Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
138-D/1991.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: MANDATO
IRREGULARIDADE
CONFLITO DE INTERESSES
Data do Acordão: 09/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 94º Nº 1 DO EOA, 28º Nº1, 40º E 357º DO CPC
Sumário: 1. Nos embargos de terceiro, o executado deve ser sempre demandado, sob pena de ilegitimidade passiva dos restantes demandados por preterição do litisconsórcio necessário legal.

2. Porque o executado deve ser demandado pelo embargante, ele é por força da lei - e deve ser indicado como - parte contrária deste, em causa que é conexa com a execução.

3. Consequentemente, na relação embargante-mandatária, verifica-se uma desconformidade da aceitação do mandato com o disposto no artigo 94º nºs 1 e 2 do EOA, desconformidade que, por não ser directamente sancionada por lei com a nulidade e por não se integrar no disposto no artigo 201º nº 1 do CPC, constitui mera irregularidade no mandato. É aplicável o disposto no artigo 40º do CPC.

Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE:

I - Relatório:

A... fora condenado a pagar à B.... € 1911,47 e juros e, pelo DL 362/97 de 20-12, o activo da B... foi transmitido ao Estado Português.

Seguiu-se a instauração de acção executiva pelo Ministério Público contra A... para pagamento de € 7042,32 e juros, tendo ainda o ISS reclamado seus créditos.

Aos 26-06-2006, foi nesse âmbito penhorado o imóvel matriciado U-370 e sito na freguesia de Maiorca, como sendo pertencente ao executado. No edital para venda, passado a 29-10-2007, veio indicado tal imóvel U-370 (v. fl. 21).

O executado, patrocinado pela Ex.ma Advogada C... , deduziu oposição à penhora, com base em que em 2-2-1988 os seus pais haviam prometido vender aquele imóvel a D... , a qual desde então teria passado a possuir o imóvel. A oposição foi julgada improcedente.

Aos 3-01-2008, por apenso à execução, E... (irmã da dita D...), patrocinada pela mesma Ex.ma Advogada, instaurou os presentes embargos de terceiro indicando como embargados apenas o Ministério Público e o ISS. Pediu a condenação dos embargados a não perturbar a sua posse de arrendatária, ou a restituí-la conforme o caso, alegando, para o efeito:

A embargante é locatária e o executado (seu pai) é locador de seis prédios urbanos e de determinadas máquinas e outros bens conforme vem especificado no “contrato de arrendamento” cujo documento junta a fls. 25/28, para vigorar por cinco anos desde 10-7-2007. Entre esses imóveis encontra-se – diz a embargante – uma casa que fora construida ilegalmente e que ainda não está inscrita na matriz, mas na porta dessa casa, que a embargante habita, foi colado o referido edital para venda como sendo essa casa o dito imóvel matriciado U-370. A casa que a embargante habita vem indicada sob a letra A no doc nº 3, enquanto ao lado no mesmo doc vem a casa sob a letra H e à qual corresponderá realmente o prédio U-370 que foi penhorado.

Refere ainda a petição de embargos que a Advogada signatária é filha dos executados e irmã da embargante.

A fl. 45 destes autos de embargos foi proferido despacho com este teor:

(…) «Consabido que os embargos de terceiro são deduzidos contra as partes primitivas da execução (…), as quais (…) serão notificadas para contestar (v. art. 357º nº 1 do CPC), verifica-se que a Ex.ma Advogada da ora embargante (…) é a mesma que representa o embargado A... (v. fl. 12 do apenso C), notifique a sobredita mandatária para (…) esclarecer o que tiver por conveniente, mormente face ao estatuído no nº 2 do art.94º da Lei nº 15/2005 de 26-1 (que aprova o E.O.A.)».

A Ex.ma Advogada ofereceu o requerimento de fls. 47 a 51, vindo dizer, em resumo:

(…) Ainda que na maioria dos casos de “embargos de terceiro” estes hajam necessariamente de ser propostos contra as partes primitivas, atendendo aos interesses em causa conflituantes entre si, a lei não exige que assim seja, (pois que) apenas diz (…) que as partes primitivas serão notificadas para contestar, querendo. (…) “Os executados” não terão necessariamente interesse em contradizer, repete-se, neste caso concreto, uma vez que, atendendo aos interesses em questão, verifica-se que estão em harmonia e são coincidentes entre si. (…) “Quem patrocina as duas partes é prevaricador”. Não é nem nunca será o caso da Signatária».

Seguiu-se o despacho de fls. 53:

«(…) Reconhecendo a Ex.ma Mandatária (…) que o executado, que patrocina, será, em caso de admissão de embargos de terceiro, notificado para contestar (quer o faça quer não) – (…) – torna-se óbvio que não poderá fazê-lo patrocinado pela mesma advogada da parte contrária.

«(…) Embora [os embargos] não venham correctamente deduzidos contra as partes primitivas, dada a frequência com que tal ocorre, é hábito do Tribunal suprir oficiosamente esse lapso.

«Configurando-se, pois, uma situação de irregularidade de mandato, notifique a embargante para em 10 dias vir regularizar a situação, sob pena de ficar sem efeito tudo o que tiver sido praticado pela mandatária (…) e vir esta a ser condenada nas custas a que deu causa – v. art. 40º nº2 do CPC».

A ilustre Advogada, na qualidade de mandatária da embargante, recorre desta decisão, para que esta seja revogada e se julgue regular o mandato, apresentando a sua alegação as conclusões de fls. 77-78:

1ª) Não é o facto de os executados, na qualidade de partes primitivas, serem notificados para contestar, que faz com que sejam parte contrária da embargante;

2ª) Parte contrária afere-se pelo critério do art. 26º do CPC: se pela análise dos interesses concretos, estes não são controvertidos mas sim harmónicos, só pode concluir-se que estas partes embora distintas não são contrárias;

3ª) Não sendo materialmente partes contrárias, não há conflito de interesses;

4ª) A norma do art. 94º do EOA está respeitada e o mandato é regular.

Foi proferido despacho a sustentar a decisão recorrida.

Correram os vistos.

Nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.

II - Fundamentos:

Os factos a considerar para se conhecer do objecto do recurso são os que constam do relatório.

A questão a apreciar consiste em saber se, no caso concreto, se verifica ou não a irregularidade de mandato como a 1ª instância considerou.

Preceitua o art. 94º do EOA (epigrafado “conflito de interesses”):

«1. O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

«2. O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado».

Segundo António Arnaut, in Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado, 10ª ed, p. 110 s, «a doutrina dos nºs 1 e 2 justifica-se por razões de decoro (…). O advogado, contudo, pode representar ambos os cônjuges em acção de divórcio por mútuo consentimento ou vários herdeiros no mesmo inventário. Se, porém, no decorrer do processo surgirem conflitos entre os seus clientes, deve abster-se de patrocinar qualquer deles».

O acórdão desta Relação de 30-01-2007 (agravo 382-A/2002, relator Hélder Roque), proferido em processo de inventário no qual fora decidido indeferir a arguida nulidade consistente em o mesmo advogado patrocinar em licitações vários interessados, decidiu confirmar tal decisão, com base em que: nos inventários só é obrigatória a intervenção de advogado para se suscitarem ou discutirem questãoes de direito, mas nesta categoria não se incluem as licitações; se existisse conflito de interesses entre dois ou mais clientes patrocinados pelo mesmo advogado, o artigo 94º nºs 3 e 4 do EOA levaria a que ele devesse cessar de agir por conta de todos, sem que a lei comine a nulidade pelo artigo 201º do CPC; não se indiciava conluio; também no processo de divórcio por mútuo consentimento os cônjuges podem estar representados pelo mesmo mandatário apesar da situação de interesses conflituantes em matérias de acordos.

Vejamos.

É sabido que, em geral, nos processos de inventário a questão é doutrinária e jurisprudencialmente controvertida, havendo posições defendidas em um e outro sentido. Também nos ditos divórcios por mútuo, a questão não é de solução inteiramente pacífica num só sentido. Em qualquer desses tipos de processos, a prática propende todavia a admitir a representação plural pelo mesmo advogado, na ausência de real conflito de interesses. Pois que, na sua essência, não se trata de processos de partes, em que haja contraposição de posições activa e passiva.

Certo é que o presente processo é litigioso, não de jurisdição voluntária. É rigorosamente processo de partes. Além disso, as questões que aqui se suscitam são de facto e de direito. E não se suscitam dúvidas de que no presente processo o patrocínio por advogado é obrigatório.

Importa, pois, apurar se a Ex.ma Advogada mandatária da embargante patrocina uma questão conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

A conexão entre a instaurada execução (para mais com a oposição do executado à penhora) e os embargos de terceiro é evidente, dado que a dedução destes visa obter determinado efeito relativamente à penhora efectuada no âmbito daquela execução. Por isso, os embargos são apensados à execução.

A recorrente não põe em causa que executado e embargante são partes. Entende é que não são partes contrárias, porque não detêm interesses contrários mas sim harmónicos.

Estará na disponibilidade da embargante, ou mesmo do tribunal, ajuizar se no caso concreto em que estes embargos de terceiro se configuram há ou não há conflito de interesses, de modo que, havendo tal conflito, haja irregularidade do mandato em causa e, não havendo tal conflito, se siga que o mandato é regular? Ou, pelo contrário, nestes embargos se deve entender que, como em quaisquer embargos de terceiro, o executado e o embargante não podem ser patrocinados pelo mesmo advogado com base em que eles, desde logo porque por lei são partes contrárias e portanto encabeçam interesses conflituantes?

 A solução está neste segundo braço da alternativa.

Com efeito, é a própria lei a atribuir ao executado e ao terceiro embargante a qualidade de partes contrapostas, ao preceituar no artigo 357º nº 1 do CPC: «Recebidos os embargos, são notificadas para contestar as partes primitivas…». Pelo nº 2 desse artigo, invocada a posse pelo embargante, «pode qualquer das partes primitivas, na contestação, pedir o reconhecimento, quer do seu direito de propriedade, quer de qualquer direito…».

Refere Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed, 2004, em anotação ao artigo 357º:

«Na verdade – e partindo da situação paradigmática da acção executiva – parece evidente que ao próprio executado, ainda que não haja promovido a penhora que originou a dedução dos embargos, deverá ser conferida legitimidade para se pronunciar sobre os fundamentos da pretensão do embargante, já que é directamente interessado no tema: se os embargos procederem, outros bens a ele pertencentes virão seguramente a ser objecto de penhora subsequente».

Assim é. A imposição da notificação, não só do exequente e eventuais reclamantes de créditos, mas «das partes primitivas» é, por parte do legislador, intencional: visa ampliar a legitimidade para contestar aos executados.

Trata-se de uma ampliação de legitimidade por força da lei, genérica e abstracta, portanto vigente para todos os casos de embargos de terceiro e não apenas para alguns casos, como a recorrente pretende. Também os executados têm legitimidade, como parte passiva (em litisconsórcio necessário com exequente por mera imposição da lei – artigo 28º nº1 do CPC). E porque se trata de legitimação “ad causam” por força da lei, não tem cabimento o argumento da recorrente segundo o qual a legitimidade passiva nos embargos se aferiria, em concreto, pelo critério do art. 26º do CPC.

Consequentemente, o executado deve ser co-demandado nos embargos, sob pena de ilegitimidade do exequente e reclamantes por preterição do litisconsórcio necessário legal (excepção dilatória suprível). Não está na disponibilidade do embargante a demanda do executado, nem caberia ao tribunal dispensar a sua notificação para contestar, sob o pretexto de que em determinado caso não haveria realmente interesses antagónicos.

Daí se conclui, para o efeito do disposto do artigo 94º nº 1 do EOA, que o executado e a embargante não podem ser representados pelo mesmo advogado, porque o executado é parte contrária ao embargante em causa conexa. Isto basta para que deva ser recusado o patrocínio (nº 1), por lhe estar ínsito como possível um conflito de interesses (epígrafe desse artigo), conflito esse que também está ínsito como possível no preceito do artigo 357º do CPC e justifica, em qualquer caso, a imposição de notificação das partes primitivas (incluindo o executado) para contestar. Não há lugar à discussão sobre se os interesses são realmente conflituantes entre executado e embargante.

Uma parte primitiva notificada para contestar é uma parte contrária ao demandante, porque estão colocados em posições adversas na causa: a causa tem parte activa e parte passiva. E parte é quem o é (como ensinava o Prof. Castro Mendes), definindo-se como tal antes e independentemente de se aferir da sua ilegitimidade (problema logicamente posterior).

A conduta da Ex.ma advogada consistente em omitir a indicação do executado como embargado para daí concluir que este não é parte contrária e assim reiterar a manutenção do duplo mandato é ilegítima e, mais do que isto, ilegal (contraria o disposto nos artigos 357º e 28º nº 1 do CPC e 94º do EOA). Ainda que na base deste preceito possa estar uma razão de decoro, como anotou o ilustre Advogado António Arnaut, acima citado.

 

Em conclusão:

a) Nos embargos de terceiro, o executado deve ser sempre demandado, sob pena de ilegitimidade passiva dos restantes demandados por preterição do litisconsórcio necessário legal;

b) Porque o executado deve ser demandado pelo embargante, ele é por força da lei -- e deve ser indicado como -- parte contrária deste, em causa que é conexa com a execução.

c) Consequentemente, na relação embargante-mandatária, verifica-se uma desconformidade da aceitação do mandato com o disposto no artigo 94º nºs 1 e 2 do EOA, desconformidade que, por não ser directamente sancionada por lei com a nulidade e por não se integrar no disposto no artigo 201º nº 1 do CPC, constitui mera irregularidade no mandato. É aplicável o disposto no artigo 40º do CPC.

A 1ª instância decidiu correctamente a questão relativa ao mandato.

III - Decisão:

Pelo exposto, nega-se o provimento ao agravo, confirmando-se a decisão impugnada.

A 1ª instância comunicará a ocorrência ao conselho distrital da Ordem dos Advogados (art. 40º nº 3 do CPC), para os efeitos convenientes.

Custas pela embargante.