Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
976/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: SOUSA PINTO
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
OPOSIÇÃO ENTRE FUNDAMENTOS E DECISÃO
PREJUÍZO DO DECRETAMENTO DA PROVIDÊNCIA SUPERIOR PARA O REQUERIDO QUE O DANO SOFRIDO PELO REQUERENTE
JUNÇÃO EXTEMPORÂNEA DE DOCUMENTO NO TRIBUNAL DE RECURSO
Data do Acordão: 11/09/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO - TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 376.º DO CÓDIGO CIVIL E ART.ºS 387.º, N.ºS 1 E 2, 655.º, 666.º, 668.º, N.º 1, AL. C), 690-A, N.º1, 706.º, N.º 2, 712.º, N.º1, TODOS DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário: A ponderação da situação que se evidenciava à data da propositura da providência cautelar e a que se regista no momento da oposição a tal procedimento, pode determinar o levantamento desta, por prejuízo decorrente de tal decretamento ter entretanto excedido consideravelmente o dano que com ela o requerente pretendia evitar.
Decisão Texto Integral:

Acordam, na 3.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, no recurso de agravo n.º 976/2004, vindo 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas (providência cautelar não especificada, n.º 50-D/2000),

I – RELATÓRIO

No 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas, A... e mulher, B...., requereram o decretamento de providência cautelar não especificada, contra C..., pedindo a suspensão imediata do exercício da actividade de secagem de milho por parte da requerida.

Foi dispensada a audiência da requerida.

Produzida a prova (com gravação magnetofónica do depoimento das testemunhas), foi proferida decisão julgando o procedimento cautelar procedente e, em consequência, determinou-se a imediata cessação da actividade de secagem de milho por parte da requerida, enquanto a mesma não procedesse à instalação de filtros que visível, efectiva e comprovadamente eliminem a emissão de poeiras, carepas e outros detritos para o prédio e instalações dos requerentes.

A requerida, inconformada com tal decisão apresentou então oposição à providência, nos termos do disposto no art.º 388.º, n.º 1, al. b), do CPC, dado entender que existiria factualidade que não tinha sido alegada por parte dos requerentes e que poderia determinar o levantamento da providência.

Foi produzida prova, tendo sido proferida decisão julgando a oposição totalmente improcedente e, consequentemente, mantendo, na íntegra a providência decretada.

Inconformada com tal decisão, veio a requerida intentar o presente recurso, pedindo a revogação do decidido, para o que apresentou as seguintes CONCLUSÕES:

1- É manifestamente abusiva e forçada a conclusão de que a actividade desenvolvida nesta época do ano pela Requerida, permite a emissão de detritos para o ambiente que prejudicam a saúde física e psíquica dos Requerentes e respectivos trabalhadores.

2 - A Requerida já procedeu à instalação nos seus secadores de milho de Riachos, de filtros que visível, efectiva e comprovadamente eliminaram a emissão de poeiras, carepas e outros detritos para o exterior, possuindo a tecnologia mais avançada do sector que existe no mundo.

3- Não existe qualquer nexo de causalidade entre os problemas de saúde física ou psíquica de que dizem queixar-se os Requerentes e a actividade de secagem de milho da Requerida.

4- Não estão preenchidos os requisitos necessários para o decretamento da presente providência, exigidos no artigo 387°, n.° 1 do Código de Processo Civil, nomeadamente a probabilidade séria da existência do direito, bem como a demonstração suficientemente fundada do receio da sua lesão.

5 - A Requerida com o decretamento da presente providência está a sofrer e sofrerá prejuízos gravíssimos.

6 - A decisão proferida julgou incorrectamente a matéria de facto, ignorando e não valorando devidamente os meios probatórios constantes do processo, o que veio a prejudicar subsequentemente a aplicação do direito ao caso “sub-judice”.

7 - Foram julgados incorrectamente os seguintes pontos concretos de facto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 690°-A, n.° 1, alínea a) do CPC:

a) Alíneas m), p), q) e r) da matéria de facto considerada provada na primeira decisão que decretou a providência;

b) Alínea I) dos factos não provados, com interesse para a decisão da oposição.

8 - A decisão recorrida deveria ter considerado provado, atenta a prova produzida que a actividade desenvolvida nesta época do ano pela Requerida, não permite a emissão de detritos para o ambiente, que prejudiquem a saúde física e psíquica dos Requerentes e respectivos trabalhadores.

9 - Nem na primeira decisão que decretou a presente providência, nem na decisão que julgou improcedente a oposição, foi considerado entre os factos provados que a actividade da Requerida C... afecte a saúde psíquica dos Requerente, ou de quem quer que seja.

10 - No entanto, naquelas decisões fazem-se referências expressas aos “reflexos nítidos na saúde psíquica dos Requerentes e seus trabalhadores”, o que configura um caso nítido de oposição entre os fundamentos e a decisão, o que determina a nulidade da sentença, nos termos do artigo 668°, n.° 1, alínea e) do CPC, sendo certo que não ficou provado nos autos que alguém tenha a sua saúde psíquica afectada.

11 - Também se verifica um caso nítido de oposição entre os fundamentos e a decisão, o que determina a nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 668°, n.° 1, alínea e) do CPC, dado que a Requerida C...., como se reconhece na própria decisão, já instalou os filtros nos secadores, exigidos contraditoriamente na decisão final.

12 - Deveria a presente providência ter sido julgada improcedente, também porque o prejuízo do seu decretamento para a Requerida C... excede consideravelmente os hipotéticos danos que com ele os Requerentes pretendem evitar.

13 — A sentença recorrida não teve em conta o disposto nos artigos 387°, n.ºs 1 e 2 do CPC e artigo 335.º n2 do CC.

Os recorridos, por seu turno, apresentaram contra-alegações, defendendo a bondade da decisão, tendo exibido as seguintes conclusões:

I — Não é abusiva e forçada a conclusão de que a actividade desenvolvida nas campanhas anuais de secagem do milho, pela requerida C..., permite a emissão de detritos para o ambiente que prejudicam a saúde, física e psíquica dos requerentes e respectivos trabalhadores.

II — Que os filtros instalados nos secadores de milho da agravante em Riachos, não têm permitido a retenção sólida e adequada das poeiras e detritos provenientes da secagem do milho, sendo, por conseguinte, falsa a afirmação sempre repetida e antiga da requerida C..., de que já procedeu á instalação nos seus secadores de milho em Riachos, de filtros que visível, efectiva e comprovadamente eliminam a emissão de poeiras e carepas e outros detritos para o exterior, não sendo também minimamente credível a alegação da requerida C..., que os filtros que colocou nos secadores representem a tecnologia mais avançada no sector que existe no Mundo, circunstância que aliás nunca foi provada nos Autos.

III — Mesmo não havendo, por hipótese e sem conceder nexo de causalidade entre os problemas de saúde física ou psíquica de que os requerentes se queixam, e a actividade de secagem de milho da requerida, verdade é que o depósito de grandes quantidades dos detritos e poeiras cerealíferas emitidas pelos secadores da requerida afectam de forma evidente o bem estar e a qualidade do ar no local de trabalho com reflexos nítidos na saúde psíquica dos requerentes e seus trabalhadores que têm o elementar direito á higiene e salubridade dos seus locais de trabalho.

IV — A decisão recorrida foi decretada porque naturalmente, se mostravam preenchidos os requisitos necessários para o decretamento da Providencia Cautelar, designadamente porque provado foi, a probabilidade séria da existência do direito à saúde e bem estar dos requerentes e bem assim ficou suficientemente provado nos Autos o fundado receio da lesão daquele direito, tanto mais que a maior parte do tempo útil de vida dos requerentes e seus trabalhadores é precisamente passado nas instalações da referenciada carpintaria.

V — E embora a requerida invoque que com o decretamento da presente providência está a sofrer prejuízos, verdade é, felizmente, que a Ordem Jurídica vigente manda acautelar preferencialmente o direito á saúde, ao bem estar e ao ambiente saudável dos requerentes, tendo sido aquele direito injusta e ilicitamente lesado com a laboração deficiente dos secadores da C.., cujos filtros não possibilitam a filtragem eficaz e efectiva das poeiras cerealíferas e demais detritos.

VI — Na douta decisão recorrida o Meritíssimo Juiz “a quo” fez correcta apreciação dos factos e interpretou e aplicou a Lei com rigor e acerto, pelo que nenhuma razão tem a agravante para o recurso de agravo que ora interpôs.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO; questões a apreciar.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela agravante, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, ex vi do artigo 749º, todos do Código de Processo Civil (CPC).

São as seguintes as questões que importa apreciar:

a) Questão prévia – Junção de documentos e articulado por parte da recorrente
b) Incorrecto julgamento da matéria de facto
c) Oposição entre os fundamentos e a decisão
d) Prejuízo do decretamento da sentença para a recorrente superior ao dano que com ela os recorridos pretendem evitar

III – FUNDAMENTOS

1 – De facto

Tendo presente o disposto no art.º 388.º, n.º 2 do CPC, na apreciação do presente recurso do despacho final proferido na oposição à providência cautelar, a decisão daquela constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida, pelo que teremos que considerar os factos dados por provados em ambas as decisões.

Assim, quanto aos factos acolhidos na providência cautelar, temos os seguintes:

a) No ano de 2000 foi intentada pelos aqui requerentes contra a requerida uma providência cautelar no sentido de fazer cessar imediatamente as consequências gravemente danosas da actividade poluente da Requerida;

b) No âmbito das mesmas a ora Requerida comprometeu-se expressamente a desactivar o funcionamento das operações de secagem dos seus secadores, sitos na Zona Industrial de Riachos;

c) No ano de 2001 os Requerentes propuseram outro procedimento cautelar não especificado requerendo de novo a este Tribunal de Torres Novas que fosse decretada providência idêntica, a qual foi julgada procedente, tendo sido ordenada a suspensão imediata

da referida actividade de secagem do milho exercida pela C..., em Riachos;

d) Os aqui Requerentes são donos e legítimos possuidores do prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Novas, sob o número 0947/040191 — Riachos;

e) Nele instalaram os Requerentes uma carpintaria industrial;

f) A carpintaria dos Requerentes está licenciada pela Direcção Regional da Indústria de Lisboa e Vale do Tejo, doc. n3 da acção principal;

g) E labora permanentemente com, pelo menos dois operários, para além do Requerente marido;

h) Executam-se lá trabalhos desde a secagem inicial das tábuas até ao acabamento de móveis, que seguidamente, nuns casos são envernizados e noutros encerados ou lacados;

i) Equipam-nas modernas máquinas industriais, designadamente escotigadora, serra de fita, galopa, desengrossaria e calibradora;

j) O pessoal trabalhador desta oficina cumpre o horário das 8 h às 19 h, com intervalo para o almoço das 12 h às 13 h, sendo o domingo o dia de descanso semanal;

l) Na referida oficina existem sistemas de aspiração de poeiras e raspas de madeiras adequados a cada uma das máquinas, havendo ainda uma conduta de canalização automática e auto- -sustentada desses detritos para um silo colocado no parque da unidade industrial;

m) Foi iniciada campanha de secagem do milho deste ano de 2003 com a emissão atmosférica da carepa, detritos e afins, poeiras cerealíferas, as quais, principalmente nos dias de orientação Norte/Sul do vento se depositam em todo o espaço oficinal e de atendimento da carpintaria dos Requerentes, permanecendo, entretanto e contaminando inteiramente o ambiente e o ar respirável.

n) Nos primeiros dias do mês de Setembro deste ano de 2003 a Requerida retomou (depois de ensaios e exercícios de pré- -laboração) a tarefa industrial contínua que lhe é própria, nesta campanha sazonal do milho, iniciando a secagem das muitas toneladas de cereal para que está dimensionada;

o) E esta actividade da Requerida irá durar até ao fim de Novembro;

p) Manifestando-se desde já no contínuo depósito de grandes quantidades dessas poeiras e detritos (emitidos pela Requerida) sobre os móveis, nas máquinas, no solo e sobrado e nas paredes da oficina dos Requerentes, e bem assim nos cabos eléctricos, caldeiras e esgotos das águas pluviais, sobre os telhados e parqueamento adjacentes;

q) Entretanto no horário de laboração e de abertura ao público da carpintaria em causa, a atmosfera fica constituída por ar contaminado, saturado das ditas poeiras e detritos vários de origem cerealífera e extraídos através do processo de secagem do milho utilizado na indústria da Requerida;

r) São vítimas dos factos acima descritos os Requerentes, os operários e os clientes.

Para a apreciação da oposição foram ainda dados como provados os seguintes factos (que para um mais fácil entendimento continuarão a sequência de alíneas advindas da decisão da providência cautelar):

s) A Requerida C..., é uma sociedade sob a forma Cooperativa constituída em 1987 e que tem por objecto social: “efectivar, qualquer que sejam os meios e as técnicas por ela utilizados, as operações respeitantes à natureza dos produtos provenientes das explorações agro- -pecuárias e florestais tendo por base a recepção, secagem, armazenagem e comercializar cereais”;

t) O objectivo inicial foi, assim e desde logo, a construção de instalações adequadas para a armazenagem e secagem de grandes quantidades de cereal, única forma para tomar possível a sua comercialização a preços competitivos;

u) Foi, por isso, adquirido, logo em 22 de Dezembro de 1987 um terreno sito em Quinta dos Pinheiros na que foi, depois, denominada Zona Industrial e Riachos, precisamente o localizado no seu extremo Norte;

v) Aí tendo sido edificadas, desde logo, as respectivas instalações, com os silos da secagem, os armazéns de recolha do cereal e as instalações sociais;

w) A breve trecho a C... abrangeu centenas de associados que, nos dias de hoje, são em número de 1 300, ganhando, deste modo, a posição de um dos maiores entrepostos agrícolas do País;

x) Por se turno, os Requerentes vieram a adquirir o seu lote de terreno — então já objecto de loteamento industrial — em 28 de Fevereiro de 1991;

y) A Requerida já instalou filtros nos secadores de milho, que visível, efectiva e comprovadamente eliminam, pelo menos, a emissão da maior parte das poeiras, carepas e outros detritos, emitidos pelos mesmos, para o prédio e instalações dos Requerentes;

z) O ar quente produzido pelos queimadores atravessa o grão húmido através de canaletes, arrastando a humidade e as diversas impurezas (pó, carepa. diversos fragmentos, etc.) para uma zona abaixo dos ventiladores;

aa) Numa câmara aí localizada, foram montados filtros metálicos de malha muito apertada da que permitem a passagem do ar mas impedem a passagem da maior parte das

ditas impurezas e montados também uns batedores que sacodem a referida parede de filtragem e impedem a acumulação das impurezas, assim como um reservatório inferior (tremonha) provida dum sem-fim eléctrico que desloca para a zona inferior do secador as impurezas retidas na referida tremonha;

ab) As carepas e poeiras que pairam no local são o resultado do transporte e maneio do milho pelos agricultores e não da secagem propriamente dita;

ac) As instalações da C... e a dos Autores, localizam-se em zona industrial não destinada a habitação;

ad) Segundo parecer emitido (VOL III, fis. 225 e seguintes dos autos principais) pelo Prof. Doutor A G Palma Carlos, Professor Catedrático de Medicina Interna, Imunologica e Imuno-Alergologia da Faculdade de Medicina de Lisboa, “com os dados apresentados não se pode afirmar que haja qualquer relação causa — efeito entre a exposição a poeiras do milho e a doença respiratória da doente em causa a qual pode ter outras causas de doença respiratória uma vez que a hiperactividade permanente e se verifica em situação de inalação muito prolongada de partículas o que não parece verificar- -se para a poeira do milho”;

ae) De acordo com o Relatório junto aos autos de acção principal (Vol. III, fis. 272 e segs), da autoria do Instituto do Ambiente, datado de Fevereiro de 2003, “concluiu-se que as fracções finas (<1 um) não continham partículas de milho. Só nas fracções grosseiras foi registada a presença de partículas de milho e dentro destas nas fracções maiores >1.5 um...”;

af) A Requerida teve de emitir um comunicado aos seus associados, no sentido de os informar da pendência da presente providência cautelar e pedir que o milho verde seja entregue em secadores sitos em Chamusca, Azinhaga, Vale de Figueira e Alpiarça, até à resolução final da mesma, o que lhe vem causando prejuízos que a mesma avalia em cerca de €40.000.

*

Nesta segunda decisão, foram ainda considerados não provados os seguintes factos:

A) É manifestamente abusiva e forçada a conclusão de que a actividade desenvolvida nesta época do ano pela Requerida, permite a emissão de detritos para o ambiente que prejudicam a saúde física e psíquica dos Requerentes e respectivos trabalhadores;

B) Que a instalação dos filtros elimine visível, efectiva e comprovadamente toda a emissão de poeiras, carepas e outros detritos para o exterior (dado que tal emissão provém também de operações de descarga do milho);

C) Que os filtros colocados nos secadores apresentam a tecnologia mais avançada do sector;

D) Que em consequência da instalação dos filtros a requerida deixou de emitir poeiras detritos e carepas para o prédio dos Requerentes.

2 - De Direito

Passemos agora à abordagem das questões supra indicadas, objecto de apreciação neste recurso.

a) Questão Prévia – Junção de documentos e de articulado por parte da recorrente

A recorrente C..., veio através de articulado autónomo, apresentado neste Tribunal em 25/05/2004 (e a registo nos CTT, em 24/05/2004), ao qual juntou 21 docs., requerer o levantamento da providência que foi decretada na 1.ª instância e, nessa sequência, seja autorizado o reinicio da sua actividade.

Notificada a recorrida, veio esta responder, impugnando os factos alegados pela agravante, bem como os docs. apresentados.

Cumpre decidir.

Com relevo para a apreciação desta questão prévia, importará reter que nestes autos de recurso de agravo, iniciaram-se os “vistos” aos juízes em 12/03/2004 (vd. fls. 128).

Com efeito, foi nessa data que o processo transitou da secretaria do Tribunal para a mão do juiz a que, em primeiro lugar, cabia examiná-lo (vd. neste sentido o ac. do S.T.J. de 21/02/75, in BMJ, 244-225).

O art.º 706.º, n.º 2, do CPC estabelece como limite último para a junção de qualquer doc. superveniente, a data em que se iniciam os “vistos” aos juízes.

Ora, como vimos supra, tal data ocorreu em 12/03/2004, sendo certo também que os referidos docs. foram juntos tão só em 25/05/2004.

É pois manifesta a extemporaneidade de tal junção, pelo que não se admite a mesma.

Quanto ao articulado que suportava a apresentação de tais docs., também o mesmo não pode ser admitido dado carecer de qualquer suporte legal.

b) Incorrecto julgamento da matéria de facto

O art.º 712.º do CPC, refere nas três alíneas do seu n.º 1, quais as situações em que o Tribunal da Relação pode alterar a decisão de facto estabelecida na 1.ª instância, indicando-se por seu turno no n.º 1 do art.º 690.º-A, do mesmo diploma legal, quais os procedimentos que o(a) recorrente deve assumir para que tal reapreciação possa verificar-se.

Assim, deverá o(a) recorrente especificar “quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados” (al. a), do n.º 1 desse último dispositivo), bem como “quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.

Ainda no tocante às situações que permitem a modificabilidade da decisão de facto, haverá que ter presente a posição dominantemente aceite na jurisprudência que aponta no sentido de tal reapreciação não poder subverter o princípio da livre apreciação das provas consagrado no art.º 655.º do CPC.

Como muito bem é salientado no Acórdão da Relação do Porto de 19/9/2000, in CJ, Ano XXV, T. 4, págs. 186 “…o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados”.

Este é aliás o sentido que o legislador pretendeu dar à possibilidade do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto, pois que expressamente refere no preâmbulo do diploma que possibilitou a documentação da prova (Dec.-Lei n.º 39/95, de 15/12) que “…a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.

Tendo presente estes princípios orientadores, vejamos agora se a agravante deu cumprimento aos procedimentos legalmente exigíveis que lhe possibilitam o recurso sobre a decisão de facto e, em caso afirmativo, se lhe assiste razão.

Refere a recorrente que “foram julgados incorrectamente os seguintes pontos concretos de facto, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 690.º-A, n.º 1, al. a), do CPC:

“a) Alíneas m), p), q) e r), da matéria de facto considerada provada na primeira decisão que decretou a providência;

“b) Alínea I) dos factos não provados, com interesse para a decisão da oposição” (7.ª conclusão).

Acrescenta que “a decisão recorrida deveria ter considerado provado, atenta a prova produzida que a actividade desenvolvida nesta época do ano pela requerida, não permite a emissão de detritos para o ambiente, que prejudiquem a saúde física e psíquica dos requerentes e respectivos trabalhadores” (8.ª conclusão).

No âmbito das suas alegações é ainda por si salientado que a razão do seu entendimento diverso quanto à apreciação da prova, decorre da valoração que faz (e que o Senhor Juiz não terá considerado) do parecer do Prof. Doutor A. G. Palma Carlos (junto nos autos da acção principal a fls. 225 e segts.) e do relatório do Instituto do Ambiente (igualmente junto a fls. 272 e sgts. dos autos de acção principal).

Do que se deixa exposto resulta claro que sob o ponto de vista formal a recorrente cumpriu o que lhe era exigido pela lei para poder atacar a decisão de facto da 1.ª instância, na medida em que indicou os concretos pontos de facto que considerou incorrectamente julgados (al. a), do n.º 1, do art.º 690.º-A, do CPC) e referiu os concretos meios probatórios, constantes do processo, que impunham decisão de facto diversa da recorrida (al. b), do n.º 1, do art.º 690.º-A, do CPC).

Mas se é verdade que tais formalismos foram respeitados pela recorrente, não deixa de ser menos correcto que este tribunal, atento o que foi dito supra sobre a sua possibilidade de alterar a matéria de facto (respeito pelo princípio da livre apreciação das provas, atribuído ao julgador em 1.ª instância), não encontra razões bastantes para alterar a factualidade apurada.

Com efeito, o Senhor Juiz do Tribunal a quo fez a sua valoração da prova produzida, tendo em ambas as decisões (da providência e da oposição a esta) apresentado a respectiva motivação de facto, onde salientou a importância que deu à prova testemunhal, bem como aos docs. que terão sido apresentados no âmbito da acção principal.

Os docs. em causa, que a recorrente pretende que sejam valorados diversamente do que foram pelo Senhor Juiz, de molde a levarem à alteração da matéria de facto, são meros docs. particulares, sem eficácia plena, valendo tão só como elementos de prova a apreciar livremente pelo tribunal (arts.376º, do C.C. e 655.º, n.º1, do C.P.C.).

Se o julgador da 1ª instância entendeu valorar diferentemente da ora agravante tais documentos, não pode a Relação pôr em causa a convicção daquele, livremente formada, como antes se referiu, tanto mais que dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que nós não detemos aqui (v.g. a inquirição das testemunhas).

Do que se deixa dito, há pois que concluir que não há que alterar a decisão recorrida, quanto à matéria de facto, pois que não se mostra verificado qualquer dos fundamentos tipificados no n.º 1 do art.º 712.º do CPC, improcedendo por isso esta questão.

c) Oposição entre os fundamentos e a decisão

Refere a recorrente que a decisão recorrida será nula, por se registarem duas situações de oposição entre os fundamentos e a decisão (art.º 668.º, n.º 1, al. c), do CPC).

Uma, considerando que quer na decisão que decretou a providência, quer na que apreciou a oposição, se fazem referências expressas aos reflexos nítidos na saúde psíquica dos requerentes e seus trabalhadores, quando é certo que nem numa nem noutra foi considerado entre os factos provados que a actividade da recorrente afectava a saúde psíquica dos requerentes, ou de quem quer que seja.

Outra, ao considerar que a decisão da providência cautelar, que determinou a imediata cessação da actividade da recorrente enquanto não procedesse à instalação de filtros que visível, efectiva e comprovadamente eliminassem a emissão de poeiras, carepas e outros detritos para o prédio e instalações dos agravados, está em oposição com os factos que entretanto se deram como provados de que a recorrente “já instalou filtros nos secadores de milho, que visível, efectiva e comprovadamente eliminam, pelo menos a emissão da maior parte das poeiras, carepas e outros detritos, emitidos pelo mesmo, para o prédio dos requerentes” e que “as carepas e poeiras que pairam no local são o resultado do transporte e maneio do milho pelos agricultores e não da secagem propriamente dita”.

Antes de mais importará ver se nos encontramos perante reais situações de nulidade da sentença, isto é, de verdadeiras situações de oposição entre os fundamentos e a decisão.

A este propósito, refere-se no acórdão desta Relação de 25/11/03 (Rec.º n.º 3858/03, in: www.stj.pt) que tal nulidade (a da al. c), do n.º 1, do art.º 668.º, do CPC) só ocorrerá “quando «os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto” (conf. Prof. Alb. dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 141”). Ou melhor, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma oposta à que logicamente deveria ter extraído (vidé ainda , Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.).”

Ora, no caso em apreço, em nenhuma das situações verificamos que haja qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, pois que o Senhor Juiz a quo desenvolve todo um raciocínio lógico e de construção clara, face aos factos que deu por provados e mesmo perante a decisão inicial em que deferiu a providência pedida.

Com efeito, no que concerne à primeira das apontadas situações, o Senhor Juiz refere que “mesmo não havendo, por hipótese, nexo de causalidade entre a doença respiratória da requerente e a emissão de carepa e outros detritos por parte da requerida, como se deixou referido na decisão inicial, e mesmo segundo as regras da experiência comum, o bem-estar e a qualidade do local de trabalho, com reflexos nítidos na saúde psíquica dos requerentes e seus trabalhadores” (vd. fls. 56).

Não se regista pois aqui a contradição necessária, à verificação do vício previsto na al. c), do n.º 1, do art.º 668.º, do CPC.

Quanto à segunda situação apontada pela agravante, há que referir que o Senhor Juiz teve mesmo o cuidado de explicitar a razão pela qual desvalorizava esses factos face ao contexto de toda a prova: “In casu, após a produção de prova, mantém-se a aparência da existência do direito dos requerentes, pois que, não obstante a colocação dos filtros nos secadores, continua a verificar-se um grande depósito de detritos nas instalações dos requerentes, e que, indiciariamente, resulta das operações de descarga do milho, em grandes quantidades, nas eiras da requerida”.

“Desse modo, tendo a requerida como objecto da sua actividade não só a secagem mas também a recepção e armazenagem do milho, continua tal actividade a afectar os direitos dos requerentes à saúde física e psíquica, a uma qualidade de vida e a um ambiente equilibrado, os quais gozam de tutela legal – art.º 70.º, do CC”(vd. fls. 55).

A agravante pode não concordar com a apreciação e o raciocínio desenvolvido pelo Senhor Juiz, não pode é afirmar que a sua decisão se encontra em contradição com os fundamentos que de facto e de direito o mesmo apresenta. Na realidade, o tribunal a quo disse o que pretendia dizer e fê-lo claramente em termos coerentes e inequívocos, não havendo pois a registar uma qualquer construção viciosa da sentença.

Do que se deixa dito resulta que também esta questão não procederá.

d) Prejuízo do decretamento da sentença para a recorrente superior ao dano que com ela os recorridos pretendem evitar

A agravante refere finalmente que a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, na medida em que não considerou que o prejuízo para a recorrente, decorrente do decretamento da providência, excedia consideravelmente os hipotéticos danos que com ele os requerentes pretendiam evitar, tendo por isso desrespeitado o disposto o art.º 387.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

Constitui efectivamente um dos requisitos para o decretamento de uma providência cautelar não especificada, a circunstância do prejuízo dela decorrente para o requerido não exceder consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar (art.º 387.º, n.º 2 do CPC).

O senhor juiz do tribunal a quo, no tocante a este ponto referiu:

“E como já se frisou na decisão inicial, entre o direito da requerida em exercer uma actividade comercial e sofrer prejuízos com a cessação temporária da mesma e o direito à saúde, ao bem-estar e a um ambiente minimamente saudável, deve ser preferencialmente acautelado este último” (vd. fls. 56).

Face a toda a matéria dada por provada, permitimo-nos discordar da posição assumida pelo Senhor juiz.

Com efeito, com relevo para a apreciação deste requisito, relembremos os seguintes factos que foram dados por provados na decisão recorrida:

“A requerida (aqui recorrente) já instalou filtros nos secadores de milho, que visível, efectiva e comprovadamente eliminam, pelo menos, a emissão da maior parte das poeiras, carepas e outros detritos, emitidos pelos mesmos, para o prédio e instalações dos requerentes” (al. y), da factualidade apurada).

“As carepas e poeiras que pairam no local são o resultado do transporte e maneio do milho pelos agricultores e não da secagem propriamente dita” (al. ab), da factualidade apurada).

“As instalações da C... e a dos Autores, localizam-se em zona industrial não destinada a habitação” (al. ac), da factualidade provada).

“Segundo parecer emitido (VOL III, fis. 225 e seguintes dos autos principais) pelo Prof. Doutor A. G. Palma Carlos, Professor Catedrático de Medicina Interna, Imunologica e Imuno-Alergologia da Faculdade de Medicina de Lisboa, “com os dados apresentados não se pode afirmar que haja qualquer relação causa — efeito entre a exposição a poeiras do milho e a doença respiratória da doente em causa a qual pode ter outras causas de doença respiratória uma vez que a hiperactividade permanente e se verifica em situação de inalação muito prolongada de partículas o que não parece verificar- -se para a poeira do milho” (al. ad), da matéria provada).

“A Requerida teve de emitir um comunicado aos seus associados, no sentido de os informar da pendência da presente providência cautelar e pedir que o milho verde seja entregue em secadores sitos em Chamusca, Azinhaga, Vale de Figueira e Alpiarça, até à resolução final da mesma, o que lhe vem causando prejuízos que a mesma avalia em cerca de €40.000” (al. af da matéria provada).

Estes factos ora indicados, resultam da prova produzida em sede de oposição, sendo por isso logicamente posteriores aos tidos em conta no âmbito da inicial decisão da providência.

A decisão da oposição é complemento e parte integrante da que deferiu a providência (art.º 387.º, n.º 2, do CPC). Como se referiu no Acórdão do STJ de 15/6/2000, in CJ, Ano VIII, Tomo II, pág. 110 “a oposição é apenas uma fase do próprio procedimento cautelar, inscrita na mesma instância e a respectiva decisão faz parte integrante da primeira, até porque colimada ao pedido e fundamentos inicialmente formulados pelo requerente, agora contraditados por novos factos, ficando ambas as decisões aglutinadas numa só, ou seja, uma “ decisão unitária “.

“Trata-se, assim, de uma excepção ao princípio da imodificabilidade das decisões, plasmado no art.º 666.º do CPC, pelo que a decisão inicial não faz caso julgado”

Tendo presente esta realidade jurídica e a congregação de toda a matéria de facto apurada e referenciada, quer no âmbito da decisão inicial da providência cautelar, quer no seio da proferida na sequência da oposição, somos de concluir que o prejuízo para a ora recorrente, resultante do decretamento da providência, excede consideravelmente o dano que com ela os recorridos pretendem evitar.

Com efeito, tendo a agravante já instalado filtros nos aparelhos de secagem de milho, que visível, efectiva e comprovadamente eliminaram, pelo menos, a emissão da maior parte das poeiras, carepas e outros detritos, emitidos pelos mesmos, para o prédio e instalações dos requerentes, sendo que as referidas carepas e poeiras que pairam no local são o resultado do transporte e maneio do milho pelos agricultores e não da secagem propriamente dita, há desde logo que registar a melhoria substancial da situação, face ao que fora dado como provado inicialmente;

Se a tais factos acrescentarmos a circunstância de se ter dado também por provado inexistir uma relação de causa-efeito entre a exposição a poeiras do milho e a doença respiratória da recorrida, sendo ainda certo que a actividade profissional de ambas as partes se desenvolve em zona industrial, não habitacional;

E, se por último, tivermos presente que a situação de suspensão da actividade da recorrente lhe vem causando prejuízos que a mesma avalia em cerca de €40.000, o que não sendo um número que em absoluto seja elevadíssimo, constitui para a grande maioria das empresas portuguesas um valor razoavelmente alto;

Então, teremos necessariamente que considerar, face à ponderação de todos estes factores, que o prejuízo para a recorrente, resultante do decretamento da providência, excede consideravelmente o dano que com ela os recorridos pretendiam evitar, pois que hoje estes danos são muito pouco visíveis.

Como se refere no Ac. da Relação de Lisboa de 8/5/2003 (rec.º n.º 1416/03, in: www.stj.pt) “Não se pode pretender, com um procedimento cautelar, obter o resultado próprio de uma acção, nem se olvidará que o interesse do requerido também merece protecção, quando a salvaguarda do direito do requerente seja susceptível de ir ao ponto de causar um prejuízo que exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar (art. 387º, nº2 do CPC).

Daqui decorre que não se regista um dos requisitos exigíveis para o decretamento da providência, ou melhor, que se verifica um elemento que obsta a que a mesma seja determinada, o que necessariamente levará à procedência do recurso.

IV - DECISÃO

Nos termos expostos e com os fundamentos de facto e de direito expendidos, revoga-se a decisão agravada e assim, dando- -se provimento ao agravo, julga-se improcedente a requerida providência cautelar não especificada.

Custas pelos agravados em ambas as instâncias, condenando-se ainda a agravante nas custas do incidente a que deu azo, com a junção intempestiva dos docs. e do articulado apresentado nesta Instância.

Coimbra,