Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3840/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. OLIVEIRA MENDES
Descritores: NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
Data do Acordão: 01/21/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ART.º 137.º N.º 2 DO C.P.
Sumário:

I – O concorrente comportamento culposo da vítima não deve ser considerado para efeitos de determinação da intensidade ou grau de negligência, ou seja, para qualificação daquela simples ou grosseira.
II – A negligência grosseira deve ser aferida não só a nível da culpa, mas também do ilícito, posto que o comportamento do agente deve ser visto e analisado, por um lado, através da atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido do agente e, por outro lado, a partir da perigosidade do próprio comportamento e da probabilidade do resultado à luz da conduta adoptada.
III – Só o comportamento particularmente censurável, postergador de cuidados básicos ou revelador de elevado grau de irreflexão ou insensatez e gerador de perigo quase certo, deve ser tido como integrador da negligência grosseira.
Decisão Texto Integral:

Recurso n.º 3840/03

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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.
No processo comum singular n.º 180/00, do 3º Juízo da comarca da A, após a realização do contraditório foi proferida sentença quer condenou o arguido B, devidamente identificado, como autor material de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punível pelo art.137º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão suspensa por 2 anos, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses.
Mais foi o arguido condenado na coima de € 150 pela prática da contra-ordenação prevista e punível pelo art.25º, n.ºs 1, als.f) e g) e 2, do Código da Estrada.
Interpôs recurso o arguido, sendo do seguinte teor a parte conclusiva da motivação apresentada:
1. Um ciclista, que já de noite e mesmo ao lusco-fusco, conduz uma bicicleta, sem luz e longe da berma, segurando um chapéu-de-chuva aberto, está a violar os artigos 88º, n.º 2 e 91º, n.º1, al.a), do Código da Estrada.
2. Um tal ciclista tem culpa num acidente que o vitima, o que não pode deixar de ser atendido na decisão que condena o condutor do automóvel que, com o lado lateral do carro, o embate na retaguarda.
3. Não se pode considerar homicídio por negligência, na forma grosseira, quando o condutor do velocípede contribui grandemente para a ocorrência do acidente.
4. Nestas circunstâncias o crime é o previsto no artigo 137º, n.º 1 e não o previsto no n.º 2.
5. As penas aplicadas estão exageradas e violam claramente o artigo 70º, do Código Penal.
6. A decisão recorrida violou, assim, os artigos 69º, 70º, 137º, n.º 2, do Código Penal e 25º, n.º 2, do Código da Estrada.
7. Só reduzindo a pena de prisão aplicada para 6 meses, suspendendo-a por 2 anos, a coima para € 50 e a inibição de conduzir para 3 meses, será uma forma equilibrada de fazer justiça.
O recurso foi admitido.
Responderam Ministério Público e assistente C, sendo do seguinte teor as conclusões extraídas pelo Digna Procurada Adjunta da respectiva contra-motivação:
1. O arguido alega inocência ou culpa concorrente da vítima D na produção do acidente por falta do órgão de iluminação à retaguarda no velocípede que tripulava, conduzir só com uma mão e afastado da berma e apela para que a sua conduta seja configurada apenas como crime de homicídio por negligência simples e não qualificada.
2. Apesar de não possuir luz vermelha à retaguarda como preceitua o art.33º, do Regulamento do Código da Estrada, o reflector que o velocípede possuía permitia, pelas suas características, uma grau de reflexão superior aos elementos envolventes e uma visibilidade, naquelas condições meteorológicas, entre 15/30 metros.
3. Uma vez que a vítima conduzia a uma distância da berma que apenas lhe permitia afastar-se da água da chuva que corria junto ao lancil mostra-se cumprida a regra contida no art.90º, n.º 2, do Código da Estrada, segundo a qual o trânsito dos velocípedes deve efectuar-se o mais próximo possível das bermas ou passeios.
4. Apesar de o condutor D segurar o guiador apenas com uma mão, em violação do disposto no arty.90º, n.º1, al.a), do Código da Estrada, não resultou provado que este facto tivesse dado causa, por qualquer forma, à produção do acidente.
5. O acidente ocorreu, como bem concluiu a Mm.ª Juíza do tribunal “a quo” porque o arguido B conduzia a uma velocidade não determinada mas claramente excessiva para a hora e condições atmosféricas (lusco-fusco e intensa chuva) que não lhe permitiu avistar o velocípede a uma distância que lhe desse a possibilidade de se desviar o necessário para evitar a colisão.
6. Esta conduta que é considerada grave pela legislação estrada deve, pelos fundamentos expendidos na douta sentença, integrar a prática de um crime de homicídio por negligência grosseira.
7. A sentença ora recorrida não merece, quanto a nós, qualquer reparo.
Por sua vez, a assistente formulou as seguintes conclusões:
1. O julgamento realizou-se sem a documentação da respectiva audiência.
2. Os sujeitos processuais – incluindo o arguido –, renunciaram, assim, ao recurso sobre a matéria de facto (artigos 428º e 431º, do Código de Processo Penal), pelo que tal matéria não pode ser alterada.
3. O recurso teria, portanto, de versar sobre matéria de direito e/ou fundamentar-se em algum dos vícios previstos no artigo 410º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, cumprindo os requisitos impostos pelo n.º 2, do artigo 412º, do mesmo Código.
4. Na motivação e correspondentes conclusões, nenhum destes vícios foi fundadamente invocado. Nem poderia sê-lo, uma vez que a sentença está estruturada de forma exemplar.
5. O arguido limitou-se a invocar a violação dos artigos 69º, 70º e 137º, n.º 2, do Código Penal, e 25º, n.º 2, do Código da Estrada, com fundamento no facto de, segundo ele, o Tribunal não ter considerado que o comportamento do ofendido contribuiu grandemente para a ocorrência do acidente – é este o fundamento do recurso.

6. O mesmo não pode obter provimento.
7. Nenhum dos factos que ficaram provados permite concluir pela responsabilidade do ofendido na produção do acidente.
8. Não se descortina que o Tribunal a quo tenha violado os citados normativos.
9. A dosimetria da pena estabelecida pelo Tribunal a quo respeita adequada e equilibradamente os princípios da prevenção geral e especial que um homicídio por negligência grosseira, no exercício da condução de veículo automóvel, exige.
10. A decisão recorrida deve ser mantida na íntegra.
O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual manifesta dúvidas sobre a correcção do enquadramento jurídico-penal dos factos provados, com o fundamento de que o comportamento estradal do arguido, conquanto negligente, não se revela temerário, e expressa o entendimento de que, face à redacção dada ao art.69º, do Código Penal, pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, deixou de ser sancionável com a pena acessória de proibição de conduzir a prática de crimes no exercício da condução com grave violação das regras de trânsito, razão pela qual, a seu ver, deve a pena acessória de proibição de conduzir aplicada ao arguido ser substituída pela sanção de inibição de conduzir prevista no Código da Estrada, aplicável em função da contra-ordenação que aquele cometeu e pela qual foi condenado.
Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre decidir.
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Começando por delimitar o objecto do recurso, o qual nos é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, verifica-se serem duas as questões colocadas à nossa apreciação e julgamento:
a) Incorrecta qualificação dos factos provados, os quais, na opinião do recorrente, integram o crime de homicídio por negligência simples previsto e punível pelo art.137º, n.º1, do Código Penal;
b) Desajustada dosimetria das penas e sanções aplicadas, as quais, no entendimento do recorrente, devem ser reduzidas para 6 meses de prisão suspensa por 2 anos, 50 euros e 3 meses de proibição de conduzir.
Para além destas questões cumprirá conhecer também a suscitada pelo Exm.º Procurador-Geral Adjunto relativa à pena acessória de proibição de conduzir aplicada ao arguido/recorrente, bem como questão que oficiosamente se coloca, qual seja a da prescrição do procedimento contra-ordenacional.
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É do seguinte teor a decisão proferida sobre a matéria de facto (factos provados):
«1. No dia 30.11.2000, o arguido conduzia o seu veículo ligeiro de passageiros pela ER 349 no sentido Vieira de Leiria - Praia da Vieira.
2. Conduzia utilizando as luzes do seu veículo na posição de médios; chovia intensamente e junto às bermas havia grande quantidade de água.
3. Ao chegar ao km 1,100, o que aconteceu entre as 17h30m e as 17h 45m no dia referido, o arguido foi colidir com a parte lateral direita do seu veículo na roda traseira do velocípede de D que seguia no seu sentido de marcha.
4. Em consequência do embate, o Sr. D foi projectado para o solo e sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia de fls.13 a 16, que aqui se dá por integralmente reproduzido, lesões essas – traumáticas crânio-meningo-encefálicas e raquio-meningo-medulares dorsais – que foram causa directa e necessária da sua morte.
5. O velocípede encontrava-se equipado, à data do acidente, com reflector à retaguarda com as características que constam do relatório de fls125 a 128, relatório este devidamente ilustrado com fotografias e que aqui se dá por reproduzido, designadamente tinha 10 cm de largura e estava montado à retaguarda, e apresentava, à data da realização da perícia grau de reflexão superior aos seus elementos envolventes, possuindo marcas de um embate violento na zona posterior do velocípede.
6. A vítima conduzia afastada do lancil que delimita a faixa de rodagem a uma distância que lhe permitia afastar-se da água ali existente e segurava um guarda-chuva aberto, de grandes dimensões e cor azul e branca.
7. No momento do acidente não havia trânsito em sentido contrário.
8. A via, no local, formava uma recta e media 8,20 metros de largura.
9. O acidente ficou a dever-se ao facto de o arguido circular a uma velocidade que, atenta sobretudo, as condições meteorológicas e ambientais, lhe não permitiram avistar a vítima a tempo de se imobilizar ou dela se desviar, conforme precisasse ou não de sair da sua faixa de rodagem, tendo em conta a eventualidade de entretanto surgir trânsito em sentido contrário.

10. Em 24.04.2002 foi condenado em pena de admoestação pela prática de um crime de desobediência praticado em 28.03.2000.
11. É viúvo, explora juntamente com dois filhos, o restaurante “Lismar” na Praia da Vieira. Tem a 4ª classe.
12. O falecido era primo do arguido e este sabia que àquela hora saíam os empregados da Fábrica de Limas Tomé Feteira, onde aquele trabalhava, para, entre outros destinos, a Praia da Vieira, sentido de marcha que ambos levavam.
13. O arguido conhecia bem a estrada dado que sempre viveu ali.
14. O arguido só se apercebeu do ciclista, à sua frente, quando estava muito próximo do mesmo.
15. O arguido ficou desgostoso com o acontecido.
16. É pessoa bem conceituada».
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Qualificação Jurídica dos Factos
Entende o recorrente que os factos provados não integram comportamento negligente grosseiro da sua parte, mas sim negligente tout court, uma vez que a própria vítima também contribuiu, em medida significativa, para a produção do acidente, ao conduzir com um guarda-chuva aberto na mão e ao circular sem iluminação e longe da berma da estrada, pelo que devia ter sido condenado como autor material do crime de homicídio por negligência simples, previsto e punível pelo art.137º,n.º 1, do Código Penal.
Primeira observação a fazer é a de que o concorrente comportamento culposo da vítima, não deve ser considerado para efeitos de determinação da intensidade ou grau de negligência do recorrente, ou seja, para a qualificação daquela como simples ou grosseira.
Com efeito, em casos ou situações como a dos autos – acidente rodoviário entre duas viaturas em marcha – sendo autónomos e independentes um do outro os comportamentos dos respectivos condutores, não deve o grau de culpa ou de negligência de qualquer um deles ser aferido em função do comportamento do outro, salvo casos de excepção, muito embora possam ambos concorrer, em maior ou menor medida para a produção do evento.
Explicitando.
Se alguém conduz a 250 km/hora ao passar por uma escola, devidamente sinalizada, é evidente que o seu comportamento negligente, ao atropelar uma criança que atravessa, distraída, a passadeira ali existente, não pode nem deve ser mitigado em termos de graduação da própria negligência face ao comportamento da vítima, pese embora o tribunal possa e deva tomar em consideração a eventual concorrência de culpas na formulação do juízo sobre a (repartição de) responsabilidade na produção do evento e na determinação da pena a aplicar.
Segunda observação a fazer é a de que esta forma qualificada da culpa negligente deve ser aferida não só a nível da culpa, mas também do ilícito, posto que o comportamento do agente deve ser visto e analisado, por um lado, através da atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido do agente e, por outro lado, a partir da perigosidade do próprio comportamento e da probabilidade de verificação do resultado à luz da conduta adoptada ( - Cf. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal (2001), 380/381.).
Como escrevemos no acórdão desta Relação de 99.01.13, publicado na CJ, XXIV, I, 43, o art.137º, n.º 2, do Código Penal, ao aludir a negligência grosseira pretende abranger aqueles casos em que, de forma mais flagrante e notória, se omitem os cuidados mais elementares (básicos) que devem ser observados, ou aquelas situações em que o agente se comporta com elevado grau de imprudência, revelando grande irreflexão e insensatez.
Por outro lado, como no referido acórdão também consignámos, na determinação desta forma qualificada da culpa negligente, consabido que a negligência consiste na violação de um dever objectivo de cuidado, deverá averiguar-se a medida da divergência entre a conduta do agente e a conduta exigível e que devia ter sido assumida, partindo das regras de cuidado que devem ser tomadas em cada caso concreto. É evidente que quanto maior for a medida da divergência mais facilmente se poderá concluir pela ocorrência de negligência grosseira.
Por outro lado, ainda, em sede de verificação do grau de divergência, há que atender, fundamentalmente, a um critério objectivo, caldeado por um critério subjectivo.
Num primeiro momento tratar-se-á de averiguar em que medida o comportamento concretamente assumido se afasta dos cuidados e diligências exigíveis. Num segundo momento dever-se-á verificar a causa ou motivo de índole subjectiva (se para tanto o julgador dispuser de elementos) que conduziu o agente à omissão daqueles deveres de cuidado e de diligência ( - Neste preciso sentido vem-se pronunciando a doutrina italiana, conquanto a questão seja analisada numa óptica distinta, designadamente a propósito da valoração da gravidade da culpa para efeitos da determinação da medida da pena – G. Fiandaca/E. Musco, Diritto Penale Parte Generale (3ª edição – 1995), 512. ).
Exemplificando: um condutor de um autocarro no fim do seu turno de trabalho, excede a velocidade (circulando a 120 km/hora, sendo limite de velocidade permitido 80) com o objectivo de chegar a casa mais cedo, já que se sente doente, muito embora sem gravidade. Devido ao excesso de velocidade não se apercebe de um sinal de “stop” e provoca um acidente.
Aplicando o critério objectivo, o julgador deverá considerar a sensível divergência entre o limite de velocidade prescrito e a velocidade concretamente imprimida.
Aplicando o critério subjectivo, o julgador deverá mitigar o juízo de censura, atenta a razão que levou o condutor a violar o dever de cuidado que lhe era exigível.
Suponha-se agora que aquele mesmo condutor excedeu o limite de velocidade com o objectivo de “impressionar” uma pessoa que transportava na viatura.
Parece evidente neste caso, por aplicação do critério subjectivo, que o julgador deverá acentuar o juízo de censura, face ao motivo fútil que se acha subjacente à violação do dever de cuidado.
Suponha-se, ainda, que aquele mesmo condutor excedeu o limite de velocidade com ausência de qualquer motivação especial. Neste caso, sendo neutra a motivação que subjaz à violação do dever de cuidado, não haverá razão para mitigar ou agravar o juízo de censura, pelo que o grau de divergência terá de ser aferido tão só com recurso ao critério objectivo.
Feitas estas considerações, chegou o momento de centrar a nossa atenção no concreto dos autos.
Do exame do quadro fáctico constante da decisão proferida sobre a matéria de facto, resulta que o recorrente circulava pela ER 349, cerca das 17h30m/17h45m, no sentido Vieira de Leiria - Praia da Vieira, com os faróis do seu veículo ligeiro de passageiros em posição de médios, sendo que à sua frente seguia a vítima E conduzindo um velocípede afastada do lancil que delimita a faixa de rodagem a uma distância que lhe permitia afastar-se da água ali existente, segurando um guarda-chuva aberto, de grandes dimensões e cor azul e branca.
A via no local forma uma recta e tem 8,20 m de largura, sendo que na ocasião não havia trânsito em sentido contrário, chovia intensamente e junto às bermas havia grande quantidade de água.
O veículo conduzido pelo recorrente colidiu com a sua parte lateral direita na roda traseira do velocípede tripulado pelo E.
Mais resulta do exame da decisão de facto proferida ali se haver consignado que o acidente ficou a dever-se ao facto de o arguido circular a uma velocidade que, atentas sobretudo, as condições meteorológicas e ambientais, lhe não permitiram avistar a vítima a tempo de se imobilizar ou dela se desviar, conforme precisasse ou não de sair da sua faixa de rodagem, tendo em conta a eventualidade de entretanto surgir trânsito em sentido contrário.
Perante este quadro factual, quadro que evidentemente teremos de aceitar, conquanto algo conclusivo, face à imodificabilidade da decisão de facto (art.431º, do Código de Processo Penal), há que considerar que na base da culpa do recorrente, culpa que nem sequer este põe em causa, encontra-se o facto de o mesmo não ter adequado/regulado a velocidade que imprimia ao veículo que conduzia às condições meteorológicas e ambientais, isto é, não tomou na devida conta a circunstância de chover intensamente e o facto de já ser quase noite – lusco-fusco –, o que conduziu a que não tivesse avistado a vítima a distância que lhe permitisse evitar a colisão que veio a ocorrer.
É evidente que a violação de regra de trânsito qualificada como contra-ordenação grave, como é o caso dos autos – arts.24º, n.º 1, 25º, n.º 1, al.f) e 146º, al.d), do Código da Estrada vigente à data dos factos e do Código da Estrada ora em vigor (redacção do Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro) –, não basta, só por si, para caracterizar o comportamento negligente daí resultante como qualificado ( - Cf. Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários (1996), 51/52, o qual defende que nem mesmo as contra-ordenações qualificadas no Código da Estrada de muito graves correspondem à culpa grosseira nem devem servir de critério para qualificar de grosseira a violação das regras de circulação rodoviária.).
Com efeito, como já dito ficou, só o comportamento particularmente censurável, postergador de cuidados básicos ou revelador de elevado grau de irreflexão ou insensatez e gerador de perigo quase certo, deve ser tido como integrador da negligência grosseira.
Ora, no caso vertente não dispomos de elementos que nos permitam concluir que o recorrente se comportou de forma particularmente censurável, pois que desconhecemos a exacta medida da divergência entre a conduta daquele e a conduta exigível, isto é, apenas sabemos que aquele violou as regras atinentes aos princípios gerais da velocidade consagrados no Código da Estrada, sem que saibamos a medida em que postergou aquelas, tanto mais que não se apurou a velocidade a que o mesmo circulava, sendo certo que o legislador ao criar um tipo qualificado de homicídio negligente, não teve em vista abranger comportamentos que, conquanto negligentes, não constituem um grau essencialmente aumentado ou expandido de negligência ( - Cf. Figueiredo Dias, ibidem, ibidem.).
Assim sendo, há que concluir que ao recorrente apenas é imputável o crime de homicídio por negligência do art.137º, n.º 1, do Código Penal, crime pelo qual ora irá ser censurado, sem necessidade de efectuação da comunicação a que se refere o art.358º, n.º 1, do Código de Processo Penal, posto que é o próprio recorrente que em recurso pede que esta Relação proceda a tal qualificação dos factos provados – art.358º, n.º 2.
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Pena Acessória, Prescrição do Procedimento Contra-Ordenacional e Dosimetria das Sanções Cominadas
Começando por conhecer a questão suscitada pelo Exm.º Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, dir-se-á.
Com a revisão operada pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, a al. a) do art.69º, do Código Penal, que previa a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados no caso de condenação (punição) por crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras de trânsito rodoviário, foi alterada, passando a prever a cominação daquela pena acessória nos casos de condenação (punição) por crime previsto nos arts.291º (condução perigosa de veículo rodoviário) ou 292º, (condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas).
Face a esta alteração tem vindo esta Relação a decidir, unanimemente, que após a entrada em vigor da Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, deixou de ser aplicável a pena acessória de proibição de conduzir por crime cometido no exercício da condução de veículos motorizados com grave violação das regras de trânsito rodoviário, passando aquela pena acessória a ser aplicável, apenas, por crime previsto no art.291º (condução perigosa de veículo rodoviário) ou no art.292º (condução de veículo em estado de embriaguez) ( - Cf. os acs. de 02.01.23, 02.04.17 e 03.10.01, o primeiro e o segundo publicados nas CJ, XXVII, I, 43 e XXVII, II, 57 e o último (com fundamentação mais cuidada) proferido no Recurso n.º 2053/03.).
No caso dos autos o recorrente foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, como expressamente resulta do texto da sentença impugnada, por haver praticado um crime de homicídio negligente no exercício da condução de um veículo motorizado com grave violação das regras de trânsito rodoviário, o que significa que foi aplicada a lei vigente à data da prática dos factos objecto do processo.
Consabido que a lei substantiva penal – art.2º, n.º 4, do Código Penal – no cumprimento do princípio constitucional da retroactividade da lei penal mais favorável – art.29º, n.º 4, da Constituição Política – manda aplicar, no caso de sucessão de leis, a lei ou o regime mais favorável ao agente, certo é que não tendo sido o recorrente condenado por qualquer um dos crimes atrás referidos (condução perigosa de veículo e condução em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas) nem se verificando, obviamente, qualquer uma das situações contempladas nas demais alíneas do n.º1 do art.69º (texto vigente), não deveria ter sido punido com a pena acessória em apreço.
Entende, porém, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto que deve ser aplicada ao recorrente a sanção acessória de inibição de conduzir prevista no Código da Estrada, em função da contra-ordenação grave que cometeu.
Vejamos se assim é ou não e, simultaneamente, conheçamos a questão que oficiosamente nos colocámos – prescrição do procedimento contra-ordenacional.
A contra-ordenação pela qual o recorrente foi condenado é punível com coima de montante inferior a € 2 493,99 – art.25º, do Código da Estrada –, pelo que o respectivo procedimento contra-ordenacional extingue-se por efeito da prescrição logo que decorrido um ano sobre a sua prática – arts.3º, n.º 2 e 27º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, o último na redacção dada pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro.
Por outro lado, certo é que a suspensão da prescrição do procedimento contra-ordenacional não pode ultrapassar seis meses, a menos que estejamos perante situação em que o procedimento não possa legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal – art.27º-A daquele diploma legal –, o que não é o caso dos autos.
Por outro lado, ainda, estabelece o art.28º, n.º 3, do referido diploma legal, que a prescrição do procedimento tem sempre lugar, isto é, independentemente das interrupções ocorrentes, quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição acrescido de metade.
Deste modo, tendo a contra-ordenação sido praticada ou consumada no dia 30 de Novembro de 2000, certo é que o respectivo procedimento se encontra há muito prescrito, o que ora se declara, a significar que não pode ser aplicada ao recorrente, quer a coima correspondente quer a sanção de inibição de conduzir prevista no Código da Estrada – art.139º, n.ºs 1 e 2.
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Decidida esta questão resta apreciar a relativa à medida da pena.
Tendo sido aquele condenado pelo crime de homicídio por negligência grosseira, crime que agora se convolou para o crime de homicídio por negligência simples, há que determinar a respectiva pena, tendo em atenção a proibição da reformatio in pejus – art.409º, do Código de Processo Penal.
Ao crime corresponde a pena de prisão até 3 anos ou pena de multa.
Como é sabido, a escolha da pena (privativa ou não privativa da liberdade) depende unicamente de considerações de natureza preventiva, geral e especial, posto que a opção a tomar em face do texto legal – art.70º, do Código Penal – tem em vista a realização das finalidades da punição, isto é, a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – art.40º, n.º1, daquele diploma legal –, sendo que o julgador só não deve optar pela cominação de pena não privativa da liberdade quando a mesma não se mostre consentânea, isto é, não realize de forma adequada as referidas finalidades.
A insegurança na circulação rodoviária atingiu níveis nunca vistos.
A sinistralidade estradal tem vindo a aumentar entre nós de forma vertiginosa, fazendo cada vez mais vítimas.
O nosso país, encontra-se neste particular, e ao contrário do que sucede relativamente ao bem-estar e à riqueza, nos primeiros lugares do podium europeu.
Avultam, pois, as necessidades de prevenção geral.
Assim sendo, impõe-se a aplicação de uma pena privativa da liberdade, posto que só ela realiza as finalidades da punição.
Passando à determinação da medida daquela, começar-se-á por assinalar que o critério geral consagrado no Código Penal após a revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, resulta da assunção do princípio de que a pena apenas deve servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena, no sentido de que em caso alguma a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que dentro desse limite máximo a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais ( - Vide Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal (2001), 104/111, segundo o qual é este o critério da lei fundamental – art.18º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995.).
Como refere Anabela Rodrigues ( - Vide Revista Portuguesa de Ciência Criminal, “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, Ano 12, n.º 2, Abril-Junho de 2002, 147/182.), o art.40º, do Código Penal, após a revisão de 1995, condensa em três proposições fundamentais um programa político-criminal – a de que o direito penal é um direito de protecção dos bens jurídicos, de que a culpa é tão-só limite da pena, mas não seu fundamento, e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena, de onde resulta que:
“Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.
No caso vertente, estamos perante facto ilícito típico cuja gravidade no plano das consequências se situa num patamar muito elevado. Com efeito, está aqui em causa a vida humana.
O grau de negligência é médio.
Como já se consignou, avultam as exigências de prevenção geral.
No plano da prevenção especial mostra-se necessária uma resposta punitiva que promova uma eficaz recuperação do recorrente, prevenindo a prática de comportamentos da mesma natureza, fazendo-lhe sentir a antijuridicidade e gravidade da sua conduta.
Neste contexto, sem esquecer as condições pessoais do recorrente, afigura-se ajustado situar a medida da pena em 1/3 do seu limite máximo, isto é, em 1 ano de prisão.
Esta pena, como é evidente, terá de ser objecto de suspensão na sua execução, independentemente de qualquer posição desta Relação, atento o princípio da reformatio in pejus.
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Termos em que se acorda:
a) Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o recorrente em coima e na pena acessória de proibição de conduzir, julgando extinto, por prescrição, o procedimento contra-ordenacional;
b) Conceder provimento ao recurso, alterando a qualificação jurídica dos factos e condenando o recorrente como autor material de um crime de homicídio por negligência previsto e punível pelo art.137º, n.º1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, com execução suspensa pelo período de 2 (dois) anos.
Custas pela assistente.
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