Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
260/14.0GDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: JUIZ DE INSTRUÇÃO
ARQUIVAMENTO
DISPENSA DA PENA
Data do Acordão: 01/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JI CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 280.º; 283.º E 308.º DO CPP; ARTS. 181.º, 183.º E 186.º DO CP
Sumário: I - A insusceptibilidade de impugnação, indicada no n.º 3 do art. 280 do CPP, refere-se às situações em que esteja em causa o juízo de oportunidade do arquivamento, esse sim insindicável por via de reclamação hierárquica ou por meio de recurso.

II - Quando o fundamento for o da violação da lei por falta de verificação dos pressupostos legais para a dispensa da pena (pressupostos materiais exigidos pela lei substantiva e pressupostos processuais estabelecidos nos n.ºs 1 e 2 do citado artigo 280.º), a decisão de arquivamento considerada ilegal é susceptível de impugnação através de reclamação hierárquica ou, em casos como os dos presentes autos, por meio de recurso.

III - Estando em causa prova indiciária, própria da fase de instrução, não pode o tribunal dar como provado que a conduta do arguido foi provocada por actuação ilícita do ofendido, conforme prevê o citado artigo 186.º, n.º 2.

IV - A decisão de arquivamento do processo com base em dispensa da pena, tomada na fase da instrução, nos termos previstos no artigo 280.º, n.º 2 do CPP, pressupõe a existência de indícios suficientes da prática do crime e da responsabilidade do arguido.

V - O arquivamento permite pôr em prática o princípio da oportunidade como forma de justiça consensual que procura evitar a estigmatização do arguido que um processo quase sempre acarreta e promover a sua melhor reinserção social que, como é sabido, constitui uma das finalidades do direito penal.

VI - Para além das razões ligadas à economia processual assentes na circunstância de que o tribunal sempre poderia a final dispensar o arguido da pena, ainda que declarando a sua culpa.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório 

1. Nos autos de instrução n.º 260/14.0GDCBR, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo de Instrução Criminal de Coimbra – Juiz 1 –, a Mma. Juíza de Instrução, entendendo que estavam verificados todos os pressupostos da dispensa de pena, decidiu arquivar o processo relativamente ao crime de injúria, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, imputado ao arguido A... na acusação particular que contra ele havia sido deduzida pelo assistente B... , proferindo, consequentemente, despacho de não pronúncia quanto ao mesmo.

2. Inconformado com a decisão, dela recorreu o assistente B... , finalizando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

“1 – O arguido A... foi acusado pelo crime de injúrias, p. e p. pelo art. 181º, nº1 e 183º, n.º 1, al. b) do CP.

2 – Foi pelo mesmo requerida a abertura de instrução pugnando pela dispensa de pena.

3 – Veio a Mma Juiz de Instrução arquivar os presentes Autos, considerando cumpridos os pressupostos legais da dispensa de pena, designadamente,

4 – que a sua actuação foi uma consequência da conduta reprovável de seu pai, B... .

5 – O Arguido A... reconheceu ter injuriado o pai.

6 – Ora, estando perante prova indiciária, não pode a JIC dar como provado o requisito de que conduta do Arguido foi provocada por actuação ilícita do ofendido, constante do n.º 2 do art. 186º do CP.” 

7 – admite como possível o Ofendido a dispensa de pena do seu filho em sede de julgamento caso este faça prova da ilicitude da sua conduta.

8 – Efectuou a JIC um julgamento antecipado e despropositado do Ofendido/Arguido B... , resultando violado o art. 186º, n.º 2 do CP..

Face ao exposto devem V.as Ex.as proferir decisão em recurso que revogue a produzida pelo JIC do Tribunal a quo, proferindo outra que pr4ofira despacho de pronúncia, fazendo-se assim, JUSTIÇA”.

3. Admitido o recurso, o Digno Magistrado do Ministério Público apresentou resposta em que pugna pelo seu não provimento e consequente manutenção do despacho recorrido, para o que invoca, no essencial, que estão reunidos todos os pressupostos para a aplicação da dispensa da pena, nos termos do artigo 280.º do Código de Processo Penal (doravante CPP), sendo certo que no caso do crime imputado o referido instituto se encontra expressamente previsto no artigo 186.º, n.º 2 do Código Penal e que em sede de inquérito e de instrução o grau probatório que é exigível corresponde ao da existência de indícios suficientes, pelo que tal bastará para determinar o arquivamento com base em dispensa da pena.

4. Respondeu também ao recurso o arguido A... , apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

“A. De acordo com o disposto no art. 280.º, n.º 3 do CPP, “a decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação”. Ou seja, a lei veda a possibilidade de reagir a esta decisão quer através de recurso, quer por via hierárquica.

B. Versando a decisão recorrida sobre o arquivamento por verificação dos pressupostos da dispensa de pena, ao abrigo do disposto no art. 280.º, n.º 2 do CPP, o recurso interposto pelo assistente é inadmissível, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 280.º, n.º 3 e 399.º, ambos do CPP.

C. Acresce que, dos autos resulta suficientemente indiciada a existência de agressões físicas, verbais e psicológicas por parte do assistente/recorrente dirigidas ao ora arguido, seu filho.

D. A existência de uma acusação pública contra o assistente, pela prática do crime de violência doméstica contra o arguido pelos factos ocorridos na noite de 28/09/2014 (e por outros), resulta da recolha, durante o inquérito, de indícios suficientes de se ter verificado o crime e de o assistente ser o seu agente.

E. Existe de prova indiciária quanto à verificação dos factos que constituem crime e de que assistente é responsável por esses factos.

F. Esses indícios suficientes são quanto basta para aferir da existência de uma conduta repreensível por parte do assistente contra o arguido A... , que provocou a ofensa aqui em colação.

G. A Merítissima JIC limitou-se a concluir que “a actuação do arguido A... teve lugar na sequência de condutas altamente reprováveis por parte do seu pai B... ”. A Merítissima JIC nunca conclui, ao contrário do referido pelo recorrente na sua conclusão n.º 6 que “a conduta do arguido foi provocada por actuação ilícita do ofendido”.

H. Sendo que a conduta repreensível do ofendido é quanto basta para o preenchimento do requisito do n.º 2 do art. 186.º do CP.

I. Verificando-se os restantes pressupostos para a dispensa de pena, estabelecidos pelo art. 74.º do CP, que, aliás, não foram postos em crise pelo recorrente no seu recurso, não merece qualquer censura a decisão recorrida, devendo manter-se o despacho de não pronúncia proferido pelo Tribunal a quo, com as legais consequências.

NESTES TERMOS E COM DOUTO SUPRIMENTO DEVE O RECURSO INTERPOSTO PELO RECORRENTE/ASSISTENTE SER JULGADO IMPROCEDENTE E SER CONFIRMADO O DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS”.

5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do CPP, emitiu parecer em que acompanha a resposta apresentada pelo Digno Magistrado do Ministério Público na 1.ª instância e manifesta concordância com os fundamentos invocados na resposta do arguido A... , pugnando, assim, pela improcedência do recurso e manutenção do despacho recorrido.

6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.

7. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre agora decidir.

                                                         *

II – Fundamentação 

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do CPP que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões formuladas na motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar[1], sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso[2].

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, a questão a decidir prende-se com o preenchimento do pressuposto material da dispensa da pena previsto no artigo 186.º, n.º 2 do Código Penal.

                                                        *

2. O despacho recorrido.

2.1. A decisão instrutória objecto do presente recurso tem o seguinte teor (transcrição da parte relevante):

“Vem o arguido A... requerer a abertura de instrução em virtude de não concordar com a acusação particular contra si deduzida, pugnando pela sua não pronúncia ou, subsidiariamente, pelo arquivamento do processo, nos termos do artigo 280º do Código Penal.

Em síntese, alega não é verdade que tenha dito que o assistente sempre tratou a sua mãe como uma rameira; a expressão cabrão foi proferida pelo arguido no contexto descrito na acusação pública; o arguido encontrava-se a ser agredido e estava a tentar defender-se; o seu pai pergunta-lhe se estava armado em carapau de corrida e apelidou-o de filho da puta; o arguido disse que o pai não respeitava a memória da mãe; o arguido proferiu a expressão cabrão quando estava a ser sufocado, esbofeteado e insultado; não a proferiu com a intenção de atingir a honra ou consideração do assistente; foi uma expressão de raiva, de impotência, atirada para o ar; o arguido agiu, pois, em legítima defesa e, como tal, não deve ser considerada ilícita a sua conduta; aliás, o arguido não agiu com intenção de lesar a honra e consideração do assistente; caso assim não se entenda, requer a aplicação do artigo 280º do Código de Processo Penal, isto é, o arquivamento em caso de dispensa de pena, por se verificarem preenchidos os pressupostos do artigo 186º do Código Penal; claramente o ofendido humilhou, agrediu e insultou o arguido e foi na sequência dessa conduta que o arguido proferiu a palavra “cabrão”; o arguido é pessoa bem integrada na sociedade e a ilicitude do facto e a culpa são diminutas; o arguido está na disposição de pedir desculpas ao seu pai.

                                                              *

Não se realizaram diligências instrutórias por não terem sido requeridas.

Realizou-se o debate instrutório com observância do legal formalismo.

                                                              *

O Tribunal é competente.

Não há nulidades, ilegitimidades, excepções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

                                                              *

Cumpre apreciar e decidir.

                                                              *

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 286º do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Por sua vez, determina o artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal que, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, devendo, em caso contrário, proferir despacho de não pronúncia.

Assim, a função da presente instrução é a de apreciar se nos autos existem indícios da prática pelo arguido do crime de injúria de que vem acusado que sejam suficientes para o submeter a julgamento e ainda apreciar as demais questões suscitadas no RAI.

Face ao disposto nos artigos 283º, nº 2 e 308º, nº 2 do Código de Processo Penal, consideram-se indícios suficientes “sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.”

Haverá indícios suficientes quando está em causa um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados, isto é, vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele.

Consequentemente, fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem os mesmos, para efeitos de prolação do despacho de pronúncia quando:

- os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si fizerem pressentir a culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior;

- se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou

- quando se pressinta que da ampla discussão em audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido de condenação futura.

Para a pronúncia não é necessário uma certeza da existência da infracção, bastando uma grande probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Deve assim o Juiz de Instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida, fazendo um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.

                                                            *

Vem o arguido acusado por um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, nº1, com referência ao artigo 183º, nº 1, alínea b), ambos do Código Penal.

Nos termos do artigo 181º, nº 1 do Código Penal, “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sobre a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias”.

Dispõe o artigo 183º, nº 1, alínea b) do Código Penal que “se no caso dos crimes previstos nos artigos 180º, 181º e 182º, tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação, as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.

“A honra é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, á probidade, á rectidão, á lealdade, ao carácter”.

Por outro lado, a “consideração é o património de bom nome, de crédito, de confiança, que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros.

A consideração é o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública” (cfr. Leal Henriques e Simas Santos, “O Código Penal de 82, vol. 2, pág. 196).

Acresce que o crime em causa é um crime doloso, o que quer significar que só estão arredadas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes, sendo, por isso, suficiente a imputação baseada tão só em dolo eventual.

Por outro lado, é de salientar que, hoje, está superada a antiga controvérsia no que tocava á exigência de um chamado dolo específico. E superada no sentido de que não se pode conceber uma tal exigência. Basta uma actuação dolosa, desde que se integre numa das modalidades do artigo 14º do Código Penal.

Assim, a imputação de um facto ofensivo, ainda que sob a forma de suspeita; a formulação de um juízo de desvalor ou a reprodução de uma imputação ou de um juízo, que seja levado a terceiros, constitui um crime de difamação a menos que tal imputação surja para realizar interesses legítimos (por exemplo no exercício do direito de informar ou no cumprimento de um dever) e se faça a prova da verdade da imputação ou a mesma seja tida, de boa fé, como verdadeira (artigo 180º, nº 2 do Código Penal). Tais condições objectivas de punibilidade são requisitos cumulativos que forçosamente se têm que verificar de modo a afastar a punição do agente.

                                                              *

Cumpre agora apreciar os indícios recolhidos em sede de inquérito e a questões suscitadas no RAI.

As expressões de que o arguido vem acusado, são as vertidas nos artigos 2º e 3º da acusação de fls. 297; isto é, “cabrão” e “sempre tratou a mãe, já falecida, como uma rameira”.

A primeira das expressões está confessada pelo arguido, como resulta das suas declarações prestadas a fls.42 do processo apenso.

A segunda das expressões apenas foi referida pelos denunciantes do referido apenso, B... e C... . Foi por estes efectuada a participação e mais tarde confirmada pelos mesmos. O arguido nega ter proferido tal expressão e nenhuma outra prova foi produzida. Entende-se que apenas a palavras dos denunciantes revela-se insuficiente para indiciar a matéria que participam. Assim, no que respeita a esta segunda expressão não se considera indiciada.

A expressão “cabrão”, como se disse, foi confessada e considera-se indiciada.

Vejamos agora o contexto em que a mesma foi proferida.

Relembra-se de que a acusação pública não foi objecto de instrução. Os factos aí vertidos consideram-se indiciados. Nessa peça processual, mais precisamente a fls.291 e no que respeita ao episódio aqui em causa, consta que “o arguido B... ordenou ao A... que pegasse na roupa e a pusesse na máquina como lhe estava a ser mandado, apertou-lhe o pescoço com uma das mãos e empurrou-o contra uma parede. Com a outra mão e enquanto ele se tentava proteger, desferiu-lhe várias bofetadas que o atingiram na cabeça. Agarrado, foi empurrado de costas contra o balcão da cozinha, enquanto o arguido B... o tentava dobrar para trás contra o tampo, o que sucedeu mais do que uma vez. Na última das investidas escorregou e caiu no chão, tendo-se agarrado ás pernas do pai”.

O que está de acordo com todos os relatos feitos nos autos pelo A... . A título de exemplo vejamos o de fls.41 e seguintes do processo apenso. Diz o A... que foi empurrado pelo pai, com uma mão no pescoço. Tentou defender-se segurando o braço do pai, para que este deixasse de o sufocar; após isto andou agarrado pelo pai alguns minutos, ambos a tentar imobilizar-se um ao outro. No entanto, como é mais frágil, o pai voltou a arrastá-lo pela cozinha, vindo a pressionar as costas contra o tampo da bancada da cozinha, num primeiro momento e contra a esquina da cozinha num segundo momento. Em acto contínuo o pai desfere-lhe dois estalos e este tenta defender-se. O pai pergunta-lhe: estás armado em carapau de corrida?” Sofre nesta altura nova tentativa de agressão por parte do pai. Na sequência de tal e perante a dificuldade de se defender, apelidou o pai de cabrão. O pai apelidou-o de filho da puta.

Frisa-se que este episódio de agressões teve origem em virtude do A... ter tirado uns tapetes e toalhas que estavam na máquina para lavar a sua roupa, já que a empregada tratava da roupa de todos da casa à excepção da do A... , sendo este a tratar da sua roupa.

Afirma o arguido que agiu em legítima defesa.

Vejamos em que consiste este instituto.

Estipula o artigo 31º, nºs 1 e 2, alínea a) do Código Penal que o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. Nomeadamente não é ilícito o facto praticado em legítima defesa, sendo certo que constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro - artigo 32º do Código Penal.

Assim, são requisitos da legítima defesa a existência de uma agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro; tal agressão deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter o direito de a fazer; não se exige que ele actue com dolo, com mera culpa ou mesmo que seja imputável; é por isso admissível a legítima defesa contra actos praticados por inimputáveis ou por pessoas agindo em erro.

Por outro lado, a defesa circunscreve-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor. Aqui se inclui, como requisito da legítima defesa, a impossibilidade de recorrer á força pública, por se tratar de um aspecto de necessidade do meio. Trata-se de afloramento do princípio de que deve ser a força pública a actuar, quando se encontra em posição de o poder fazer, sendo a força privada subsidiária, e este requisito continua a ser exigido pela Constituição da Republica Portuguesa.

Por último exige-se o “animus deffendendi”, ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente - cfr. Maia Gonçalves, Código Penal anot. 10º ed., pág. 192.

Pelo que fica dito, facilmente se conclui que não estamos perante uma situação de legítima defesa. Chamar cabrão ao pai não era o meio adequado nem necessário para ele parar de o agredir.

Vejamos agora se estamos perante uma situação de dispensa de pena.

Nos termos do artigo 186º, nº 2 do Código Penal “o tribunal pode ainda dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido”.

Pelo que fica dito supra, dúvidas não restam de que a actuação do arguido A... teve lugar na sequência de condutas altamente reprováveis por parte de seu pai B... . Está, pois, verificado este requisito.

Nos termos do artigo 280º, nº2 do Código de Processo Penal relativo ao arquivamento por dispensa de pena, “se a acusação tiver sido já deduzida, pode o juiz de instrução, enquanto esta decorrer, arquivar o processo com a concordância do Ministério Público e do arguido, se se verificarem os pressupostos da dispensa da pena”.

O arguido deu a sua concordância no RAI e o M.P. igualmente no debate instrutório. Estão, pois, verificados igualmente tais requisitos.

Por último, faz-se uma referência ao disposto no artigo 74º do Código Penal. Dispõe esta norma legal que:

1 - Quando o crime for punível com pena de prisão não superior a 6 meses, ou só com multa não superior a 120 dias, pode o tribunal declarar o réu culpado mas não aplicar qualquer pena se:

a) A ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas;

b) O dano tiver sido reparado; e

c) À dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção.

2 - Se o juiz tiver razões para crer que a reparação do dano está em vias de se verificar, pode adiar a sentença para reapreciação do caso dentro de 1 ano, em dia que logo marcará.

3 - Quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do n.º 1

Tal como consta no AC. da RC de 21.3.2012, com o qual se concorda “a dispensa de pena, mesmo nos casos avulsamente previstos no Código Penal, está sujeita ao regime geral do art.º 74º, do mesmo Diploma, como expressamente resulta do n.º 3, deste normativo, que dispõe que «quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do nº 1», ou seja, se a ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas (alínea a)), se o dano tiver sido reparado (alínea b)) e se à dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção (alínea c))”.

No presente caso e face ao circunstancialismo supra relatado entende-se que a culpa é diminuta, o arguido é pessoa bem inserida, neste momento já não reside com o pai e não se verificam razões de prevenção que impeçam a aplicação do Instituto. Por outro lado, não resultam indiciados danos que tenham que ser reparados.

Pelo que fica dito entende-se que estão verificados todos os pressupostos da dispensa de pena, devendo os autos serem arquivados no que respeita ao arguido A... e consequentemente ser proferido despacho de não pronúncia.

                                                             *

Nestes termos e sem necessidade de tecer mais considerações, por se encontrarem verificados todos os pressupostos da dispensa de pena, decide-se arquivar os presentes autos no que respeita ao arguido A... e ao crime de injúria, previsto e punido pelos artigos 181º, nº 1 e 183º, nº 1, alínea b) do Código Penal, de que vinha acusado e, consequentemente proferir despacho de não pronúncia quanto ao mesmo”.

                                                      *                                                      

3. Apreciando

3.1. A título prévio cumpre referir que o despacho proferido pela Mma. Juíza de instrução, acima transcrito, é susceptível de impugnação por via de recurso, nos termos em que o foi pelo assistente nos presentes autos.

A este respeito importa recordar que o instituto do arquivamento do processo em caso de dispensa da pena, regulado no artigo 280.º do CPP, estabelece no seu n.º 2 que “se a acusação tiver sido já deduzida, pode o juiz de instrução, enquanto esta decorrer, arquivar o processo com a concordância do Ministério Público e do arguido, se se verificarem os pressupostos da dispensa da pena”. Por sua vez, o n.º 3 do mesmo preceito dispõe que “a decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação”.

Ora, a insusceptibilidade de impugnação indicada naquele n.º 3 refere-se às situações em que esteja em causa o juízo de oportunidade do arquivamento, esse sim insindicável por via de reclamação hierárquica (quando o respectivo despacho for proferido pelo Ministério Público – artigo 280.º, n.º 1) ou por meio de recurso (no caso de despacho do juiz de instrução – artigo 280.º, n.º 2).

Já quando o fundamento for o da violação da lei por falta de verificação dos pressupostos legais para a dispensa da pena (pressupostos materiais exigidos pela lei substantiva e pressupostos processuais estabelecidos nos n.os 1 e 2 do citado artigo 280.º), a decisão de arquivamento considerada ilegal é susceptível de impugnação através de reclamação hierárquica (artigo 280.º, n.º 1) ou, em casos como os dos presentes autos, por meio de recurso (artigo 280.º, n.º 2).[3]

Assim, e ressalvando sempre o devido respeito, não merece acolhimento a posição assumida pelo arguido A... na resposta que apresentou, secundada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no sentido de que a decisão sub judice é irrecorrível.

                                                         *

3.2. Aqui chegados, há que apreciar a questão suscitada pelo recorrente e que se inscreve no âmbito do pressuposto material da dispensa de pena previsto no artigo 186.º, n.º 2 do Código Penal.

Em concreto, o recorrente insurge-se contra a conclusão alcançada pela Mma. Juíza a quo de que aquele pressuposto se encontra verificado, ou seja, que a actuação injuriosa do arguido A... foi uma consequência da conduta reprovável de seu pai, B... . Ora, estando em causa prova indiciária, própria da fase de instrução, não pode o tribunal dar como provado que a conduta do arguido foi provocada por actuação ilícita do ofendido, conforme prevê o citado artigo 186.º, n.º 2.

Por outro lado, pese embora o recorrente admita como possível que em sede de julgamento o seu filho seja dispensado da pena, caso o mesmo faça prova da ilicitude da conduta do pai, na presente fase instrutória a Mma. Juíza a quo efectuou um julgamento antecipado e despropositado do ofendido/arguido B... , incorrendo, assim, na violação do aludido normativo da lei penal.

Vejamos, pois.

Como é sabido, o arquivamento decretado ao abrigo do disposto no artigo 280.º do CPP consiste numa manifestação do princípio da oportunidade, entendido este como a faculdade reconhecida ao Ministério Público de promover ou não o processo em razão do juízo que formule sobre a sua conveniência.[4]

Neste contexto, para além das razões ligadas à economia processual assentes na circunstância de que o tribunal sempre poderia a final dispensar o arguido da pena, ainda que declarando a sua culpa, a consagração legal do citado arquivamento permite pôr em prática o princípio da oportunidade como forma de justiça consensual que procura evitar a estigmatização do arguido que um processo quase sempre acarreta e promover a sua melhor reinserção social que, como é sabido, constitui uma das finalidades do direito penal.[5]

Revertendo ao caso dos autos, no despacho recorrido a Mma. Juíza a quo entendeu que se encontravam verificados todos os pressupostos para a dispensa de pena, a decretar ao abrigo do preceituado no artigo 280.º, n.º 2 do CPP.

Para tanto considerou que se mostra indiciado que o arguido chamou “cabrão” ao seu pai, ora assistente, tal como lhe foi imputado na acusação particular deduzida nos autos, pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, com referência ao artigo 183.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, expressão que aquele confessou em sede de declarações prestadas no processo apenso. 

Por outro lado, no que importa para a apreciação da concreta questão suscitada ano recurso, assinalou que a acusação pública deduzida contra o assistente não foi objecto de instrução, pelo que os factos aí vertidos se consideram indiciados, sendo que nessa peça processual vem narrado o episódio em que o arguido A... proferiu a mencionada expressão contra o seu pai e ora assistente B... , o que está de acordo com todos os relatos que aquele efectuou nos autos: “o arguido B... ordenou ao A... que pegasse na roupa e a pusesse na máquina como lhe estava a ser mandado, apertou-lhe o pescoço com uma das mãos e empurrou-o contra uma parede. Com a outra mão e enquanto ele se tentava proteger, desferiu-lhe várias bofetadas que o atingiram na cabeça. Agarrado, foi empurrado de costas contra o balcão da cozinha, enquanto o arguido B... o tentava dobrar para trás contra o tampo, o que sucedeu mais do que uma vez. Na última das investidas escorregou e caiu no chão, tendo-se agarrado às pernas do pai”.

A Mma. Juíza a quo entendeu que do apontado circunstancialismo indiciado resulta que a actuação do arguido A... teve lugar na sequência de condutas altamente reprováveis por parte de seu pai B... , o que preenche o pressuposto de dispensa da pena previsto no artigo 186.º, n.º 2 do Código Penal, permitindo, assim, o arquivamento decretado.

Ora, segundo dispõe o normativo indicado, o tribunal pode dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido.

Trata-se de uma situação que fundamenta a dispensa facultativa de pena baseada na chamada provocação e que, como resulta do texto da referida norma, tanto pode consistir num acto ilícito do ofendido (conduta ilícita) como num acto lícito, mas socialmente reprovável (conduta repreensível)[6]. Ponto é que se verifique um nexo de causalidade entre o facto da provocação e a ofensa provocada, revelador da carência da pena inerente ao mecanismo de dispensa ali previsto, para além de que supõe uma conexão temporal da qual se retira que o agente agiu motivado pela provocação e que essa sua reacção foi proporcional ao acto de provocação.[7]

A decisão de arquivamento do processo com base em dispensa da pena, tomada na fase da instrução, nos termos previstos no artigo 280.º, n.º 2 do CPP, pressupõe a existência de indícios suficientes da prática do crime e da responsabilidade do arguido.

Considerando-se que os indícios são suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (artigo 283.º, n.º 2, ex vi artigo 308.º, n.º 2, ambos do CPP).

Sendo indiciário o grau de exigência probatória previsto para a fase da instrução e estando expressamente consagrada no citado artigo 280.º, n.º 2 a possibilidade de nessa sede se decidir pelo arquivamento com base em dispensa da pena, forçoso se torna concluir que, tal como sucede para o apuramento da prática do crime pelo arguido, a consubstanciação da chamada provocação como fundamento legal da dispensa da pena, nos termos previstos no artigo 186.º, n.º 2 do Código Penal, também se rege pelo aludido critério de indiciação suficiente, não sendo, portanto, exigível que a mesma deva obedecer a standard diverso do praticado na fase de instrução e que se imponha uma prova “para além de qualquer dúvida razoável”, própria do julgamento.

Bem se compreendendo, pois, que na identificação que a Mma. Juíza a quo fez do carácter provocatório do indiciado acto do recorrente tenha relevado a sua natureza altamente reprovável, no sentido de conduta repreensível, nos termos previstos na segunda hipótese indicada no artigo 186.º, n.º 2 do Código Penal, e não a qualificação da correspondente factualidade (indiciada) como ilícito criminal, nos moldes também contemplados na mesma norma.

Assim, face ao supra exposto e não se suscitando outras questões relativas à verificação dos demais requisitos substantivos e processuais de que depende o arquivamento com base em dispensa da pena, os quais foram objecto de análise no despacho recorrido, há que concluir no sentido do preenchimento de todas as condições legais para decretar o apontado arquivamento, razão pela qual o recurso deve improceder.

                                                                 *

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC (artigo 513.º, n.os 1 e 3 do CPP e artigo 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa).

                              

Coimbra, 10 de Janeiro de 2018

(O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária – artigo 94.º, n.º 2 do CPP)                   

(Helena Bolieiro - relatora)

(Brízida Martins - adjunto)

                                                        


[1] Na doutrina, cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113. Na jurisprudência, cf., entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág.242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág.271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193.
[2] Cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995.
  
  
[3] Neste sentido, cf. Acórdão desta Relação de 22-01-2014, proferido no processo n.º 148/13.1GCVIS.C1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt/>. Cf. ainda Germano Marques da Silva, op. cit., pág.106.
[4] Cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 1, Universidade Católica Editora, 2013, pág.83.
[5] Cf. Germano Marques da Silva, op. cit., vol. 3, págs.103 a104.
[6] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque. Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., Universidade Católica Editora, 2015, pág.739.
[7] Ibid.