Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
301/19.4PCCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: MEDIDA DE COACÇÃO
REEXAME DOS PRESSUPOSTOS DA PRISÃO PREVENTIVA E DA OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
IRREGULARIDADE
Data do Acordão: 03/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 231.º, N.º 1, E 212.º, N.º 4, DO CPP
Sumário: I – Perante a agravação de uma medida de coacção, ainda que no âmbito do reexame trimestral imposto pelo artigo 213.º, n.º 1, do CPP, é sempre legalmente necessária a audição do arguido, apenas podendo a mesma não ocorrer no caso de impossibilidade devidamente fundamentada (cfr. n.º 4 do artigo 212.º do diploma referido).

II – No descrito circunstancialismo, a falta de audição do arguido, não integrando qualquer uma das nulidades previstas no artigo 119.º e 120.º do CPP, consubstancia mera irregularidade.

Decisão Texto Integral:









I -   Relatório

1.1.  A. interpôs recurso da decisão proferida pelo Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz 2, que decretou o agravamento da medida de coacção a que estava sujeito.

1.2. No recurso em apreciação a arguido apresentou as seguintes conclusões:

A. Da douta decisão recorrida ressalta, a fls. 39 in fine, que “Uma vez que se trata de decisão que conhece a final do objecto do processo não se mostra necessário ouvir nem o Ministério Público nem o arguido.”, julgando-se ser esse o pecado capital pois,

estando em causa uma alteração in malam partem e em desfavor do arguido, a observância aos princípios do contraditório, da protecção da confiança e segurança jurídicas imporia tratamento diferente, nomeadamente com a possibilidade de contraditório prévio, ainda que meramente oral, dado que nos requerimentos precedentes havia o arguido indicado outras comunidades terapêuticas onde poderia prosseguir a medida de coacção em vigor e nunca e em momento algum lhe foi referido que tal seria inviável;

B. Ao arguido não lhe foi nem possibilitado contraditório para esse efeito nem lhe foi comunicada pelo Tribunal tal ponderação ao nível da agravação da medida de coacção, sendo esse o coração recursório dado que estando em causa uma agravação da medida de coacção em vigor julga-se ser sempre necessário a audição do arguido, conferindo-lhe contraditório, pois apenas em caso de manutenção, prorrogação ou extinção é que tal desnecessidade se verificará, sendo tal interpretação a que melhor salvaguarda as garantias de defesa e mostra- se compatível quer com o teor da norma quer com o espírito teleológico e art. 9º CC, verificando-se uma preterição legal que se impõe sanar;

C. Mostra-se disforme à Constituição da República Portuguesa por violação do direito ao contraditório bem como violação das mais elementares garantias de defesa, o entendimento e dimensão normativa do art. 213º n.º 3 CPP quando interpretado no

sentido de “[T]ratando-se de decisão que conhece a final do objecto do processo não se mostra necessário ouvir o arguido quando esteja em causa uma agravação da medida de coacção em vigor (obrigação de permanência me comunidade terapêutica sujeito a vigilância eletrónica) e aplicação de prisão preventiva”;

D. Julga-se inconstitucional, por violação do direito ao contraditório bem como violação das mais elementares garantias de defesa, o entendimento e dimensão normativa do art. 375º n.º 4 CPP quando interpretado no sentido de “[T]ratando-se de decisão que conhece a final do objecto do processo não se mostra necessário ouvir o

arguido quando esteja em causa uma agravação da medida de coacção em vigor (obrigação de permanência me comunidade terapêutica sujeito a vigilância eletrónica) e aplicação de prisão preventiva”;

E. Mostram-se violadas as seguintes normas jurídicas: maxime arts. 213º n.º 3 e 375º n.º 4 CPP; art. 9º CC; arts.16º n.º 2, 18º n.º 2, 27º n.º 1, 32º n.ºs 1 e 5 e 266º n.º 2 CRP; e violados/erroneamente aplicados os seguintes princípios jurídicos: maxime da legalidade, do contraditório, da boa-fé, da protecção da confiança e da transparência decisória. 

 1.3. Notificado o Ministério Público junto do tribunal recorrido, veio o mesmo responder ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:

I – Deflui do nº 2 do art.213° do CPP que, quando procede ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva e da OPHVE, “o juiz ouve o Ministério Público e o arguido sempre que necessário”

 II - A audição do arguido aquando da revisão das medidas de coacção de prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação sob vigilância eletrónica não é obrigatória em todos os casos, e só caso a caso se poderá concluir dessa necessidade.

 III - A medida de coacção de prisão preventiva aqui em causa foi decretada ao abrigo do disposto no artº 375º, nº 4 do CPP, ou seja, aquando da prolação da sentença (in casu, acórdão), norma esta que estipula que “sempre que necessário, o tribunal procede ao reexame da situação do arguido, sujeitando-o às medidas de coacção admissíveis e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer”.

IV - A decisão condenatória não pode abstractamente, por si só, portanto desacompanhada de qualquer outro facto novo relevante, servir de fundamento para alterar medida de coacção vigente até ao momento dessa decisão, continuando o arguido a presumir-se, até ao trânsito em julgado de tal decisão, tão inocente como no início do procedimento criminal, pois que, constitucionalmente, a inocência não admite graduação.

V - A agravação da medida de coacção já é consentida se se verificar incumprimento pelo arguido das obrigações resultantes da sujeição a essa medida ou o incumprimento dos deveres processuais que a aplicação de tal medida visa acautelar ou alteração das circunstâncias.

VI - É o que acontece no caso de que aqui nos ocupamos.

VII - O despacho impugnado agravou a medida de coação até então vigente na sequencia de uma série de informações a dar conta de sucessivos incumprimentos pelo arguido das obrigações a que estava sujeito e da total frustração do plano terapêutico que havia fundamentado a sua ida para a dita Clínica.

VIII – Acresce que a clínica revogou, e manifestou por diversas vezes tal posição, o consentimento inviabilizando desse modo que o arguido ali se mantivesse em OPHVE.

IX – De todas estas informações foi sempre o arguido devidamente notificado e em momento algum aquele as contraria ou tão pouco fornece qualquer explicação para as mesmas, antes se limita a informar de outras instituições que eventualmente poderiam estar na disposição de o acolher, ainda que tal não fosse certo e dependesse de factores que o próprio arguido não poderia controlar.

X - Ainda que tal não se diga expressamente na decisão ora recorrida, a mesma se ancora no disposto no art.203º do CPP, que prescreve no seu nº1 que em caso de violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coacção, o juiz, tendo em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação pode impor outra ou outras medidas de coacção previstas e admissíveis ao caso.

XI – Na aplicação da prisão preventiva nos termos do artigo 375º nº 4 do CPP, o Tribunal não está vinculado a uma violação das obrigações impostas, mas nem por isso a alteração da medida de coacção deixa de ter em conta os princípios de adequação e proporcionalidade.

XII – Enquanto no artº 203º do CPP, o juiz em caso de violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coacção pode impor outra ou outras medidas, tendo em conta a gravidade do crime, nos termos do artº 375º nº 4 o Tribunal sempre que necessário, procede ao reexame da situação do arguido, sujeitando-o às medidas de coacção admissíveis e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer.

XIII – Mantém-se em concreto os perigos que fundamentaram que o arguido ficasse sujeito a medida de coacção privativa da liberdade, que, relembremos, foi a medida de coacção a que inicialmente foi sujeito.

XIV – A prisão preventiva é uma medida de coacção que deve ser entendida como de carácter subsidiário, devendo apenas ser aplicada, quando as demais medidas de coacção se mostrarem inadequadas, desajustadas, insuficientes ou não bastantes para assegurarem as finalidades do processo penal.

XV- A imposição da medida cautelar de obrigação de permanência na habitação exige a verificação de determinados pressupostos legais, uns de carácter específico, outros de carácter geral, mas que como já se deixou expresso não se adequam ao caso dos autos e às exigências cautelares legais, pois “in casu” só a prisão preventiva é adequada, necessária, suficiente e proporcional às exigências cautelares que se fazem sentir, como aliás já se enfatizou.

XVI - A medida imposta (prisão preventiva) é necessária e adequada a realizar os objectivos que com ela se pretendem atingir (evitar a concretização do perigo de fuga que fundamentou a sua aplicação inicial, sem esquecer o perigo de continuação da actividade delituosa já que, não o esqueçamos, o arguido é já reincidente, o que demonstra que as condenações de que tem sido alvo não servem para o dissuadir da prática de crimes contra o património), não se mostrando que qualquer outra medida do catálogo legal seja adequada ou suficiente ao afastamento do aludido perigo

XVII – E não se mostra adequada, pois sem a confinação do arguido a determinado espaço e a privação de se movimentar livremente, não é possível evitar que o mesmo possa voltar a furtar, mormente para sustentar o seu vício por estupefacientes de que, mau grado os esforços envidados nestes autos, não se consegue libertar.

XVIII - Tendo em conta a pena em que o arguido já se mostra condenado (ainda que por decisão não transitada), não se afigura que o decretamento da prisão preventiva seja, de algum modo, excessivo, mostrando-se proporcional à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente virá a ser definitivamente aplicada.

XIX - A medida de coacção imposta na decisão recorrida mostra-se necessária, adequada e proporcional à gravidade da conduta, bem como proporcional à pena já decretada.

                                                   

 1.4. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Exm.º Procurador Geral Adjunto apreciando o recurso, pronunciou-se no sentido de concordar plenamente com as alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público na 1ª instância.


***

II -  Fundamentação de Facto

Despacho recorrido (transcrição parcial da parte que consideramos relevante para a decisão a tomar)

A – Acta da audiência (leitura de acórdão e prolação do despacho que alterou medida de coacção):

Data: 03-12-2019

“(…) PRESENTES:

Arguido: A. (por videoconferência a partir do Tribunal Judicial de Fafe).

Defensor Oficioso: Dr. (…)

(…)

  

Após, pelo Mmº Juiz Presidente, foi proferido o acórdão, anunciando, ao abrigo do disposto no art.º 372º do Código de Processo Penal, que o mesmo se encontra elaborado em conformidade com a deliberação tomada por todos os elementos do Tribunal Colectivo, composto pelo Meritíssimo Juiz Presidente e pelos seus colegas, Dr. (…) e Dra. (…), e vai assinado eletronicamente pelos mesmos, na plataforma “Citius”.

Logo, todos os presentes foram devidamente notificados do acórdão, bem como, da alteração da medida de coacção.


*

Dada a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público e ao Ilustre Defensor do arguido


pelos mesmos foi dito nada terem a opor, quanto à alteração da medida de coacção.

(…)

B – Transcrição de parte do acórdão, onde se inclui o despacho que alterou a medida de coacção:

Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este tribunal colectivo em julgar a pronuncia parcialmente procedente, e, consequentemente, decidem:

(…)

C)- condenar o arguido A., em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de três anos e dez meses de prisão efectiva;

(…)

Medidas de coacção

O arguido A. encontra-se sujeito a obrigação de permanência na habitação sob vigilância electrónica, desde 24.04.2019 (fls 230/1), sendo que antes se encontrava na situação de prisão preventiva, que lhe havia sido imposta em 26.03.2019 (fls 75 a 82). Esta medida de coacção foi revista e mantida em 17.06.2019 (fls 351), 02.08.2019 (fls 438) e 31.10.2019 (fls 488). O arguido vai condenado pela prática de dois crimes de furto qualificado, sendo o mais grave previsto na alínea e), do nº 2, do artigo 204º, do Código Penal, na pena única de três anos e dez meses de prisão efectiva. Por força do disposto na alínea b), do nº 1 e do nº 2 do artigo 213º e nº 4 do artigo 375º, ambos do Código de Processo Penal há que proceder a novo reexame dos pressupostos da obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica. Uma vez que se trata de decisão que conhece a final do objecto do processo não se mostra necessário ouvir nem o Ministério Público nem o arguido.  A aplicação das medidas de coacção deve observar os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade (artigos 192º e 193º do Código de Processo Penal).

A situação do arguido tem evoluído de modo desfavorável para o mesmo. Na verdade, desde há vários meses que a comunidade terapêutica onde o arguido se encontra retirou o consentimento para que o mesmo lá continue; o arguido tem causado problemas e não mostra efectivo empenho no tratamento e recuperação e também não manifesta arrependimento pela prática dos crimes a que respeita a presente condenação. No passado dia 27 de Novembro de 2019 o arguido voltou a manifestar “quebras de regras e faltas de respeito, quer com a equipa quer com os pares” e afirmou a possibilidade de “pegar nos seus pertences” e ir embora (fls 522). Tal significa que se alteraram os pressupostos em que assentou a substituição da prisão preventiva pela obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica, cumprida na comunidade terapêutica.

Com efeito, o arguido não se comportou de modo a aproveitar tal oportunidade de tratamento pelo que não existe alternativa ao regresso à situação de prisão preventiva por se manterem todos os pressupostos que justificaram a imposição da medida de coacção mais gravosa.

Assim, perante a situação concreta, a obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica já não é a medida de coacção suficiente nem adequada para garantir as necessidades cautelares do processo relativamente ao arguido, nomeadamente por se verificar o perigo de continuação da actividade criminosa, tendo em conta as circunstâncias dos crimes cometidos e a personalidade do arguido. Só a prisão preventiva, que já lhe tinha sido imposta, se afigura a única medida suficiente, adequada e proporcional para garantir as necessidades cautelares que se fazem sentir perante a atitude do arguido de não aceitar o tratamento e provocar constrangimentos na comunidade terapêutica onde passou os últimos meses.

Nesta conformidade, tendo presente, respectivamente, o disposto nos artigos 191º, nº 1, 192º, nº 1, 193º, nºs 1, 2 e 3, 202º, nº 1, alínea a), 204º, alínea c) e 213º, nº 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal, por se manterem inalterados os pressupostos que fundamentaram a aplicação da prisão preventiva pelo que deve cessar a obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica, a cumprir na referida Comunidade Terapêutica. Assim, o arguido A. deverá aguardar os ulteriores termos processuais sujeito a prisão preventiva, para além do Termo de Identidade e Residência.

Passe mandados de detenção para condução do arguido ao estabelecimento prisional e comunique aos serviços da DGRSP.

      3. Apreciando e decidindo

 a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995);

 b) A questão a apreciar nesta instância de recurso, prende-se em saber se o tribunal da 1ª instancia o poderia alterar a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação sob vigilância electrónica para prisão preventiva, sem ouvir previamente o arguido.

      Concluindo por essa impossibilidade, saber quais as consequências processuais dessa omissão.

 

 c) Um dos princípios que norteia o processo penal e consequentemente a aplicação de medidas de coacção é o princípio do contraditório, pretendendo-se garantir ao arguido oportunidade de apresentar a sua versão sobre os factos nos quais se sustenta a necessidade de aplicação da medida de coacção, e de se pronunciar sobre a medida de coacção a aplicar ou alterar, designadamente contestando a necessidade da sua aplicação ou colocando em causa a sua adequação ou proporcionalidade;  O princípio do contraditório está contemplado no n.º 5, do artigo 32.º, da Constituição, devendo ser observado relativamente a todos os actos susceptíveis de afectarem a pessoa ou a posição do arguido ao longo do processo, de modo a que este tenha a possibilidade de se pronunciar sobre as decisões a tomar com essas características, assegurando-se, assim, não só o direito de defesa daquele, mas também "a sua participação constitutiva na declaração do direito do caso e, através dela, na conformação da sua situação jurídica futura"  - Figueiredo Dias, "Direito processual penal", 1.º vol., pág. 159, ed. de 1974, Coimbra; cfr. Ac. do Trib. Constitucional n.º 391/2015 DR, II série de 16-11-2015. 

 O art 194º n.º 4 do C.P.P. é expressão legal desse princípio, determinando a audição do arguido em momento precedente à aplicação da medida em causa, assim como o n.º 4 do art. 212º do C.P.P. estatui que estando em causa a revogação ou substituição de medidas de coacção, o Ministério Público e o arguido devem ser ouvidos, salvo nos caso de impossibilidade devidamente fundamentada; Pode ainda citar-se o art 61º n.º 1 al. b) do mesmo código, que atribui ao arguido o direito a ser ouvido pelo tribunal sempre que esteja em causa uma decisão que o afecte.

       d) Deste quadro legal resulta inequivocamente que o regime regra no processo penal, em especial na aplicação e alteração das medidas de coacção, é o da audição do arguido.

         Todavia, o Juiz de do tribunal a quo, no decurso da leitura do acórdão condenatório, procedeu ao reexame dos pressupostos da medida de coacção aplicada (obrigação e permanência na habitação), alterando-a para prisão preventiva, prescindindo da aplicação do princípio do contraditório ao declarar que “Uma vez que se trata de decisão que conhece a final do objecto do processo não se mostra necessário ouvir nem o Ministério Público nem o arguido”.

              Ao referir a desnecessidade de ouvir o arguido o Ministério Público, o Juiz do tribunal a quo invoca a possibilidade concedida pelo n.º 3 do art 213º do C.P.P. que permite dispensar essa audição, criando assim uma exceção ao referido princípio geral de contraditório na aplicação das medidas de coacção.

             Todavia, constituindo um desvio ao princípio do contraditório, e uma possibilidade concedida ao juiz que procede ao reexame da medida de coacção, parece-nos desde logo que deve ser fundamentada (ainda que sumariamente) essa desnecessidade, o que não ocorreu.  

             Depois, e face mais uma vez o regime regra de audição que preside à aplicação/alteração das medidas de coacção, só não será necessário ouvir o arguido e o Ministério Público em situações em que se mantenham inalterados os pressupostos de facto que justificaram a medida de coacção – cfr. Ac. do Trib Constitucional n.º 96/99 e Ac. da Rel. de Coimbra de 14-4-2004, processo n.º 1135/04; É precisamente por o reexame dos pressupostos da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação muitas vezes redundar num despacho em que apenas se confirma a manutenção do quadro que justificou a aplicação da medida de coacção, que a audição do arguido e do Ministério Público pode ser dispensada, por inútil;  Mesmo nessas situações estáveis, o juiz pode optar por cumprir o contraditório.

             Mas já sempre que se alteram esses pressupostos factuais deve haver lugar à sua audição; Por maioria de razão, se da alteração desses pressupostos resulta a agravação da medida de coacção para prisão preventiva (como é o caso), será evidente a necessidade - ou melhor, a obrigatoriedade - de ouvir previamente o arguido.

           Isso mesmo resulta do artigo 212º n.º 4 do C.P.P., que impõe a obrigação de audição do arguido nos casos de alteração da medida de coacção ainda que oficiosamente determinada; Não faria qualquer sentido interpretar o n.º 3 do artigo 213º do C.P.P.  como atribuindo ao juiz o poder discricionário de dispensar o contraditório em casos de alteração e agravamento da medida no caso do reexame da medida de coacção, quando não o pode fazer no âmbito de um incidente de alteração da medida de coacção nos termos do 212º C.P.P.; Careceria de qualquer lógica jurídica a lei proceder a essa distinção.

          Assim sendo, no caso de estarmos perante a agravação de uma medida de coacção, ainda que no âmbito do seu reexame imposto pelo art 213º n.º 1 do C.P.P., é sempre legalmente necessária a audição do arguido, apenas podendo não ocorrer essa audição no caso de impossibilidade devidamente fundamentada (art 212ºnº 4 C.P.P.).

           A essa interpretação, assumida pelo Juiz a quo, de o art 213º n.º 3 facultar a possibilidade de se dispensar a audição do arguido e do Ministério Público em momento prévio ao agravamento de uma medida de coacção, opõem-se ainda o art 61º n.º 1 al. b) do C.P.P. e os artigos 28º n.º 1 e 32º n.º 1 e n.º 5 da CRP.

              e) Concluindo que o art 213º n.º 3 do C.P.P. não permite ao Juiz dispensar a audição do arguido em situações em que se alteram os pressupostos fácticos que sustentaram a aplicação da anterior medida de coacção da qual resultará o agravamento da medida de coacção para prisão preventiva, resta retirar as consequências dessa falta de audição.

             O n.º 1 art 118º do C.P.P., consagra um sistema de nulidades taxativas, ao dispor que “a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei”.

              No caso, entendemos que a não audição do arguido antes de um despacho que agrave uma medida de coacção (ainda que esse despacho seja de reexame da medida de coacção e proferido no âmbito de uma decisão final) é um acto que contraria a lei processual penal.

          Todavia essa falta de audição não integra qualquer das nulidades previstas no art 119º e 120º do C.P.P.; Ora segundo o art 118º o n.º 2 do C.P.P., “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular”.

          O regime das irregularidades está definido no art 123º do C.P.P, lendo-se no seu n.º 1 que “Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado”.

       No caso, como consta da acta de audiência e julgamento relativa ao dia em que foi proferido o despacho que agravou, sem contraditório prévio, a medida de coacção, no dia em questão estavam presentes o arguido (por vídeo-conferência) e o seu defensor,  “os presentes foram devidamente notificados do acórdão, bem como, da alteração da medida de coacção”  e ainda que “dada  a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público e ao Ilustre Defensor do arguido pelos mesmos foi dito nada terem a opor, quanto à alteração da medida de coacção.

 Não sendo suscitada a referida irregularidade naquele momento, a mesma tem-se por sanada, não determinando assim a invalidade do acto a que a mesma se refere, ou seja, ao despacho proferido aquando da leitura do acórdão condenatório que alterou a medida de coacção anteriormente imposta.


*

Dispositivo

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido A..

 Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC`s.

Coimbra, 4 de Março de 2020

João Novais (relator)

Elisa Sales (adjunta)