Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3965/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ARRESTO
JUSTO RECEIO DE PERDA DE PATRIMONIAL
SEGURO-CAUÇÃO
FORMALIDADES
Data do Acordão: 01/31/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VAGOS
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 406º, Nº 1, DO CPC . DEC. LEI Nº 183/88, DE 24/5 .
Sumário: I – Estatui o artº 406º, nº 1, do CPC que o procedimento cautelar de arresto depende da verificação cumulativa de dois requisitos : - a probabilidade da existência do crédito ; - e o justo receio da perda da garantia patrimonial .
II – O seguro-caução, regulado pelo D.L. nº 183/88, de 24/5, é um contrato de seguro a favor de terceiro que cobre, directa ou indirectamente, o risco de incumprimento de obrigação que, por lei ou convenção, seja susceptível de caução, fiança ou aval, nele figurando, como pessoas distintas, o segurador, o tomador do seguro (devedor) e o segurado – credor da obrigação garantida .

III – O contrato de seguro é um negócio rigorosamente formal, nos termos do artº 426º do C. Comercial, ao qual a solenidade exigida para a sua realização deve considerar-se como formalidade ad substantiam , sem o que é nulo o contrato .

IV – A distinção doutrinária entre formalidades ad substantiam e formalidades ad probationem radica no facto de as primeiras serem insubstituíveis por outro meio de prova, cuja inobservância gera a nulidade, enquanto que as segundas a sua falta pode ser suprida por outros meios de prova mais difíceis .

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

A requerente - A..., com sede na Rua de S.Tomé, nº11, Covão do Lobo – instaurou na Comarca de Vagos procedimento cautelar de arresto contra a requerida - B..., com sede na Quinta de S. Marcos, Fundão.
Alegando, em resumo, ter um crédito sobre a requerida no valor de € 37.579,88, que se recusa a pagar, havendo encerrado as suas instalações, pediu o arresto dos bens descritos na petição inicial.
Após produção de prova, foi proferida decisão a indeferir o arresto.
Inconformada, a requerente recorreu de agravo, concluindo, em síntese:
1º) - A decisão que indeferiu o arresto considerou não se verificar o justo receio da perda de garantia patrimonial, em virtude da existência de um contrato de seguro caução celebrado pela agravante, cuja prova se baseou no depoimento das testemunhas.
2º) – Tal facto constitui violação do art.426 do Código Comercial, visto que o contrato de seguro tem de ser reduzido a escrito, sendo uma formalidade ad substantiam.
3º) – Não se encontrando no processo qualquer documento escrito que titule o referido contrato de seguro, não poderia o tribunal dar como provada a sua existência.
4º) – Além do mais, não é de caução a modalidade do contrato de seguro que a agravante celebrou com a seguradora.
5º) – Mas ainda que assim fosse, tal facto não seria impeditivo do decretamento do arresto, já que a pretensão indemnizatória que o segurador se obriga é uma prestação própria, diferente da prestação a que o devedor se obrigou.
6º) – Só assim não seria se a seguradora se tivesse sub-rogado no crédito da agravante perante a requerida.
7º) – Os factos provados ( alínas G/,H/,I/ ) são reveladores do justo receio de perda de garantia patrimonial, pelo que conjugada com a prova da existência do crédito estão reunidos os pressupostos legais do arresto.
O M.mo Juiz manteve a decisão recorrida.

II FUNDAMENTAÇÃO

2.1. - Os factos provados:
1) - No exercício da sua actividade comercial, a Requerente forneceu à Requerida, a pedido expresso desta, para o exercício da sua actividade, mercadoria, nas quantidades e preços, que constam das facturas n.° 209067, emitida em 16-06-2004, no montante de € 34.335.00 e factura n.° 210116, emitida em 14-12-2004, no montante de € 9.780,75, perfazendo o total de € 44.115,75.
2) - As facturas identificadas tinham vencimento formal a 30 dias após a data da respectiva emissão, mas o seu pagamento era tolerado até 90 dias.
3) - Todas as mercadorias especificadas nas facturas foram recebidas pela Requerida sem qualquer reserva no que toca à qualidade, quantidade ou preço.
4) - Na sequência das inúmeras interpelações efectuadas pela Requerente e seus mandatários no sentido de obter o pagamento da quantia em dívida, em 25-102004, a R. emitiu 6 (seis) letras no montante de € 5.722,50 cada, com vencimento para os dias 25 de cada mês entre Dezembro de 2004 e Maio de 2005.
5) - Das mencionas letras, apenas as duas primeiras foram pagas.
6) - A requerente suportou a quantia de € 447,20 em despesas resultantes do não pagamento das letras na data do seu vencimento.
7) - Desde de Maio de 2005 foram registadas as seguintes alterações na administração da requerida:
- Pela Ap.12/2005.05.09: CESSAÇÃO DE FUNÇÕES DOS ADMINISTRADOR Francisco Ferreira Gonçalves, Alfredo José Mendes Ferreira e Maia Natália Mendes Ferreira Soares, por renúncia em 2005.02.24;
- Pela Ap. 13/2005.05.09: NOMEAÇÃO DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO PARA QUADRIÉNIO DE 2005/2008 por deliberação de 2005.02.24. passando a constar como PRESIDENTE – Mário da Costa Borralho, como VICE-PRESIDENTE – Henrique Justino Teixeira, e como VOGAL – Odileia Ribeiro Martins;
- Pela Ap. .5/2005.08.30: CESSAÇÃO DE FUNÇÕES DO ADMINISTRADOR Mário da Costa Borralho, por ter renunciado em 2005.06.30;
- Pela Ap.6/2005.08.30: NOMEAÇÃO DO PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÂO PARA O QUADRIÉNIO EM CURSO 2005/2008 Por deliberação de 1005.06.30: VALDIR APARECIDO REYNALDO.
8) - Desde essa data, não mais logrou a Requerente obter qualquer contacto com os responsáveis pela requerida.
9) - Alguns dos credores, designadamente a sociedade Pescas Tavares Mascarenhas, S.A constataram, tal como a Requerente, que a Requerida encerrou as suas instalações no Fundão, não se verificando nelas qualquer sinal de actividade.
10) - A requerente celebrou com uma empresa seguradora um contrato de seguro-caução que abrange os créditos da requerente sobre a requerida em causa nestes autos.

2.2. – De Direito:
Como resulta das conclusões do recurso, delimitadoras do seu objecto ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), a questão essencial contende com a comprovação ou não do justo receio da perda de garantia patrimonial, desdobrando-se nas seguintes sub-questões:
a) – Se podia o tribunal dar como provado o contrato de seguro caução apenas com base na prova testemunhal;
b) – E se, com ou sem seguro-caução, a factualidade apurada é suficiente para o justo receio.
Estatui o art.406 nº1 do CPC, que o procedimento cautelar de arresto depende da verificação cumulativa de dois requisitos: (1) a probabilidade da existência do crédito e (2) o justo receio da perda da garantia patrimonial
A decisão recorrida, não obstante considerar provada a probabilidade séria da existência de um crédito a favor da requerente, no valor de €37.579,88, julgou, no entanto, improcedente o arresto com fundamento na ausência da comprovação do justo receio da perda de garantia patrimonial.
Argumentou-se que, apesar de ter ficado assente o encerramento de instalações da requerida e ausência de contactos e a existência de outros débitos, o certo é que também se apurou que a requerente celebrou um contrato de seguro caução que abrange o crédito sobre a requerida, logo dispondo a requerente de garantia específica para a satisfação do crédito está afastado o periculum in mora.
O tribunal deu como provado o ponto 10 ( A requerente celebrou com uma empresa seguradora um contrato de seguro-caução que abrange os créditos da requerente sobre a requerida em causa nestes autos.) com fundamento na prova testemunhal ( depoimento da primeira testemunha, corroborado pela segunda ).
O seguro-caução é um contrato de seguro a favor de terceiro que cobre, directa ou indirectamente, o risco de incumprimento de obrigação que, por lei ou convenção, seja susceptível de caução, fiança ou aval, nele figurando, como pessoas distintas, o segurador, o tomador do seguro ( devedor ) e o segurado - credor da obrigação garantida..
Regulado pelo Dec.Lei nº. 183/88 de 24 de Maio, "cobre, directamente ou indirectamente, o risco de incumprimento ou atraso no cumprimento das obrigações que, por lei ou convenção, sejam susceptíveis de caução, fiança ou aval" (art. 6º, nº. 1). E dele deve constar, além do estabelecido no Código Comercial, a identificação do tomador do seguro e do segurado, caso as duas figuras não coincidirem na mesma pessoa, a obrigação a que se reporta o contrato de seguro, a percentagem ou quantitativo do crédito seguro e os prazos de participação do sinistro e de pagamento das indemnizações (art. 8º, nº. 1).
Sendo que, nos termos do art. 426º do C. Comercial, cuja aplicação prévia o art. 8º ressalva, o contrato de seguro deve ser reduzido a escrito num instrumento que constituirá a apólice de seguro, a qual, datada e assinada pelo segurador, deve enunciar: o nome ou firma, residência ou domicílio do segurador; o nome ou firma, qualidade, residência ou domicílio do que faz segurar, o objecto do seguro e a sua natureza e valo; os riscos contra quem se faz o seguro, o tempo em que começam e acabam os riscos; a quantia segurada; o prémio do seguro; e, em geral, todas as circunstâncias, cujo conhecimento possa interessar ao segurador, bem como todas as condições estipuladas pelas partes.
É, pois, o contrato de seguro um negócio rigorosamente formal, acrescendo, ainda, que a solenidade exigida para o contrato deve considerar-se como formalidade ad substantiam, já que, a não ser reduzido a escrito, através da emissão da apólice, o contrato é nulo ( cf. por ex., Ac do STJ de 27/5/04, www dgsi.pt ).
São características gerais das providências cautelares, a provisoriedade, a instrumentalidade, a sumario cognitio, o carácter urgente e a estrutura simplificada.

A propósito da prova sumária, refere TEIXEIRA DE SOUSA que “ as providências cautelares só requerem, quanto ao grau de prova, uma mera justificação, embora a repartição do ónus da prova entre requerido e requerente observem as regras gerais ( art.342 nº1 e 2 do CC ) “ ( Estudos Sobre o Processo Civil, pág.233 ) e, problematizando sobre determinado tipo de documentos, esclarece ANTÓNIO GERALDES que os meios probatórios no âmbito dos procedimentos cautelares devem ser adoptados segundo critérios de razoabilidade e proporcionalidade, dada a natureza da tutela preventiva (Temas da Reforma de Processo Civil, vol.IV, 2ª ed., pág.88 ).
Nas providências cautelares, finda a produção de prova, o juiz declara quais os factos que julga provados e não provados, observando com as devidas adaptações o disposto no art.653 nº2 do CPC ( cf.art.304, por remissão dos arts.384 e 392 nº1 do CPC ).
Ora, a análise crítica da prova, mesmo no âmbito da providência cautelar, tem subjacente um problema de direito probatório material, ou seja, quais os casos em que a lei impõe determinado meio de prova para se poder provar certo facto, e está em consonância com o disposto no nº2 do art.665 do CPC, segundo o qual, “ quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada “, consagrando-se a chamada “ prova necessária “ ( cf. CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, vol.III, pág.208 ).
A distinção doutrinária entre “ formalidades “ ad substantiam “ e formalidades “ ad probationem “ radica no facto de as primeiras serem insubstituíveis por outro meio de prova, cuja inobservância gera a nulidade, enquanto que as segundas a sua falta pode ser suprida por outros mais de prova mais difíceis, nos termos do art.364 nº2 do CC, sendo verdadeiramente esta a projecção prática de tal distinção.
De acordo com o princípio geral do nº1 do art.364 do CC, os documentos autênticos ou particulares são formalidades “ ad substantiam” e sê-lo-ão simplesmente probatórias, apenas nos casos excepcionais em que resultar claramente da lei tal finalidade ( nº2 ) ( cf. MOTA PINTO, Teoria Geral, pág.346 ).
Quando o documento é exigido para a celebração do acto, como requisito de forma e por consequência como condição de validade ( formalidade ad substantiam), também se coloca um problema de prova, ou seja, a prova de que se fez o documento com determinado conteúdo, visto que a sua existência e validade depende do documento.
A este respeito, não sendo a lei clara sobre o modo como tal prova se deve fazer, para INOCÊNCIO GALVÃO TELLES ( C.J. ano IX, tomo IV, pág.7 e 8 ), concebem-se três soluções possíveis:
a) - A prova só pode ser produzida através da exibição do respectivo documento;
b) - A prova pode fazer-se através do documento ou de confissão expressa judicial ou extrajudicial, constante de valor igual ou superior, seguindo o mesmo regime da formalidade ad probationem, com a diferença de que a confissão deve incidir também sobre a feitura do documento;
c) - A prova pode fazer-se por qualquer meio que convença que o documento foi efectivamente lavrado.
Equacionando o problema no âmbito da excepção ao princípio da livre apreciação, conforme o nº2 do art.655 do CPC, a necessidade do documento resultaria de “imposição indirecta”, visto que “ a lei exige um documento, autêntico ou particular, como forma da declaração negocial ( art.364 nº1 CC ), o que implica o ónus de conservação do documento e a sua apresentação para prova dessa declaração, com consequente afastamento de outros meios de prova ( cf. arts.351 CC, 354 CC, 393 CC, 394 CC, 485-d e 490-2 ) “ ( cf. LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol.2º, pág.636 ).
Uma vez assente a imperatividade da respectiva prova documental, a sanção será de considerar não escrita tal factualidade ( ponto 10 ) por aplicação directa ou analógica do art.646 nº4 do CPC, que conjugado com o art.655 nº2 do CP levará a abranger os documentos ad substantiam, por imposição indirecta.
Excluído o contrato de seguro-caução, vejamos agora se a demais factualidade é suficiente para caracterizar o segundo requisito do arresto.
Para a alegação e comprovação do justo receio da perda de garantia patrimonial, tem-se entendido, tanto no plano jurisprudencial, como doutrinário, não bastar o receio subjectivo do credor, baseado em meras conjecturas, pois para ser justificado há-de assentar em factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação ( cf., Ac do STJ de 3/3/98, C.J. ano VI, tomo I, pág.116 ).
No mesmo sentido, escreve ANTÓNIO GERALDES ( Temas da Reforma de Processo Civil, vol.4º, 2ª ed., pág.186 ), “ O justo receio da perda de garantia patrimonial está previsto no art. 406 nº1 do CPC, e no art. 619 do Código Civil pressupõe a alegação e prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito “.
Deste modo, para o preenchimento da cláusula geral do “ justificado receio de perda de garantia patrimonial”, relevam, designadamente, a forma da actividade do devedor, a sua situação económica e financeira, a maior ou menor solvabilidade, a natureza do património, a dissipação ou extravio de bens, a ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de não cumprir, o montante do crédito, a própria relação negocial estabelecida entre as partes.
Pois bem, demonstrando-se existirem outros credores, que a requerida encerrou as suas instalações no Fundão, não se verificando qualquer sinal de actividade e desde Maio de 2005 que a requerente não consegue contactar com os responsáveis dela, sendo certo que a jurisprudência tem apontado como um dos indicadores o abandono ou encerramento da empresa ( cf., por ex., Ac RP de 12/12700 e de 22/3/04, www dgsi.pt ), num juízo de valoração global, uma pessoa normal colocada na posição da requerente/credora recearia objectivamente pela perda de garantia patrimonial do seu crédito.
Procede o agravo, devendo a decisão recorrida ser substituída por outra a deferir a pretensão do arresto.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar procedente o agravo e revogar a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra a decretar o arresto nos bens indicados.
2)
Sem custas.
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