Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3724/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CONDOMÍNIO
LEGITIMIDADE
DIREITO DE PERSONALIDADE
Data do Acordão: 01/17/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1422.º, N.º 1 E 2, AL B) E 1430.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. As limitações ao exercício do direito de propriedade de cada condómino sobre a respectiva fracção, enunciadas nos nºs 1 e 2 do art.º 1422 do Código Civil, são ditadas pela natureza específica da propriedade horizontal e pelas especiais necessidades de harmonizar a fruição plena de cada uma das fracções sem afectação ou prejuízo das restantes. Daí que sejam totalmente estranhas às funções do administrador, devendo ser tuteladas em função da iniciativa particular de cada condómino que se ache atingido no respectivo direito.
2. No caso da alínea b) do nº 2 do art. 1422 da lei civil estão essencialmente na sua base direitos de personalidade, como o direito à tranquilidade e ao bom nome de cada condómino, que só podem justificar a intervenção do respectivo titular.

3. Sendo certo que a prática da prostituição integra o conceito legal de uso ofensivo dos bons costumes, a acção contra o condómino onde ela é exercida não pode ser proposta pelo administrador nem mesmo em execução de deliberação da assembleia dos condóminos porque esta só é eficaz se tiver por objecto partes comuns – art.º 1430, nº 1 do Código Civil.

4. A acção deve ser proposta pelos condóminos afectados no seu direito de personalidade, sem esquecer que colhe apoio no n.º 2 do artigo 1422.º do Código Civil a ideia de que da íntima conexão entre as diversas fracções autónomas integradas na mesma unidade predial deriva para cada um dos condóminos o direito de, em certas circunstâncias, obrigar os demais a realizar certas obras ou a abster-se da prática de determinados actos.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

O Condomínio da A..., Lote B, em Viseu, fez intentar pelo 3º Juízo Cível dessa comarca, acção declarativa com processo ordinário contra B... e mulher C..., residentes em França, 2, Rue des Sibadies, 31150, Fenouillet; e D..., residente na A..., Lote B, 5º Posterior, Viseu, alegando, em síntese:
Os 1ºs RR. são donos e a 2ª Ré D... é arrendatária habitacional da fracção designada pela letra Q – 5º andar posterior – do prédio em regime de propriedade horizontal representado pelo A.;
Desde Outubro de 2001 que a Ré D... mantém na dita fracção mulheres que explora na prática da prostituição, angariando os respectivos clientes;
Tal prática provoca graves incómodos aos residentes, pelo estrondo das portas da entrada, do elevador e da fracção dos RR. e pelos ruídos que nesta se produzem, causando vergonha aos condóminos, que temem ser confundidos com os clientes da Ré D...;
Da situação foi também dado conhecimento por carta ao R. Poceiro em 22/01/2002, sem consequências no respectivo comportamento;
O afluxo anormal das mulheres e respectivos clientes provoca desgaste anormal da porta de entrada e dos elevadores e consumo excessivo de electricidade;
A imagem do condomínio é prejudicada com os actos descritos, que originam desvalorização das fracções, tornando, além de degradante, perigosa a vivência dos restantes condóminos no edifício.
Termina pedindo a condenação da Ré D... a dar à fracção o uso previsto no título constitutivo da propriedade horizontal, ou seja, a habitação, abstendo-se de a destinar à prostituição ou outros actos ofensivos dos bons costumes; e a pagar ao A. a indemnização de € 5.000 pelo excesso de consumo de electricidade e de uso dos elevadores; dos RR. Poceiro e mulher a pagarem ao A. € 3.500 pelo consentimento dado àquele uso indevido da fracção e pelo desgaste e desvalorização causados ao condomínio.
Apenas contestaram os RR. B... e mulher, excepcionando a ilegitimidade do A. para a acção; e impugnando o consentimento ou o conhecimento das concretas práticas levadas a cabo na fracção, dizendo ter alertado os procuradores que deixaram em Portugal para a respectiva administração, nada tendo estes informado. Assim, concluem que devem ser absolvidos da instância, na procedência da excepção dilatória, ou assim não se entendendo, do pedido.
O A. replicou, respondendo à matéria da excepção dilatória.
*
No despacho saneador, a M.ma Juiz, conhecendo dos pressupostos processuais, considerando que a acção não se insere no âmbito dos poderes do administrador do condomínio autor e que por isso, nos termos da al.ª e) do art.º 6º do CPC, este não goza de personalidade judiciária, julgou procedente esta excepção dilatória, absolvendo todos Réus da instância.
*
Inconformado, agravou o A. concluindo as respectivas alegações com as seguintes questões:
1 – Quer a causa de pedir quer os pedidos formulados visam a protecção de interesses comuns atinentes a partes comuns do edifício, sendo o condomínio uma organização de grupo estruturada a que a lei confere em certas condições personalidade judiciária.
2 – Integra-se nas funções do administrador, por força da al.ª l) do art.º 1436 do CC, a execução das disposições legais relativas ao condomínio, como é o caso, visto a al. b) do nº 2 do art.º 1422 do CC proibir a afectação das fracções a uso ofensivo dos bons costumes.
3 – O condomínio A. tem interesse directo em demandar e, desse modo, plena legitimidade processual, em relação a todos os pedidos formulados.
*
Não houve resposta dos agravados.
*
Oportunamente a M.ma Juiz sustentou o despacho recorrido.
*
Colhidos os vistos cumpre decidir.
*
Têm-se por provados os seguintes factos relevantes:
1- Por escritura pública de 28 de Julho de 1998 no 2º Cartório Notarial de Viseu foi constituída a propriedade horizontal no prédio urbano composto de cave para garagens, rés-do-chão para comércio, primeiro a sétimo andares para habitação, com a área coberta de trezentos e setenta e quatro metros quadrados, sito na A..., freguesia do Coração de Jesus, na cidade de Viseu, descrito sob o nº 00204, daquela freguesia, na Conservatória do Registo Predial de Viseu.
2- Os RR. B... e C... são proprietários da fracção designada pela letra Q – 5º andar posterior.
3- Por contrato escrito (doc. de fls. 21), ainda em vigor, os referidos RR. deram de arrendamento esta fracção à Ré D... para a respectiva habitação.
4- Por carta de 22/01/2002, junta a fls. 22, a administração do prédio informou o R. Poceiro « que o seu apartamento 5º Post. foi arrendado a prostitutas e que estão a causar sérios problemas com os restantes moradores (…)»
5- Novamente por carta de 23/05/2003, invocando a prática de prostituição na mesma fracção, aquela administração avisava o R. Poceiro de que iria intentar uma acção judicial caso este não tomasse as providências adequadas no prazo de 30 dias.
*
O problema fundamentalmente levantado no recurso é o de saber se o condomínio pode agir em juízo, representado pelo administrador, mediante deliberação da assembleia de condóminos, perante o condómino e terceiros que destinem determinada fracção à prática da prostituição, violando a proibição prevista na alínea b) do nº 2 do art.º 1422 do CC.
*
Sobre a 1ª questão (natureza do pedido e da causa de pedir).
A causa de pedir na presente acção consiste no facto concreto da afectação da fracção autónoma dos 1ºs RR. a actividades que o A. enquadra no uso ofensivo dos bons costumes, vedado aos condóminos pelo nº 2 do art.º 1422 do CC.
É certo que o A. também peticiona indemnizações pelo consumo excessivo de electricidade e dos elevadores e pelo «desgaste económico e desvalorização do condomínio». Porém, tratam-se de efeitos ou consequências indissociáveis da limitação ao exercício do direito de propriedade do condómino, pelo que não sendo esta accionável pelo ora A., ficará prejudicada a sua consideração. A utilização das partes comuns da propriedade horizontal é um direito inerente ao gozo de cada condómino, numa relação de funcionalidade com a fracção. Não sendo esta funcionalidade adequadamente impugnada, objectiva e subjectivamente, não deverá ser autonomizado o eventual excesso de gasto com aqueles bens comuns. Improcede assim a 1ª questão (conclusões 1ª a 15ª).
*
Quanto à 2ª questão (poderes do administrador).
Na verdade, prescreve a al. e) do art. 6º do CPC que o condomínio resultante da propriedade horizontal tem personalidade judiciária relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador.
Esta disposição deve articular-se com o art.º 1437, nº 1 do CC, onde se diz que o administrador pode agir em juízo quer contra qualquer dos condóminos quer contra terceiros, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia.
As funções do administrador encontram-se elencadas nas diversas alíneas do art.º 1436 do CC. Todavia esta discriminação tem sempre pressuposto o princípio, decorrente do nº 1 do art.º 1430 do mesmo Código, de que quer o administrador, como órgão executivo, quer a assembleia dos condóminos, como órgão deliberativo, na respectiva actuação, apenas podem interferir com a gestão das partes comuns e não com as partes privativas de qualquer dos condóminos (Mota Pinto, Direitos Reais, 1970/71, pág. 285). Esta regra apenas se mostra hoje fissurada, quanto aos poderes da assembleia dos condóminos, pelo nº 4 do art.º 1422 do CC, aditado pelo art.º 1º do DL 267/94 de 25/10.
A lei não atribui competências ao administrador – ao contrário do pugnado pelo agravante - tendo como critério abstractos interesses comuns mas antes o interesse por via das partes comuns. Assim como não são atendíveis hipotéticos danos no «condomínio», como ente sujeito de direitos, uma vez que a lei não atribui a este personalidade jurídica, mas tão-só judiciária, no apontado âmbito do art.º 6º do CPC.
As limitações ao exercício do direito de propriedade de cada condómino sobre a respectiva fracção, enunciadas nos nºs 1 e 2 do art.º 1422 do CC, são ditadas pela natureza específica da propriedade horizontal e pelas especiais necessidades de harmonizar a fruição plena de cada uma das fracções sem afectação ou prejuízo das restantes. Daí que sejam totalmente estranhas às funções do administrador, devendo ser tuteladas em função da iniciativa particular de cada condómino que se ache atingido no respectivo direito.
No caso da alínea b) do nº 2 do art. 1422 da lei civil estão essencialmente na sua base direitos de personalidade, como o direito à tranquilidade e ao bom nome de cada condómino, que só podem justificar a intervenção do respectivo titular. Sendo certo que é indiscutível que a prática da prostituição integra o conceito legal de uso ofensivo dos bons costumes.
Pretende o agravante que a situação descrita na petição inicial se pode integrar, quer no caso da al.ª h), quer no caso da alínea l), do já mencionado art.º 1436 do CC.
Vejamos.
A execução das deliberações da assembleia dos condóminos pressupõe a sua eficácia. E estas só são eficazes se tiverem por objecto partes comuns – art.º 1430, nº 1 – sendo excepção a possibilidade daquele órgão deliberar sobre o uso de fracção autónoma cujo fim não esteja previsto no título constitutivo da propriedade horizontal (nº4 do art.º 1422). Está, pois, excluída a previsão da referida al.ª h).
No que concerne à invocada função do administrador de assegurar a execução das disposições legais relativas ao condomínio – al.ª l) do art.º 1436 – entende o agravante que estão aí abrangidas as limitações ao exercício dos direitos dos condóminos do nº 2 do art.º 1422 do CC.
Sufragar esta tese seria o mesmo que admitir que o administrador teria poderes que se sobreporiam aos da própria assembleia dos condóminos, atenta a definição que destes vem sendo feita. Aquela alínea – como todas as demais do art.º 1436 - também não pode deixar de ser conjugada com o princípio, já enfatizado, de que a actuação do administrador é devida à necessidade de gerir as partes comuns. De resto, a norma do art.º 1436 insere-se na Secção IV do Capítulo VI justamente epigrafada «Administração das Partes Comuns do Edifício», não sendo de menosprezar esta referência sistemática. Estando em causa partes privadas terão de ser os condóminos enquanto tais a solicitar a efectivação das mencionadas limitações.
Citando P. de Lima e Antunes Varela no comentário ao nº 2 do art.º 1422 do CC (C. Civil Anotado, Coimbra Editora, 1972, pág. 366), da íntima conexão entre as diversas fracções autónomas integradas na mesma unidade predial «deriva para cada um dos condóminos o direito de, em certas circunstâncias, obrigar os demais a realizar certas obras ou a abster-se da prática de determinados actos».
Não tem também o agravante razão no que concerne a esta segunda questão (não colhendo as correspondentes conclusões 16ª a 33ª do recurso).
*
Relativamente à 3ª questão.
Nas conclusões 34ª a 42ª sustenta o agravante a sua legitimidade processual activa apoiada no interesse directo em deduzir os pedidos formulados.
A legitimidade é um pressuposto processual de quem possa ser parte, isto é de quem goze de personalidade judiciária (art.º 5º do CPC). Como, porém o condomínio A. não dispõe de personalidade judiciária uma vez, nos termos do art.º 6º, al.ª e) do CPC, e de harmonia com o explanado, a presente acção não se insere no âmbito dos poderes do respectivo administrador, mostra-se prejudicada a apreciação daquele pressuposto.
Também aqui falece razão ao recurso.
*
Pelo exposto, negam provimento ao agravo.
Custas pelo agravante.