Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
144/07.8TBFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CECÍLIA AGANTE
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE LEGÍTIMA
PRAZO DE CADUCIDADE
AUTOR
Data do Acordão: 10/13/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1817º, Nº 1, 1826º, Nº 1, 1839º E 1842º, Nº 1, AL. A), DO C.CIV.
Sumário: I – No nosso ordenamento jurídico, no estabelecimento da paternidade, vigora a presunção pater is est quem nuptiae demonstrant, exigindo o casamento dos progenitores, o nascimento ou a concepção na constância do matrimónio, a maternidade da mulher e a paternidade do marido (artº 1826º, nº 1, C.Civ.).

II – Paternidade presumida que constará obrigatoriamente do registo de nascimento do filho, salvo se a mãe ou o marido declararem que o pai não é o marido da mãe (artº 1835º, nº 1, C.Civ.).

III – A paternidade pode, no entanto, ser afastada pelo marido da mãe, por esta, pelo filho ou pelo Ministério Público, provando-se que, em função das circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é altamente improvável (artº 1839º C. Civ.).

IV – Até à entrada em vigor da Lei nº 14/2009, de 1/04 (que alterou o prazo para três anos), o presumido pai estava legitimado a instaurar a acção de impugnação da paternidade dentro do prazo de dois anos contados desde a data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade (artº 1842º, nº 1, al. a), C. Civ.).

V – O Tribunal Constitucional já afastou a inconstitucionalidade da al. a) do artº 1842º do C. Civ. – Acórdãos nºs 473/07 e 589/07, de 28/11/2007.

VI – Ao autor cabe alegar todas as circunstâncias reveladoras de que a paternidade do marido da mãe é improvável e aos demandados os factos que impeçam, modifiquem ou extingam essa pretensão, como seja a caducidade do direito do autor.

Decisão Texto Integral: Acordam no tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

A... , divorciado, residente na ....., com apoio judiciário, demanda, nesta acção declarativa constitutiva, sob a forma de processo ordinário, B... , divorciada, residente no ....., e C... , sua filha e consigo residente, pedindo a declaração de que não é pai da menor C...e consequente cancelamento no respectivo assento de nascimento da menção de paternidade que lhe é atribuída.

Alega que a menor nasceu em 16 de Fevereiro de 1997 e, sendo casado com a sua mãe, a ré B...., está a mesma registada como sua filha. Facto que não corresponde à realidade biológica, por se ter separado da ré B.... em Março/Abril de 1996 e, desde então, não mais mantiveram entre si qualquer relacionamento sexual. Ambos eram toxicodependentes, sem qualquer profissão ou rendimentos, e a ré B...., para assegurar o consumo de estupefacientes, mantinha relações sexuais com outros homens.

Citadas as rés, contesta a demandada B.... com a invocação da caducidade do direito do autor a impugnar a paternidade, por há muito ter decorrido o prazo de dois anos fixado no artigo 1842º, 1, do Código Civil. O autor teve conhecimento do nascimento da menor e já no processo de regulação de poder paternal da menor, n.º .... do Tribunal Judicial da Comarca de ....., invocou não ser o seu pai. Processo que finalizou por sentença de 10 de Julho de 1998, transitada em julgado. Impugna a restante factualidade articulada na petição inicial.

Na réplica o autor responde à matéria da excepção, defendendo a sua improcedência face à inconstitucionalidade da norma, já declarada com força obrigatória geral no correspondente dispositivo da acção de investigação de paternidade, ínsito ao artigo 1817º, 1, ex vi artigo 1873º, ambos do Código Civil.

  Determinada oficiosamente a junção do articulado inicial da oposição à execução por alimentos devidos à menor C....., instaurada contra o agora autor, vem a ré B... alegar ter o mesmo pago algumas das prestações alimentares no montante mensal, à época, de 10.000$00,  e juntar os correspectivos recibos. 

  No despacho saneador é declarada a procedência da excepção de caducidade arguida pela ré B..., com a consequente absolvição das demandadas do pedido. Defende o saneador sentença recorrido que, sopesados o direito à identidade pessoal do presumido pai e do próprio filho, este não pode ficar permanentemente sob “condição resolutiva” e, consequentemente, afasta da acção de impugnação de paternidade os fundamentos da declarada inconstitucionalidade da caducidade prevista para a acção de investigação de paternidade (artigo 1817º, 1, ex vi artigo 1873º, ambos do Código Civil).

É esta decisão que o apelante impugna, formulando as seguintes conclusões:

            a) a lei estabelece uma presunção de paternidade (presume-se que o filho nascido na constância do matrimónio da mãe tem como pai o marido).

            b) a presunção pode ser elidida quando existam sérias dúvidas sobre a paternidade do marido da mãe.

            c) a sentença proferida pelo tribunal a quo, ao não permitir a possibilidade de ser realizada a prova biológica de paternidade (pois não chegou à fase de produção de prova), decidindo sobre matéria de excepção em sede de saneador e absolvendo as rés do pedido, negou o direito de ilidir a presunção de paternidade.

            d) a sentença violou, assim, os artigos 1801° e 1826º, e), do Código Civil.

            e) a sentença a quo julgou com base numa norma inconstitucional.

            f) a sentença a quo violou a alínea a) do n.º 1 do artigo 1842º do C. Civil, quando a conforma no sentido de a mesma ter jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que não distingue entre as situações de investigação e de impugnação de paternidade.

            g) a sentença a quo viola o direito à identidade, direito fundamental previsto nos artigos 25° e 26° da Constituição da República Portuguesa.

            h) o direito da acção de impugnação e paternidade não caducou por força da norma aplicada na decisão sob recurso em virtude de a interpretação que lhe foi dada ser inconstitucional, por violação do princípio constitucional da proporcionalidade.

            i) o direito à identidade é um direito fundamental, de aplicação directa (cfr. artigo 18° da CRP) e, como direito fundamental da pessoa, prevalece sobre os prazos de caducidade para as acções de estabelecimento da filiação, pelo que a sentença em crise deve ser revogada.

                                                                                         

            A ré B... contra-alega e pugna pela confirmação da decisão recorrida, alegando que o juízo de inconstitucionalidade estabelecido para o n.º 1 do artigo 1817º do Código Civil, no tocante ao prazo de caducidade da acção de investigação de paternidade, não se aplica à impugnação de paternidade, desde logo pela diferença de grau apontada para as duas acções pelo Tribunal Constitucional.                                                                                                                                                                                                     

            Na delimitação do objecto do recurso, ao abrigo do disposto nos artigos 684º, 690º e 713º, 2, do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 303/07, de 24 de Agosto, a controvérsia que incumbe decidir centra-se no prazo de caducidade do direito de  acção à impugnação de paternidade, sua aplicação ao caso concreto e inconstitucionalidade do artigo 1842º, 1, a), do Código Civil.


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  II. Fundamentação de Facto (factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso e documentalmente provados):
  1. A.... e B.... casaram um com o outro em 05 de Maio de 1994 (doc. fls. 129).
  2. C... nasceu no dia 16 de Fevereiro de 1997 (doc. fls. 126).
  3. Consta do assento de nascimento da menor C...que é filha de A.... e B... (doc. fls. 126).
  4. O casamento de A.... eB.... foi dissolvido por divórcio, decretado por sentença de 29 de Março de 2001, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca da ..., transitada em julgado em 26 de Abril de 2001 (doc. fls. 129).
  5. Nos autos de regulação de poder paternal relativos à menor C....., cuja sentença data de 10 de Julho de 1998,  transitada em julgado, está exarado o facto provado “O requerido nunca teve qualquer contacto com a menor; está convicto que a menor não é sua filha” (fls. 74).   6. O autor declarou, na oposição que formulou na execução especial de alimentos devidos à menor C....., que correu termos no Tribunal de ..... sob o nº ...., entrada em Juízo em 31 de Janeiro de 2005, não ser o pai da C...(doc. fls. 132).
  7. A presente acção foi instaurada em 11 de Abril de 2007.
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  III. Fundamentação de Direito
  A pretensão de tutela jurisdicional apresentada pelo autor reconduz a lide a uma acção de impugnação de paternidade, no que não há discórdia das partes.
            No nosso ordenamento jurídico, no estabelecimento da paternidade, vigora a presunção pater is est quem nuptiae demonstrant, exigindo o casamento dos progenitores, o nascimento ou a concepção na constância do matrimónio, a maternidade da mulher e a paternidade do marido (artigo 1826º, 1, do Código Civil)[1]. Paternidade presumida que constará obrigatoriamente do registo de nascimento do filho, salvo se a mãe ou o marido declararem que o pai não é o marido da mãe (artigo 1835º, 1, do Código Civil).
  A paternidade pode, no entanto, ser afastada pelo marido da mãe, por esta, pelo filho ou pelo Ministério Público, provando que, em função das circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é altamente improvável (artigo 1839º do Código Civil). In casu, é o “marido da mãe” (agora divorciado) que vem impugnar a presunção de paternidade inscrita no registo. À data da propositura da acção (11 de Abril de 2007), estava o presumido pai legitimado a instaurar a acção dentro do prazo de dois anos contados desde a data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade (artigo 1842º, 1, a), do Código Civil).

É a inconstitucionalidade desta norma, aplicada no caso concreto, que vem suscitada, por paralelismo de razões que levaram à declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 1817º, 1, do Código Civil, que fixava para a propositura da acção de investigação de maternidade e de paternidade (ex vi artigo 1873º do Código Civil) a menoridade do investigante ou os dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação[2]. Este juízo de inconstitucionalidade está hoje superado pelo alargamento daquele prazo para dez anos, face à nova redacção daquele preceito, introduzida pela Lei 14/2009, de 1 de Abril. Vale dizer  que  o  legislador,  sensível  aos  argumentos do Tribunal Constitucional, à  valorização  da  verdade  e  da  transparência,  à  promoção do valor da pessoa e da sua “auto-definição”, que inclui o conhecimento das origens genéticas e culturais, em suma ao apelidado “direito constitucional ao desenvolvimento da personalidade” (artigo 26º da Constituição da República Portuguesa)[3], não deixou de dar prevalência à segurança jurídica das relações de filiação. Certeza jurídica que, colocada em confronto com bens constitutivos da personalidade, de natureza eminentemente pessoal, não pode ser tida como direito absoluto, nem merecer protecção superior àquele. Ainda assim, sopesados os dois direitos, alargando latamente o prazo de interposição da acção, o legislador conferiu uma maior tutela àquele direito, sem postergar indefinidamente a segurança almejada para qualquer relação de filiação.

Na verdade, no âmbito da discussão da constitucionalidade da norma em causa, o próprio Tribunal Constitucional aceitava a imposição de limites temporais à procura da filiação paterna, afirmando ser legítima a fixação pela lei de prazos de caducidade do direito de acção de investigação da paternidade[4]. Ideia que perpassa das posições doutrinais expressas sobre a matéria, na afirmação da justeza do assegurar o interesse do progenitor em não ver protelar-se, excessiva ou indefinidamente, uma situação de insegurança e incerteza quanto à paternidade[5].

      Transpondo a identidade de razões para a acção de impugnação de paternidade, um ou outro juízo de inconstitucionalidade, em fiscalização concreta, foi ateado para o prazo de caducidade da acção, a que se refere o artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, em causa nos autos.

É axiomático que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do «direito fundamental à identidade pessoal» (artigo 26º da Constituição da República Portuguesa). Mas a segurança jurídica dos pretensos pais e seus herdeiros, a prevenção de excessivo alongamento da indefinição quanto ao estabelecimento dos vínculos de filiação e o progressivo envelhecimento ou perecimento das provas, atento o perigo de falibilidade da prova testemunhal com o decurso do tempo, justificaram as soluções legislativas, doutrinais e jurisprudenciais que foram sendo assumidas. E foi na tentativa de compatibilização desses valores com a liberdade geral de acção e a cláusula de tutela geral da personalidade, que os prazos de instauração da acção foram, algumas vezes, corrigidos pelo juízo de inconstitucionalidade, sem deixar de ponderar que o prato da balança pende para o lado do filho, “para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens”[6].

Actualmente, são desvalorizáveis os argumentos de ordem pragmática que vinham sendo aduzidos. Os avanços científicos e o grau de certeza que os testes de ADN facultam, a nova realidade sociológica e a consequente recomposição do tecido social e a maior  consciencialização dos direitos de personalidade, incluindo do direito à identidade pessoal, esbatem os fundamentos para tão apertado limite temporal da acção.

            Factores que, associados ao interesse geral da estabilidade das relações sociais e familiares e ao sentimento de confiança em que deve basear-se a relação paternal, quando se trate de filhos nascidos na vigência do matrimónio, deram azo a que o Tribunal Constitucional tenha afastado a inconstitucionalidade da alínea a) do n.º 1 do artigo 1842º do Código Civil[7]. Não assim quanto à alínea c) do mesmo proémio, que fixava para a instauração da acção de impugnação de paternidade pelo filho até um ano depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de um ano a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe[8]. Situação em que o direito à identidade pessoal, enquanto direito à historicidade pessoal e conhecimento da identidade dos progenitores fundamentou o direito à impugnação da paternidade para além dos prazos de estabilidade tidos pelo legislador como razoáveis para alcançar a segurança jurídica das relações de filiação. É inquestionável que cada pessoa, enquanto unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal, inclui também o direito à identidade genética própria e, por isso, ao conhecimento dos vínculos de filiação, no ponto em que a pessoa é condicionada na sua personalidade pelo factor genético[9]. Contudo, nas situações de paternidade presumida, a necessidade de salvaguardar a harmonia e a paz familiar explica que a ordem jurídica aceite a relação de filiação como definitivamente adquirida, a partir de determinado momento, embora sabendo que ela pode não corresponder à realidade biológica normalmente subjacente ao vínculo de paternidade[10].

Sem escamotear que o princípio de verdade biológica é um princípio estruturante do direito da filiação, ele não foi erigido à veste constitucional e, por isso, não pode fundamentar, de per se, um juízo de inconstitucionalidade relativamente à norma que fixa um prazo de propositura da acção de impugnação da paternidade. Donde haja notícia de sistemas jurídicos que diferenciam os regimes da investigação de paternidade e da impugnação de paternidade. Enquanto admitem a investigação de paternidade sem limite, preferindo a tutela do direito inviolável à identidade pessoal à certeza jurídica, ao invés, limitam a impugnação de paternidade e aceitam que, decorrido o prazo fixado na lei, se consolide a paternidade presumida ainda que não corresponda à verdade biológica[11].
A diversidade de regime propugnado para a impugnação de paternidade está particularmente justificada pela protecção da família conjugal e o prazo de dois anos fixado para o exercício do direito de acção conta-se a partir do «conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade» (artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil), que corresponde a um facto subjectivo, do foro pessoal do presumido pai, simetrizando um prazo revestido de razoabilidade para permitir a ponderação dos interesses em jogo e a avaliação de vantagens e inconvenientes da decisão a assumir. É um tempo útil adequado à reflexão necessária para tomar a decisão de instaurar ou não a acção de impugnação de paternidade, prosseguindo a verdade biológica ou preservando a estabilidade da relação de filiação. Solução legal que não representa uma intolerável restrição ao direito de desenvolvimento da personalidade e que nos determina a não julgar inconstitucional a norma do artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil.

            Aliás, a caducidade da impugnação de paternidade é admitida pela generalidade dos sistemas jurídicos e o próprio Tribunal Europeu tem entendido que a previsão legal de prazos para a impugnação da paternidade presumida não é contrária à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

            Esta discussão perdeu alguma da sua relevância face ao prolongamento dos prazos de interposição da acção de impugnação de paternidade, introduzidos ao artigo 1842º, à semelhança do artigo 1817º, ambos do Código Civil, pela predita Lei 14/2009, de 1 de Abril. Alteração legislativa que denota que o legislador, não obstante prosseguir o princípio da verdade biológica, dá prevalência à segurança jurídica no estabelecimento da relação de filiação. Não deixa, ainda assim, de acautelar os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, fixando um prazo ajustado a obstar que o decurso do tempo precluda o estabelecimento da paternidade na conformidade entre a realidade biológica e a representação jurídica. Com efeito, na volvência ao caso de que nos ocupamos, um prazo de três anos a contar do conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade confere ao presumido pai um período de tempo suficiente para reflectir ou mesmo para buscar elementos factuais clarificadores que o levem a optar por instaurar a acção, na busca da verdade biológica, ou abster-se de impulsionar os termos da acção, protegendo a estabilidade das relações sociais e familiares alcançadas.

            Reforçado, por esta via, o juízo de constitucionalidade já efectuado, esta nova opção legislativa aplica-se à situação em apreço (artigo 3º da mencionada Lei, a exarar a sua aplicação aos processos pendentes).

            Centrando-nos na realidade factual dada por demonstrada, vemos que a menor nasceu em 16 de Fevereiro de 1997 e a acção foi instaurada em 11 de Abril de 2007, ou seja mais de dez anos depois do nascimento da menor. No entanto, o estabelecido prazo de três anos para o marido da mãe impugnar a paternidade, como acentuámos, conta-se desde o conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade. O autor impugnante omite qualquer referência à data em que teve conhecimento de circunstâncias que o levaram a concluir não ser o pai da menor C.... Cremos não lhe incumbir essa alegação, ao invés do que defende a ré contestante, que a considera “uma condição sine qua non para a propositura da acção”. A estatuição legal de que o autor deve provar que, de acordo com as circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável (n.º 2 do artigo 1839º do Código Civil) não tem a virtualidade de conduzir à exigência da invocação da data em que teve conhecimento das circunstâncias concludentes da sua não paternidade.

            O ónus de alegação está directa e intrinsecamente ligado ao ónus da prova, querendo significar que aquele sobre que impende o ónus probatório terá de alegar os factos correspondentes, sob pena de não poder efectuar essa prova, salvo daqueles que a contraparte tiver alegado e que, por força do princípio da aquisição processual, poderão ser submetidos a prova. À luz das regras gerais o autor tem de alegar os factos constitutivos do direito invocado – ou seja, a causa de pedir – e o réu os que sejam impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito – isto é, os que respeitam às excepções. Nessa medida, ao autor cabe alegar todas as circunstâncias reveladoras de que a paternidade do marido da mãe é improvável e aos demandados os factos que impeçam, modifiquem ou extingam essa pretensão, como seja a caducidade do direito do autor. Correspondentemente, ao autor cabe o ónus da prova da causa de pedir e à ré da matéria exceptiva (artigo 342º do Código Civil).
            Do exposto resulta ter o demandante efectuado a ajustada conformação factual da causa, sem que lhe incumba qualquer alegação recondutível à tempestividade da acção.

Em causa o prazo de interposição da acção e, para isso, especialmente prescreve o artigo 343º, 2, do Código Civil, que cabe ao réu a prova do prazo ter já decorrido. Por tal razão, incide sobre as demandadas o ónus de provar que o termo inicial de tal prazo ocorreu em momento temporal que tornou intempestiva a propositura da acção. Regra que, ainda assim, não altera a regra geral: estando em causa a “excepção peremptória de caducidade”, a prova dos factos integradores do decurso do prazo preclusivo do exercício do direito à impugnação de paternidade cabe às rés. De qualquer modo, a distribuição do ónus da prova tem o seu efeito prático no momento da decisão judicial, para saber sobre quem recai a solução desfavorável do litígio ou de determinada questão decidenda caso se não prove o facto que integra a hipótese normativa. O problema da distribuição do ónus da prova traduz-se, portanto, em determinar quais os elementos verdadeiramente constitutivos da norma fundamentadora do direito invocado em juízo e os que, já fora dela, constituem elemento de uma norma que se lhe oponha (contra-norma impeditiva, modificativa ou extintiva) decidindo contra a parte a quem interesse no processo a aplicação da norma constitutiva do direito ou da contra-norma[12].

            Discussão que, no caso, perde relevância por nos movermos em matéria excluída da disponibilidade das partes, a determinar que a caducidade seja do conhecimento oficioso (artigo 333º, 1, do Código Civil).

            A tal respeito está comprovado que nos autos de regulação do exercício do poder paternal da menor C....., cuja sentença data de 10 de Julho de 1998, transitada em julgado, está dado como facto provado “O requerido nunca teve qualquer contacto com a menor; está convicto que a menor não é sua filha”. Facto dado por demonstrado em processo judicial, com os mesmos pleiteantes e com exercício do contraditório, a justificar o apelo ao princípio do valor extraprocessual das provas (artigo 522º, 1, do Código de Processo Civil). Logo, o mais tardar, em Julho de 1998 já o demandante estava na posse das circunstâncias que o fazem suspeitar da sua não paternidade. Todavia, só cerca de nove anos depois resolveu accionar judicialmente a menor e sua mãe para impugnar a sua paternidade. Donde decorre que, à luz da norma referida, esse direito está afectado pela caducidade.

            Não ignoramos que a retroactividade da dita Lei nº 14/2009 pode dar azo à sua inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança. Efectivamente, tal como dissemos, prescreve o seu artigo 3º que as alterações que introduz se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.

            A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 1817º do Código Civil corresponde a reputar de inconstitucional o prazo de dois anos subsequentes à maioridade do filho para instaurar a acção. Porém, divulgou-se a interpretação de que a  inconstitucionalidade do prazo de caducidade não repristina qualquer norma, apenas deixa sem prazo as acções em causa e a nossa jurisprudência trilhou o caminho de supressão de qualquer prazo para a instauração daquela acção. Chegou mesmo a defender-se que o direito a conhecer a paternidade é um direito inviolável e imprescritível[13]. É assim que a aplicação retroactiva da Lei 14/2009, ao fixar prazos de caducidade para as acções de investigação de paternidade, vem cercear as expectativas dos cidadãos que, à luz da inconstitucionalidade do anterior artigo 1817º do Código Civil, estavam convictos que tais acções eram imprescritíveis. Adução que pode violar as legítimas expectativas dos visados, ao implicar uma mudança na ordem jurídica e no enquadramento das situações de facto desses sujeitos, de forma irrazoável e inesperada, com a qual podiam contar, sem que sejam oponíveis outros interesses de superior importância constitucional que possam justificar o sacrifício dos sujeitos afectados.

Porém, só ocorrerá tal violação se puder defender-se a validade das expectativas, no sentido de que tenham fundamento jurídico e que a previsibilidade da manutenção da posição jurídica em causa se fundamente em valores reconhecidos no sistema. Terá de ser objectivamente previsível que se mantenha uma certa regulamentação jurídica no plano dos factos, por não haver indícios de futura alteração legislativa, e também no plano dos valores jurídicos, por não se vislumbrar a sua precariedade no momento em que se constitui a situação jurídica. Assim, deve reunir-se uma perspectiva privatística do investimento na confiança com uma perspectiva publicista da validade das expectativas por serem legitimamente fundadas[14].

      O princípio do Estado de direito (artigo 2º CRP) é  “conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia de sujeição do poder a princípios e regras jurídicas,  garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança” e tem como consequência “a protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça (especialmente por parte do Estado)”[15].

Princípio que exprime a realização de uma especial exigência de previsibilidade, protegendo os sujeitos cujas posições jurídicas sejam objectivamente lesadas por determinados quadros injustificados de instabilidade, o apelidado princípio da confiança[16].

Pronunciando-se concretamente sobre a matéria, o Tribunal Constitucional defende a tutela do princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança quando ocorre a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, numa mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela cons­tantes não possam contar; e quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes, avaliados face ao princípio da proporcionalidade[17].

Logo, a aplicação retroactiva violará nessa medida o princípio da confiança ínsito ao princípio do Estado de direito democrático decorrente do artigo 2º da CRP, acarretando a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 14/2009, quando aplicado a acções intentadas posteriormente à publicitação do Acórdão nº 23/2006 e anteriormente à entrada em vigor daquela Lei (02/04/2009)[18].

Este juízo de inconstitucionalidade, por paridade de razões, poder-se-á estender à retroactividade da norma correspondente para a acção de impugnação de paternidade, em função dos prazos previstos no artigo 1842º do Código Civil. Mas no caso concreto esse princípio da confiança não foi violado: quando foi declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 1817º do Código Civil, em 8 de Fevereiro de 2006 (eventualmente extensível, nos termos expostos, às acções de impugnação de paternidade), há muito (há cerca de seis anos) que o autor tinha deixado precludir o seu direito de acção para impugnar a sua paternidade da menor C....., sem que pudesse acalentar qualquer expectativa na imprescritibilidade da acção. O seu direito de acção estava extinto e não podia ser renovado. De tudo resulta que, no caso vertente, a declaração de procedência da excepção peremptória de caducidade é a que melhor serve a compatibilização dos interesses em jogo: os da menor, que vê mantido o status quo familiar, e os do impugnante, que preserva um vínculo de filiação social, ainda que lhe possa faltar o fundamento biológico. Na valoração dos dois interesses em jogo, cremos que sobreleva a manutenção do estado jurídico e social estabilizado por um lato período de dez anos (a menor nasceu em 16 de Fevereiro de 1997 e a acção foi interposta em 11 de Abril de 2007).

Não há, pois, fundamento para julgarmos verificada a arguida inconstitucionalidade e improcedente a excepção peremptória de caducidade.


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IV. Decisão

Perante o exposto, negamos provimento ao recurso e confirmamos a decisão apelada.

Custas a cargo do apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Honorários tabelares ao Exm.º patrono nomeado.


[1] Eduardo dos Santos, “Direito da Família”, ed. 1999, pág. 469.
[2] Ac. T. C. n.º 23/2006, de 10 de Janeiro, publicado in DR, I Série-A, de 8 de Fevereiro.
[3] Paulo Mota Pinto, “O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade”, in “Portugal-Brasil”, ano 2000.

[4] Acórdão n.º 456/2003, 14 de Outubro de 2003, www.dgsi.pt, link TC.

[5] Guilherme de Oliveira, “O estabelecimento da filiação - mudança recente e perspectivas, Temas de Direito da Família”, pág. 98.

[6] Acórdão nº 589/07, de 28 de Novembro, www.dgsi.pt, link TC.

[7] Acórdãos n.º 473/07 e 589/07, de 28 de Novembro de 2007, www.dgsi.pt, link TC.
[8] Acórdãos n.ºs 609/07, de 11 de Dezembro de 200,  e 279/08, de 14 de Maio de 2008, www.dgsi.pt, link TC.

[9] Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesas”, anotada, 4ª ed., I, pág. 462.
[10] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, V, ed. 1995, pág. 210.

[11] Guilherme de Oliveira, “O Critério Jurídico da Paternidade” ed., 1998, pág. 372.

[12] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil, III, pág. 352.
[13] Acs. STJ 31-01-2007, 17-04-2008 e 3-07-2008, www.dgsi.pt, referências 06A2489, 07A2736, 07B3451, respectivamente.
[14] Ac. Comissão Constitucional nº 437, de 26 de Janeiro de 1982, in BMJ nº 314, pág. 141.

[15] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, págs. 205 e 206.

[16] Blanco de Morais, “Segurança Jurídica e Justiça Constitucional”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XLI, n.º 2, 2000, pág. 625.

[17] Ac.188/90, de 22 de Abril de 1990; Ac.141/02, de 9 de Abril de 2002.
[18] Ac. R. C. 23-06-2009, www.dgsi.pt, processo 1000/06.2TBCNT.C1.