Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
11/04.7IDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: FRAUDE FISCAL
CRIME CONTINUADO
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
Data do Acordão: 05/09/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ARTIGOS 23º DO RJFINA E 103º DO RGIT
Sumário: 1. É aplicável a lei em vigor à data dos factos, ainda que mais gravosa do que a anterior, à conduta que integra um crime continuado e que se prolonga pela vigência de mais do que uma lei.

2. O crime de fraude fiscal, previsto na al. b) do artigo 103º do RGIT, consuma-se ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente.

3. Presentemente, não é criminalmente punível como fraude fiscal a factualidade conducente à obtenção de vantagem ilegítima inferior a 15 000 euros, referida a cada uma das declarações a apresentar.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra:

I-

1. No processo comum com o n.º 11/04 do 1º Juízo da comarca de Cantanhede, A.... foi condenado -, pela prática dum crime de fraude fiscal previsto e punível nos art.º 23º do RJIFNA e 103º do RGIT, mas no caso punido com base no RJIFNA -, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de €10.
2. O arguido recorre, concluindo –

1) A sentença considerou os factos como integradores tão só dum crime de fraude fiscal, ficando consumido por ele o crime de abuso de confiança fiscal por inexistência de duas resoluções criminosas, com o que concordamos inteiramente.

2) Considerando o dispositivo actual que prevê e pune a fraude fiscal, os factos imputados ao arguido não integram o tipo [ art.º 103/ 2 e 3 do RGIT na redacção dada pelo art.º 60/1 da Lei 60-A/2005 de 30/12 que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2006].

3) Diz tal norma legal nas citadas alíneas que se a vantagem patrimonial ilegítima obtida pelo arguido pelos factos tipificadores do crime de fraude fiscal for inferior a €15.000 tais factos não são puníveis. Esclarece o n0 3 que os valores a considerar são os que devam constar de cada dec1aração a apresentar à administração tributaria.

4) Nenhuma declaração a apresentar pelo arguido relativamente aos impostos considerados em falta, quer de IRS quer de IVA, é de valor [igual ou ] superior a €15.000.

5) Atento o art.º 26/ 1 do RJIFNA , legislação aplicável à data dos factos, ou mesmo pela legislação actual face ao art.º 44/1 do RGIT, os autos instaurados contra o arguido deveriam ter sido arquivados já que ocorrem os pressupostos de dispensa de pena e o arguido repôs a verdade sobre a sua situação fiscal e pagou todas as dividas e acréscimos.

6) Ou deve o arguido ficar isento de pena por reunir todos os requisitos legais para o efeito previstos no artigo 22º do RGIT, visto a ilicitude do facto e a culpa do arguido, não serem muito graves e todas as prestações tributárias e acréscimos terem sido pagos pelo arguido no decurso da acção inspectiva e no seu caso concreto as razões de prevenção não se oporem a tal dispensa e o crime ser punível com pena de prisão até 3 anos.

7) A sentença violou os art.ºs 103/ 2 e 3, 44 e 22 do RGIT e o art.º 26º do RGIFNA.

3. Respondeu o Ministério Público junto do tribunal recorrido, pugnando pelo decidido, no que foi secundado pelo Ex.mo Procurador - Geral Adjunto .
4. Colheram-se os vistos e realizou-se a audiência.

Cumpre apreciar e decidir!

II-

1. Decisão de facto –

A) Factos provados –

1) O arguido , economista de profissão, é também administrador de empreses, tendo sido sócio/gerente , entre outras, da empresa« B...» que por força das graves dificuldades económicas patenteadas, veio a cessar a sua actividade, tendo sido declarada falida em Janeiro de 2005.

2) Na posse das respectivas instalações, sitas na zona industrial desta cidade de Cantanhede, o arguido, no final da década de 90, decidiu prosseguir com a actividade comercial, no âmbito do fabrico e comercialização de toalheiros e sanitários, mas, desta vez, à margem de qualquer incidência e controlo fiscais.

3) Formulou, pois, o firme propósito de se furtar ao pagamento dos impostos devidos ao Estado pelo exercício da referida actividade comercial, escudando-se para o efeito numa pseudo/empresa denominada «C....» (portanto, inexistente, quer no cadastro da D.G.C.I. quer no registo comercial), ocultando da Administração Tributária não só a existência da actividade comercial propriamente dita como também os proveitos económicos resultantes dessa mesma actividade, que eram depositados numa conta do «Millenium BCP», em seu nome pessoal (cfr. fís. 957 a 985).

4) Assim, muito embora estivesse obrigado a declarar o inicio da respectiva actividade (em 1999) [cfr. art0 112/ 1 do C.I.R.S. e 28/1 alínea a) do C.I.V.A.], - o que sabia -, o arguido, com vista a criar a aparência de omissão de qualquer tipo de rendimento tributável, não apresentou qualquer tipo de declaração.

5) Ademais, muito embora tenha exercido de modo habitual, continuado e sem interrupções, a sua actividade de fabrico e comercialização de toalheiros e sanitários, vendendo os produtos aos seus vários clientes e cobrando-lhes o preço respectivo, o arguido, sempre em desenvolvimento do mesmo propósito de não pagamento dos impostos devidos ao Estado, designadamente do I.R.S., não enviou as declarações de I.R.S. relativas aos anos de 1999, 2000, 2001, 2002 e 2003, que deveriam ser entregues até ao dia 30 de Março do ano seguinte ao exercício a que diziam respeito (cfr. art.ºs 57 e 60 do C.I.R.S.) - o que sabia -, alcançando por via disso e das supra citadas omissões uma vantagem patrimonial indevida no montante de € 5.584,36 no ano de 2001 e de € 3.853,35, no ano de 2002, correspondente ao I.R.S. devido e não pago ao Estado.

6) Da mesma forma, pese embora tenha exercido de modo habitual, continuado e sem interrupções, a sua actividade de fabrico e comercialização de toalheiros e sanitários, vendendo os produtos aos seus vários clientes, cobrando-lhes o preço respectivo, no qual liquidava o I.V.A. à taxa legal, o arguido não enviou também qualquer declaração periódica de I.V.A. nem os respectivos meios de pagamento.

7) Efectivamente, no ano de 1999 o arguido emitiu as facturas constantes do quadro de fls. 485, no valor total de € 8.283,45 nas quais liquidou e recebeu o montante total de € 1.408,19, a titulo de I.V.A.

8) No ano de 2000 o arguido emitiu as facturas constantes do quadro de fls. 486 a 488 no valor total de € 39.385,05, nas quais liquidou e recebeu o montante total de € 6.695,46 a título de I.V.A.

9) No ano de 2001 o arguido emitiu as facturas constantes de fls. 495 a 704 no valor total de € 42.768,61 nas quais liquidou e recebeu o montante total de € 7.270,66, a título de I.V.A.

10) No ano de 2002 o arguido emitiu as facturas constantes de fls. 709 a 936 no valor total de € 49.003,29 nas quais liquidou e recebeu o montante total de € 8.835,68 a titulo de I.V.A.

11) No ano de 2003 o arguido emitiu as facturas constantes de fls. 938 a 956 no valor total de € 2.175,55, nas quais liquidou e recebeu o montante total de € 413,36 a título de I.V.A.

12) Todavia, apesar de estar obrigado a enviar ao S.A.I.V.A até ao dia 15 do 2º mês seguinte ao trimestre do ano civil a que respeitam as operações as declarações periódicas acompanhadas dos correspondentes meios de pagamento respeitantes ao montante do imposto liquidado nas transacções que efectuava (cfr. art.ºs 26/1, 28/1 alínea c) e 40/1alínea a) do C.I.V.A.) - o que sabia -, o arguido não enviou as competentes declarações periódicas, como não procedeu à entrega à Fazenda Nacional do imposto exigível, apoderando-se, para além do mais, da quantia de € 3.142,33, referente ao 1º trimestre de 2001, de € 3.572,74 ao 2º trimestre de 2001, € 2.312,17, ao 3º trimestre de 2001, de € 2.839, 56 ao 4º trimestre de 2001, de € 2.442,44 ao 1º trimestre de 2002, de € 2.574,78, ao 2º trimestre de 2002, de € 2.281,22 ao 3º trimestre de 2002, de € 2.647,11 ao 4º trimestre de 2002, de € 413,36 ao 1º trimestre de 2003, passando a dispor destas como se suas fossem.

13) No decurso da investigação o arguido procedeu à regularização voluntária e total da sua situação fiscal, tendo enviando as declarações em falta relativas ao inicio de actividade (e subsequente cessação), ao I.V.A. e ao I.R.S., bem como pago todas as prestações em divida referentes a I.V.A. e a I.R.S.

14) O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que ao não enviar as declarações de inicio de actividade bem como as declarações periódicas de I.V.A. e as declarações anuais de I.R.S. ocultava, como era sua intenção, factos e valores que deveriam ser revelados à Administração Fiscal.

15) Mais sabia que se apropriava de montantes que não lhe pertenciam referente ao I.V.A. que estava obrigado a entregar ao Estado, actuando sempre animado com o mesmo propósito de engrandecer o seu património à custa do não pagamento de impostos devidos ao Estado.

16) Sabia que o seu comportamento era previsto e punido por lei penal.

17) O arguido reside em casa própria com a esposa que exerce actividade como médica.

18) Tem dois filhos estudantes universitários.

19) O arguido utiliza um veículo automóvel de marca BMW, série 5, pertencente à empresa para a qual trabalha e a esposa desloca-se em veiculo automóvel de marca Honda, modelo Civic, com cerca de 14 anos.

20) Nada consta do certificado de registo criminal do arguido.

B) Factos não provados -

Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.

2. Questões suscitadas no recurso

a) Os factos não integram no crime de fraude fiscal face à vantagem patrimonial indevida reportada aos valores de cada declaração; b) O processo deveria ter sido arquivado e não enviado para julgamento já que o arguido no decurso das averiguações repôs a verdade dos factos e pagou as quantias devidas; c) Ou, pelo menos, o tribunal deveria optar pela dispensa de pena.

3. Apreciação –

3.1- A primeira dificuldade que a situação oferece resulta da circunstância do tribunal ter considerado, sem manifestação de discordância de qualquer dos restantes sujeitos processuais, que a conduta do arguido, mantida ao longo de sete anos de omissões ao Fisco, constitui um só crime de fraude fiscal.

Na base desta decisão estará a ponderação de que houve uma só resolução criminosa, o que também não foi impugnado.

Não iremos discretear sobre esta questão já que não constitui objecto do recurso .

Mas se para o tribunal recorrido a conduta do arguido é de unificar com vista à sua qualificação típica e sabendo-se que tal comportamento se prolongou no tempo e no decurso deste surgiu nova lei incriminadora, então seria esta a lei aplicável uma vez que não é possível distinguir-se partes do facto assim unificado. E a lei nova seria a de aplicar ainda que fosse a mais gravosa.

Efectivamente, conforme refere o Prof. Germano Marques da Silva [ Direito Penal Português, I, 1997, pág. 278] a doutrina tradicional é a de que nos crimes cuja execução se prolonga no tempo, se durante o seu decurso surgir uma lei nova, ainda que mais gravosa, é esta a lei aplicável a todo o comportamento uma vez que não é possível distinguir partes do facto1.

Ao sopesar qual a lei mais favorável ao arguido numa situação em que a conduta criminosa se prolongou pelo tempo de vigência da nova lei, o tribunal acabou por aplicar, a nosso ver erradamente, aos factos ocorridos depois de 5/7/2001 uma lei morta, i é, uma lei não vigente à data da prática desses factos.

3.2- A segunda perplexidade decorre da circunstância de se ter ajuizado a existência dum concurso aparente de normas entre o tipo legal de fraude fiscal e o tipo de abuso de confiança fiscal, juízo este a que também não foi feita oposição -, o que nos levará, como se verá, a ter por totalmente branqueado o comportamento do arguido .

Também quanto a este ponto não se discreteará sobre o acerto do juízo já que não impugnado em recurso , tão só se pretendendo deixar claro que a opção tomada tem reflexo na não censura de todo o comportamento do arguido.

3.3- Estatui o art.º 103º do RGIT que « Constitui fraude fiscal, punível com pena de (...) as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:

a. (...);
b. Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
c. (...)

2- Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a €15.000.

3-Para efeitos do disposto nos números anteriores , os valores a considerar são os que , nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

3.3.1- Para que o crime de fraude fiscal se considere consumado não se exigirá , em regra, que o agente represente com exactidão o montante da vantagem ou benefício patrimonial indevido. Será bastante a representação genérica da consequência da diminuição da receita fiscal.

Entre as condutas tipificadas passíveis de integrar este crime refere-se a «ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária», situação que nos parece ser a dos autos. Ou seja, a tipificação do crime abarca também a omissão de declaração à administração fiscal de factos ou valores.

O crime consuma-se ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente. É o que resulta da expressão “susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias».

Para a punição do agente basta comprovar que este quis as respectivas [ acções ou ] omissões e que elas eram adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais e à consequente diminuição das receitas tributárias.

A vantagem patrimonial ilegítima de que fala o n.º 2 do art.º 103º do RGIT é o montante do imposto que o sujeito passivo deixou de pagar em consequência da omissão das declarações2 .

Esta vantagem é elemento típico essencial para a verificação do crime. É, por isso, indispensável o seu cálculo e liquidação no âmbito da instrução do respectivo processo. A realização de tal diligência caberá à entidade concretamente competente para proceder , em termos normais, à liquidação do imposto.3

3.3.2- O n.º2 do art.º 103º do RGIT consagra uma clausula objectiva de extinção da responsabilidade criminal, em função do montante ( não considerado relevante pela lei) da vantagem patrimonial ilegítima , conducente à não punibilidade dos factos a título de crime.4

Assim, presentemente, não será criminalmente punível a factualidade conducente à obtenção de vantagem patrimonial ilegítima inferior a €15.0005 [ referida a cada uma das declarações a apresentar].

Terão pesado na opção político/criminal do legislador razões de oportunidade processual ou mesmo de desnecessidade de punição de condutas objectivamente desprovidas de relevância penal fiscal, considerada num plano jurídico/tributário, financeiro e pecuniário.6

3.3.3- Como refere o n.º3 do art.º 103º do RGIT « os valores a considerar são os que , nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária».

Ora, no caso dos autos cada uma das declarações a que o arguido falhou são de valor inferior a € 15.000, pelo que deverá ser absolvido.

3.4- A procedência da argumentação referida à primeira das questões que o recurso suscita, torna despicienda a apreciação das restantes questões apresentadas.

III-

Decisão –

Termos em que se tem o recurso por procedente, absolvendo-se o arguido .

Sem custas.