Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
177/18.9T8MMV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA VENDA DE BEM PERTENÇA DE MAIOR ACOMPANHADO
INTERESSE DO BENEFICIÁRIO
REGRAS A ATENDER
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 978.º E 1014.º, DO CPC
ARTIGOS 145.º, 3 E 4; 1938.º, 1 A) E 1889.º, 1, A), DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A venda de bens do beneficiário de Acompanhamento de Maior depende de autorização do Tribunal, o qual, feitas as diligências que tiver por pertinentes, deve deferi-la se tal satisfizer o interesse daquele beneficiário, podendo no caso o Tribunal considerar regras prudenciais e de bom senso prático, bem como critérios de razoabilidade.

II – Essas regras determinam que relativamente a alienações ou disponibilidades de bens que integram o património de beneficiário de Acompanhamento de Maior – quando este não carece dessa alienação para suportar/custear as despesas com a sua sobrevivência, tratamentos ou sequer com o seu bem-estar, e bem assim quando nada evidencia que os bens implicam despesas que o dito não tem condições económico-financeiras para suportar! – a respetiva autorização só deve conceder-se se tais alienações forem susceptíveis de obter ou permitir colher um valor patrimonial superior à correspondente perda do valor, ou quando com tal venda ou alienação se possa evitar um prejuízo bem maior que, previsivelmente, lhe advirá se ela não se efetuar.

Decisão Texto Integral:
Apelações em processo comum e especial (2013)

                                                                       *

            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 - RELATÓRIO     

AA, acompanhante de BB, veio requerer autorização judicial para proceder à venda do prédio do beneficiário descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sob o n.º ...98, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...73 da mesma freguesia, pelo valor de € 63 000.

Fundamentalmente, alegou que o beneficiário é proprietário daquele imóvel e que, devido ao seu estado de saúde, não lhe é possível fazer viagens de lazer, por exemplo para usufruir daquele imóvel que se situa nos .... Mais alegou que, atenta a necessidade de despesas de reparação e limpeza daquele imóvel, e bem assim à impossibilidade de a acompanhante se deslocar para acompanhar as eventuais obras, é do interesse do beneficiário a venda do imóvel.

*

Foram citados o MINISTÉRIO PÚBLICO e CC (doravante CC), esta na qualidade de parente sucessível mais próxima do acompanhado.

*

O Ministério Público contestou e, em síntese, impugnou os factos, afirmando que deles não tinha conhecimento.

Rematou pedindo que a ação fosse julgada conforme for de direito.

*

CC contestou a presente acção e, essencialmente, afirmou que o rendimento do beneficiário é suficiente para fazer frente às despesas de manutenção e limpeza da casa, bem como às despesas extraordinárias de reparação. Além disso, negou que o imóvel esteja no estado descrito pela requerente e referiu que está disponível para auxiliar no que for necessário para manter o património do pai, já que este tem um valor sentimental.

Concluiu pedindo o indeferimento do pedido de autorização judicial da venda.

*

Notificada da contestação do Ministério Público, espontaneamente, a requerente identificou a pessoa interessada da aquisição do imóvel.

No mesmo articulado, a requerente tomou posição quanto aos rendimentos que CC alegou que o beneficiário tinha e juntou 20 documentos, para concluir que o imóvel em causa constitui um encargo dificilmente suportável pelo beneficiário.

*

Após a realização de diversas diligências probatórias, a requerente, o Ministério Público e CC retiraram, por escrito, conclusões de facto e de direito quanto à presente ação.

Em síntese:

- a Requerente renovou o pedido de autorização da venda;

- CC pugnou pelo indeferimento da autorização, por considerar que o beneficiário não retirará qualquer o proveito ou benefício desse negócio, além de se desconhecer o destino do produto da venda;

- o Ministério Público pronunciou-se no sentido de a ação ser improcedente, por entender que a venda não é do interesse do beneficiário, já que o valor conseguido pela mesma não é necessário para suportar as despesas deste ou garantir as suas necessidades.

                                                                       *

            Na sequência, a Exma. Juíza de 1ª instância entendeu que a prova já carreada para os autos era suficiente para se conhecer do mérito da causa [assim dispensando a produção de prova testemunhal], pelo que, decidiu prosseguir com a prolação da sentença, de harmonia com o disposto no artigo 1014º, nº 3, do n.C.P.Civil.

            Nesta, a Exma. Juíza de 1ª instância considerou que «perante a sua localização espacial e a situação do beneficiário, a casa dos ... não tem utilidade para aquele, representando uma fonte contínua de despesas, sendo que o pagamento com as despesas com as obras de que aquela casa carece se mostra difícil para o rendimento e contas de que o beneficiário é titular, razões pelas quais se mostra vantajosa a venda daquele prédio», acrescendo que «a venda por € 63 000 se afigura como vantajosa também pelo valor conseguido como preço do bem a vender», termos em que concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:

«Pelo exposto, julga-se a presente acção procedente e, em consequência, autoriza-se a requerente AA a, na qualidade de acompanhante de BB, no prazo de 90 (noventa) dias, vender o prédio urbano, sito no Caminho ..., ..., na freguesia ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sob o n.º ...98, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...73 da mesma freguesia, pelo valor de € 63 000 (sessenta e três mil euros), comprovando nos autos o depósito desta quantia em conta bancária titulada pelo acompanhado, no prazo de 30 (trinta) dias, após a venda do bem.

Custas pela requerente.»

                                                           *

            Inconformada com essa sentença, dela interpôs recurso a dita parente sucessível mais próxima, CC, a qual finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:

«1. Não se conforma a ora Recorrente com a douta sentença recorrida, porquanto a mesma não corresponde, de facto e de direito, à solução mais conveniente e oportuna para o beneficiário/Acompanhado, de acordo com a matéria de facto provada, incorrendo em erro na apreciação da causa e nos pressupostos de facto e de direito, sendo certo que a decisão recorrida viola, entre outros, o disposto nos artigos 145.º, n.º 1, 3 e 5 e 1889.º, n.º 1, al. a) do Código Civil e artigos 607.º, 986.º n.º 2, 987.º e 1014.º do CPC.

2. Entende a ora Recorrente que a ação devia ter sido julgada improcedente, não só porque as despesas com a manutenção da casa dos ... não acarretam despesas que o beneficiário não possa suportar, mas, principalmente, porque o valor da venda não é necessário para suportar quaisquer despesas do beneficiário ou para garantir as suas necessidades, não decorrendo de uma necessidade urgente do Acompanhado, não sendo do interesse do beneficiário a sua venda, nem da venda do imóvel decorre para si um proveito evidente.

3. Pelo contrário, a venda do imóvel compromete a integridade, a consolidação e a preservação do património do beneficiário.

4. Entende a Recorrente que a matéria de facto constante do PONTO 15 foi incorretamente julgada, na medida em que não se fez prova do valor do orçamento necessários à reparação das obras de manutenção do imóvel, tanto mais que a Recorrente, por requerimento de 16-09-2021 (ref. Citius 39857522) impugnou o orçamento junto, alegando que o mesmo, em face da descrição dos trabalhos alegadamente necessários para a realização das obras de que o prédio eventualmente necessitará, é elevado e desajustado e incompatível com as obras de arranjo e pintura das paredes interiores e exteriores e madeiras.

5. As alegadas despesas com vista à reparação do imóvel não estão confirmadas com perícia para o efeito ou determinado o valor das obras a realizar no prédio com vista à sua manutenção (sendo certo que não consta da matéria de facto provada o alegado perigo de derrocada, nem se provou a necessidade de reparação do telhado, nem as fotografias juntas revelam que a casa necessite de obras profundas, mas apenas de pinturas interiores e exteriores).

6. E, em qualquer caso, provou-se que o rendimento do beneficiário é suficiente e suporta, sem esforço, atendendo ao seu rendimento mensal disponível, a realização de tais obras.

7. Assim, não podia o Tribunal dar como provado tal facto (15.), designadamente o valor do orçamento, porquanto não foi confirmado por qualquer prova, para além do documento junto, que foi impugnado, devendo o mesmo ser eliminado da matéria de facto dada por provada.

8. Da restante matéria de facto dada por provada e tal como, aliás, concluiu o Tribunal “a quo”, as despesas com a manutenção da casa dos ... não acarretam despesas que o Beneficiário não possa acarretar, sendo certo que não se provou que o imóvel necessite de obras de reparação ou manutenção no valor de 6.987,00€.

9. Acresce ainda que não consta da matéria de facto dada por provada qual o valor de mercado do imóvel objeto da pretendida venda, assim como não juntou a Recorrida o contrato de mediação imobiliária celebrado com a A... (obrigatoriamente celebrado por escrito), no qual constará o valor da avaliação do imóvel atribuída pela imobiliária e qual o valor da comissão de venda aplicada, que interferirá obviamente no valor a obter pela venda.

10. Para além do mais, salienta-se que não se provou, antes pelo contrário, que a venda da casa é necessária, urgente e imprescindível para assegurar o bem-estar e garantir uma vida condigna e as necessidades do Acompanhado.

11. Não se justifica a venda do imóvel do Acompanhado por o mesmo, alegadamente, não poder usufruir da casa, sob pena de tal justificação servir para qualquer pedido de autorização para venda do património de maiores acompanhados que, por exemplo, estejam internados e/ou tenham dificuldades de locomoção, que não estejam em condições de poder usufruir dos imóveis de que sejam proprietários e que não possam, por causa disso, deslocar-se, aproveitar e usufruir do seu património.

12. Sem prescindir do alegado, a verdade é que, contrariamente ao decidido, pode ser retirado do imóvel rendimento, designadamente através de arrendamento a terceiros, mediante o pagamento de rendas de que o Acompanhado poderá beneficiar se for necessário para suprir as suas necessidades, o que não foi ponderado pelo Tribunal, constituindo uma das obrigações da Acompanhante administrar os bens do Acompanhado, onde se insere a possibilidade de arrendar os seus bens.

13. Acresce que, como é facto público e notório, a manutenção e consolidação do património é um investimento robusto e sólido, que acompanha e suplanta as taxas de inflação. E se o imóvel for colocado no mercado de arrendamento, esse retorno de investimento ainda é mais claro e evidente, pelo que incumbia à Recorrida socorrer-se, por exemplo, da empresa de medição imobiliária para colocar o imóvel no mercado de arrendamento e não para promover a sua venda.

14. A venda do imóvel destina-se apenas e só a realizar dinheiro – de que o beneficiário não necessita e do qual não retirará qualquer proveito evidente – que, se investido no Banco, em aplicação sem risco, tem uma taxa de retorno insignificante ou inexistente, abaixo da taxa da inflação, o que significa que, em

cada ano que passa, se perde dinheiro.

15. Pelo que incumbia ao Tribunal “a quo”, em face da matéria de facto provada e ponderando a situação concreta, não autorizar a venda.

16. Tanto mais quando, como resulta dos autos (cfr. informação bancária da CGD, referência citius n.º 7288014, de 23/05/2022), dois meses após a data da determinação da medida de acompanhamento (que foi fixada a 8/04/2016), o saldo das contas bancárias de que o beneficiário dispunha (com saldo no valor superior a 30.000,00€) “desapareceu”, sem justificação, não se compreendendo o destino dos valores depositados e levantados das contas bancárias, o que era relevante para a decisão a proferir.

17. Esclarecendo-se que a ora Recorrente já requereu junto do Ministério Público no âmbito do processo de Acompanhamento de Maior que a Acompanhante preste as devidas contas.

18. Em face de tudo o exposto, no caso subjudice e tendo em conta os factos já provados, designadamente o valor da pensão mensal auferida pelo Beneficiário e o valor médio global das suas despesas mensais, deverá concluir-se que a venda em causa não visa salvaguardar qualquer interesse do beneficiário.

19. Não se justifica, nem existe qualquer interesse do beneficiário na sua venda, sendo que a alegada falta de disponibilidade da Acompanhante para acompanhar as obras alegadamente necessárias não é fundamento válido para proceder à venda do património do pai da Recorrente, tanto mais quando a própria filha do Acompanhado se disponibiliza para garantir a preservação do património do seu pai, disponibilizando-se para auxiliar nas diligências necessárias, por exemplo, ao arrendamento do imóvel.

20. Não poderá deixar de se alegar que a acompanhante assumiu o dever de administrar e gerir o património do Acompanhado por forma a garantir os seus direito e deveres e a poder custear as despesas diárias deste e exclusivamente para este fim, incumbindo à Recorrida a obrigação de zelar pelo património do Acompanhado, onde se inclui o dever de zelar o imóvel de que o mesmo é proprietário.

21. E se o mesmo património não gera rendimento ou benefícios ao Acompanhado, tal apenas se deve à gestão e administração da Acompanhante que até à presente data não diligenciou pela obtenção de rendimento, mediante, designadamente o arrendamento do imóvel.

22. A tudo acresce que a Recorrida não fez qualquer prova, nomeadamente através de avaliação do imóvel, que o valor da venda é o adequado e justo, considerando os valores de mercado.

23. O valor de mercado do imóvel não está determinado, nem provado, não se justificando o mesmo por corresponder ao dobro do valor da avaliação patrimonial efectuada no ano de 2018.

24. Também não alega, nem prova, a Acompanhante a que se destina o produto da venda do prédio, sendo certo que resultam dos diversos extratos bancários juntos aos autos das diferentes contas tituladas pelo Beneficiário, inúmeros levantamentos, reduzindo o saldo daquelas contas a valores insignificantes, sem qualquer necessidade ou justificação, o que irá ser aferido através de respetiva ação de prestação de contas, conforme já alegado.

25. Em face do exposto, configura-se completamente desnecessária a venda cuja autorização foi concedida pela douta sentença recorrida, pois, por um lado, o beneficiário consegue no imediato realizar dinheiro para satisfazer as suas necessidades e, por outro lado, não existe qualquer urgência na venda, nem esta se justifica apenas para evitar insignificantes despesas com a manutenção do património do beneficiário.

26. Pelo que, a douta sentença recorrida, ao autorizar a venda do imóvel e na medida em que se desconhece qual o destino do produto da venda do imóvel e qual o proveito ou benefício que dela retirará o beneficiário, viola manifestamente o disposto no 145.º, n.º 1, 3 e 5 e 1889.º, n.º 1, al. a) do Código Civil e artigos 607.º, 986.º n.º 2, 987.º e 1014.º do CPC.

Termos em que e nos mais de direito, deve ser dado integral provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida e julgando-se improcedente a ação, não devendo ser autorizada a venda do prédio urbano sito no Caminho ..., ..., na freguesia ..., ..., ..., já descrito nos autos, com as legais consequências, com o que se fará JUSTIÇA.»

                                                                                         *

            Igualmente interpôs recurso da sentença a Exma. Magistrada do Ministério Público, a qual finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:

                                                                       «1.º

Nestes autos, por sentença proferida em 15/12/2022, o Tribunal recorrido decidiu julgar a ação procedente e, em consequência, autorizar a requerente AA, na qualidade de acompanhante de BB, no prazo de 90 dias, vender o prédio urbano, situado no Caminho ..., ..., na freguesia ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sob o n.º ...98 e inscrito na matriz predial sob o artigo ...73 da mesma freguesia pelo valor de €63.000,00.

2.º

O Tribunal recorrido baseou a sua decisão no facto de o beneficiário não poder beneficiar nem usufruir de uma casa que necessita de obras que implicam despesas de manutenção.

3.º

Contrariamente ao sustentado pelo Tribunal recorrido, e concordando-se com as alegações apresentadas pela parente sucessível mais próxima do beneficiário no seu recurso, às quais se adere na íntegra, desde já se refere que a sentença recorrida deverá ser revogada, julgando-se improcedente a autorização judicial peticionada.

4.º

Ora,

Por sentença proferida nos autos principais, de ação especial de acompanhamento de maior, transitada em julgado em 6/8/2019, foi determinado o acompanhamento de BB, através da representação geral, tendo-se nomeado como sua acompanhante, AA.

5.º

Naquela sentença fixou-se a data de 8/4/2016 como data em que as medidas de acompanhamento do beneficiário se tornaram necessárias.

6.º

De acordo com a informação da Caixa Geral de Depósitos junta aos presentes autos em 23/5/2022, resulta que em 13/6/2016 foi feita uma transferência bancária de uma conta bancária titulada pelo beneficiário, no valor de €30.070,56.

7.º

O destino daquela transferência bancária não é conhecido, sabendo-se apenas que a transferência bancária não poderia ter sido realizada pelo beneficiário, atentas as lesões que o mesmo apresentava naquela data, conforme os factos provados nos pontos 22 e 22.1 a 22.6, da sentença que agora se recorre.

8.º

O beneficiário BB recebe uma pensão mensal atual de €4.177,48.

9.º

O beneficiário tem um rendimento mensal disponível de, pelo menos, €1.500,00.

10.º

As despesas com a manutenção do prédio em causa nos autos, a “casa dos ...”, são perfeitamente suportáveis pelo rendimento mensal disponível do beneficiário, sendo certo que as mesmas ficam muito aquém de €100,00 mensais.

11.º

As obras de manutenção da “casa dos ...” que se manifestam em termos da pintura e reparação do telhado podem ser suportadas pelo rendimento disponível do beneficiário.

12.º

O beneficiário sempre suportou as despesas de manutenção da “casa dos ...” e fê-lo mesmo quando ainda tinha a seu cargo o pagamento de duas prestações mensais relativas a dois contratos de mútuo celebrado com a CGD (factos provados nos pontos 18 a 21 da sentença recorrida).

13.º

O Tribunal limitou-se a aceitar o valor de €6.987,00 indicado no orçamento apesentado pela acompanhante, como sendo o valor das obras necessárias, ignorando que tal documento foi impugnado.

14.º

Mesmo que o valor das obras da referida casa seja o valor de €6.987,00, o que não se aceita, o beneficiário tem disponibilidade económica para fazer face às mesmas.

15.º

Também ressalta dos autos que o pagamento das obras necessárias à manutenção da “casa dos ...”, por parte do rendimento do beneficiário, embora de valor exato desconhecido, não prejudica os cuidados e as necessidades do beneficiário.

16.º

Ressuma dos autos, de forma clara, que o valor da venda da “casa dos ...” não é necessário para suportar as despesas do beneficiário ou para garantir as suas necessidades.

17.º

A parente sucessível mais próxima, no artigo 16.º da sua contestação, referiu que a “casa dos ...” tinha um valor sentimental para o beneficiário, por ter sido médico na referida Ilha e ter ficado permanentemente ligado aos seus habitantes, aos seus costumes e aos seus locais, no entanto, tais factos não foram considerados pelo Tribunal (último parágrafo de fls. 119 e primeiros parágrafos de fls. 119v da sentença).

18.º

O Tribunal considerou vantajosa, para o beneficiário, a venda da referida casa pelo valor de €63.000,00, no entanto não esclarece em que se concretiza/materializa tal vantagem, pois, nos tempos em que vivemos, contrariamente ao que acontece com os imóveis, o dinheiro por si só não produz qualquer rendimento.

19.º

Tal como a nossa Doutrina, a nossa jurisprudência tem entendido que a autorização de venda dos bens do beneficiário deverá ser concedida no caso de os rendimentos do mesmo não lhe permitirem ter uma vida condigna.

20.º

Veja-se neste sentido, a título de exemplo, o acórdão da Relação de Lisboa, proferido no processo 18960/00.0TJLSB-D.L1-2, em 13/1/2022, disponível em www.dgsi.pt, onde se lê no sumário “(…) II - A venda de bens do beneficiário depende de autorização do Tribunal, o qual, feitas as diligências que tiver por pertinentes, deve deferi-la se tal satisfizer o interesse do beneficiário, podendo no caso o Tribunal considerar regras de bom senso prático, compondo nesses termos, na justa medida, a situação em causa. III. No interesse do beneficiário, a autorização de venda de imóvel deve ser concedida caso os rendimentos daquele não lhe permitam ter uma vida condigna e o preço da venda seja justo em função do mercado, …”.

21.º

Não sendo necessário para assegurar as necessidades do beneficiário nem para garantir o seu bem-estar, e dispondo o beneficiário de rendimento mensal suficiente para as suas despesas, incluindo as despesas de manutenção da “casa dos ...”, não poderia o Tribunal julgar procedente a ação, autorizando a requerida venda.

22.º

Ao julgar procedente a autorização de venda, o Tribunal recorrido fez uma errónea apreciação da matéria de facto e de direito.

23.º

Na verdade, a autorização da venda do imóvel em causa não garante nem assegura o interesse e o património do beneficiário, antes contribui para o enfraquecimento do património do mesmo.

24.º

Deste modo, a sentença recorrida viola o disposto nos artigos 145.º n.º 1, 3 e 5 e 1889.º n.º 1 al.a) do CC e 607.º, 986.º n.º 2, 987 e 1014.º do CPC, pelo que deverá revogada e substituída por outra que declare a improcedência da ação, acautelando-se assim o interesse e o património do beneficiário.

V. Exas, porém, e como sempre farão

Justiça »

                                                                       *

            Não foram apresentadas contra-alegações pela Requerente.

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                           *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos Recorrentes nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

Recurso de CC

- desacerto da decisão sobre a matéria de facto quanto ao ponto “15.” do elenco dos «Factos Provados», o qual deve ser considerado como “não provado?;

- desacerto da decisão que concluiu pela autorização da venda?

            Recurso do Ministério Público

- desacerto da decisão que concluiu pela autorização da venda?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso também tem em vista a alteração dessa factualidade.    

            Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância:

«A. Factos provados

Instruída e discutida a causa, com relevância para a presente decisão, resultaram provados os seguintes factos:

1. No âmbito dos autos a que a presente acção corre por apenso, por sentença proferida a 16-07-2019 e transitada em julgado a 06-08-2019, decidiu-se determinar «o acompanhamento de BB, nascido em .../.../1946, natural da freguesia ..., concelho ..., filho de DD e de EE, casado e residente na Rua ..., Urbanização ..., ..., com limitação da capacidade de exercício de negócios, mantendo o beneficiário os seus direitos pessoais, com a excepção do exercício do direito de testar, casar ou de constituir situação de união e de adoptar, de cuidar e de educar filhos ou de adoptados, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar residência, de estabelecer relações com quem entender...»;

2. Naquela decisão decidiu-se, ainda, nomear «como acompanhante a Requerida AA, cônjuge do beneficiária e com este residente, a quem se compete o exercício das medidas de representação geral do beneficiário e a administração total de bens, (…), podendo a acompanhante realizar os actos necessários à gestão imediata dos bens e rendimentos do beneficiário, proceder à abertura/movimentação de contas bancárias em nome deste, receber pensões/subsídios do beneficiário ou outras quantias, representar o acompanhado perante quaisquer instituições/entidades (por exemplo, entre muitas outras, Instituo de Segurança Social e Serviço de Finanças), por forma a garantir os seus direitos/deveres e a poder custear as despesas diárias do beneficiário e exclusivamente para este fim»;

3. O beneficiário é, desde o ano 2000, proprietário de uma casa composta por duas divisões, com a área coberta de 93 m2 e descoberta de 77 m2, sita no Caminho ..., ..., na freguesia ..., ..., ...;

4. Este imóvel está descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sob o n.º ...98, com registo de aquisição a favor do beneficiário pela Ap. ... de 04.09.2020, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...73 da mesma freguesia, com o valor patrimonial de € 31.404,10, determinado em 2018;

5. Relativamente ao ano de 2019, o IMI daquele imóvel foi liquidado em € 94,21;

6. O imóvel em causa situa-se a uma distância não concretamente apurada, mas perto do mar;

7. O beneficiário está internado na ERPI do Centro de Acolhimento Nossa Senhora de Campos da Santa Casa da Misericórdia ... desde 2 de Junho de 2020;

8. O beneficiário paga uma mensalidade de € 1500 e, em despesas extras, um valor médio de € 56,86;

9. Entre 2 de Junho e 15 de Julho de 2020, o beneficiário teve 9 sessões de fisioterapia naquela ERPI, com o valor de € 12,50 por sessão, tratamento que tem carácter contínuo;

10. O beneficiário é proprietário de um veículo ligeiro misto, marca ..., castanho, modelo CX 2200 BREAK ...PE MA SERIE MH, com a matrícula CM-..-..;

11. O beneficiário é titular das seguintes contas:

10.1. Conta n.º ...30, com um saldo de € 0;

10.2. Conta n.º ...00, com um saldo de € 0;

10.3. Conta n.º ...00, com um saldo de €1 002,95;

10.4. Conta n.º ...00, com um saldo de €99;

10.5. Conta n.º ...00, com um saldo de €460,69.

12. O beneficiário é depositante nas seguintes contas:

11.1. Conta poupança n.º ...61, que tem um saldo disponível de € 100;

11.2. Conta poupança n.º ...61, que tem um saldo disponível de € 54,36;

11.3. Conta a prazo n.º ...20, sem movimentos desde 2012;

11.4. Conta poupança n.º ...78, que tem um saldo disponível de € 0;

11.5. Conta poupança n.º ...61, que tem um saldo disponível de € 82,80;

13. No ano de 2022, o beneficiário aufere uma pensão de aposentação mensal ilíquida de € 4 177,48;

14. As paredes interiores e exteriores, bem como as madeiras do prédio identificado em 3 e 4 precisam de ser arranjadas e pintadas;

15. A realização de obras naquele imóvel, para pintura (portas, janelas, bandas, exterior e interior, inclusive zonas com salitre), reparação da cobertura em telha, reparação da parede e isolamento da chaminé, foi orçamentada em € 6 987;

16. Em Maio de 2021, a despesa com a electricidade da casa dos ... foi de € 5,83;

17. O beneficiário é, ainda, proprietário de um outro prédio imóvel, sito em ..., pelo qual o IMI relativo ao ano de 2020 foi liquidado em € 670,89;

18. A 30-09-2002, o beneficiário celebrou com a Caixa Geral de Depósitos um contrato de mútuo, do tipo crédito habitação, pelo qual se obrigou a pagar o valor mutuado de € 62 600 em 228 prestações mensais;

19. A 19-05-2021, daquele valor estava em dívida € 1 753,40, faltando pagar mais 5 prestações;

20. A 30-09-2002, o beneficiário celebrou com a Caixa Geral de Depósitos um contrato de mútuo, do tipo crédito habitação, pelo qual se obrigou a pagar o valor mutuado de € 122 000 em 228 prestações mensais;

21. A 19-05-2021, daquele valor estava em dívida € 3 340,54, faltando pagar mais 5 prestações;

22. Do ponto de vista clínico, o beneficiário:

22.1. apresenta sequelas neuro-cognitivas graves, sobrevindas de TCE de que foi vítima a 8 de Abril de 2016;

22.2. apresenta graves défices das funções cognitivas superiores;

22.3. está desorientado no tempo, no espaço e na situação;

22.4. apresenta linguagem sem sentido, mas bem articulada e prosódica;

22.5. tem uma ligeira ataxia;

22.6. este quadro é irreversível à luz dos conhecimentos actuais

                                                                       ¨¨

B. Factos não provados

Com relevo para a boa decisão da causa, não resultaram provados quaisquer outros factos, nomeadamente que:

a) Para assegurar a limpeza da casa dos ..., o beneficiário despende o valor mensal de € 35;

b) Além disso, aproximadamente, de três em três meses, despende de € 20 para aquisição de produtos de limpeza para aquela casa;

c) Duas a três vezes por ano, o beneficiário paga € 30 a € 40 a uma pessoa para cortar a erva que cresce no logradouro daquela casa;

d) Regularmente, o beneficiário tem despesas com a realização de obras no telhado da casa dos ..., tendo sido despendidos € 410,64 em Maio de 2021;

e) Há perigo iminente de derrocada numa parte do terreno em que está localizada aquela casa.»

                                                                       *

3.2 – A Recorrente CC sustenta o desacerto da decisão sobre a matéria de facto quanto ao ponto “15.” do elenco dos «Factos Provados», o qual deve ser considerado como “não provado”.

Para tanto argumenta, em síntese, que por requerimento de 16-09-2021 (ref. Citius 39857522) impugnou tal documento, alegando que o mesmo, em face da descrição dos trabalhos alegadamente necessários para a realização das obras de que o prédio eventualmente necessitará, é “elevado” e “desajustado”, acrescendo que «As alegadas despesas com vista à reparação do imóvel não estão confirmadas com perícia para o efeito ou determinado o valor das obras a realizar no prédio com vista à sua manutenção (sendo certo que não consta da matéria de facto provada o alegado perigo de derrocada numa parte do terreno em que está localizada a casa, não se provou a necessidade de reparação do telhado, nem as fotografias juntas revelam que a casa necessite de obras profundas, mas apenas de pinturas interiores e exteriores)», pelo que, «não podia o Tribunal dar como provado tal facto, designadamente o valor do orçamento, porquanto não foi confirmado por qualquer prova, para além do documento junto, que foi impugnado, devendo o mesmo ser eliminado da matéria de facto dada por provada». 

Que dizer?

Antes de mais importa rememorar o teor literal do ponto de facto em questão, a saber:

«15. A realização de obras naquele imóvel, para pintura (portas, janelas, bandas, exterior e interior, inclusive zonas com salitre), reparação da cobertura em telha, reparação da parede e isolamento da chaminé, foi orçamentada em € 6 987.»

Está em causa um ponto de facto relativamente ao qual se entendeu que ficou por provar, por a factualidade dele constante assentar num documento que foi impugnado expressa e formalmente.

E de facto essa impugnação teve lugar.

Por outro lado, se relativamente à deterioração das pinturas existentes e consequente necessidade da sua realização elas se podiam dar por adquiridas [cf. facto “provado” sob “14.”, não impugnado, a saber, «As paredes interiores e exteriores, bem como as madeiras do prédio identificado em 3 e 4 precisam de ser arranjadas e pintadas»], outro tanto não se podia dizer quanto à necessidade de “reparação da cobertura em telha, reparação da parede e isolamento da chaminé”

Em todo o caso, o aspeto central de tal ponto de facto é efetivamente o valor do orçamento, sendo certo que esse valor não encontra qualquer apoio na subsistente prova junta aos autos.

Atente-se que não se deteta ou aponta nenhum elemento indiciário no sentido constante do documento em causa – nem muito menos esse valor seria um facto “notório” ou de conhecimento “oficioso” pelo Tribunal!

De facto, dada a impugnação que teve lugar, para que se pudesse dar acolhimento, por mínimo que fosse, ao constante desse documento/“orçamento”, em termos do valor que no mesmo figura, seria necessário, desde logo, uma prova consistente e concludente [designadamente “pericial”], quanto ao nível e dimensão das deteriorações em causa, isto é, uma prova insofismável relativamente ao estado geral/de conservação do imóvel.

O que não ocorreu nos autos.

Sendo certo que as “fotografias” juntas aos autos não nos permitem suprir uma tal lacuna e omissão.

Termos em que, dando acolhimento à impugnação em apreciação, se decide pela eliminação do ponto de facto em referência, o qual transita para o elenco dos factos “não provados”, no qual passa doravante a figurar sob a alínea “f)”.

Nestes termos procedendo a impugnação.

*  

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Questão do desacerto da decisão que concluiu pela autorização da venda, questão essa que foi levantada em ambos os recursos.

Na medida em que confrontando as alegações recursivas se conclui que essa questão assenta em argumentação globalmente do mesmo sentido, decide-se pela sua apreciação e decisão de forma unitária e conjunta.

Vejamos então.

Consabidamente, a Lei nº 49/2018, de 14/02, criou o regime jurídico do Maior Acompanhado, eliminando os pré-existentes institutos da interdição e da inabilitação (art. 1º).

Lei essa que veio introduzir uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas portadoras de incapacidade, dando assim consagração àquilo que já há muito vinha sendo reclamando pela doutrina, e sobretudo pelas Convenções Internacionais (vg. a Convenção das Nações Unidas de 30 de março de 2007, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência - Convenção de Nova York -, entrada em vigor na nossa ordem jurídica nacional, juntamente com o “Protocolo Adicional”, a 3 de maio de 2008) e pela nossa Magna Carta.

De referir que da referida Convenção emergem os seguintes princípios fundamentais relativos à capacidade jurídica das pessoas com deficiência:

• Todas as pessoas com deficiência, sem exceção, têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspetos da vida;

• A pessoa com deficiência deve ser apoiada nas suas decisões relativas ao exercício da capacidade jurídica;

• A pessoa com deficiência tem o direito a escolher a pessoa que a acompanhará na tomada de decisões da sua vida;

• A pessoa com deficiência tem o direito a participar ativamente em todas as decisões que lhe digam respeito a nível pessoal, familiar e económico;

• A pessoa com deficiência tem o direito a ser ouvida sobre todas as questões que sejam decididas, por qualquer autoridade, sobre a sua capacidade jurídica;

• As medidas de apoio devem ser flexíveis e de acordo com as necessidades individuais de cada pessoa com deficiência;

• As medidas de apoio apenas devem ser tomadas se forem absolutamente necessárias e proporcionais;

• Todas as medidas de apoio devem respeitar os direitos, a vontade e as preferências da pessoa com deficiência” – cfr. als. n), o) e y) dos considerandos do preâmbulo, e arts. 12°, 13°, 19°, e 21° a 23° da Convenção.

Será, pois, à luz destes princípios, que cumprirá interpretar e aplicar o regime do Maior Acompanhado.

No caso vertente, está em causa o deferimento da autorização da Requerente AA, a, na qualidade de acompanhante de BB, no prazo de 90 dias, vender o prédio urbano deste último, situado no Caminho ..., ..., na freguesia ..., ..., ..., venda essa a ter lugar pelo valor de € 63.000,00.

De referir que, muito em síntese, a decisão recorrida decidiu que era de autorizar a venda do imóvel em causa por se tratar de um bem que, por força da sua localização espacial [nos ...] e por força do quadro clínico do beneficiário [quadro clínico irreversível de comprometimento das suas capacidades cognitivas (este grave) e de mobilidade (ligeira ataxia)], não tem qualquer utilidade/préstimo para o mesmo [o beneficiário não pode dela beneficiar nem usufruir], para além de que se trata de uma casa que necessita de obras, as quais, por sua vez, implicam despesas de manutenção que o beneficiário não tem condições económicas para suportar, bem assim sucedendo que «a venda por € 63 000 se afigura como vantajosa também pelo valor conseguido como preço do bem a vender».

Será assim?

Não se denega que está efetivamente apurado que o beneficiário de acompanhamento de maior dos autos se encontra internado e que, por força da afetação das suas capacidades cognitivas e motoras, não está em condições de usufruir pessoal e fisicamente da sua casa da Ilha ..., nos ....

Acontece que, salvo o devido respeito, não é nem pode ser isso critério determinante nem decisivo – como parece que foi! – para se aquilatar e decidir relativamente à requerida autorização para a venda desse imóvel.

Na verdade, atento o disposto nos arts 145º, nos 3 e 4, 1938º, nº 1, al. a), e 1889º, nº1, al. a), todos do Código Civil, os atos de disposição de bens imóveis de que o beneficiário seja proprietário ou comproprietário carecem de autorização judicial prévia.

De referir que tal autorização é conferida no âmbito do procedimento judicial regulado no artigo 1014º do n.C.P.Civil, com a epígrafe de “autorização judicial”.

Sendo que, nos termos do nº 3 desta disposição legal, «haja ou não contestação, o juiz só decide depois de produzidas as provas que admitir e de concluídas outras diligências necessárias, ouvindo o conselho de família quando o seu parecer for obrigatório».

Assim sendo, a venda de bens do beneficiário de acompanhamento de maior depende desta dita autorização do Tribunal, o qual, feitas as diligências que tiver por pertinentes, deve deferi-la se tal satisfizer o “interesse” desse beneficiário.

Sucede que definir o que seja o “interesse” do beneficiário é que é o busílis da questão.

A esse propósito, já foi doutamente sublinhado que «[e]m face do que tiver sido alegado, provado e averiguado, o juiz concederá ou negará a autorização. Deve concedê-la, se adquiri a convicção de que a alienação, o aforamento, a hipoteca, a constituição do ónus visam satisfazer necessidade urgente ou são de proveito evidente para o incapaz; deve negá-la no caso contrário»[2].

Outrossim já foi afirmado que «[o] parâmetro substantivo da decisão radica, em termos finais, (…) na salvaguarda do interesse do acompanhado, devendo aquilatar se o ato que é requerido emerge de uma urgente necessidade ou se da realização do mesmo decorrerá um proveito evidente para o (…) acompanhado, aumentando ou consolidando o seu património».[3]

Acontece que o legislador não definiu o que seja o “interesse” do beneficiário de acompanhamento de maior, pelo que, s.m.j., na sua concretização, importará aferi-lo em função da variabilidade e imprevisibilidade das situações da vida.

Ademais, porque constituindo o processo de autorização judicial um processo de jurisdição voluntária, decorre do disposto no art. 987º do mesmo n.C.P.Civil que «nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna».

Com efeito, neste tipo de providências, o critério decisório não está confinado à aplicação estrita do direito tal como configurado previamente de forma abstrata, pelo que, o julgador deve fazer uso das «regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, de molde a descobrir e adotar a solução mais conveniente para os interesses em causa».[4]

Ora se assim é, salvo o devido respeito, as regras prudenciais e de bom senso prático, bem como critérios de razoabilidade, determinam que relativamente a alienações ou disponibilidades de bens que integram o património de beneficiário de acompanhamento de maior, a respetiva autorização só deve conceder-se se tais alienações forem susceptíveis de obter ou permitir colher um valor patrimonial superior à correspondente perda do valor, ou quando com tal venda ou alienação se possa evitar um prejuízo bem maior que, previsivelmente, lhe advirá se ela não se efetuar.

A esta luz, cremos que está encontrada a resposta para o recurso.

E por várias ordens de razão.

A primeira delas é que não se vislumbra uma efetiva necessidade para o Maior Acompanhado dos autos de alienar um tal imóvel consequente de este implicar despesas que o dito não tem condições económico-financeiras para suportar.

Desde logo, porque decorre da factualidade provada que o Maior Acompanhado dos autos, BB, recebe uma pensão mensal atual de € 4.177,48, sendo que tem um rendimento mensal disponível de, pelo menos, € 1.500,00.

Donde, as despesas com a manutenção do prédio ajuizado, a “casa dos ...”, são perfeitamente suportáveis pelo rendimento mensal disponível do Maior Acompanhado dos autos, sendo certo que, tendo igualmente em conta a factualidade provada, as mesmas ficam muito aquém de €100,00 mensais.

Acresce que as obras de manutenção dessa “casa dos ...” – que à luz do que subsiste efetivamente como “provado” se resume a pintura em paredes e madeiras [cf. ponto “14.”] – parece-nos que podem ser suportadas pelo rendimento disponível deste Maior Acompanhado dos autos.

Por outro lado, também não se apura uma qualquer necessidade do Maior Acompanhado dos autos em alienar o imóvel ajuizado para suportar/custear as despesas com a sua sobrevivência, tratamentos ou sequer bem-estar…

Neste sentido já foi sustentado em douto aresto que «No interesse do beneficiário, a autorização de venda de imóvel deve ser concedida caso os rendimentos daquele não lhe permitam ter uma vida condigna (…)».[5]

Por outro lado, se a lógica da autorização judicial é que o Tribunal seja chamado a pronunciar-se sobre um concreto acto de disposição, com um objeto perfeitamente delimitado, por forma a garantir o escrutínio pretendido pela lei, careceria de se apurar o concreto preço e condições de venda.

Acontece que apenas se evidenciou nos autos que a Requerente pretendia autorização para uma venda do imóvel por € 63.000, mas não já que a venda por um tal valor é proveitosa e vantajosa para o Maior Acompanhado dos autos: é que para tanto seria necessário ter sido alegado e apurado qual o real e efetivo valor do imóvel e bem assim o quadro geral do valor do mercado imobiliário naquele local [Ilha ..., nos ...].

Ora se se desconhecem essas premissas, mormente não estando apurado que o bem a ser vendido pelo valor de € 63.000 está conforme aos valores vigentes no mercado, parece-nos por demais temerária a afirmação que consta na sentença recorrida no sentido de que «(…) de acordo com a avaliação da AT de 2018, o prédio tem o valor patrimonial de € 31.404,10 (…)», e que «(…) o valor de € 63 000 é cerca de o dobro daqueles € 31.404,10, sendo que a diferença entre o valor patrimonial e o valor comercial não é, por regra, tão significativa. Serve isto para dizer que a venda por € 63 000 se afigura como vantajosa também pelo valor conseguido como preço do bem a vender.»

Sendo certo que um administrador prudente e cauteloso não deve deixar de ponderar a virtual vantagem associada à posse e detenção de valores imobiliários [na contraposição com uma liquidez monetária que seria obtida com a pretendida venda], isto é, parece-nos que face às condições de incerteza que se vivem no mundo global no presente momento, é de se fazer uma prognose no sentido de que – como sustentado nas alegações recursivas do Ministério Público – «a autorização da venda do imóvel em causa não garante nem assegura o interesse e o património do beneficiário, antes contribui para o enfraquecimento do património do mesmo».

O que tudo serve para dizer que no caso ajuizado não se consegue de todo concluir que a alienação para a qual se requereu autorização era suscetível de obter ou permitir colher um valor patrimonial superior à correspondente perda do valor, nem, muito menos, que só com uma tal venda ou alienação se poderia evitar um prejuízo bem maior que, previsivelmente, adviria para o Maior acompanhado se ela não se efetuasse!

Não pode, assim, ser sancionada a sentença recorrida.

Termos em que se conclui pela total procedência de ambos os recursos, com a consequente revogação dessa sentença.

                        (…)

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida.

Custas em ambas as instâncias pela Requerente/recorrida.                                                                                                *

                                                                                   Coimbra, 16 de Maio de 2023  

                                                     Luís Filipe Cravo

                                                    Fernando Monteiro

                                                       Carlos Moreira





[1] Relator: Des. Luís Cravo
   1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
   2º Adjunto: Des. Carlos Moreira
[2] Assim por ALBERTO DOS REIS, in “Processos Especiais”, Vol. II, edição de 1982, a págs. 490.
[3] Citámos agora ABRANTES GERALDES / PAULO PIMENTA / PIRES DE SOUSA, in “Código de Processo Civil”, Vol. II, edição de 2020, a págs. 462.
[4] Neste sentido vide PAIS DO AMARAL, in “Direito Processual Civil”, Livª Almedina, 2018, 14ª ed., a págs. 96.
[5] Assim no acórdão do TRL de 13.01.2022, proferido no proc. nº 18960/00.0TJLSB-D.L1-2, acessível em www.dgsi.pt/jtrl; na mesma linha de entendimento, já foi sustentado que «O deferimento de medidas cautelares, entre elas, a autorização para a venda de imóveis, basta-se com a comprovação nos autos da real e urgente necessidade de salvaguarda da subsistência e necessidades do Maior Acompanhado (…)» - cf. acórdão do TRL de 8.02.2022, proferido no proc. nº 1254/21.4T8SXL.L1-7, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrl.