Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
71/04.0TAVGS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HEITOR VASQUES OSÓRIO
Descritores: CRIME DE FALSIFICAÇÃO
CRIME DE BURLA
FINS DAS PENAS
MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 02/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VAGOS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA.
Legislação Nacional: ARTIGOS Nº 2 DO ART. 71º DO C. PENAL
Sumário: I. - A medida da pena deverá ser conferida pela necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto – tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada [prevenção geral positiva ou de reintegração] – temperada pela necessidade de reintegração social do agente e tendo com o limite inultrapassável da medida da culpa. Tutela dos bens jurídicos e reinserção do agente são as finalidades da aplicação de uma pena que não poderá nunca ultrapassar a medida da culpa.
II. - Entre as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal), deve o tribunal atender ao grau de ilicitude do facto, ao modo de execução, à gravidade das consequências, ao grau de violação dos deveres impostos ao agente, à intensidade do dolo ou da negligência, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, à motivação do agente, às condições pessoais e económicas do agente, à conduta anterior e posterior ao facto, e à falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).
III. - O juízo de prognose a realizar pelo tribunal, peça fundamental do funcionamento do instituto da suspensão da pena, parte da análise das circunstâncias do caso concreto – das condições de vida e conduta anterior e posterior do agente, conjugadas e relacionadas com a sua revelada personalidade –, operação da qual resultará como provável, ou não, que o agente sentirá a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão (com ou sem imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova), para concluir ou não, pela viabilidade da sua socialização em liberdade. Na formulação deste juízo o tribunal deverá correr um risco prudente pois que a prognose é apenas uma previsão, uma conjectura e não uma certeza. Daí que, se tiver dúvidas sérias sobre a capacidade do agente para interiorizar a oportunidade de ressocialização que a suspensão sugere, a prognose deve ser negativa.
Decisão Texto Integral: 12

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I. RELATÓRIO.
No Tribunal Judicial da comarca de Vagos, sob acusação do Ministério Público que lhe imputava a prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1, a) e 3, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, a), e de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, b), todos do C. Penal, foi submetido a julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, o arguido …, divorciado, nascido em P…, e residente em Peniche.
O demandante civil … deduziu pedido de indemnização contra o arguido e contra … e …, SA, com vista à condenação solidária dos dois primeiros demandados no pagamento da quantia de 29.000.000$00 a que correspondem € 144.651,39, acrescidos da remuneração do capital traduzido nos prémios regulares anuais desde 1 de Novembro de 1997 até efectivo e integral pagamento, e com vista à condenação solidária do primeiro e terceira demandada no pagamento da quantia de 26.000.000$00 a que correspondem € 129.687,45, acrescidos da remuneração do capital traduzido nos prémios regulares anuais desde 29 de Agosto de 1997 até efectivo e integral pagamento.
Realizado o julgamento, por acórdão de 18 de Junho de 2008, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1, a) e 3, do C. Penal, na pena de 1 ano de prisão, pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelo arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, a), do C. Penal, na pena de 2 anos e 10 meses de prisão, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, b), do C. Penal, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, e em cúmulo, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos.
Mais foi decidido absolver as demandadas sociedades do pedido de indemnização contra cada uma deduzido, e condenar o arguido no pagamento ao demandante E…, da quantia de 29.000.000$00 (€ 144.651,39), acrescidos da remuneração do capital traduzido nos prémios regulares anuais, desde 1 de Novembro de 1997 até efectivo e integral pagamento, e da quantia de 19.499.899$00 (€ 97.265,09), acrescidos da remuneração do capital traduzido nos prémios regulares anuais, desde 29 de Agosto de 1997 até efectivo e integral pagamento.
Inconformado com a decisão, dela recorreu o Digno Procurador da República junto do Círculo Judicial de Aveiro, formulando no termo da respectiva motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1. O Colectivo considerou e bem a modalidade do dolo – directo – o elevado grau de ilicitude, a extrema gravidade das consequências dos ilícitos e a favor do arguido considerou a sua confissão parcial (sem relevo), a sua inserção social e, acrescentamos nós, o tempo decorrido sobre a prática dos factos sem incidentes criminais de relevo.
2. Face ao conjunto de circunstâncias enumeradas seria de esperar em cumprimento do disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, que o Colectivo optasse por uma pena de prisão situada acima do ponto médio das molduras penais aplicáveis (2 anos e 9 meses – falsificação; 5 anos – burla qualificada; 4 anos e 6 meses – abuso de confiança).
3. O Colectivo optou por aplicar penas muito próximas dos mínimos legais, a saber, 1 ano de prisão pela falsificação, 2 anos e 10 meses pela burla qualificada e 1 ano e 10 meses pelo abuso de confiança qualificado, e em cúmulo na pena única de 3 anos de prisão, sem que minimamente apresentasse qualquer justificação para tal opção, em violação do disposto no artigo 71.º n.º 3 e 77.º do Código Penal.
4. E fê-lo com base na consideração do acórdão do processo comum colectivo nº 451/98.9 JAAVR, ainda não transitado, e no raciocínio de que se o arguido foi condenado nesse processo pela prática de múltiplos crimes de natureza semelhante aos dos autos na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, não se justifica que, por um conjunto singular de factos relativos apenas a um ofendido se sujeite o arguido a uma pena sensivelmente superior.
5. O raciocínio é manifestamente ilegal porque o Colectivo não tem meios nem competência (que só ao tribunal de recurso pertence) para avaliar se a decisão do Colectivo que procedeu ao julgamento no processo nº 451/98.9 JAAVR se encontra bem ou mal proferida e se o juízo de prognose aí efectuado se revelou adequado ao conteúdo dos autos e da prova aí produzida.
6. Para agravar ou atenuar a responsabilidade do arguido não podia o Colectivo considerar por qualquer forma prova produzida noutro julgamento – e que por isso não foi produzida perante si em obediência aos princípios da oralidade e do contraditório – ou a correspondente decisão ainda não transitada em julgado, sob pena de violação do disposto no artigo 355.º do Código de Processo Penal e no artigo 32.º n.º 5 da Constituição da República
7. Considerando as atenuantes e agravantes que em concreto se verificavam mostrava-se adequada a condenação do arguido nas penas de 2 anos e 10 meses de prisão pelo crime de falsificação, 5 anos e 6 meses pelo crime de burla qualificada e 4 anos e 11 meses pelo crime de abuso de confiança, e, em cúmulo jurídico nos termos do artigo 77.º do Código Penal, na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão, pelo que o Tribunal Colectivo ao aplicar as penas referidas na conclusão 3.ª violou o disposto nos artigos 40.º, 71.º e 77.º do Código Penal.
8. Numa comunidade de forte emigração não é possível aceitar que através da prática de falsificação, burla e abuso de confiança, alguém se apodere de 42.000 contos que são fruto duma vida de trabalho no estrangeiro, abusando da boa-fé dos emigrantes, sem que se previna quer a ocorrência de vingança privada, quer a ocorrência de novos crimes, que não seja através da imposição de penas de prisão efectiva ao seu autor.
9. Nos crimes de burla, abuso de confiança e falsificação que beneficiaram na sua prática da boa inserção social do seu autor, a manutenção dessa boa inserção social não assume especial relevo sob pena de deixar sem punição os crimes de maior dimensão e que maior dano social provocam.
10. Ao suspender a execução da pena ao arguido violou o Tribunal Colectivo por erro de interpretação o disposto no artigo 50.º n.º 1 e 40.º n.º 1 do Código Penal, pelo que deve reformar-se o acórdão recorrido condenando o arguido no cumprimento da pena de prisão que lhe for aplicada.
Assim, requer-se a V. Exas. que, dando provimento ao presente recurso, reformem o acórdão recorrido condenado o arguido em pena de prisão efectiva.
(…)”.
O arguido não respondeu ao recurso.
Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no qual, aderindo aos argumentos do Digno Magistrado do Ministério Público recorrente, concluiu pela procedência do recurso.
Foi cumprido ao disposto no art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, tendo respondido o arguido alegando que as penas propostas pelo recorrente excedem a medida da sua culpa, que as exigências de prevenção geral não impõem a aplicação de pena de prisão efectiva, que a cupidez do próprio ofendido contribuiu para a facilitação da sua conduta criminosa, e que o seu arrependimento é manifesto no facto de ter vindo a reparar os danos causados, concluindo pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO.
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- A insuficiência da medida concreta de cada uma das três penas de prisão decretadas, e a insuficiência da pena única de prisão decretada, resultante do cúmulo;
- A suspensão ou não, da pena única de prisão decretada.
Para a resolução destas questões, importa ter presente o que de relevante consta da decisão objecto do recurso. Assim:
A) No acórdão foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
“ (…).
1. O arguido dedicou-se durante vários anos e até 1998 à actividade de (mediador de seguros, designadamente, do ramo vida, trabalhando para diversas companhias seguradoras, entre elas, a "Alico" e a "Eagle Star".
2. O ofendido … era emigrante em França e em 1997 conheceu o arguido, sendo-lhe o mesmo apresentado por um seu irmão que já tinha efectuado alguns seguros com ele.
3. O arguido convenceu-o de que conseguiria para as suas poupanças melhor rendimento que os juros dos depósitos bancários a prazo.
4. Assim convencido da rentabilidade que proporcionava aos investimentos feitos por seu intermédio, em Agosto de 1997, no escritório do arguido, em Mira, … entregou ao arguido a quantia de 29.000.000$00 com vista à constituição de um seguro do ramo vida na companhia de seguros" Alico".
5. Para esse efeito, preencheu a respectiva proposta que o arguido lhe apresentou e foi-lhe emitido e entregue um recibo.
6. Aquele seguro efectivamente foi constituído, tendo sido emitida a apólice com o nº 1120001235.
7. Confrontado com a notícia de que o arguido se teria apoderado de dinheiro pertencente a outros clientes e tinha fugido para o estrangeiro, em 1998 o E... foi informado pela companhia de seguros "Alico" que em Fevereiro desse ano tinha sido efectuado um pedido de adiantamento daquele seu seguro no valor de 27.100.000$00.
8. Assim, com a data de 13 de Fevereiro de 1998 foi efectuado à "Alico" o pedido de fls. 190, subscrito em nome de "…", em que foi solicitado o adiantamento no valor de 27.100.000$00 daquela apólice.
9. Com a data de 17 de Fevereiro de 1998, foi emitido pela companhia de seguros "Alico" o recibo de fls. 191, também em nome do …, no qual se lê "Declara(m) ter recebido da … a importância de Esc. 27.100.000$00, a título de adiantamento sobre o Valor do Fundo de Poupança da Apólice (…) tendo a Companhia recebido antecipadamente a quantia de Esc. 2.303.500$00 relativo a juros (…)" e que se encontra assinado com o nome de "E…".
10. E com a data de 20 de Fevereiro de 1998 foi emitido por aquela companhia o cheque nº 5112673447, no valor de 24.796.500$00 à ordem de ….
11. Sucede que … nunca pretendeu fazer aquele adiantamento, nem deu instruções ao arguido nesse sentido, não assinou aquele pedido de adiantamento, nem o recibo de reembolso e não apôs no verso desse mesmo cheque a assinatura que imita a sua.
12. E nunca lhe foi entregue aquele cheque no valor de 24.796.500$00 que foi emitido em seu nome pela companhia de seguros "Alico".
13. As assinaturas que constam do pedido de adiantamento, do recibo de reembolso e do verso do cheque e que são atribuídas ao E… não foram ali colocadas por este, mas por pessoa cuja identidade não se apurou.
14. O arguido utilizou o pedido de reembolso e entregou o recibo, assinado nos termos referidos, o que sabia, enganando a companhia seguradora, fazendo-a crer que aquelas assinaturas eram do … e fazendo com que esta lhe entregasse o cheque no valor que àquele se destinava, permitindo-lhe apoderar-se do dinheiro correspondente.
15. Na posse desse cheque, sabendo que não tinha sido o ofendido … a efectuar pelo seu próprio punho a assinatura que ali constava, o arguido depositou-o numa sua conta bancária de que era titular na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Mira (fls. 8 e 54).
16. Ao utilizar tal cheque, onde constava falsamente a assinatura do ofendido … no verso do mesmo, o que sabia, o arguido quis também criar a aparência de que este título lhe tinha sido validamente endossado por este último, sabendo que punha em crise a credibilidade das pessoas em geral na genuinidade, veracidade e exactidão merecidas por tal documento, e dessa forma logrou obter o seu pagamento junto da entidade bancária.
17. Com todo este comportamento quis o arguido apoderar-se do dinheiro que resultou do adiantamento e gastá-lo em seu proveito, como efectivamente fez, querendo obter dessa forma para si um benefício que não obteria de outro modo e a que sabia não ter direito e causar ao … um prejuízo pelo montante correspondente ao valor total com que foi constituído esse seguro, o que o arguido sabia.
18. Em Agosto de 1997 o … entregou ao arguido a quantia de 26.000.000$00 com vista à constituição de um seguro do ramo vida na companhia de seguros "Eagle Star".
19. Para esse efeito, preencheu a respectiva proposta que o arguido lhe apresentou (fls. 181 a 184).
20. Aquele seguro efectivamente foi constituído, tendo sido emitida a apólice com o nº 7212747 (fls. 185 e 186).
21. Confrontado com a notícia de que o arguido se teria apoderado de dinheiro pertencente a outros clientes e tinha fugido para o estrangeiro, o … soube junto da "Eagle Star" que era titular de um seguro pelo valor de 26.000.004$00 mas com entradas periódicas trimestrais e o arguido apenas fizera duas entregas no valor de 6.500.101$00 cada uma (fls. 179 e 180).
22. O arguido sabia que a quantia de 26 000 000$00 que o E… lhe entregou se destinava na sua totalidade à constituição de um seguro do ramo vida nesse mesmo valor.
23. Todavia, ao convencer o … a entregar-lhe essa quantia não tinha a intenção de fazer um seguro nesse valor mas antes a de se apoderar de parte dela e dar-lhe um destino diferente daquele a que se destinava com visto a fazê-la sua, como efectivamente fez sua a quantia de 13.000.000$00, gastando-a em proveito próprio. bem sabendo que não lhe pertencia e que causava idêntico prejuízo ao ….
24. Agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
25. Em 13.9.2004 e em 9.8.2005. o demandante efectuou dois resgates parciais nos montantes de € 25.000.00 e de € 28.950.00, sendo o saldo da apólice ref. e 20., em 31.12.2006 de € 30.509,03.
26. O pedido de adiantamento apresentado à Alico pelo arguido foi acompanhado de cópia de elementos de identificação do ofendido: a proposta de seguro e as cópias dos documentos necessários já tinham sido entregues pela Alico ao arguido, e as assinaturas apostas em tais documentos e no pedido de adiantamento e recibo são idênticas.
27. O arguido tem um filho maior, com vida independente: encontra-se actualmente a viver maritalmente com uma companheira.
28. Começou outra vez a desenvolver a actividade de mediador, estando colectado para esse efeito desde 5 de Março deste ano.
29. Concluiu o antigo 5° ano do Liceu.
30. O arguido, antes destes episódios era uma pessoa respeitada no meio onde vivia e gozava de muita confiança nesse mesmo meio, sendo nessa data considerado como bom profissional.
31. Confessou parcialmente os factos.
32. O arguido, pela prática em 26.11.2002, de um crime de condução ilegal foi condenado na pena de 60 dias à taxa diária de 4 euros, por sentença proferida em 26.11.2002, já transitada em julgado.
33. O arguido, no âmbito do processo comum colectivo nº 451/98.9JAAVR, foi condenado na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, acórdão esse que ainda não transitou quanto à condenação criminal.
(…)”.
B) Foram considerados não provados os seguintes factos 8transcrição):
“ (…).
- Que as assinaturas que constam do pedido de adiantamento, do recibo de reembolso e do verso do cheque tenham sido efectuadas pelo próprio arguido imitando a sua assinatura.
- Que o arguido e a Companhia de Seguros Alico tivessem dividido entra ambos a quantia de 29.000.000$00.
- Que o preenchimento e as assinaturas apostas no doc. de fls. 190 e o endosso colocado no cheque tenham sido efectuadas pelo punho do ofendido.
- Que o ofendido tivesse conhecimento da modalidade – entregas trimestrais – em que iria ser efectuado o contrato de seguro com a Eagle Star.
- Que o arguido prometia as pessoas que lhe confiavam dinheiro, o pagamento de juros a taxas que não eram praticadas em nenhuma instituição bancária, fazendo entregas antecipadas de montantes correspondentes a juros e, muitas vezes, incluindo valores nas propostas de seguros que eram superiores aos valores entregues pelos tomadores, a título de antecipação de juros.
(…)”.
C) E dele consta quanto à escolha e determinação das penas (transcrição):
“ (…).
Realizado o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido importa determinar a natureza e medida da sanção a aplicar.
Tendo em conta o carácter alternativo das espécies de penas em causa (quanto ao crime de falsificação), apesar do princípio da preferência das reacções penais não detentivas (artigo 70º do Cód. Penal), atenta a circunstância deste crime estar directamente relacionado com a prática do crime de burla, entende-se que a pena de multa é manifestamente desadequada.
Dentro dos limites da moldura penal vai ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso deve ser aplicada. Por outro lado, a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva, orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa e relaciona-se com a prevenção especial de socialização por forma a que seja esta a determinar, em último termo, a medida final da pena.
O arguido agiu com dolo directo, em todos os ilícitos que praticou.
O prejuízo concreto (quer no crime de burla, quer no crime de abuso de confiança), apesar de já se encontrarem agravados pelo valor, excede em muito o valor a partir do qual opera a qualificativa.
A ilicitude é muito elevada, na medida em que o arguido pratica os factos no exercício das funções de mediador, no âmbito de uma particular relação de confiança, abusando das poupanças de uma vida que lhe foram confiadas.
O arguido já regista antecedentes criminais, se bem que não assumam especial relevo.
Confessou parcialmente os factos.
Por outro lado, o arguido está social e familiarmente inserido.
Entende-se, então, como adequada a pena de 1 ano de prisão pela prática do crime de falsificação, 2 anos e 10 meses pela prática do crime de burla e 1 ano e 10 meses pela prática do crime de abuso de confiança.
Dentro da moldura penal do concurso, que tem por limite máximo as somas das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (art.º 77º, n.º. 2 do Cód. Pen.) e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares aplicadas.
A determinação da medida da pena única far-se-á em função das exigências gerais da culpa e de prevenção, sendo considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente, a que já fizemos referência.
Ponderados os elementos já referidos, tem-se por adequada a pena única de 3 anos de prisão.
Efectuando um juízo global de prevenção especial de ressocialização, considerando tão somente o facto de o arguido estar social e familiarmente inserido, estando também a reiniciar a sua actividade de mediador (!), tendo ainda em consideração o juízo de prognose que foi efectuado no âmbito dos autos que ainda estão sob recurso, entende-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Assim, suspende-se a pena pelo período de três anos.
(…)”.
Da medida concreta das penas parcelares e da pena única de prisão
1. Insurge-se o Digno Magistrado do Ministério Público recorrente quanto à medida concreta das penas de prisão que o tribunal colectivo determinou como sanção dos crimes praticados pelo arguido, entendendo que não respeitam os critérios legais.
Como se viu, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de falsificação de documento qualificado, pela prática de um crime de burla qualificada, e pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, nas penas de 1 ano de prisão, 2 anos e 10 meses de prisão e 1 ano e 10 meses de prisão, respectivamente, e em cúmulo, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
Pretende o Digno Magistrado recorrente que as penas parcelares deveriam ser, a de 2 anos e 10 meses de prisão, a de 5 anos e 6 meses de prisão e a de 4 anos e 11 meses de prisão, respectivamente, e a pena única, a de 7 anos e 6 meses de prisão.
Tendo em conta que aos crimes pelos quais foi o arguido condenado correspondem as molduras penais abstractas de, 6 meses a 5 anos de prisão ou multa de 60 a 600 para a falsificação, 2 a 8 anos de prisão para a burla e 1 a 8 anos de prisão para o abuso de confiança, vejamos agora se assiste ou não razão ao Digno Magistrado recorrente.
1.1. Dispõe o art. 40º, nº 1, do C. Penal, que a aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Mas, conforme estabelece o seu nº 2, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Ensina o Prof. Figueiredo Dias que, culpa e prevenção, são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser determinada a medida concreta da pena. A prevenção reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto. A culpa, dirigida para a pessoa do agente do crime, constitui o limite inultrapassável daquela (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, 214 e ss.).
A medida da pena será então dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto – tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada [prevenção geral positiva ou de reintegração] – temperada pela necessidade de reintegração social do agente, com o limite inultrapassável da medida da culpa.
Tutela dos bens jurídicos e reinserção do agente são pois, e em síntese, as finalidades da aplicação de uma pena que não poderá nunca ultrapassar a medida da culpa.
Quanto à prevenção geral positiva ou de reintegração, ensina o Prof. Figueiredo Dias que, há decerto, uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias; medida, pois, que não pode ser excedida em nome de considerações de qualquer tipo. Mas, abaixo desse ponto óptimo, outros existem em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se sem que esta perca a sua função primordial; até se alcançar um limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar (ob. cit., 229).
Entre aqueles, ponto óptimo e o ponto do limiar mínimo, devem actuar os pontos de vista de prevenção especial positiva ou de socialização, sendo estes quem vão concretizar a medida da pena.
Em qualquer caso, como se disse, a culpa constitui sempre o limite inultrapassável das considerações preventivas, sejam de prevenção geral [positiva ou negativa], sejam de prevenção especial [positiva ou negativa].
1.2. O critério de escolha e de substituição da pena encontra-se previsto no art. 70º do C. Penal.
Quando ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal deve dar preferência a esta última sempre que, verificados os respectivos pressupostos, ela realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
São as finalidades preventivas, a prevenção geral e a prevenção especial, e não as finalidades de compensação da culpa, que impõem a preferência, no caso concreto, pela pena não privativa da liberdade. A culpa, que no processo de determinação da pena, constitui como vimos, o limite inultrapassável do quantum daquela, nada tem a ver com o prévio problema da escolha da espécie de pena (cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit. 331).
1.3. A moldura penal abstracta de cada crime é fixada pelo legislador, tendo em conta todas as formas e graus de cometimento do facto típico, fazendo corresponder aos de menor gravidade o limite mínimo da pena e aos de maior gravidade o limite máximo da pena.
A determinação da medida concreta da pena, balizada por estes limites, é então feita em função da culpa do agente e das necessidades de prevenção, devendo o tribunal atender, para o efeito, a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal).
Entre outras circunstâncias, deve o tribunal atender ao grau de ilicitude do facto, ao seu modo de execução, à gravidade das suas consequências, ao grau de violação dos deveres impostos ao agente, à intensidade do dolo ou da negligência, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, à motivação do agente, às condições pessoais e económicas do agente, à conduta anterior e posterior ao facto, e à falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).
2. Definidos os critérios legais que o juiz, nas palavras do Mestre que vimos citando, deve traduzir numa certa quantidade de pena (Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., 195), vejamos agora se o tribunal colectivo os observou no acórdão recorrido, dando-se desde já por assente que o arguido cometeu os crimes pelos quais foi condenado, condenação que este, aliás, não contesta.
2.1. O crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1 e 3, do C. Penal, é punido com prisão de 6 meses a 5 anos ou com pena de multa, de 60 a 600 dias.
O tribunal colectivo optou pela aplicação da pena de prisão, justificando a opção com o directo relacionamento do crime com a prática do crime de burla.
Como resulta dos factos provados, a falsificação do cheque foi o crime meio relativamente à burla, que foi o crime fim. Com efeito, é através da falsificação que o arguido obtém o resultado pretendido, o enriquecimento ilegítimo.
Atento o valor titulado pelo cheque e a sua ligação àquele outro ilícito, é correcta a opção efectuada, que o arguido, aliás, não questiona.
2.2. Na determinação da medida concreta das penas parcelares o tribunal colectivo atendeu e considerou:
- O dolo directo do arguido em todos os tipos preenchidos;
- O prejuízo concreto causado pelos crimes de burla e de abuso de confiança por excederem em muito o limite a partir do qual opera a qualificativa;
- A ilicitude elevada devido à confiança depositada no arguido, atentas as suas funções de mediador, pelo ofendido;
- Os antecedentes criminais do arguido, sem assumirem especial relevo;
- A sua confissão parcial;
- A inserção social e familiar do arguido.
Apesar do alegado pelo arguido – na resposta ao parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto – não resulta dos factos provados constantes do acórdão recorrido que a sua conduta delituosa tenha sido de alguma forma determinada pelo comportamento do ofendido que apenas teria pretendido obter um lucro fácil e uma remuneração inusitada para as suas aplicações de capital, como não resulta dos mesmos factos provados que o seu arrependimento se manifesta de eloquentemente no facto de ir indemnizando as vítimas, tendo já feito entrega de dezenas de milhões de escudos.
E assim, é efectivamente elevado o grau de ilicitude dos factos praticados em especial no que respeita aos crimes de burla e de abuso de confiança, posto que, como bem se refere no acórdão recorrido, os montantes em questão em muito ultrapassam o valor consideravelmente elevado [2.400.000$00 para os factos de 1997 e 2.800.000$00 para os factos de 1998] que determina a qualificação das condutas, especialmente no que concerne à burla. Também as consequências das condutas do arguido são expressivas, estando em questão danos de 24.796.500$00 e de 13.000.000$00.
É também certo ter o arguido agido com dolo directo que, face às circunstâncias das condutas apuradas, é também intenso.
Apesar de ter sofrido já uma condenação em pena de multa, ela respeita à prática de um crime de condução ilegal em data posterior às dos factos em apreço, não assumindo pois, particular relevo no que respeita à aferição das necessidades de prevenção especial.
Acresce que o arguido exerce uma actividade profissional regular, tem vida familiar estabelecida e, antes dos factos, era profissional e socialmente considerado.
Há ainda a considerar a confissão, ainda que parcial, na qual, como consta da fundamentação de facto do acórdão, o arguido admitiu parte significativa da sua apurada conduta.
Finalmente, deverá de alguma forma ser considerado o tempo já decorrido desde a prática dos factos.
Tendo em conta o que antecede, se entendemos, por um lado, que as penas concretas peticionadas pelo Digno Magistrado do Ministério Público recorrente [todas situadas acima do ponto médio das molduras penais abstractas], se mostram excessivas, atentas as exigências de socialização, também entendemos, por outro, que as penas fixadas pelo tribunal colectivo, excepção feita à determinada para o crime de falsificação, se revelam benévolas e por isso, insusceptíveis de darem adequada resposta às necessidades de prevenção geral positiva.
Assim:
- Relativamente ao crime de falsificação de documento, apesar de 1 ano de prisão se situar bem abaixo do quarto inferior da moldura penal abstracta, entendemos que ela é de manter precisamente porque, como dissemos já, se trata de crime meio, relativamente ao crime fim, este mais grave e portanto, a punir mais severamente;
- Quanto ao crime de burla qualificada, o crime fim, entendemos que o equilíbrio entre os pontos, óptimo e do limiar mínimo por um lado, e as exigências de prevenção especial positiva, por outro, suportável pela culpa do arguido, se encontra ligeiramente acima do primeiro quarto da moldura penal abstracta, isto é, nos 3 anos e 8 meses de prisão;
- Quanto ao crime de abuso de confiança, aquele mesmo equilíbrio encontra-se já um pouco abaixo do primeiro quarto da moldura penal abstracta [atento o menor valor da quantia em questão], isto é, nos 2 anos e 4 meses de prisão.
2.3. Determinadas as penas parcelares, cumpre agora efectuar o respectivo cúmulo, nos termos preceituados no art. 77º, do C. Penal.
Para tanto há que atender, conjuntamente, aos factos e à personalidade do arguido, tendo a pena aplicável, como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas – no caso, 8 anos de prisão – e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas – no caso, 3 anos e 8 meses de prisão (art. 77º, nºs 1 e 2, do C. Penal).
Quanto aos factos, com remissão para o que atrás se deixou dito quanto à determinação da medida concreta das penas parcelares, concluímos que, no seu conjunto, exprimem condutas relacionadas, quer relativamente ao mesmo propósito [crimes de falsificação e burla], quer comungando a mesma situação global envolvente [relação mediador/segurado].
Quanto ao mais, não resultam dos factos provados que constam do acórdão recorrido, elementos que permitam, sem mais, concluir que a personalidade do arguido revela já uma propensão para a prática de crimes contra o património, pelo que a acumulação de infracções não deverá constituir um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta (Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., 291).
Assim, tendo em conta as exigências de prevenção e de culpa, atenta a moldura penal aplicável ao concurso, considera-se adequada uma pena única próxima do primeiro quarto da moldura penal abstracta, fixando-se assim a mesma em 4 anos e 8 meses de prisão.
Da suspensão da execução da pena única de prisão
3. Pretende o Digno Magistrado do Ministério Público recorrente que a suspensão da execução da pena única de prisão decretada pelo tribunal colectivo viola o disposto nos arts. 40º, nº 1, e 50º, nº 1, do C. Penal, pugnando por uma pena de prisão efectiva.
Como vimos, o tribunal colectivo condenou o arguido, em cúmulo das penas parcelares de 1 ano de prisão, 2 anos e 10 meses de prisão e 1 ano e 10 meses de prisão, na pena única de 3 anos de prisão, cuja execução suspendeu, pelo período de três anos.
E justificou a suspensão da execução desta pena única da seguinte forma: “Efectuando um juízo global de prevenção especial de ressocialização, considerando tão somente o facto de o arguido estar social e familiarmente inserido, estando também a reiniciar a sua actividade de mediador (!), tendo ainda em consideração o juízo de prognose que foi efectuado no âmbito dos autos que ainda estão em recurso, entende-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Assim, suspende-se a pena pelo período de três anos.”.
Contrariamente ao alegado pelo Digno Magistrado recorrente, não foi ao nível da determinação das penas parcelares e da pena única resultante do cúmulo, que o tribunal colectivo se apoiou, também, na decisão proferida num outro processo relativo ao arguido [processo comum colectivo nº 451/98.9JAAVR], mas ao nível da suspensão da execução daquela pena única.
Seja como for, não pode deixar de se reconhecer que razão assiste ao Digno Magistrado recorrente, desde logo porque, como consta do ponto 33 dos factos provados do acórdão recorrido, a decisão proferida naquele outro processo não estava transitada em julgado, pelo que não haveria a considerar qualquer juízo de prognose que nele tenha sido efectuado e cujos termos, aliás, se desconhecem.
Os factos pelos quais foi o arguido condenado foram praticados, de acordo com a factualidade provada que consta do acórdão recorrido, em 1997 e 1998.
A pena única atrás fixada, porque excede os 3 anos de prisão, não poderia, na redacção do art. 50º, do C. Penal, em vigor na data da prática dos factos, ser suspensa na sua execução.
Porém, a redacção dada ao mesmo artigo pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, abre agora tal possibilidade.
Desta forma, há que dar cumprimento ao disposto no art. 2º, nº 4, do C. Penal, verificando se, face à Lei Nova, deve a pena única manter-se suspensa.
3.1. O art. 50º, nº 1 do C. Penal, em vigor na data da prática dos factos estabelece como pressuposto formal da aplicação do regime jurídico da suspensão da execução da pena de prisão, que a medida desta aplicada ao agente, não exceda três anos. Na redacção actual, este limite passou para cinco anos.
Estabelece o artigo citado como pressuposto material da aplicação do mesmo regime [em ambas as redacções], a possibilidade de o tribunal concluir pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente, no sentido de que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça da prisão, acompanhadas ou não da imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova, realizarão de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição (art. 50º, nºs 1 e 2, do C. Penal).
Temos assim, que a suspensão da execução da pena de prisão pode ser simples, com a imposição de deveres, com a imposição de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova, podendo haver lugar à sua imposição cumulativa (art. 50º, nºs 2 e 3, do C. Penal).
Quanto aos fins visados pelo instituto, ensina o Prof. Figueiredo Dias que, “A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos – «metanóia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. (…). Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência».” (ob. cit., 343).
Como atrás vimos, as finalidades da pena são, a tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade (art. 40º, nº 1 do C. Penal).
Na base do instituto da suspensão da execução da pena de prisão encontram-se portanto, razões de prevenção, geral e especial, e não considerações relativas à culpa (como sucede aliás, com todas as operações de escolha das penas de substituição).
Mas os objectivos de prevenção especial, de reinserção social do agente, têm sempre como limite o conteúdo mínimo da prevenção geral de integração. Ensina o Prof. Figueiredo Dias, quanto a este aspecto e relativamente à prevenção geral que, “Ela deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz das exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.” (ob. cit., 333).
O juízo de prognose a realizar pelo tribunal, peça fundamental do funcionamento do instituto, parte da análise das circunstâncias do caso concreto – das condições de vida e conduta anterior e posterior do agente, conjugadas e relacionadas com a sua revelada personalidade –, operação da qual resultará como provável, ou não, que o agente sentirá a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão (com ou sem imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova), para concluir ou não, pela viabilidade da sua socialização em liberdade.
Na formulação deste juízo o tribunal deverá correr um risco prudente pois que a prognose é apenas uma previsão, uma conjectura e não uma certeza. Por isso, se tem dúvidas sérias sobre a capacidade do agente para interiorizar a oportunidade de ressocialização que a suspensão, a prognose deve ser negativa (Cons. Leal Henriques e Simas Santos, C. Penal Anotado, I Vol., 2ª Ed., 444). Se o julgador duvida séria e fundadamente, da capacidade do agente de não repetir a prática de crimes se deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada (cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., 344).
Posto isto.
3.2. Resulta dos factos provados que o arguido vive com uma companheira e retomou a actividade profissional de medidor.
Não lhe são conhecidos antecedentes criminais relativamente às datas da prática dos factos objecto do processo, e a condenação que sofreu por factos posteriores àqueles foi-o por crime de condução ilegal [por não ter transitado, não releva a pena aplicada no processo comum colectivo nº 451/98.9JAAVR]. O arguido, antes da prática dos factos, era um cidadão respeitado no meio a que pertencia, e considerado um bom profissional.
Como é óbvio, aproveitou a confiança que nele depositou o ofendido, como aproveitou a confiança que nele depositava a Alico, para levar a termo os seus propósitos.
Os factos provados, como atrás referimos, não revelam uma tendência para uma carreira criminosa, sendo certo que a confissão parcial, com relativo relevo, indicia a existência de uma personalidade ainda sensível aos valores protegidos pelas normas penais e temente das respectivas sanções.
Assim, admitimos que o arguido sentirá a ameaça da pena de prisão como uma solene advertência que constituirá um estímulo suficiente para o afastar da prática de novos comportamentos típicos, desta forma se acautelando a sua eventual reincidência. Mas, por outro lado, as exigências de prevenção geral positiva só ficarão devidamente asseguradas se a sanção contiver ainda uma componente que especialmente faça sentir ao arguido a necessidade de reparar o mal causado pelos crimes que praticou.
Consideramos portanto, que a simples censura do facto e ameaça da prisão asseguram adequada e suficientemente as finalidades da punição, desde que o arguido proceda à entrega ao ofendido das quantias de que, ilegitimamente se apoderou, e que totalizam [24.796.500$00 + 13.000.000$00 =] 37.796.500$00, no prazo de trinta meses, devendo por isso a pena única 4 anos e 8 meses de prisão ser suspensa por idêntico período, subordinada ao cumprimento de tal condição, e ainda acompanhada de regime de prova, nos termos do nº 3, do art. 53º, do C. Penal.
3.3. Em conclusão, porque a Lei Nova é, em concreto, mais favorável ao arguido, nos termos do art. 2º, nº 4, do C. Penal, por ela deve ser punido continuando a beneficiar, por isso, do instituto da suspensão da execução da pena de prisão.
III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder parcial provimento ao recurso.
Consequentemente, decidem:
A) 1. Manter a condenação do arguido …, pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nºs 1 e 3, do C. Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão.
2. Condenar o arguido António Manuel dos Santos Lancha, pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217º, nº 1 e 218º, nº 2, a), do C. Penal, na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão.
3. Condenar o arguido …, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, b), do C. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
4. Em cúmulo, condenar o arguido … na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão.
5. Suspender a execução da pena única de prisão pelo período de quatro anos e oito meses, acompanhada de regime de prova, e sob condição de o arguido, no prazo de trinta meses a contar do trânsito, proceder à entrega ao ofendido … da quantia de 37.796.500$00, a que equivalem € 188.528,14 (cento e oitenta e oito mil quinhentos e vinte e oito euros e catorze cêntimos).
B) Confirmar, quanto ao mais, o acórdão recorrido.