013, DE 12-09)
Sumário: I – A pessoa a quem, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, do RGCO, deve ser imputada uma contra-ordenação é, no caso revelado pelos autos, a Freguesia de (…) e não a Junta de Freguesia (seu mero órgão executivo, desprovido de personalidade jurídica e, por isso, de responsabilização contra-ordenacional).

II – Ter a autoridade administrativa levantado o auto em relação à Junta como arguida, e também, e afinal, tendo feito constar da decisão condenatória esse ente como o condenado, tudo em lugar de assim proceder relativamente à Freguesia, tal evidencia uma mera imprecisão terminológica, incapaz de constituir qualquer erro sobre o imputado.

Decisão Texto Integral:

ACÓRDÃO


Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo Local Criminal ... (J...), do Tribunal Judicial da Comarca ..., e em impugnação judicial de decisão administrativa tomada em processo de contraordenação, deduzida pela arguida

Freguesia ..., pessoa colectiva n.º ..., com sede no Largo ..., T..., ...,

o Ministério Público (MP) tornou presente essa decisão administrativa a juiz em 02/08/2022, para valer como acusação, assim a acompanhando, na sequência do que a 03/10/2022 veio a ter lugar decisão, por despacho, em cujos termos aquela impugnação foi apenas parcialmente atendida, mantendo-se a final a condenação da arguida pelas contraordenações, praticadas a título doloso e em 22/08/2022, de falta de implementação de um sistema de segurança alimentar segundo os princípios de HACCP [p. e p. pelos art. 5.º do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento e do Conselho, de 29/04, e art. 6.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 113/2006, de 12/06], de falta de livro de reclamações [p. e p. pelos art. 3.º, n.º 1, al. a), e 9.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 156/2005, de 15/09], e de falta de comunicação prévia de actividade [p. e p. pelos art. 4.º, n.º 1, al. l), e 7, e 143.º, n.º 2, al. a), subal. Ii), do DL n.º 10/2015, de 16/01], mas sendo reduzidos os valores das coimas por ela aplicadas, em concreto a 500,00 €, a primeira, 1.500,00 €, a segunda, e 250,00 €, a terceira, com fixação da coima única em 1.800,00 €.

2. Dessa sentença vem agora a arguida interpor recurso em que pugna pela sua absolvição de todas aquelas contraordenações. Das respectivas motivações extrai a final as seguintes conclusões:

«I – A recorrente não se conforma com a condenação num procedimento contraordenacional em que a responsabilidade pelos factos se encontra prescrita, na medida em que desde a data dos alegados factos (data da inspeção, em 22 de agosto de 2022) até à data da notificação (em 28 de julho de 2022), passou mais de um ano.

II – Considerando o valor da coima única de 2.100,00€, o prazo de prescrição já se mostra ultrapassado, pelo que andou mal o tribunal a quo em não determinar a extinção do processo nos termos do art. 27.º, al. c), do RGCO.

III – O tribunal a quo, mal, validou um procedimento administrativo que acusa e condena um órgão em detrimento da pessoa coletiva de direito público.

IV – A arguida identificada no processo administrativo (Junta de Freguesia) não tem personalidade jurídica, não é pessoa coletiva e é insuscetível de responsabilidade contraordenacional, numa clara violação do direito, designadamente do art. 7.º, n.º 1, do RGCO.

V – Pelo que a recorrente, não tendo sido arguida durante o processo administrativo, não se conforma com a condenação do tribunal a quo.

VI – De igual forma, a recorrente não se conforma com a condenação no âmbito de um processo onde não foi validamente notificada para o exercício do direito de defesa. Ao invés, a recorrida notificou uma outra entidade (o “Presidente da Junta”).

VII – Não pode aceitar a recorrente a condenação num procedimento administrativo que padece de nulidade por violação do disposto no art. 50.º, do RGCO, uma vez que a recorrente não foi notificada para o exercício do direito de defesa.

VIII – Por fim, a recorrente não se conforma com a equiparação (como autarquia e pessoa coletiva de direito público) a uma empresa do sector alimentar, fornecedor de bens ou serviços ou exploradora de atividades económicas.

IX – Andou mal o tribunal a quo ao não determinar a insusceptibilidade de aplicação do normativo previsto no art. 5.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento e do Conselho, de 29/04, no art. 3.º, n.º 1, al. a), do DL 156/2005, de 15/09, e no art. 4.º, do DL n.º 10/2015, de 16/01, à recorrente.

X – Decidindo daquela forma, violou de forma flagrante o princípio da legalidade previsto no art. 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (nullum crimen, nulla poene sine lege).»

3. Admitido o recurso, o MP ofereceu resposta, em que sustenta ser a decisão recorrida isenta de reparo e por isso dever ser mantida, a final igualmente formulando conclusões que são as seguintes:

«I – No caso em apreço, é notório que não se verifica a prescrição do procedimento criminal, por não terem decorrido os prazos legais.

II – Além disso, também não deverá proceder a questão suscitada em como ocorre nulidade por ilegitimidade da arguida, na medida em que o vício invocado não conduz à nulidade e o mesmo foi sanado com a circunstância de ter sido a Freguesia ... quem apresentou o presente recurso.

III – Por fim, também não deverá proceder a questão levantada no presente recurso em como se verifica uma nulidade do procedimento contraordenacional por falta de notificação da arguida, em sede administrativa, para o exercício da defesa, uma vez que esse facto não corresponde à verdade, tendo a arguida sido notificada para esse efeito, e tendo recebido, efectivamente, a notificação.

IV – Desta sorte, afigura-se-nos que o recurso não merece provimento, devendo a douta sentença ser mantida e a arguida condenada, em conformidade.»

4. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que, acompanhando a posição expressa na resposta ao recurso, que aliás desenvolve, a final igualmente se pronuncia no sentido de àquele não ser dado provimento algum, e cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada mais se acrescentou, após o que, ao exame preliminar não se patenteando dúvidas relevantes, sem outras vicissitudes se colheram os vistos e foram os autos à conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e a esta luz as matérias neste caso relevantes, segundo a melhor ordem lógico-processual, são em concreto as seguintes:

i. Saber se ocorreu prescrição do procedimento contraordenacional;

ii. Saber se ocorre ilegitimidade da arguida e nulidade que isso envolva;

iii. Saber se há nulidade do procedimento contraordenacional por falta de notificação para o exercício da defesa;

iv. Enfim, saber se a arguida estava vinculada às normas de conduta cuja violação importasse a comissão das contraordenações em causa. 

1.2. Não havendo lugar a conhecimento da matéria de facto pelo tribunal da relação, que nos termos do art. 75.º, n.º 1, do RGCO, e nada desse diploma aqui especificamente impondo o contrário, apenas decide em matéria de direito (sem prejuízo do disposto pelo art. 410.º, n.º 2, do CPP, em sendo caso), e por outro lado não tendo sido requerida realização de audiência, sempre o recurso deveria ser julgado em conferência (art. 419.º, n.º 3, al. c), e 430.º, n.º 1, a contrario, do CPP), como foi.   

2. A decisão recorrida e seu contexto processual

Transcrevem-se aqui não apenas a decisão recorrida (somente no que respeita aos factos apurados e à fundamentação de direito na parte relativa ao que aqui está em causa), mas igualmente o antecedente despacho em que a título de questão prévia fora conhecida a questão da eventual prescrição:

i. Despacho de 21/09/2022 (doc. ref. ...18) 

«Da prescrição:

Na impugnação judicial que apresentou, veio o recorrente suscitar a prescrição do procedimento criminal, alegando que já decorreu o prazo de prescrição legal, atendendo à data da infração.

Com a refª. ...93 [em 18/09/2022], o MP pronunciou-se no sentido de o procedimento contraordenacional não se encontrar prescrito.

Tratando-se de questão prévia, cumpre apreciar e decidir.

Compulsados os autos, verifica-se que os factos que consubstanciam a infração contraordenacional em discussão nos autos foram praticados em 22/08/2019 e a decisão administrativa condenatória foi proferida em 29/04/2022.

Ademais, o prazo prescricional aplicável é de três anos, nos termos do art. 27.º, al. b), do DL n.º 433/82, de 27/10.

Portanto, constata-se que desde a prática dos factos já decorreu o prazo de três anos.

No entanto, nos termos do art. 28.º, n.º 1, al. d), do DL n.º 433/82, de 27/10, “[a] prescrição do procedimento por contraordenação interrompe-se: (…) d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima”.

Não obstante, “[a] prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição acrescido de metade” (art. 28.º, n.º 3, do DL n.º 433/82, de 27/10).

No caso em apreço, verifica-se que a decisão administrativa foi proferida em 29/04/2022, data em que se interrompeu a prescrição, porquanto entre a prática dos factos (22/08/2019) e a prolação da decisão administrativa não decorreram três anos.

Ademais, desde a decisão administrativa (29/04/2022) até ao momento presente também ainda não decorreram três anos.

Por fim, desde a prática dos factos (22/08/2019) até ao momento presente ainda não decorreu o prazo de prescrição acrescido de metade, ou seja, quatro anos e seis meses.

Em face do exposto, o tribunal não declara a prescrição do procedimento contraordenacional.

(…) »

 ii. Despacho recorrido (de 03/10/2022, doc. ref. ...47)

«I – Relatório

(…)

Questão prévia [1]: da ilegitimidade da recorrente

Invocou a recorrente nulidade da decisão, por ilegitimidade da arguida, uma vez que a coima foi aplicada à Junta de Freguesia ... e não à Freguesia, sendo certo que a Junta de Freguesia é um órgão da Freguesia e não a pessoa coletiva de direito público.

Cumpre apreciar e decidir.

Compulsados os autos, verifica-se que, efetivamente, o auto de contraordenação foi levantado em nome da Junta de Freguesia ..., com o NIPC ... e sede no Largo ..., em T....

O procedimento contraordenacional seguiu os trâmites normais e, a final, foi proferida decisão condenatória contra, novamente, a Junta de Freguesia ..., com o NIPC ..., a notificar em Largo ..., em T....

Desde logo, cumpre assinalar que, de facto, a pessoa coletiva de direito público é a Freguesia ... e não a respetiva Junta de Freguesia, sendo esta apenas um órgão daquela.

No entanto, a consequência da imprecisão em que incorreu a autoridade administrativa não é, no caso concreto, a nulidade da decisão condenatória.

Em primeiro lugar, verifica-se que, apesar de fazer referência à Junta de Freguesia ..., a autoridade administrativa apôs, tanto no auto de contraordenação, como na decisão condenatória, o NIPC pertencente à Freguesia ..., motivo pelo qual se compreende, desde o início do procedimento contraordenacional, que a referência à Junta de Freguesia ... se trata de uma imprecisão, querendo, ao invés, fazer-se referência à própria Freguesia.

Por outro lado, constata-se que foi a Freguesia ... quem apresentou o presente recurso de impugnação, sanando o vício verificado.

Em face do exposto, o tribunal não declara a nulidade da decisão administrativa, por ilegitimidade da recorrente.

Questão prévia [2]: da nulidade do procedimento contraordenacional

A este propósito, alegou a recorrente que nem a Junta de Freguesia, nem a própria Freguesia, foram notificadas para o exercício do direito de defesa, nos termos do art. 50.º, do RGCO, sendo, por esse motivo, nulo o procedimento contraordenacional.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do disposto no art. 50.º, do RGCO, “[n]ão é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.

Compulsados os autos, verifica-se que, no dia 13/09/2019, foi emitida e expedida para a morada da Freguesia ..., endereçada ao respetivo Presidente da Junta, uma notificação para exercício do direito de audição e defesa, com descrição dos factos imputados, respetiva subsunção jurídica, indicação das normas incriminadoras e das coimas aplicáveis, bem como outros esclarecimentos adicionais, designadamente que dispunha do prazo de vinte dias para, querendo, se pronunciar.

A referida notificação foi efetivamente recebida, em 24/09/2019, conforme resulta do aviso de receção.

No entanto, a recorrente não se pronunciou, nem nada requereu, no prazo legalmente conferido para o efeito.

Assim, não correspondendo à verdade o alegado pela recorrente, o tribunal não declara a nulidade do procedimento contraordenacional, nos termos do art. 50.º, do RGCO.

(…)

II – Fundamentação

1. De facto

1.1. Factos provados

O tribunal, com relevo para a boa decisão da causa, julga provados os seguintes factos:

1) No dia 22.08.2019, pelas 11h45, no estabelecimento denominado “B...”, sito na Rua ..., T..., ..., explorado pela recorrente, não se encontrava implementado um processo permanente baseado nos princípios do HACCP.

2) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no ponto anterior, o referido estabelecimento não possuía livro de reclamações.

3) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no ponto anterior, a recorrente não efetuou a mera comunicação prévia para o acesso à atividade desenvolvida.

4) A recorrente sabia, previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que estava obrigada a implementar um processo permanente baseado nos princípios do HACCP no seu estabelecimento, bem como a possuir o livro de reclamações no seu estabelecimento comercial, e a proceder à mera comunicação da atividade, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente.

(…)

2. De direito

(…)

De acordo com o disposto no art. 1.º, do RGCO, “[c]onstitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”.

Por seu lado, prevê o art. 2.º, do mesmo diploma, que “[s]ó será punido como contraordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática”.

No caso em apreço, são imputadas à recorrente as seguintes contraordenações, a título de dolo eventual:

- contraordenação de falta de implementação de um sistema de segurança alimentar baseado nos princípios de HACCP, p. e p. pelo art. 5.º do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento e do Conselho, de 29/04, e art. 6.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 113/2006, de 12/06;

- contraordenação de falta de livro de reclamações, p. e p. pelos arts. 3.º, n.º 1, al. a), e 9.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 156/2005, de 15/09;

- contraordenação de falta de comunicação prévia, p. e p. pelos arts. 4.º, n.º 1, al. l), e 7, e 143.º, n.º 2, al. a), subal. ii), do DL n.º 10/2015, de 16/01.

2.1. Da responsabilidade contraordenacional da recorrente

A título prévio, cumpre assinalar que a recorrente, efetivamente, conforme alegado no recurso de impugnação judicial, não é, na sua matriz, uma empresa do setor alimentar, um fornecedor de bens ou serviços ou um explorador de atividades económicas.

No entanto, na medida em que, no dia 22.08.2019, se encontrava a explorar o “B...”, sito na Rua ..., T..., ..., comportava-se como tal, devendo ser-lhe aplicadas todas as normas que regem essa atividade.

Na verdade, careceria totalmente de sentido que a recorrente fosse admitida a exercer uma determinada atividade económica, mas que não lhe pudessem ser aplicadas as normas que regulam essa atividade.

Portanto, sempre que qualquer entidade exerça uma determinada atividade económica, deve fazê-lo de acordo com as regras e normas que regulam essa atividade, independentemente da sua natureza de pessoa singular ou coletiva, de direito privado ou de direito público.

2.1.1. Da contraordenação de falta de implementação de um sistema de segurança alimentar baseado nos princípios de HACCP

Nos termos do art. 5.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento e do Conselho, de 29/04, “[o]s operadores das empresas do setor alimentar criam, aplicam e mantêm um processo ou processos permanentes baseados nos princípios HACCP”.

Complementarmente, estabelece o art. 6.º, n.º 1, al. b) do DL n.º 113/2006, de 12/06, “[c]onstitui contraordenação punível com coima no montante mínimo de 500,00 € e máximo de 3.740,00 € ou 44.890,00 €, consoante o agente seja pessoa singular ou colectiva, a violação das normas dos Regulamentos (CE) n.ºs 852/2004 e 853/2004 e das disposições regulamentares publicadas ao abrigo do art. 11.º do presente decreto-lei, designadamente: (…) b) A criação, aplicação ou manutenção de um processo ou processos baseados nos princípios do HACCP que não cumpra os requisitos do art. 5.º do Regulamento (CE) n.º 852/2004”.

No caso em apreço, segundo resultou provado, no dia 22/08/2019, pelas 11h45, no estabelecimento denominado “B...”, sito na Rua ..., T..., ..., explorado pela recorrente, não se encontrava implementado um processo permanente baseado nos princípios do HACCP.

Além disso, a recorrente sabia, previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que estava obrigada a implementar um processo permanente baseado nos princípios do HACCP no seu estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente.

Portanto, preencheu a recorrente, com a sua atuação, todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo contraordenacional previsto nos arts. 5.º do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento e do Conselho, de 29/04, e 6.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 113/2006, de 12/06.

2.1.2. Da contraordenação de falta do livro de reclamações

De acordo com o disposto no art. 3.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 156/2005, de 15/09, “[o] fornecedor de bens ou prestador de serviços é obrigado a: a) Possuir o livro de reclamações nos estabelecimentos a que respeita a atividade”.

Acrescenta o art. 9.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma, na redação conferida pelo DL n.º 74/2017, de 21/06 [em vigor à data da prática dos factos (art. 3.º, n.º 1, do RGCO), uma vez que a redação conferida pelo DL n.º 9/2021, de 29/01, não é mais favorável (art. 3.º, n.º 2, do RGCO), já que o limite mínimo aplicável é mais elevado], “[c]onstituem contraordenações puníveis com a aplicação das seguintes coimas: a) De 250,00 € a 3.500,00 € e de 1.500,00 € a 15.000,00 €, consoante o infrator seja pessoa singular ou colectiva, a violação do dispostos nas als. a), b) e e) do n.º 1 do art. 3.º, nos n.º 1 e 2 do art. 5.º, no n.º 3 do art. 5.º-A, nos n.º 1 a 3 do art. 5.º-B e nos n.º 1 e 3 do art. 8.º”.

In casu, provado ficou que, no dia 22/08/2019, pelas 11h45, o estabelecimento denominado “B...”, sito na Rua ..., T..., ..., explorado pela recorrente, não possuía livro de reclamações.

Ademais, a recorrente sabia, previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que estava obrigada a possuir livro de reclamações no seu estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente.

Desta forma, preencheu a recorrente, com a sua atuação, todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo contraordenacional previsto nos art. 3.º, n.º 1, al. a), e 9.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 156/2005, de 15/09.

2.1.3. Da contraordenação de falta de comunicação prévia

Estabelece o art. 4.º, n.º 1, al. l), do DL n.º 10/2015, de 16/01, na redação original [em vigor à data da prática dos factos (art. 3.º, n.º 1, do RGCO), uma vez que a redação conferida pelo DL n.º 9/2021, de 29/01, não é mais favorável (art. 3.º, n.º 2 do RGCO)], que “[e]stá sujeito à apresentação de uma mera comunicação prévia o acesso às seguintes atividades: (…) l) A exploração de estabelecimentos de restauração ou de bebidas, nos casos em que não deva haver lugar a pedido de dispensa dos requisitos referidos nos art. 126.º a 130.º e 133.º”.

Além disso, “[a] falta de apresentação de mera comunicação prévia nos termos dos números anteriores constitui contraordenação leve” [art. 4.º, n.º 7, do DL n.º 10/2015, de 16/01, na redação original (em vigor à data da prática dos factos (art. 3.º, n.º 1, do RGCO), uma vez que a redação conferida pelo DL n.º 9/2021, de 29/01, não é mais favorável (art. 3.º, n.º 2 do RGCO)].

No caso dos autos, segundo resultou provado, no dia 22/08/2019, pelas 11h45, a recorrente não efetuou a mera comunicação prévia para o acesso à atividade desenvolvida no estabelecimento denominado “B...”, sito na Rua ..., T..., ..., explorado pela recorrente.

Acresce que a recorrente sabia, previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que estava obrigada a proceder à mera comunicação da atividade, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente.

Destarte, preencheu a recorrente, com a sua atuação, todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo contraordenacional previsto nos art. 4.º, n.º 1, al. l), e 7, do DL n.º 10/2015, de 16/01.

2.2. Da medida da coima

(…) »

3. Enfim apreciando

3.1. Como acima referimos (cfr. supra, II/1/1.2), e nos termos do art. 75.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27/10, que aprovou o Regime Geral das Contraordenações (adiante apenas RGCO), não há lugar, em recurso da decisão judicial de impugnação de decisão da autoridade administrativa que aplicou coimas, e a menos que daquele diploma especificamente resulte o contrário, ao conhecimento da matéria de facto pelo tribunal da relação. Justamente porque nada desse diploma aqui impõe, e nem sendo arguidos vícios do art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), aplicável por força do art. 41.º, n.º 1, do RGCO, nem, uma vez que sempre seriam de conhecimento oficioso, qualquer que deles fosse se perfilando, apenas cabe decidir em estrita matéria de direito, sendo a base fáctica do que nesse plano cumpre a que se estabeleceu na decisão recorrida. Por outro lado, e quanto aos parâmetros normativos da valoração jurídica desses factos, nem sendo apontado pela recorrente erro da determinação das normas nem qualquer um se lobrigando, são igualmente os que na sentença se tomaram em consideração; breve, o preenchimento pela recorrente e com a comissão daqueles factos, das contraordenações de falta de implementação de um sistema de segurança alimentar segundo os princípios de HACCP [p. e p. pelos art. 5.º do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento e do Conselho, de 29/04, e art. 6.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 113/2006, de 12/06], de falta de livro de reclamações [p. e p. pelos art. 3.º, n.º 1, al. a), e 9.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 156/2005, de 15/09], e de falta de comunicação prévia de actividade [p. e p. pelos art. 4.º, n.º 1, al. l), e 7, e 143.º, n.º 2, al. a), subal. Ii), do DL n.º 10/2015, de 16/01].

3.2. Precisado o que antecede, temos que de entre as objecções erguidas pela recorrente contra a conclusão pela respectiva condenação, nos termos que acima isolámos (cfr. supra, II/1/1.1), as que são relativas às arguidas prescrição e nulidades processuais, em se mostrando pertinentes implicarão sem mais a absolvição, mas no caso de improcedência deixam intocada a condenação, sem que caiba sobre esta e sobre a medida das coimas apreciar aqui o que quer que seja, até porque essa não é matéria concitada em recurso, nem sequer a título subsidiário. E o mesmo sucede quanto às questões relativas à suposta insusceptibilidade de comissão das contraordenações em causa por falta de certa característica pessoal da recorrente: em procedendo, determina uma absolvição sem mais; mostrando-se impertinente, as condenações subsistem sem que importe ponderar o que quer que seja a respeito dos específicos termos delas. Enfim, e com talvez maior simplicidade, o recurso não abrange explicitamente os termos da condenação, e naquilo que afinal versa, de nenhuma das potenciais soluções decorre a necessidade de apreciação sobre aqueles termos.

3.3. Com isto começando a enfrentar as ditas questões, pela ordem enunciada, diremos, quanto à primeira, que é absolutamente manifesta a falta de razão da recorrente na sua arguição da prescrição, e isto mesmo ultrapassando a evidência, sublinhada no parecer do Sr. procurador-geral adjunto, de que o tribunal recorrido a decidira em despacho autónomo contra o qual em si mesmo não foi interposto recurso. Nos termos do art. 27.º, al. a), do RGCO, “o procedimento por contraordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra ordenação hajam decorrido (…) três anos, quando se trate de contraordenação a que seja aplicável coima de montante igual ou superior a 2.493,99 € e inferior a 48.879,79 €”, como é o caso com todas as três aqui em causa (tendo em conta que se trata de pessoa colectiva, puníveis respectivamente com coimas até 44.890,00 €, até 15.000,00 € e até 1.500,00 €. Tido isto em conta, o primeiro dado a relevar é que a à data da prolação da decisão administrativa condenatória (29/04/2022), ainda não tinham decorrido aqueles três anos sobre a da comissão dos factos (22/08/2019) – e sobre isso avultam as disposições do art. 28.º, n.º 1, al. d), e 3, ainda do RGCO, segundo as quais “a prescrição do procedimento por contraordenação interrompe-se (…) com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima” mas “a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade”. Tudo vale por dizer que a prescrição não tinha ocorrido aquando da decisão administrativa, com esta e na data respectiva (29/04/2022) o prazo interrompeu-se, começando de novo a correr, e a esta data e contado a partir da dos factos (ainda não se cumpriu, longe disso, o prazo máximo (de quatro anos e meio) que a lei estabelece em se incluindo a interrupção (a atingir-se em 22/02/2023) – muito menos podendo dar-se por esgotado aquando da decisão recorrida.

3.4. Mesmo desconsiderando quaisquer outras causas de interrupção (ou de suspensão) da prescrição do procedimento que pudessem ter intercorrido, resulta claro que só em face do já referido se torna incontornável a improcedência da arguição, ao que nada altera o argumento de não ter havido interrupção porque em rectas contas a recorrente não fora notificada para os termos do processo e especificamente daquela decisão administrativa, por tê-lo sido isso sim, e apenas, o presidente da junta, seu órgão executivo – dessa matéria e seus outros alcances potenciais cuidaremos adiante, aqui recordando somente que enquanto factor de interrupção, a lei se basta, nos termos da al. d) do n.º 1 do art. 28.º do RGCO, com a prolação da decisão administrativa, independentemente da notificação. Enfim, e de igual modo desconsiderando até que a decisão da primeira instância a desestimar a arguição da prescrição fora tomada logo no despacho de recebimento, a 21/09/2022, não constando que especificamente deste tivesse recorrido a arguida, sempre e em todo o caso resulta claro que neste plano tem de negar-se provimento à parte do recurso interposto, isso sim, contra a decisão final, em suma também aqui não verificando a prescrição do procedimento.

3.5. A segunda e a terceira das questões suscitadas pelo recurso, sempre como acima enunciadas, estão em verdade entre si conexionadas de um jeito que as torna indestrinçáveis, reclamando uma apreciação conjunta, que necessariamente parta das apreciações que cabem quanto à natureza da recorrente. É indiscutível que a pessoa colectiva territorial de direito público potencialmente responsável pelas infracções (em rigor: a pessoa a quem nos termos do art. 7.º, n.º 1, do RGCO, é susceptível a imputação respectiva, com a correspondente e necessária personalidade jurídica – exceptuadas as associações, que ao caso não vêm), é a Freguesia ... e não  a junta de freguesia (seu mero órgão executivo, desprovido daquela personalidade e por isso não passível de responsabilização, contraordenacional ou outra) [art. 235.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República (CR), e 5.º, n.º 1, e 6.º, n.º 2, da Lei n.º 75/2013, de 12/09 – Regime Jurídico das Autarquias Locais (RJAL)]. Deste modo, ter a autoridade administrativa levantado o auto em relação à junta como arguida, e também e afinal tendo feito constar da decisão condenatória essa junta como a condenada, tudo em lugar de o fazer relativamente à freguesia, mostra-se uma patente impropriedade terminológica, em que, nem por ser notoriamente comum na linguagem corrente, não se esperaria que a autoridade administrativa incorresse em procedimentos formais.

3.6. Todavia, e como na decisão recorrida bem se sublinha, a questão não excede esse plano, de uma mera imprecisão terminológica, só por um extremado e absolutamente injustificado formalismo se podendo ver nisso qualquer erro sobre o imputado. Para além de no dito expediente se ter em qualquer caso inequivocamente identificado a arguida (sem tergiversar: a Freguesia ...) pelo respectivo número de identificação de pessoa colectiva, logo por aí não se podendo consentir na razoabilidade de qualquer dúvida sobre a constituição daquela pessoa colectiva como arguida e na sequência do procedimento condenada, certo é que, precisamente por se tratar de uma imprecisão corrente e até dominante na linguagem comum (é uma sinédoque – tomar-se a parte pelo todo ou, no caso, o representante pelo representado – há muito generalizada e mesmo sedimentada, não apenas no que tange às freguesias e juntas mas igualmente às câmaras e municípios, para ficar por aqui), estando sedimentada com inteira solidez na colectividade linguística de Portugal, tem um valor comunicacional que não comporta ambiguidade. Vale dizer, a recorrente (através dos seus órgãos, claro está, por se tratar de uma pessoa colectiva que em si  mesma e por natureza não tem entendimento ou vontade, formando-os através das pessoas que integram esses órgãos), não podia ter deixado de ficar ciente de ter sido constituída arguida e de ter sido ela a condenada.

3.7. Ocorre-nos, neste contexto e para ainda maior conforto do que aqui afirmamos, citar o Ac. do STJ de 02/05/2002, proferido no processo 02B1172 – n.º convencional JSTJ000 (relator Neves Ribeiro), em que, versando-se embora matéria processual civil, a questão foi colocada e apreciada em termos que para aqui e pelo seu valor explicativo podem com utilidade ser transpostos. Transcrevemos directamente da respectiva fundamentação: «Convocando como causa de pedir a morosidade na falta de passagem de uma licença camarária para determinada edificação a levantar pelo agravante, e responsabilizando a câmara pelos prejuízos correspondentes causados pela demora, o recorrente, supostamente lesado com ela, demandou formalmente a câmara, como tal e porque tal. Assim colocada a questão, pergunta-se: quem está razoavelmente em causa e foi, por isso, destinatário da demanda? A pessoa? Ou o órgão? Á luz do que foi dito (…), a resposta, razoavelmente, só pode ser uma: É a pessoa. Só ela assume personalidade jurídica e judiciária e a correspondente capacidade judiciária activa e passiva (…). Tanto não pode ser ignorado (…). Nem o entendimento razoável da petição pode ser outro, se de forma normal se ponderar a que pessoa jurídica é que a acção se dirigiria e só se poderia dirigir, atenta a causa de pedir e o pedido invocados. Só havendo mal entendido (…) é que a resposta não é inequívoca: a pessoa só pode ser o Município!».

3.8. Embora a recorrente não caracterize especificamente e com arrimo a norma alguma a nulidade que aquela imprecisão terminológica segundo ela importaria, limitando-se à afirmação genérica de ser uma nulidade, pela nossa parte nenhuma lobrigamos. Pelo contrário, é e sempre foi indisputavelmente ela a arguida, e depois condenada, sobre isso nenhuma dúvida pode admitir-se que tivesse havido, e enfim e como é óbvio é uma pessoa colectiva susceptível de responsabilização contraordenacional, tendo naquela qualidade de arguida inteira legitimidade para o exercício das faculdades que esse estatuto lhe confere. Por isso mesmo aliás, e como na decisão igualmente se observa, ela mesma, nisso demonstrando verdadeiramente não ter tais dúvidas, não deixou de, a despeito de ter-se alheado do procedimento, vir em última análise recorrer da decisão, quando expectável seria, se levasse a sua própria lógica às últimas consequências, que nem mesmo lhe importasse fazê-lo, nenhuma utilidade disso lhe cabendo esperar – já que, nessa lógica, não teria sido sequer condenada (no limite, uma tal lógica conduziria a nem a impugnação judicial se lhe dever ter admitido, por não ser a arguida e condenada no procedimento de contraordenação…).

3.9. Onde a recorrente se mostra precisa é, isso sim, em sustentar que o procedimento contraordenacional administrativo se desenvolveu em contravenção do art. 50.º do RGCO, com o efeito directo de impedir a aplicação de coima, na medida em que, por ter sido notificado para os termos respectivos o presidente da junta e não esta mesma, que é o seu (da freguesia) órgão executivo, não o foi devidamente e, com isso, ficou ela afinal prejudicada no direito de defesa que aquela norma lhe assegura (em decorrência do art. 32.º, n.º 10, da CR). Neste ponto, contudo, a argumentação, a mais de padecer de igual formalismo extremado, revela-se, sempre com o devido respeito, particularmente infeliz. Não ignorando as disposições do RGAL, cujos art. 17.º e 18.º cita de forma genérica para referir que o “presidente da junta” é um seu órgão unipessoal, sem o ser ela mesma (assim prejudicada naquele direito de defesa), omite é qualquer observação sobre quem então e em seu entender deveria tê-lo sido (notificado). Temos dificuldade em admitir que essa omissão seja despida da intenção de obscurecer os dados do problema, porque justamente a al. a), do n.º 1, do art. 18.º, do RJAL, é cristalinamente claro: “compete ao presidente da junta de freguesia (…) representar a freguesia em juízo e fora dele”!

3.10. E sendo assim, como sem a menor dúvida é, a notificação do presidente da junta para os termos do processo, longe de ser indevida ou enfermar sequer de imprecisão, foi rigorosamente correcta. Com ela, e através desse presidente e da junta a quem o mesmo havia de dar conhecimento, porque embora represente a freguesia em juízo, quem decide sobre a defesa em quaisquer pleitos é a junta (art. 18.º, n.º 1, al. b), e 19.º, al. d), do RJAL), a recorrente (a freguesia) por definição ficou ciente do procedimento; e assim, sempre tendo presente que enquanto pessoa colectiva, são as pessoas integrantes dos seus órgãos que por ela tomam conhecimento das realidades e formulam decisões, se no âmbito dele não exerceu direitos, não pode certamente dizer que isso se devesse a ignorar a respectiva pendência, antes o tendo de atribuir a decisão e correspondente actuação (omissiva) daquelas pessoas, as quais por conseguinte, se assim o entender e para tanto houver fundamento, eventualmente responsabilizará – não cabendo é tentar furtar-se às suas responsabilidades para com terceiros e, no que aqui importa, para com autoridades de fiscalização e controlo das regras de ordenação social.

3.11. Também nestas questões e como se antolha indiscutível devendo ser negado provimento ao recurso, eis-nos agora e por último defronte da questão de estar ou não a recorrente vinculada às normas de conduta cuja violação importou o preenchimento das contraordenações em causa, concretamente, implementar no bar que explora um sistema de segurança alimentar de acordo com os princípios HACCP, ter nele disponível um livro de reclamações e, enfim, comunicar previamente o exercício dessa actividade. O que vem sustentado é que a nada disso estava a recorrente obrigada, pela elementar razão de que não é uma empresa do sector alimentar, fornecedora de bens ou serviços ou exploradora de actividades económicas, tudo o que nos termos dos art. 5.º, n.º 1 e 3, do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento e do Conselho, de 29/04,  3.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 156/2005, de 15/09, e 4.º, do DL n.º 10/2015, de 16/01, sempre exigem para que fosse obrigada, respetivamente, a implementar naquele bar o dito sistema de segurança, a manter nele livro de reclamações, e a comunicar previamente a actividade a nele desenvolver – de tal sorte que condená-la nas contraordenações correspondentes implica afinal a violação do princípio da legalidade (nullum crimen, nulla poena, sine lege), previsto no art. 2.º, do RGCO, e constitucionalmente tutelado pelo art. 29.º, da CR.

3.12. Sempre sem quebra alguma do devido respeito, aqui afigura-se-nos que a recorrente leva o afã defensivo, em si mesmo legítimo e aliás compreensível, a um extremo já digno de alguma censura. Não cabe aqui discutir a sujeição dos pressupostos da responsabilidade contraordenacional às exigências do princípio constitucional da legalidade, como plasmado naquele art. 29.º da CR, e sem prejuízo de observar que nisso não deixam de haver matizes decorrentes da apesar de tudo diferente natureza dela relativamente á responsabilidade criminal, sem mais a assumimos, por facilidade de exposição. A questão, contudo, está em que a argumentação da recorrente falha logo no postulado de que não lhe sejam aplicáveis as obrigações cuja violação preenche os tipos contraordenacionais em causa e conforme na lei recortados. Começando pelo dos art. 5.º, n.º 1 e 3, do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento e do Conselho, de 29/04 (e art. 6.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 113/2006, de 12/06, que lhe estabelece as regras de execução na ordem jurídica nacional), a recorrente, embora correctamente as cite, afinal treslê as normas; delas não consta que tais obrigações (implementar no bar sistema de segurança conforme com os princípios HACCP) vinculem somente as “empresas do sector alimentar”, mas antes, e nos termos literais daqueles n.º 1 e 3 do Regulamento (CE), os “operadores das empresas do sector alimentar”, diferença que é de tomo. No caso da norma do art. 3.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 156/2005, de 15/09, a lei ainda é mais clara, impondo a correspondente obrigação (manter livro de reclamações) a quem seja fornecedor de bens ou serviços (a quem forneça bens e serviços, como a recorrente fazia no bar em causa, com explorá-lo); e por fim, pelo que respeita ao art. 4.º, n.º 1, al. l), do DL n.º 10/2015, de 16/01, a obrigação (apresentação de comunicação prévia para acesso à actividade) vincula quem quer que seja que a exerça.

3.13. Tendo o que antecede em mente, logo se alcança que também nisto a recorrente entendeu enveredar por um deslocado formalismo, porventura fiada de que com ser uma pessoa colectiva territorial de direito público, cujas finalidades primárias e atribuições à partida não envolveriam a exploração de bares (art. 235.º, n.º 2, da CR, e 2.º, 3.º e 7.º, do RJAL), então, e mesmo que a essa exploração acessória ou lateralmente com efeito se dedique, as regras respectivas já lhe não seriam aplicáveis, e isso porque, aparentemente assim julgará, em essência não é uma “empresa” e muito menos do sector alimentar. É logo nisto que incorre em patente engano: sem entrar pelo interminável debate que o conceito há muito gera no domínio da ciência do direito, certo é que “empresa” não é uma qualquer categoria jurídica, mais ou menos fixa, de pessoas físicas ou colectivas, mas antes o conjunto de meios materiais e pessoais, esquemas organizacionais e procedimentais, que alguém (pessoas físicas ou colectivas), comandando-os, funcionaliza ao desenvolvimento de uma actividade económica. Se uma freguesia entende directamente explorar um bar (aparentemente anexo a piscinas públicas), em lugar de por exemplo concessionar essa exploração, então, e assumindo legítima tal opção, o que ela em todo o caso passa a ser é a (entidade) operadora da empresa que nessa actividade fenomenologicamente se revela – e enquanto tal está sujeita às correspondentes obrigações legais, não a isentando disso o facto de ser uma pessoa de direito público com atribuições primárias que não incluem a exploração.

3.14. É de resto conforme à mais perfeita das lógicas que as coisas sejam assim, e em particular no que tange àquela concreta obrigação de implementação, no bar (um estabelecimento do sector alimentar em que se fornecem alimentos e bebidas), do sistema de segurança. Sob a omnipresente sigla HACCP [internacionalmente reconhecida para a fórmula, de língua inglesa, Hazard Analysis and Critical Control Points – em português, Análise de Riscos e Controlo de Pontos Críticos –, acolhida pelo Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento e do Conselho, de 29/04], o que se encontra é um sistema tido por adequado e assim normativamente imposto para salvaguarda da segurança dos consumidores dos produtos alimentares e de bebidas. Mais faltava que a comunidade aceitasse que nos interstícios das normas houvesse a possibilidade de alguém (pessoa singular ou colectiva, e independentemente da natureza ou fins primários respectivos), explorando empresarialmente essa actividade de fornecimento de alimentos e bebidas ao público (afectando-lhe, sob seu comando, os meios pertinentes), poder fazê-lo sem tais procedimentos de segurança, colocando em risco o bem-estar (saúde e no limite a vida) dos consumidores dos ditos alimentos e bebidas, ou que, indevidamente fazendo-o, nisso gozasse de impunidade…

3.15. O mesmo se dirá, mutatis mutandis, da comunicação prévia da actividade e da manutenção, no estabelecimento, de um livro de reclamações. Enfatizando que, ao contrário do que apodicticamente refere a recorrente, precisamente por explorar o bar tem de ser considerada, nessa actividade, fornecedora de bens (alimentos e bebidas), e, vai por si, exploradora dessa específica actividade económica, o que se visa com a obrigação de comunicação prévia é dotar as autoridades supervisoras e de fiscalização do conhecimento necessário ao escrutínio do cumprimento, nela, das referidas obrigações, e o objectivo da de ter no estabelecimento um livro de reclamações é, além desse também, o de assegurar o exercício dos direitos próprios dos consumidores a reclamar – coisas de que igualmente não poderia ser dispensada a recorrente a pretexto de, embora explorando o bar, ser uma freguesia, com os inerentes fins e atribuições próprios. Na verdade, se a recorrente entendia não ser-lhe conveniente cumprir as obrigações próprias de explorar um bar (que dos factos provados é o que resulta que fazia), ou em todo o caso se não está disposta aos incómodos que esse cumprimento implica, talvez fizesse melhor em antes concessioná-lo, caso em que tais obrigações pertenceriam ao concessionário (que seria o operador da empresa). Ela o saberá e decide como melhor e democraticamente entende, mas se opta por operar ela o bar, então está nisso sujeita às obrigações que, sem excepção, vinculam quanto a essa actividade se dediquem (ainda que acessória ou lateralmente aos respectivos fins ou objecto). As freguesias (ou quaisquer outras pessoas colectivas de direito publico, não têm, por sê-lo, como que uma “carta de corso” para exercício de actividade económica na área da restauração e bebidas feito à margem das regras de segurança e protecção dos consumidores).

3.16. E à luz de quanto antecede já encerrando, resulta claro o preenchimento dos tipos contraordenacionais em causa [falta de implementação de sistema de segurança alimentar segundo os princípios de HACCP, p. e p. pelos art. 5.º do Regulamento (CE) n.º 852/2004, do Parlamento e do Conselho, de 29/04, e art. 6.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 113/2006, de 12/06; falta de livro de reclamações, p. e p. pelos art. 3.º, n.º 1, al. a), e 9.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 156/2005, de 15/09; e falta de comunicação prévia de actividade, p. e p. pelos art. 4.º, n.º 1, al. l), e 7, e 143.º, n.º 2, al. a), subal. Ii), do DL n.º 10/2015, de 16/01], nisso não indo implicada violação alguma do princípio da legalidade (art. 29.º, da CR, e 2.º, do RGCO). Enfim, é completo o decaimento dos argumentos de recurso, a que por isso deve ser integralmente negado provimento, e por último e como acima logo referido, afirmado aquele límpido preenchimento das contraordenações, o que subsiste é a condenação por elas imposta na decisão recorrida, sem que aqui cumpra, porque não é objecto do recurso nem decorre da solução dele, qualquer indagação adicional a respeito da sanções e sua graduação.

III – Decisão

Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso da arguida Freguesia ..., mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, com taxa de justiça em quatro UC’s (art. 513º, n.º 1 e 3, do CPP, e 8.º, n.º 7, e Tabela Anexa III, do Regulamento das Custas Processuais).


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Coimbra, 11 de Janeiro de 2023

Pedro Lima (relator)

Jorge Jacob (1.º adjunto)

Maria Pilar Oliveira (2.ª adjunta)

Assinado eletronicamente