Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
765-E/2001.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: FALÊNCIA
ACÇÃO
SEPARAÇÃO JUDICIAL DE BENS
RESTITUIÇÃO DE BENS
DIREITO DE ACÇÃO
PRAZO
CADUCIDADE
Data do Acordão: 09/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA – 2ºJUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 201º E 205º, NºS 1 E 2, DO CPEREF
Sumário: I – O nº 2 do artº 205º do CPEREF, à semelhança do nº 3 do artº 1241º do CPC, refere-se apenas ao prazo para a reclamação de créditos, nada mencionando quanto à reclamação e verificação do direito à separação ou restituição de bens aludido no nº 1 daquele preceito.

II – A explicação para esta restrição reside apenas no facto de não se justificar um regime para a restituição e separação diverso do da reclamação de créditos estabelecido no nº 2 do artº 205º, a não ser quando a apreensão de bens ocorra posteriormente ao decurso daquele prazo de um ano, caso em que, uma vez observadas as condições estabelecidas no artº 203º do CPEREF, é possível a todo o tempo o pedido de restituição ou separação, e daí esta previsão legal.

III – O legislador não tinha necessidade para submeter a propositura da acção de separação ou restituição de bens ao prazo de caducidade de um ano do nº 2 do artº 205º de fazer referência à acção de separação ou restituição de bens, tal como o fez no nº 1. Isso deriva inequivocamente da regra geral contida no nº 1 do artº 201º, em que se estabelece que as disposições relativas à reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis à reclamação e verificação do direito de restituição e separação de bens.

IV – O único entendimento passível de conferir razão de ser ao regime de restituição e separação de bens estabelecido nos artºs 201º, 203º e 205º do CPEREF é o que considera a acção para restituição e separação de bens sujeita ao prazo de caducidade do nº 2 do artº 205º.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO


A... e mulher B..., residentes em Alcobaça, moveram a presente acção nos termos dos artigos 205º e 207º do CPEREF contra a Massa Falida da sociedade por quotas C..., com sede em Alcobaça, e os Credores da Massa Falida pedindo:

a) se considere resolvido o contrato de permuta celebrado entre os autores e a sociedade C..., titulado pela escritura pública de Constituição de Propriedade Horizontal e Permuta, celebrada no Cartório Notarial de Alcobaça no dia 21 de Janeiro de 2000, lavrada de fls. 33 a fls. 39, do livro de notas para escrituras diversas nº 110-G;

b) se ordene a restituição aos autores do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o nº 02296/000309, da freguesia de Prazeres de Aljubarrota, e se  condene todos os réus a reconhecerem que os autores são proprietários do mencionado prédio em virtude da resolução do contrato;

c) se ordene o cancelamento do averbamento 1 à descrição do mencionado prédio;

d) se ordene o cancelamento de todas as inscrições em vigor referentes à mesma descrição.

Fundamentam os pedidos no facto de haverem celebrado com aquela sociedade imobiliária um contrato de permuta no qual acordaram dar-lhe dois prédios rústicos de que eram proprietários para receberem em troca fracções autónomas do prédio urbano a construir, designadas na escritura pública, logo que concluída a sua construção.

Sucede que em 21/05/03 foi declarada a falência da C... e em consequência da mesma foi apreendido para a massa falida o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o nº 02296/000309, resultante da anexação dos dois prédios entregues pelos autores, tornando impossível a contraprestação por parte da sociedade imobiliária

A Massa Falida e o credor Banco de Investimento Imobiliário, SA contestaram excepcionando a caducidade do direito de acção dos autores defendendo que a presente acção deveria ter sido proposta no prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença de declaração de falência da C....

Os autores responderam alegando, em síntese, que o nº 2 do art. 205º do CPEREF apenas se aplica a situações de reclamação de créditos e não a casos de restituição ou separação de bens.

No despacho saneador foi a excepção de caducidade julgada procedente e os R.R. absolvidos dos pedidos.

 

Inconformados, apelaram os autores que tiram as seguintes conclusões:

1ª - Em 24 de Abril de 2004 transitou em julgado a decisão que decretou a falência da recorrida C...;

2ª - Os ora apelantes intentaram acção, ao abrigo dos artigos 205º e 207º do CPEREF, solicitando, entre outras coisas, a restituição aos mesmos do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o nº 02296/000309, da freguesia de Prazeres de Aljubarrota, concelho de Alcobaça;

3ª - A Ré Massa Falida da sociedade comercial por quotas C... e o Banco de Investimento Imobiliário S.A. vieram excepcionar a caducidade do direito de acção dos ora Apelantes, com fundamento no nº 2 do art. 205º do CPEREF;

4ª - Foi proferida decisão, que julgou procedente aquela excepção de caducidade, com fundamento no facto de o mencionado normativo ser aplicável à situação dos autos, por força do art. 201º do CPEREF;

5ª - Na modesta opinião dos ora Apelantes, o mencionado nº 2 do art. 205º do CPEREF não se aplica aos casos de separação ou restituição de bens;

6ª - Na verdade, o art. 205º do CPEREF faz uma clara distinção entre a reclamação de créditos e a separação ou restituição de bens, porquanto ambas as situações são mencionadas no nº 1 do referido normativo legal;

7ª - O nº 2 do mencionado artigo 205º do CPEREF, sendo uma norma excepcional, que consagra um prazo de caducidade, refere-se apenas à situação da reclamação de créditos, não fazendo qualquer referência à acção de separação ou restituição de bens;

8ª - Tal norma (artigo 205º- nº 2) coincide com o artigo 1.241º do C.P.Civil, que de igual modo não era aplicável em termos de prazo de caducidade, ao pedido de separação ou restituição de bens;

9ª - Aplicar o prazo de caducidade previsto no nº 2 do artigo 205º do CPEREF à acção de separação ou restituição de bens, é fazer a aplicação analógica extensiva daquele normativo, aplicação esta que não é permitida pelo artigo 11º do Código Civil;

10ª - Se o Legislador pretendesse submeter a propositura da acção de separação ou restituição de bens ao prazo de caducidade previsto no nº 2 do artigo 205º do CPEREF, teria feito expressa referência àquela acção no mencionado nº 2, tal como no nº 1 do mesmo artigo consagrou a possibilidade de, findo o prazo das reclamações, serem reconhecidos, quer novos créditos, quer o direito à separação ou restituição de bens;

11ª - A decisão ora recorrida, violou além de outras, as disposições constantes dos artigos 201º e 205º do CPEREF e artigo 11º do Código Civil.

Não foram oferecidas contra - alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


ª

Tendo em conta que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas (arts. 684º nº3 e 690 nº 1º do Cod. Proc. Civil) uma única questão se propõe para resolução:

Saber se o nº 2 do artigo 205º do CPEREF, que consagra um prazo de caducidade, se refere apenas à situação da reclamação de créditos, não se aplicando à acção de separação ou restituição de bens.


ª

II-FUNDAMENTAÇÃO


DE FACTO

Relevantes para o conhecimento do objecto do recurso mostram-se provados os factos seguintes:

1 - Através de escritura pública outorgada em 21/01/2000, os A.A. e a sociedade C... celebraram um contrato que denominaram de “Constituição de Propriedade Horizontal e Permuta" nos termos do qual os primeiros declararam ceder à segunda dois prédios rústicos, melhor identificados no art. 1º da petição inicial, a que foi atribuído o valor global de 50.000.000$00, nos quais esta se propunha construir um edifício a submeter ao regime de propriedade horizontal, e, por sua vez, a segunda declarou ceder aos primeiros, quatro fracções autónomas do prédio a construir, as designadas pelas letras “A”,”G”,”N”, e “Q” identificadas na escritura, no valor global de 50.000.000$00;

2 - Mais foi acordado que a entrega de tais fracções teria lugar uma vez concluído o prédio a construir;

3 - Resultante da anexação daqueles dois prédios rústicos a C... obteve registo a seu favor do prédio inscrito na respectiva matriz sob os artigos 734 e 735, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o nº 02296/000309, da freguesia de Prazeres de Aljubarrota;

4 - Por sentença de 21/05/2003, transitada em julgado em 23/04/04, foi declarada a falência da C...;

5 – Em consequência da declaração de falência, o prédio inscrito a favor da C..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o nº 02296/000309, da freguesia de Prazeres de Aljubarrota, foi apreendido para a massa em 7/07/2003;

7 - A presente acção foi intentada em 21/07/2005.

ª



  DE DIREITO

Na presente acção está em causa unicamente a separação da massa falida de determinado bem imóvel, pelo que a questão que se põe é tão só a de saber se o prazo de um ano para a propositura da acção fixado no nº2 do art. 205º do CPEREF, deve ser observado nos casos de restituição de bens.

A questão tem motivado respostas jurisprudenciais contraditórias de que os recorrentes e a decisão recorrida dão conta.

De sentido oposto a esta são conhecidos os Acórdãos do STJ de 16/04/96[1] e 18/09/03[2].

O primeiro radica a inaplicabilidade do nº 2 do art. 205º na diferente natureza das acções em causa. Sem outra fundamentação, nele se argumenta que se nas reclamações de créditos estão por natureza em causa direitos obrigacionais ou creditícios e os casos de restituição ou separação de bens já pressupõem direitos reais dos reivindicantes é natural que tendo pressupostos diferentes tenham normatividade específica.

Com todo o respeito que nos merecem os seus subscritores, afigura-se-nos que a questão não foi abordada com o enfoque adequado colocando-o completamente fora do seu contexto normativo e divorciado de qualquer análise sistemática e pensamento unitário do legislador.

Para a segunda daquelas decisões “a lei é bastante transparente em estabelecer o limite do prazo de um ano, subsequente ao trânsito em julgado da sentença de declaração de falência, somente para a reclamação de novos créditos.

A clareza do normativo é de tal monta que não permite que, no referido nº2, se possa incluir a acção para a acção de restituição de bens.

Se o legislador pretendesse submeter a propositura desta acção ao prazo de caducidade de um ano, tal como no nº1 do art. 205º consagrou a possibilidade de, findo o prazo das reclamações, serem reconhecidos, quer novos créditos, quer o direito à separação ou restituição de bens, também no nº 2 fazia referência à acção de separação ou restituição de bens.

Acresce que correspondendo o teor deste preceito ao que constava do art. 1241º do C.P. Civil, também aqui (nº3) o estabelecimento de um termo "a quo" para a reclamação (a lei considera esta figura quer para a reclamação de créditos, quer para a restituição e separação de bens - art. 201º a 204º do CPEREF) se circunscrevia aos novos créditos.

A interpretação do nº 2 do art. 205º feita pelas instâncias, é uma interpretação extensiva analógica que se encontra vedada pelo regime consignado no art. 11º do Cód. Civil já que, como se escreveu no citado acórdão de 10/04/03, aquela norma é excepcional na medida em que fixa um prazo de caducidade”.

Posteriormente, o Acórdão de 24 de Abril de 2003 do mesmo Tribunal adoptou este mesmo entendimento sem algo lhe acrescentar.

Diferente desta linha de orientação foi a da decisão apelada que se pautou pelo que se julga ser, até hoje, o entendimento unânime dos Tribunais da Relação, pelo menos a crer no conjunto de arestos que se mostraram disponíveis para consulta, e da melhor doutrina especializada, que já conheceu idêntico alinhamento no Supremo Tribunal de Justiça, pelo menos no seu Acórdão de 7/07/99[3].

E as razões invocadas são fundamentalmente as seguintes:

Estabelece o nº1 do art. 205º do CPEREF que "Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda novos créditos bem como o direito à separação ou restituição de bens, por meio de acção proposta contra os credores, efectuando-se a citação destes por créditos de 14 dias".

Por sua vez, segundo o nº 2 do mesmo artigo, "A reclamação de novos créditos, nos termos do número anterior, só pode ser feita no prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença de declaração de falência".

Como se verifica, este nº 2, à semelhança do n.º3 do art.1241º do Código de Processo Civil, refere-se apenas ao prazo para a reclamação de créditos, nada mencionando quanto à reclamação e verificação do direito à separação ou restituição de bens aludido no n.º1.

A explicação para esta restrição reside apenas no facto de não se justificar um regime para a restituição e separação diverso do da reclamação de créditos estabelecido no n.º2 do art.205º já referido, a não ser quando a apreensão de bens ocorra posteriormente ao decurso daquele prazo de um ano, caso em que, uma vez observadas as condições estabelecidas no art.203º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, é possível a todo o tempo o pedido de restituição ou separação, e daí esta previsão legal.[4]

Além disso, e como também referem os citados autores, está a regra geral do n.º1 do art.201º[5] deste último Código, em que estabelece que as disposições relativas à reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis à reclamação e verificação do direito de restituição e separação de bens.

Assim como só através dele tem sentido o determinado na al. b) do art.206º do mesmo diploma.

Portanto, entendimento contrário a este retira qualquer sentido útil ao nº 1 do art. 203º do CPEREF.

Como se acentua no acórdão desta Relação de 28/11/00[6], “ se a acção de restituição pudesse ser intentada a todo o tempo, não faria sentido estatuir - como nesse art. 203º se faz – que no caso de serem apreendidos bens para a massa, depois de findo o prazo fixado para as reclamações, é ainda permitido exercer o direito de restituição ou separação desses bens nos sete dias posteriores à apensação.

Na verdade, se em qualquer momento temporal fosse possível exercer o direito à separação em relação à massa, dos bens reivindicados, mesmo em caso de apreensão superveniente ou tardia sempre essa possibilidade permanente, ilimitada, de exercício se verificaria, pelo que aquele circunscrito prazo estabelecido na transcrita disposição seria pura letra morta e, portanto, rematada incongruência”.

Perfilhamos inteiramente esta linha de orientação, a única que a nosso modo de ver, e com o devido respeito por opinião contrária, interpreta o conjunto normativo em causa à luz e acatamento da unidade do sistema jurídico, para lá de que mesmo sendo o nº 2 do art. 205º uma norma excepcional, como a classifica o Ac. do STJ de 18/09/03, ao invés do que nele se afirma, não está vedada a sua interpretação extensiva como decorre do art. 11º do Código Civil[7].

Poderemos acentuar ainda que o legislador não tinha necessidade para submeter a propositura desta acção ao prazo de caducidade de um ano do nº 2 do art. 205º de fazer referência à acção de separação ou restituição de bens, tal como o fizera no nº1. Isso deriva inequivocamente da regra geral contida no n.º1 do art.201º em que se estabelece que as disposições relativas à reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis à reclamação e verificação do direito de restituição e separação de bens.

E, então, o que será curial pensar, sim, é que após haver definido esta regra geral se o legislador tivesse pretendido restringir o prazo de caducidade do nº 2 à reclamação de novos créditos tê-lo-ia feito referindo no mesmo número um outro regime para a separação ou restituição, tal como teve o cuidado de o fazer no art. 203º para o caso especial de bens apreendidos tardiamente.

Assim, o único entendimento passível de conferir razão de ser ao regime de restituição e separação de bens estabelecido nos artigos 201º, 203º e 205º do CPEREF é o que considera a acção para restituição e separação de bens sujeita ao prazo de caducidade do nº2 do art. 205º.

Ora, no caso concreto em apreço, a apreensão do bem alegadamente pertencente aos autores ocorreu em 7/07/2003, ainda antes do trânsito em julgado da sentença de declaração de falência em 23/04/04.

Logo, deveriam os autores ter instaurado a presente acção dentro do prazo de um ano após esta data.

Tendo-o feito apenas em 21/07/2005, caducado já estava o seu direito a propô-la, pelo que bem se andou na decisão recorrida.



III – DECISÃO


            Na sequência do que ficou dito, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas do recurso pelos Recorrentes.

Coimbra,


[1] Publicado na Col. Jur. (Acs. do STJ) Ano IV, II, págs. 17.
[2] Acessível no sítio do ITIJ.Nele se mencionam ainda duas outras decisões de 04/10/2001, proferido na revista nº 1712/01- 7ª S.; e de 10/04/2003, proferido na revista nº 929/03-2ª S.

[3] Com sumário no sítio do ITIJ.
[4] Neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda “in” Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado, 2ª ed., pag.475.
[5] O art. 201º do CPEREF corresponde, com ajustamentos, fundamentalmente ao antigo art. 1237º do CPC.
[6] Publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XXV, T. V, pag.32.
[7] Neste mesmo sentido, para além do acima citado, decidiram o acórdão desta Relação de 14/05/02 e ainda os da Relação do Porto de 8/04/03, 8/07/04 e 5/12/06.