Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
808/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: LIQUIDATÁRIO JUDICIAL
ABUSO DE PODER
VENDA DE BENS
MASSA FALIDA
Data do Acordão: 04/19/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 134º , 145º E 181º, Nº 2, DO CPEREF.
Sumário: I – Os poderes ou faculdades legais do liquidatário judicial têm em vista a satisfação de interesses que não lhe são próprios, assumindo a natureza de verdadeiros poderes funcionais, que o liquidatário não só pode como deve desempenhar com a natural diligência de um gestor prudente, criterioso e ordenado.
II – Em matéria de liquidação, sempre que a actuação do liquidatário esteja condicionada pela comissão de credores, não pode ele agir sem previamente obter dela as autorizações ou pareceres necessários para o efeito, como sucede relativamente à venda dos bens, que só deve ser efectuada depois de obtida a concordância da comissão de credores .
Decisão Texto Integral: Acordam na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Relatório
IA..., liquidatário judicial entretanto removido, interpôs recurso de agravo contra o despacho, proferido no apenso de liquidação do activo referente à massa falida de B..., em que se reconheceu que o mesmo efectuara a venda de bens, abusando de poderes de representação, e consequentemente deveria repor ao património da massa falida o valor real dos bens vendidos. Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. O recorrente, por requerimento datado de 19/11/97, enviado por correio registado com o n.º 17538, de 21/11/97, apresentou a proposta de venda dos bens constantes do auto de apreensão, bem como solicitou que a comissão de credores se pronunciasse acerca da venda.
2. Nenhum dos seus membros se opôs à mesma, pelo que o recorrente requereu certidão judicial conferindo-lhe poderes para efectuar a venda, que veio a ser emitida em 26 de Julho de 1998.
3. Foram-lhe, assim, conferidos os poderes necessários pelo Tribunal, para que se realizasse a venda nos termos propostos.
4. Face ao despacho do Sr. Juiz a quo de ser emitida a certidão a dar poderes ao recorrente para o acto da venda, não interpôs a comissão de credores recurso.
5. Tal nulidade insere-se no n.º 1 do art.º 201º do CPC, não sendo de conhecimento oficioso (art.º 202º do CPC), pelo que devia ser arguida no prazo do art.º 205º do CPC.
6. A comissão de credores não arguiu a nulidade daquele despacho, pelo que ao não ter sido interposto recurso daquela decisão do Sr. Juiz, formou-se caso julgado dentro deste processo quanto a tal matéria, encontrando-se vedada a reapreciação da mesma.
7. Em Maio de 1999, dois dos membros da comissão de credores vieram opor-se à venda de bens, porém os restantes três membros deram o seu acordo tácito.
8. Visto a comissão de credores ser um órgão colegial, as suas decisões são tomadas por maioria de votos (art.ºs 140º e 141º do CPEREF), pelo que o recorrente obteve a concordância da comissão de credores para proceder à venda.
9. Foram notificadas à comissão de credores todas as fases que precederam a venda e a maioria dos seus membros não se pronunciou contra a venda.
10. Compete à comissão de credores fiscalizar a actividade do liquidatário judicial e prestar-lhe colaboração (art.º 140º do CPEREF), devendo essa fiscalização ser efectuada atempadamente, ou seja, deve acompanhar o processo e colaborar com o liquidatário judicial, durante o decurso do mesmo, e pronunciar-se quando devidamente notificada.
11. Sendo certo que todo o processo de falência, e como tal a venda dos bens, tem carácter de urgência (art.º 10º do CPEREF), pelo que a comissão de credores devia ter agido com diligência e pronunciar-se quando devidamente notificada.
12. Aliás, nos termos do art.º 1163º do CC, o silêncio do mandante por tempo superior àquele em que teria de pronunciar-se, segundo os usos ou, na falta destes de acordo com a natureza do assunto, vale como aprovação da conduta do mandatário.
13. Ora, o recorrente apresentou a proposta de venda em 1997, a comissão de credores nada disse, efectuou a venda em 1998 e só em 1999 é que alguns dos seus membros reagiram à venda, pelo que tinha decorrido mais tempo do que era razoável para se pronunciarem.
14. Assim, houve aprovação prévia da comissão de credores para se proceder à venda.
15. Inexiste qualquer ilegalidade na actuação do recorrente, que agiu com diligência, em defesa dos interesses da massa falida, encontrando-se mandatado para proceder à venda.
16. O recorrente apresentou o auto de apreensão, com o valor dos bens, conforme avaliação efectuada pela Leinorte, Ldª, e face ao seu valor reduzido era de opinião que, caso a comissão de credores não se opusesse, o processo deveria ser declarado findo.
17. A comissão de credores foi notificada pelo Tribunal, em 26/11/97, da junção do auto de apreensão de bens e dos respectivos valores de avaliação, não tendo deduzido qualquer reparo aos valores atribuídos, pelo que os aceitou.
18. A comissão de credores pronunciou-se tão somente quanto ao facto de se dar o processo como findo.
19. De facto alguns dos seus membros vieram discordar, mas apenas nessa parte, não se pronunciando sobre a avaliação dos bens.
20. Assim, nenhum membro da comissão de credores discordou da avaliação de bens.
21. O preço dos bens vendidos foi superior ao valor da avaliação, pelo que não houve qualquer prejuízo ou inconveniência para os interesses da massa falida.
22. Foram violados, entre outros, os art.ºs 672º do CPC, 1136º do Cód. Civil, 10º, 140º e 141º do CPEREF.
Não foi oferecida contra-alegação e a Mm.ª Juiza a quo sustentou a sua decisão.
Foram colhidos os vistos legais, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação de facto
São os seguintes os elementos pertinentes à apreciação do recurso:
1. Em 23 de Maio de 1997, foi decretada a falência de B..., tendo sido nomeado liquidatário A....
2. A 19 de Setembro de 1997, juntou este auto de apreensão de bens no valor global de 187.400$00 e propôs que o processo fosse declarado findo, sem mais trâmites.
3. O auto de apreensão referia-se a maquinaria e mobiliário (verbas 1 a 21), no valor de 39.400$00, e a veículo automóvel (verba 22) no valor de 150.000$00.
4. Na sequência, um dos membros da comissão de credores (Companhia de Seguros Mundial Confiança) declarou nada ter a opor, enquanto quatro (Auto-Sueco, CCAM Beira Centro, BCB e Petrogal) opuseram-se, invocando que existiam outros bens, alguns deles já vendidos no âmbito de execução fiscal pendente na Repartição de Finanças da Lousã, posteriormente apensa ao processo falimentar.
5. A 16 de Março de 1999, o liquidatário comunicou, de novo, que o processo devia ser dado por findo e apreciada a proposta de venda dos bens apreendidos.
6. Na sequência da reacção de alguns credores veio o liquidatário a ser destituído de funções, por despacho de 5 de Novembro de 1999, e substituído pela Drª C....
7. Nesse mesmo despacho foi decidido não autorizar a venda dos bens, dada a oposição manifestada por alguns membros da comissão de credores relativamente ao valor da proposta.
8. A nova liquidatária alertou, então, que o destituído requerera e fora passada, a 26 de Junho de 1998, certidão para transferência da propriedade do veículo, sendo que não constava dos autos qualquer autorização da comissão de credores para proceder à sua venda.
9. Em 2 de Fevereiro de 2000, o destituído deu a conhecer que, por lapso (era liquidatário também num outro processo, onde o autorizaram a proceder à venda e daí a sua confusão) e sem a intenção de lesar os interesses da massa, procedeu à venda sem autorização pelo preço global de 270.000$00.
10. Os bens terão sido vendidos em Abril/Maio de 1998.
11. O despacho recorrido foi proferido na sequência de um outro, não impugnado, a reconhecer a legitimidade da comissão de credores para desencadear a impugnação da venda, com fundamento em ilegalidade e ofensa dos interesses da massa falida.
12. A pedido do agravante foi passada a certidão de folhas 10, cujo teor aqui se tem por reproduzido.
III – Fundamentação de Direito
A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação do agravante (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil), passam9 pela análise e resolução das seguintes questões jurídicas por ele colocadas a este tribunal:
· Poderes do agravante para proceder à venda;
· Tempestividade da impugnação da venda.
Apreciemos, então, separadamente cada uma dessas questões.
1 – Antes de mais, convém dizer que, pese embora o CPEREF, aprovado pelo DL 132/93, de 23/04, com as alterações introduzidas pelo DL 315/98, tenha sido revogado pelo DL 53/04, de 18/03 (art.º 10º), que aprovou o novo Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), será o aplicável ao presente processo, uma vez que estava já pendente à data da entrada em vigor do último diploma legal (art.º 12º).
No âmbito desse regime (CPEREF a que pertencem as disposições a seguir indicadas sem qualquer menção de origem), o liquidatário judicial tem um leque variado de funções e competências (cfr. art.ºs 132º a 146º e 180º a 187º), assumindo um papel de grande importância dentro do processo de falência. A sua principal função consiste, segundo o art.º 134º, n.º 1, em preparar o pagamento das dívidas da falida, à custa da liquidação do respectivo património. Para o efeito, dispõe de amplas faculdades, cujo exercício, em alguns casos, depende do parecer da comissão de credores, que é um órgão obrigatório no processo de falência e cuja intervenção, em alguns casos, é imprescindível (art.ºs 134º, n.º 1 e 180º, n.º 1).
Tais poderes têm em vista a satisfação de interesses que não lhe são próprios, assumindo a natureza de verdadeiros poderes funcionais, que o liquidatário não só pode como deve desempenhar com a natural diligência de um gestor prudente, criterioso e ordenado (art.º 145º). Mesmo quando a lei lhe confere possibilidade de opção entre várias alternativas, o liquidatário deve agir de acordo com aquela que for, segundo o critério de um gestor ordenado, a mais adequada à defesa dos interesses dos credores Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in CPEREF Anotado, 3ª edição, pág. 371.. A sua actividade deve ser levada a cabo com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, que representa estes e tem papel determinante na condução do processo de falência Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, pág. 370..
Os poderes gerais desta estão fixados no art.º 140º e entre as faculdades específicas atribuídas à mesma destacam-se, pela sua importância, ou mesmo pelo carácter determinante que revestem no andamento do processo, as consignadas nos art.ºs 136º (impugnação dos actos do liquidatário), 144º (audição acerca de autorizações), 145º, n.º 1, alíneas b) e c), 146º, 181º, n.º 2, 182º (a necessidade da sua concordância prévia) e 210º, n.º 1 (emissão de parecer).
Do exposto resulta que, em matéria de liquidação, sempre que a actuação do liquidatário esteja condicionada pela comissão de credores, não pode ele agir sem previamente obter dela as autorizações ou pareceres necessários para o efeito. É precisamente o que sucede relativamente à venda dos bens, que só deve ser efectuada, depois de obtida a concordância da comissão de credores (art.º 181º, n.º 2).
No caso, ao invés do que sustenta o agravante, a necessária concordância do referido órgão não foi obtida, tendo aquele (então liquidatário) avançado para a venda sem estar munido da mesma. Aliás, o próprio reconheceu isso, dizendo que se equivocou (cfr. fls. 28 e 29), estranhando-se que, agora, dê o dito por não dito, tentando, em vão, demonstrar que a maioria silente dos membros da comissão dera o seu acordo tácito. Só que essa sua interpretação dos vários passos do processo e da tomada de posição individual de cada um dos credores, que, saliente-se, não se confunde com a do órgão (comissão de credores) que integram, não pode ser acolhida. E, tanto assim é, que o agravante, apesar de ter procedido à venda dos bens, em Abril/Maio de 1998, sentiu necessidade de voltar a pedir a autorização em falta, em Março de 1999, e esta, nem antes nem depois, chegou a ser concedida. Basta ver o processo, para se constatar que não há deliberação alguma da comissão de credores ou despacho judicial nesse sentido, o que afasta, desde logo, o pretenso caso julgado em que, sem qualquer razão, o agravante se abona.
Certo que lhe foi passada a certidão que constitui folhas 10, mas a mesma, conforme se retira do seu teor, comprova apenas que a escriturária judicial, a pedido daquele a passou, a fim do mesmo proceder à transferência da viatura, mencionando que fora nomeado liquidatário judicial no processo. É isso tão só o que dela consta. Sobre a autorização para a venda é a referida certidão completamente inócua, pelo que não pode, com base nela, o agravante escudar-se, afirmando que estava autorizado a proceder à referida venda de bens, por despacho judicial não impugnado. Nem se argumente, como faz o agravante, que a passagem dessa certidão poderia enquadrar a nulidade geral do art.º 201º do CPC e estaria sanada, por não ter sido arguida pela comissão de credores no prazo do art.º 205º do CPC. É que a certidão foi-lhe passada e entregue à revelia daquele órgão, que desconhecia a prática desse acto pela escriturária judicial, tanto mais que, cerca de 9 meses depois, ainda o agravante persistia na obtenção da autorização para a venda, inculcando a ideia que ainda não a havia concretizado. Daí que, mesmo a tratar-se de nulidade não seja de a considerar sanada, como defende o agravante, por dela não ter tomado conhecimento, mesmo agindo com a devida diligência (art.º 205º, n.º 1, parte final, do CPC).
Acresce que, muito embora a urgência do processo falimentar (art.º 10º) imponha celeridade na sua tramitação, não deva aplicar-se a regra contida no art.º 1163º do Cód. Civil, quanto à autorização para a venda. Esta tem que ser expressa e, como se disse antes, nunca foi dada pela comissão de credores ou através de despacho judicial.
Tais razões levam-nos a considerar que o agravante na qualidade de liquidatário judicial, que é um mandatário representativo Cfr, neste sentido, o ac. do STJ de 20/01/05, proferido na revista n.º 3748/04 – 2ª Secção (Relator: Cons.º Noronha Nascimento), in Boletim Interno de Janeiro de 2005, Sumários, acessível através de http://www.stj.pt., não devia ter procedido à venda, sem a autorização da comissão de credores, tanto mais que alguns dos credores integrantes desse órgão haviam individualmente tomado posição contra a venda apressada dos bens pelo preço proposto. Agiu, nesse contexto, com abuso de representação, que, no fundo, é uma extensão do abuso de direito no exercício dos poderes por banda do representante. Certo que o preço obtido é superior ao da avaliação, mas isso não retira o carácter abusivo da sua conduta e a sua responsabilidade pelo eventual prejuízo provocado à massa falida.
Em suma, ao contrário do que defende o agravante, não tinha poderes para proceder à venda, como acertadamente se ajuizou no bem elaborado despacho recorrido.
2 – Posto isto, há também que avançar e dizer que a comissão de credores tem legitimidade para impugnar a venda levada a cabo pelo agravante, conforme se retira do art.º 136º, questão que, aliás, foi reconhecida no processo em decisão anterior não impugnada. Formou-se, quanto a ela, caso julgado formal, que há, agora, que acatar e respeitar (art.º 672º do CPC).
Por sua vez, nada permite concluir que o exercício desse direito por banda da comissão de credores não tenha sido feito atempadamente. Aliás, os seus membros logo que tomaram conhecimento de que o agravante havia procedido à venda, sem autorização, desencadearam, de imediato, os necessários mecanismos tendentes à respectiva impugnação. E só, então, o fizeram, porque o agravante, que há muito havia vendido os bens, continuava a insistir pela obtenção da autorização para a venda, fazendo crer que ainda não a concretizara. É óbvio que, desconhecendo a comissão de credores que tal sucedera, não podia exercer o seu direito de impugnação.
Nesta conformidade, não assiste razão ao agravante em se insurgir contra a douta decisão da 1ª instância, que, a nosso ver, não merece, de modo algum, os reparos que a agravante lhe aponta nem viola as disposições legais por ele indicadas.
IV – Decisão
Nos termos expostos, decide-se negar provimento ao agravo e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo agravante.
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Coimbra, 19 de Abril de 2005