Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4261/10.9TJCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
PESSOAS COLECTIVAS
EMBARGOS
Data do Acordão: 10/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.3, 20, 28, 40, 42 CIRE
Sumário: 1. Às pessoas colectivas (e patrimónios autónomos) não será de aplicar exclusivamente o n.º 2 do art.º 3º, do CIRE, sendo igualmente aplicável o n.º 1, do mesmo art.º, avaliando-se, dessa forma, se determinada crise económico-financeira traduz ou não uma situação de insolvência.

2. Tal ponderação será efectuada com base no activo disponível e no passivo exigível, pelo que a superioridade do passivo em relação ao activo, enquanto elemento caracterizador da insolvência de uma pessoa colectiva, só deverá relevar caso evidencie uma situação de impossibilidade de assegurar o cumprimento das obrigações, no momento do vencimento.

3. Será igualmente de concluir pela situação de insolvência se, não obstante a existência de um activo superior ao passivo, a pessoa colectiva não consegue movimentar esse activo para fazer face à generalidade das obrigações no momento do seu vencimento.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

           

            I. D (…), notificado, na qualidade de credor, da declaração de insolvência de T (…), Lda., nos autos de insolvência pendentes no 5º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Coimbra, veio deduzir embargos à sentença proferida nos autos principais, alegando, em síntese:

- O embargante exigiu da apresentante, em execução que corre termos pelo Juízo de execução do Tribunal Judicial de V. N. Gaia, o montante de € 109 318,77, pelo que deverá ser rectificado o valor indicado na petição da apresentação à insolvência (€ 50 000);

- As acções judiciais em que a insolvente é Ré não resultam da impossibilidade de esta solver os seus compromissos, mas sim da natureza controvertida dos créditos reclamados pelas contrapartes;

- A propositura da acção de insolvência consiste numa manobra da insolvente, motivada pela situação de prevalência da instituição bancária, principal credor, que não deduziu qualquer procedimento judicial contra a apresentante;

- A insolvente possui um activo superior ao passivo;

            - Em Outubro de 2010, o credor maioritário fez registar aquisição provisória da totalidade das fracções da edificação que constitui o respectivo património imobiliário;

- A insolvente tinha alcançado também, imediatamente antes da insolvência, um acordo com o embargante mas, inopinadamente, recuou e deu o dito por não dito;

- Face aos factos apresentados na petição da insolvência, verificar-se-ia um dos factos referidos no art.º 20º, n.º 1, alínea b), do CIRE – “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”;

- A apresentante escamoteou o facto de ser autora numa acção declarativa no valor de € 318 044,93, nas Varas Mistas de Coimbra, instaurada em 26.5.2009, contra O (…) S. A.;

- O valor real do património imobiliário da apresentante sobreleva o valor dos mútuos hipotecários em, pelo menos, 40 %.

Efectuada a notificação prevista no art.º 41º n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa/CIRE[1] (aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18.3), a devedora/apresentante e a Massa Insolvente, representada pela Administradora da Insolvência, contestaram, por excepção e por impugnação, concluindo pela improcedência dos embargos.

Por despacho de fls. 80, foi julgada improcedente a matéria de excepção.[2]

Realizada a audiência de julgamento e decidida a matéria de facto, nos termos dos art.ºs 35º, n.ºs 5 a 8 e 41º, n.º 4, foram os embargos julgados improcedentes.

Inconformado com esta decisão e visando a sua revogação (bem como da aludida sentença de declaração da insolvência), na base de uma diversa apreciação dos “elementos de prova constantes dos autos”, o embargante interpôs o presente recurso de apelação formulando as conclusões que assim vão sintetizadas:   

1ª - O recorrente alegou factos novos no incidente de embargos, destacando-se os seguintes:

- a insolvente é credora da O (…), S. A., no valor de € 318 044,93;

- o activo da insolvente é superior ao seu passivo e capaz de solver as suas dívidas;

- em Outubro de 2010 o credor maioritário (…) fez registar aquisição provisória sobre todo o empreendimento em causa, de onde deriva implicitamente que teria alcançado um acordo com a ora insolvente, para resolver dessa forma o crédito existente;

- com tal acordo, teria aquele credor que resolver dois arrestos inscritos, do recorrente/embargante e de (…), os quais se encontram, em termos de prioridade de inscrição na Conservatória, entre as hipotecas do Banco;

- em face disso, seria mais vantajoso para tal Banco a declaração de insolvência da insolvente;

- foi essa a motivação da apresentante ao requerer a declaração de insolvência, e não a constatação de se encontrar insolvente.

2ª - Na consideração do valor do património imobiliário da insolvente atendeu-se na sentença recorrida, exclusivamente, ao valor matricial do prédio, o que está incorrecto, quer porque tal valor não dá garantias de corresponder ao valor real de mercado, quer porque deverá atender-se ao valor que emerge da contabilidade da insolvente e que é de € 5 354 686,59 (“preço de custo”), acrescido da margem de lucro que era expectável pela insolvente, traduzível no preço de venda final das fracções.

3ª - A necessidade e conveniência deste acréscimo encontram apoio também na consideração da experiência comum de que os Bancos nunca ultrapassam, nos mútuos que concedem, 60 % do valor real dos imóveis dados em garantia hipotecária.

4ª - Deu-se como provado que o imóvel não sofreu desvalorização.

5ª - A insolvente alega dificuldade de venda do empreendimento imobiliário que construiu, mas não resultou dos autos que tivesse feito qualquer diligência e esforço sério, para vender as fracções que construiu.

6ª - O prédio apenas obteve a licença de habitabilidade em Agosto de 2010, pelo que só a partir dessa altura, estaria a insolvente realmente apta a vender as fracções.

7ª - Relativamente às fracções que a insolvente efectivamente negociou, o que resulta é o contrário: a insolvente incumpriu com os respectivos promitentes compradores, não celebrando os contratos definitivos.

8ª - Não deveria, por isso, ter sido dado como provado o facto (n.º 6) dos «factos provados» pois é conclusivo e sem apoio nos elementos constantes dos autos.

9ª - Deveria ter sido dado como provado o crédito da insolvente sobre a O..., no valor de € 318 044,93, desde logo porque, caso contrário, obtém-se um resultado contraditório e introduz-se um duplo padrão na avaliação do património da insolvente: se as declarações da insolvente se radicam na sua contabilidade, haverá que conferir o mesmo valor a tal informação contabilística quer se reporte a uma dívida, quer se reporte a um crédito.

10ª - Os resultados líquidos da insolvente nos exercícios de 2007, 2008 e 2009 foram respectivamente, de € 198,44, € 55,53 e (-) € 21 463,21.

11ª - A insolvente não é devedora ao Estado de valores relevantes.

12ª - As dívidas da insolvente, excluindo as dos credores hipotecários, poderão ser liquidadas perfeitamente com o crédito que a insolvente detém sobre a O (…).

13ª - Quanto aos créditos hipotecários, poderão os mesmos ser pagos através da venda das cinquenta e três fracções[3] dadas em garantia e se não forem vendidas, poderão ser executadas pelo Banco, ou mesmo entregues em dação.

14ª - Deve, consequentemente, alterar-se a resposta aos quesitos 1º, 2º e 4º, bem como ao 3º (limitando-a aos créditos não bancários), e ao quesito 5º (limitada aos créditos bancários), dando-os como provados com essas rectificações.

A sociedade apresentante respondeu à alegação do recorrente, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso - art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, na redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8), coloca-se, sobretudo, a questão de saber se o embargante/recorrente logrou afastar os fundamentos da declaração de insolvência.


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

a) No processo de insolvência dos autos principais foi declarada a insolvência da devedora T (…) Lda., por sentença proferida no dia 21.12.2010. (A e B)

b) A devedora é uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada que exerce a actividade de construção civil, obras públicas, urbanizações, compra e venda de imóveis, administração e gestão de obras, sendo a gerência exercida por A (…) e J (…). (C)

c) A devedora tem uma dívida ao banco (…)de € 5 731 569. (D)

d) O activo da insolvente é constituído, única e exclusivamente, pelo empreendimento sito em Pedroso, Vila Nova de Gaia, identificado no ponto 3 da sentença de Insolvência. (6º)

e) O mercado da construção para habitação tem-se ressentido fortemente nos últimos anos, mercê da crise económica e financeira que se instalou à escala global, o que reduziu drasticamente a vendabilidade de empreendimentos como o da insolvente. (7º)

2. Não ficou provado:

- A devedora possui um activo superior ao passivo? (1º)

- A devedora é credora da O (…)S. A., no montante de € 318.044,93? (2º)

- O valor do crédito referido em 2º é suficiente para a devedora pagar a generalidade das suas dívidas? (3º)

- O património da devedora integra imóveis de valor real superior em 40 % ao valor dos seus mútuos hipotecários? (4º)

- E é suficiente para garantir o pagamento de todo o passivo da devedora e os compromissos que esta assumiu ou venha a assumir? (5º)

- O mercado da construção para habitação tem-se ressentido fortemente nos últimos anos, mercê da crise económica e financeira que se instalou à escala global, o que reduziu drasticamente a vendabilidade de empreendimentos como o da insolvente? (7º)

- O referido empreendimento sofreu, nos últimos dois, três anos, uma desvalorização sempre superior a 30 %, 40 %? (8º)

3. A decisão de facto foi assim fundamentada pelo Tribunal recorrido:

A convicção do tribunal fundou-se no depoimento da testemunha ouvida, nas declarações prestadas pela senhora administradora da insolvência, e nos documentos juntos aos autos.

J (…), única testemunha ouvida, com conhecimento directo dos factos por ter trabalhado na insolvente, esclareceu, de forma clara, que o empreendimento sito em Pedroso era o único activo da insolvente e que o mercado neste momento não estava a “abarcar” este tipo de habitação.

A senhora administradora da insolvência manifestou a sua convicção de que a insolvente está numa situação de insolvência e não tem viabilidade económica, tal como, de resto, fez constar no relatório que juntou aos autos principais. Confirmou ainda que o único activo é o empreendimento e que o mesmo é insuficiente para cobrir todas as dívidas da insolvente, até pela dificuldade de venda de imóveis que se verifica actualmente.

Relativamente à matéria de facto não provada, a mesma não foi apurada por ausência de prova produzida relativamente a estas matérias.

Neste ponto, convém referir que pese embora se tenha apurado, por informações da Senhora Administradora de Insolvência, a existência de uma acção que corre termos nas Varas Mistas de Coimbra, no valor de € 318.044,93 na qual é insolvente a Autora[4] e Ré a sociedade O (…) S.A, a mesma ainda não teve um desfecho final, não se podendo ainda afirmar que de facto a O (…) deve à insolvente aquela quantia, sendo certo que não foi produzida mais qualquer prova (para além da existência da acção mencionada) quanto a este aspecto.

Por outro lado, relativamente ao valor do património da insolvente (que actualmente, do que ficou apurado, é o seu único activo) não ficou apurado que o mesmo tivesse sofrido uma desvalorização sempre superior a 30%,40% já que, quanto a este assunto, (…) mencionou, de maneira firme, que o valor do empreendimento teria sido fixado tendo em conta pontos que se mantinham inalterados, tal como a zona, o tipo de habitação e um tipo de clientela específica, o que implicava a minimização de uma qualquer desvalorização que pudesse existir.

Não obstante o referido, certo é que também não ficou apurado que o valor do património da insolvente fosse superior às dívidas da insolvente. Ao invés, considerando os elementos dos autos, nomeadamente o valor matricial do património referido a fls. 12 e 13 dos autos principais de insolvência, que não foi colocado em causa em sede de audiência de julgamento dos embargos, e a dívida de € 5 731 569 ao banco BCP que foi dada como assente, concluímos que o património da autora (e logo, como ficou apurado, o seu único activo) é insuficiente para o pagamento de todo o passivo da devedora e os compromissos que esta assumiu e que (consequentemente) venha a assumir.”

4. (…)

Assim, vejamos o que resulta da prova documental junta aos autos (sobretudo, documentos de fls. 19, 26, 128, 164, 169, 200, 255 e 264):

a) - Em 11.11.2008, o embargante e a dita T (…) Lda., nos autos da acção ordinária n.º 46/08.0TBVNG, transaccionaram sobre o objecto da lide, ficando esta obrigada a vender àquele o imóvel em causa nesses autos, até 31.8.2009, outorgando a respectiva escritura pública, pelo preço de € 50 000, correspondente ao sinal já pago, sendo que, caso a referida sociedade não cumprisse aquilo a que se obrigava, pagaria ao embargante o dobro do sinal recebido, juros legais desde a citação, “custas e demais do processo”;

b) - Incumprido o referido acordo, o embargante instaurou uma acção executiva contra a sociedade insolvente pelo montante de € 109 318,77;

c) - A sociedade insolvente construiu um prédio urbano, na freguesia de Pedroso, Vila Nova de Gaia, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de V. N. Gaia sob o n.º 8656/20100412, composto por 51 (cinquenta e um) apartamentos;

d) - Por ofício de 06.4.2011, o B (…) informou que “o valor global das responsabilidades da insolvente Trihabita é de 5 731 569 €[5] (…) [capital] a que acrescem os juros vencidos num valor global superior a 1 M. EUROS”;

e) - Nas duas reclamações de créditos que as entidades bancárias apresentaram nos autos de insolvência, em 25.01.2011, os juros moratórios ascendiam a € 1 073 758,30;

f) - A sociedade insolvente instaurou contra O (…), S. A., uma acção declarativa (Processo n.º 107511/09.4YIPRT), que se encontra pendente, na qual invoca um crédito sobre a demandada no montante de € 318 044,93;

g) - Em 21.02.2011, foi junto aos autos principais o “relatório” a que se refere o art.º 155º, constando do mesmo, designadamente: “nos últimos três anos, [a insolvente] dedicou-se exclusivamente à construção do empreendimento de habitação sito no Monte do Pinhão, freguesia de Pedroso, Vila Nova de Gaia; nos últimos anos, a empresa foi controlando os custos, entre outros, através da redução de pessoal; em finais de 2007, tinha 13 trabalhadores ao seu serviço e em 2008, reduziu para 5 trabalhadores (número que se manteve até 2010); à data da insolvência, a empresa não dispunha de trabalhadores[6]; na perspectiva da administradora da insolvência, “a gerência da insolvente não conseguiu impedir que a empresa acompanhasse a grave crise no sector da construção civil”, sendo que “em 2002, começou a construir um grande empreendimento habitacional e para o poder fazer, teve de recorrer ao crédito bancário”, com os inerentes “custos financeiros associados à construção” e que se mantiveram “com o pagamento dos juros dos financiamentos a serem debitados mensalmente”; o mencionado empreendimento foi concluído em 2010 e as correspondentes “licenças de habitabilidade” foram obtidas em Agosto de 2010; “a insolvente está numa situação financeira muito difícil; tem inscrito na contabilidade, na rubrica ´Produtos e Trabalhos em Curso´, o valor de € 5 354 686,59 o qual corresponde ao custo de produção do [dito] empreendimento de habitação (…); mas tem também dívidas avultadas a terceiros: deve só à Banca, de acordo com a contabilidade, o valor de € 4 896 453,45 (…)”, acrescido dos “custos do incumprimento (despesas e juros moratórios vencidos) e por isso, a quantia reclamada nos autos pela Banca, é de € 6 811 634,18”; os resultados líquidos dos exercícios de 2007, 2008 e 2009 foram, respectivamente, de € 198,44, € 55,53 e (-) € 21 463,21; “a insolvente não logrou vender nenhuma das fracções; não efectuou nenhum negócio (à semelhança aliás do que já havia sucedido no ano anterior) e portanto, tudo o que conseguiu [em 2010] foi aumentar o seu endividamento”; “em 2009, ficou sem as instalações da sede da empresa que foram vendidas em processo de execução fiscal, por dívidas à Segurança Social; (…) a insolvente não tem dinheiro nem capacidade para o angariar: não tem instalações, não tem trabalhadores, não tem acesso a mais crédito bancário”; a Administradora da Insolvência - não vendo qualquer perspectiva de manutenção da empresa insolvente no seu todo, ou mesmo em parte, e não lhe parecendo viável a apresentação de qualquer plano de insolvência - propôs “o encerramento definitivo da empresa e a passagem imediata à fase da liquidação, com a venda dos bens constantes do inventário e a cobrança, se possível, das dívidas de clientes”;

h) - Na assembleia de credores de apreciação do “relatório”, realizada em 25.02.2011, os credores presentes ou representados [com uma percentagem de créditos reclamados de 97,29 %[7]] pronunciaram-se favoravelmente ao teor do relatório, aprovando-o, nomeadamente, quanto à conclusão da total inviabilidade da recuperação da insolvente, e deliberando unanimemente “manter encerrado o estabelecimento (actividade) da massa insolvente”; nada opôs “a que se inicie de imediato a liquidação do activo apreendido ou a apreender (…)”.

6. Perante estes elementos e considerados os pontos da matéria de facto cuja resposta vem impugnada, pensamos que nenhuma censura merece a decisão recorrida.

De resto, sem quebra do devido respeito, compulsados os autos e atentas as supra referidas “conclusões” da alegação de recurso, o embargante só não pretenderá que a declaração do estado de insolvência possa ter repercussões para a sua esfera jurídica[8] e, ao fim e ao cabo, pugnará, apenas, por uma “liquidação extrajudicial” do património da insolvente, que crê mais vantajosa, invocando, designadamente, que o património imobiliário da insolvente é suficiente para pagamento aos credores hipotecários (entidades bancárias) e que o restante activo (que circunscreve ao almejado resultado de mencionada acção judicial em curso) bastará para pagar aos demais credores.

Sendo esta, em síntese, a perspectiva do embargante/recorrente, vejamos agora, sumariamente, cada um dos pontos da matéria de facto (controvertida) objecto de impugnação.

Perante o material probatório recolhido, o Tribunal recorrido não podia “concluir” que a devedora é credora da O(…), S. A., no montante de € 318 044,93, sendo correcta a fundamentação aduzida, e já referida, além de que nada nos diz que a Administradora da Insolvência tenha efectuado uma “leitura” e uma análise inadequadas da contabilidade da insolvente, e que à eventual procedência da acção se siga a efectiva cobrança desse valor (e sua integração na massa insolvente).

E também não é possível “concluir” que o dito valor é suficiente para a devedora pagar a generalidade das suas dívidas, e não faria qualquer sentido, nem seria admissível, considerar as “limitações/restrições” agora invocadas pelo embargante para justificar uma resposta positiva ao aludido art.º e a suficiência daquele (eventual) crédito da insolvente para a liquidação de aproximadamente 5 % do respectivo passivo.

Não vemos como responder afirmativamente à factualidade dos art.ºs 4º  e 5º da b. i. [o património da devedora integra imóveis de valor real superior em 40 % ao valor dos seus mútuos hipotecários/e é suficiente para garantir o pagamento de todo o passivo da devedora e os compromissos que esta assumiu ou venha a assumir], sendo que o embargante, no que respeita a esta problemática, acaba por se contradizer, pois tende a estabelecer alguma equivalência entre o valor (de mercado ou, pelo menos, nas actuais e/ou previsíveis condições de mercado de habitação) do (único) imóvel da insolvente e o montante global do crédito hipotecário/bancário (que atingirá cerca de 95 % do passivo); acresce que não seria igualmente admissível considerar as “limitações/restrições” invocadas pelo embargante, em sede de impugnação da decisão de facto, para obter uma resposta afirmativa à materialidade do art.º 5º da b. i..

Quanto ao art.º 1º da b. i. [a devedora possui um activo superior ao passivo], cremos que o mesmo encerra matéria conclusiva, porquanto pressupõe a demonstração dos valores do activo e do passivo, para os confrontar e formular o juízo comparativo em apreço; traduz ou corporiza uma mera conclusão/ilação a extrair da correspondente factualidade, e só a correspondente alegação fáctica - factos materiais e concretos - era/é susceptível de prova/comprovação (cf. art.º 646º, n.º 4, do CPC).

Não obstante, podendo-se afirmar, com suficiente segurança, que o passivo da devedora ultrapassará o montante de € 7 000 000 (sete milhões de euros), já é, no mínimo, duvidoso que o respectivo activo atinja ou exceda o mesmo valor. Por conseguinte, e independentemente da sua relevância para o desfecho da lide, nada justifica extrair a “conclusão” pretendida pelo embargante e responder afirmativamente ao referido art.º da b. i..

Por último, qualquer eventual modificação à resposta ao art.º 7º da b. i. implicaria a ponderação/reapreciação da prova pessoal produzida em audiência de discussão e julgamento, o que, como vimos, se revela impossível.

Releva assim apenas a factualidade mencionada em II. 1, supra, complementada com o que decorre da prova documental aludida nas diversas alíneas do ponto 5., supra.

7. Qualquer credor que como tal se legitime pode opor embargos à sentença que declarou a insolvência, alegando factos ou requerendo meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que sejam susceptíveis de afastar os fundamentos da declaração de insolvência [art.º 40º, n.ºs 1, alínea d) e 2].

Estão aqui em causa os credores que não tiveram intervenção processual anteriormente à declaração de insolvência.

Decorre do CIRE uma ampla possibilidade de oposição por embargos à sentença declaratória da insolvência, sendo ainda lícito às pessoas referidas no n.º 1 do art.º 40º, alternativamente à dedução dos embargos ou cumulativamente com estes, interpor recurso da sentença de declaração de insolvência (cf. art.ºs 40º e 42º).

Nos termos legais, os embargos serão necessariamente fundados em razões de facto - novos factos alegados ou novas provas requeridas (art.º 40º, n.º 2) -, enquanto o recurso deve basear-se em razões de direito - inadequação da decisão à factualidade apurada por má aplicação da lei (art.º 42º, n.º 1).[9]

8. Devendo o embargante/ credor da apresentante alegar factos ou requerer meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que sejam susceptíveis de afastar os fundamentos da declaração de insolvência, e tendo presente a descrita fundamentação dos embargos (aludida em I, supra) e, sobretudo, a factualidade dada como provada na decisão de facto em apreço (dita em II. 1., supra) e o que resulta da documentação junta aos autos (sobretudo, a análise e a condensação vertidas no “relatório” reproduzido a fls. 255 e seguintes), conclui-se pelo não afastamento dos fundamentos da declaração de insolvência, porquanto nada nos diz que a devedora, quer ao tempo da declaração da insolvência, quer no período subsequente, tivesse ou lograsse alcançar as condições/possibilidades de cumprir as suas obrigações vencidas, atenta a noção hoje consagrada: “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas” (art.º 3º, n.º 1).

Os elementos disponíveis apontam claramente em sentido contrário, evidenciando a impotência, para a obrigada/insolvente, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos, destacando-se a circunstância de a devedora, na qualidade de empresa do sector da construção civil, ter paralisado a sua actividade, ficando sem quaisquer meios/recursos materiais e humanos para o seu prosseguimento e encontrando-se impossibilitada de recorrer ao financiamento (maxime, junto da banca), restando-lhe, apenas, um imóvel, o seu derradeiro empreendimento imobiliário, que não lhe permite gerar receitas para suportar as obrigações actuais decorrente de um passivo de vários milhões de euros e cujo valor de mercado será porventura insuficiente para o pagamento dos créditos bancários.

De salientar também que, quando, como no caso em apreço, o pedido de declaração de insolvência é formulado pelo devedor, a apresentação à insolvência implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, que é declarada até ao 3º dia útil seguinte ao da distribuição da petição inicial ou, existindo vícios corrigíveis, ao do respectivo suprimento (art.º 28º), previsão legal que constituiu decisivo fundamento da sentença de declaração de insolvência proferida nos autos principais.

E, neste contexto (apresentação à insolvência), a prova da solvência (prova do facto contrário ao resultante do referido reconhecimento) compete, necessariamente, ao aqui credor embargante (art.º 342º, do CC), desiderato que poderá ser alcançado se, analisada a materialidade apurada, se concluir pela inexistência de quaisquer dos factos previstos no n.º 1, do art.º 20º, ou seja, pela não verificação de factos-índices ou presuntivos da insolvência[10] [factos que, pela experiência da vida, indiciam ou revelam a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações (o que constitui a pedra de toque do instituto[11])].

Escreveu-se na sentença embargada que, na p. i. dos autos principais, a insolvente referiu, designadamente, ter dívidas vencidas e não pagas de centenas de milhares de euros, não ter crédito nem dinheiro para solver os seus compromissos, entrou em insolvência devido à dificuldade de venda das fracções que compõem o empreendimento sito em Pedroso e que encetou negociações com os credores, entre os quais o embargante, que se goraram.

Concluiu-se, depois, decorrer dessa materialidade que a situação de insolvência, na previsão do art.º 3º, n.º 1, era actual [art.º 23º, n.º 2, alínea a)] e se verificava o facto-índice da alínea b), do n.º 1, do art.º 20º (cf. documento de fls. 250 e seguintes).

In casu, o recorrente não logrou afastar todos os factos-índices ou presuntivos da insolvência, particularmente os das alíneas a) e b) do n.º 1, do art.º 20º; daí que apenas possamos corroborar o juízo formulado na sentença que declarou a insolvência e reafirmado na decisão de que se recorre.

9. Decisivo para a existência de uma situação de insolvência é “a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos[12].

E no que tange às pessoas colectivas (e patrimónios autónomos) não será de aplicar exclusivamente o n.º 2 do art.º 3º, sendo igualmente aplicável o n.º 1, do mesmo art.º, o que se extrai da redacção desse n.º 2, que reza o seguinte: “As pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis”.

Porém, a superioridade do passivo em relação ao activo, enquanto elemento caracterizador da insolvência de uma pessoa colectiva, só deverá relevar caso evidencie uma situação de impossibilidade de assegurar o cumprimento das obrigações, no momento do vencimento.

 E, do mesmo modo, averiguada essa mesma relação activo/passivo, será de concluir pela situação de insolvência se, não obstante a existência de um activo superior ao passivo, a pessoa colectiva não consegue movimentar esse activo para fazer face às suas obrigações vencidas - a existência de um activo contabilisticamente superior ao passivo, enquanto elemento de exclusão da situação de insolvência, só releva se ilustrar uma situação de viabilidade económica, passando esta pela capacidade de gerar excedentes aptos a assegurar o cumprimento da generalidade das obrigações no momento do seu vencimento[13].

Ou seja, verdadeiramente decisiva será a ponderação com base no activo disponível e no passivo exigível – a superioridade manifesta do passivo face ao activo, prevista no citado n.º 2 para as pessoas colectivas (e patrimónios autónomos), não basta, devendo ser sempre conjugada com o n.º 1 do art.º 3º, de modo a poder avaliar se a situação de “crise económico-financeira” se traduz ou não numa situação de insolvência, nos termos desse normativo.[14]

10. Tendo em atenção o exposto e sendo evidente a manifesta impossibilidade de a sociedade declarada insolvente cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas – o que não deixou de ser reconhecido pelo próprio embargante… –, apenas podemos concluir pela verificação de uma situação de insolvência de pessoa colectiva e sua válida declaração.

Ademais, em sede de embargos, ficou provada a configuração fáctica dada pela insolvente na petição da apresentação à insolvência e o embargante não logrou afastar essa realidade ou demonstrar qualquer facto novo que obstasse à afirmação da situação de insolvência.

Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, porquanto não ficaram abalados “os fundamentos da declaração de insolvência” da sociedade embargada.


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            III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo embargante.


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Fonte Ramos ( Relator )

Carlos Querido

Virgílio Mateus


[1] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem.
[2] Decisão objecto de recurso mas que terá sido confirmada (cf. fls. 102, 126 e 248).
[3] Existe lapso manifesto – decorre do documento de fls. 26 e seguintes que foram constituídas 51 (cinquenta e uma) “fracções autónomas”.
[4] Escreveu-se, indevidamente, “na qual é insolvente a Autora” em vez de “na qual a insolvente é Autora”.
[5] Facto que o Tribunal recorrido deu como provado – cf. II. 1. alínea c), supra.
[6] Sublinhado nosso, tal como mos demais sublinhados do presente item.
[7] O embargante não compareceu nem se fez representar.
[8] Veja-se, a propósito, a posição assumida pelo embargante, a fls. 178, no decurso da audiência de discussão e julgamento.
[9] Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris-Sociedade Editora, 2009, págs. 209 e 211 e seguintes.

[10] Os factos geradores de presunção de insolvência são os seguintes:

    a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas – al. a);

    b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações – al. b);

    c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo – al. c);

    d) Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos – al. d);

    e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor – al. e);

    f) Incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do art.º 218º – al. f);

    g) Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses de dívidas tributárias, contribuições e quotizações para a segurança social, dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da sua cessação ou violação, rendas de qualquer tipo de locação, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido por hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência - al. g);

    h) Sendo o devedor pessoa colectiva ou património autónomo, por cujas dívidas nenhuma pessoa individual responda pessoal e ilimitadamente, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado – al. h).
[11] Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 70, 72 e 133 e seguinte.
    Cf. ainda, de entre vários, o acórdão desta Relação de 15.9.2009-processo 298/08.6TBCDN.C1, publicado no “site” da dgsi.
[12] Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 72.
[13] Cf. o acórdão da RC de 20.11.2007-processo 1124/07.9TJCBR-B.C1, publicado no “site” da dgsi.

[14] Vide, neste sentido, Paula de Carvalho, A Situação de insolvência das pessoas colectivas e o “exagero” do legislador, in Revista dos Técnicos Oficiais de Contas - Outubro de 2009, págs. 55 e seguintes.