Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2813/08.6TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: DESCARGA DE RESÍDUOS E DIFLUENTES
Data do Acordão: 12/16/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 36º A 40º E 86º, Nº 1, AL. V) E Nº 2, AL. C), DO DECRETO-LEI Nº 46/94 DE 22 DE FEVEREIRO
Sumário: 1. A licença de descarga de águas residuais refere-se à que é feita no meio natural – solo, linhas de água ou correntes de água – e nada tem a ver com o lançamento do esgoto nas lagoas onde se processa a respectiva depuração.
2. Essa descarga, ou seja, o lançamento do esgoto produzido na ETAR, não está sujeito a qualquer licenciamento específico, já que o que releva em termos ambientais é a descarga no meio natural, carecendo igualmente de qualquer fundamento falar-se em licenciamento da produção de esgoto.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO

            1. No processo de recurso de contra-ordenação n.º 2813/08.6TALRA do 2º Juízo Criminal da Comarca de Leiria, a arguida X..., Ldª, com sede na Rua ….,  em Leiria, em sentença datada de 10 de Março de 2009 que revogou parcialmente a decisão da autoridade administrativa (Inspecção Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território), foi condenada
· pela prática da contra-ordenação p. e p. pelos artigos 36º a 40º e 86º, nº 1, al. v) e nº 2, al. c), do Decreto-Lei nº 46/94, de 22 de Fevereiro, na coima de 3.500,00 € (três mil e quinhentos euros) e
· pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos artigos 17.º, n.º 1 e 20.º, n.º 2 do Decreto-Lei nº 239/97, de 9 de Setembro, conjugado com a portaria n.º 178/97 de 11 de Março, em admoestação.
Faz-se notar que a decisão administrativa, datada de 11 de Outubro de 2007, condenara a arguida pela prática da contra-ordenação p. e p. pelas disposições conjugadas pelos artigos 36.º a 40.º e 86.º, n.º 1, al. v) do DL n.º 46/94 de 22 de Fevereiro, numa coima no valor de € 6500, e pela prática da contra-ordenação p. e p. pelo artigo 17.º, n.º 1 do DL n.º 239/97 de 9 de Setembro, conjugado com a Portaria n.º 178/97 de 11/03, numa coima no valor de € 1000, o que, em cúmulo, redundou numa condenação numa coima unitária no valor de € 7000.


2. Inconformada, a arguida recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
            «1. Foi a ora recorrente condenada no pagamento de uma coima pela prática de uma contra-ordenação p. e p. nos termos dos arts 36° a 40° e 86° n.° 1 alínea v) do Decreto-Lei n.° 46/94 de 22 de Fevereiro, no valor de 3.500,00€.
2. A matéria de facto dada como provada é insuficiente para proferir condenação da Arguida quanto à alegada prática da contra-ordenação prevista no artigo 86º, n.° 1 do Decreto-Lei 46/94 de 22.02 por dela não constar que se tenha dado como provado que a arguida tenha efectuado qualquer descarga.
3. A arguida não efectuou, nem efectua, qualquer descarga de resíduos tratados para o domínio público;
4. A ETAR da arguida, devidamente licenciada, é composta por três lagoas, destinadas a receber os resíduos líquidos produzidos, sendo as duas primeiras obrigatórias e a terceira de carácter facultativo.
5. Os resíduos, após terem sido tratados em nas duas primeiras lagoas, ficam depositados na terceira, onde acabam por desaparecer pelo efeito da evaporação, não sendo necessário procederá sua descarga.
6. A terceira lagoa tem capacidade em muito superior á efectivamente utilizada pela Arguida, nunca atingindo o seu limite máximo de águas, sendo que ai se encontra diversas comunidades de animais.
7. Apenas é imputada à Recorrente o facto de produzir águas residuais, sendo certo que as licenças previstas na lei, no âmbito do Decreto-Lei 46/94 de 22 de Fevereiro, são tipificadas, existindo necessidade de requerer a respectiva licença quando se procede à descarga de águas para os solos ou para cursos de água.
8. A Recorrente não efectuou qualquer descarga, uma vez que a Recorrente não retira, das lagoas, os resíduos, mantendo-se aqueles ali para efeitos de evaporação, estando por isso fora do âmbito da lei supra referida.
9. O que a lei pune, é o facto de as descargas serem feitas, para o domínio público ou particular, por efeito de espalhamento em solos ou águas fluviais, sendo certo que a necessidade de licença se traduziria, no presente caso, no facto de a mesma ser necessária, para retirar da terceira lagoa os resíduos e proceder ao seu espalhamento.
10. Não será necessária qualquer licença para fazer circular as águas residuais pelas lagoas que compõem a ETAR, mas apenas se entenderia como necessário - e que não acontece no presente caso - se as águas dessa última lagoa fossem retiradas para domínio público ou privado.
 11. Não se encontra sequer demonstrado que a Recorrente tenha efectuado qualquer descarga de resíduos tratados, nem tal se presume, sendo certo que efectivamente o não fez.
12. A entender-se existir culpa da arguida, sempre a mesma seria mitigada, nunca se podendo considerar as infracções como gravosas, sendo que a Arguida delas não retirou qualquer tipo de benefício.
13. A arguida não praticou por isso qualquer a contra-ordenação de que vem acusada pelo que deverá ser absolvida.
14. A arguida cumpre todos os requisitos previstos em legislação ambiental referentes à exploração agrícola.
15. A arguida solicitou a renovação da licença de descarga de resíduos.
16. Para o caso de se entender que a Arguida praticou a contra-ordenação tendo em conta, a existir infracção, o seu grau reduzido, circunscreve a mera admoestação, com efeito de censura, nos termos do artigo 51° do Decreto-Lei 433/82, os efeitos de prevenção geral e especial inerentes às normas alegadamente violadas.
17. Termos em que deve ser a decisão que nesta sede se recorre ser revogada e substituída por outra que absolva a arguida e ora recorrente e, em consequência, determine o arquivamento dos autos ou, quando assim se não entender, que substitua a coima aplicada pela sanção de admoestação por se encontrarem reunidos os requisitos para tal.
18. Ao decidir como o fez, o Tribunal violou, entre outras, as normas previstas nos artigos 36° a 40° e 86° n° 1 alínea v) do Decreto-Lei n.° 46/94 de 22 de Fevereiro, e nos artigos 51° do RGCO.
(…)
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exa doutamente suprirá deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, e consequentemente ser a sentença recorrida substituída por outra que absolva a Recorrente da prática da contra-ordenação p. e p. pelo artigo 86° n.° 1 alínea.v) do Decreto-Lei n.° 46/94 de 22 de Fevereiro».

            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que a sentença recorrida deve ser mantida na íntegra, concluindo nos seguintes termos (transcrição).

«1º - Atento o preceituado nos artigos 36°, n.° 2 e 86°, n.° 1, alínea v) e n.° 2. do DL n.° 46/94 de 22 de Fevereiro, resulta que para o preenchimento dos elementos típicos da aludida
contra-ordenação é necessário, apenas, a descarga de resíduos e efluentes sem a necessária licença, em domínio público ou particular.

2º - No caso concreto foi dado como provado, e bem, que para tratamento dos efluentes a arguida construiu uma ETAR, onde estão incluídas três lagoas, para onde vão as águas residuais inerentes à sua actividade, sendo assim rejeitadas as referidas águas para um sistema particular, sem para isso estar devidamente licenciada.

3º - A arguida, enquanto proprietária das citadas instalações, estava obrigada a obter os devidos licenciamentos para o exercício da referida actividade, bem como a realizar todas as obras que se mostrassem necessárias a essa obrigação, incluindo a de adequação da ETAR aos fins determinados se tal se mostrasse necessário, suportando as despesas inerentes.

Pelo que se concluiu, e em nosso entender correctamente, que a arguida praticou a contra-ordenação de que vinha acusada.

4º-- Assim sendo, cremos que se deverá concluir que o Mmº Juiz fez uma correcta avaliação da matéria cm análise, socorrendo-se do preceituado no artigo 127° do C.P.Penal. Mais se deverá concluir que inexiste insuficiência da matéria provada para a decisão de direito, uma vez que a sentença ora recorrida fornece a indicação dos elementos devidos, i. é, de todos os elementos objectivos e subjectivos constitutivos da contra-ordenação em referência e dos necessários à determinação da medida da coima.

5º- Na verdade, o tribunal consagrou na decisão os factos dados como provados supra-mencionados. os quais só por si permitem a aplicação do direito ao caso nos termos nesta enunciados.

6º- Nestes termos, tendo presente as normas aplicáveis ao caso, e tendo em atenção a gravidade da contra-ordenação, que é elevada (i.é. ponderando a importância do bem tutelado - visa a protecção do ambiente e tutela a segurança da sua qualidade. mais concretamente a qualidade da água e do solo -. que se desconhece em que medida a Recorrente lesou a qualidade da água e solo, que a mesma possui estação de tratamento de águas. que a rejeição de águas residuais e afluentes foi feita em sistema privado e que a infracção cometida não trouxe beneficio à recorrente), que a recorrente actuou a título meramente negligente, não sendo a culpa elevada (à data do auto de notícia a arguida já possuía a referida licença, estando a mesma caducada. e diligenciou pela sua renovação em Julho de 2007) e não olvidando que a arguida já incorreu em infracções ambientais anteriormente, julgamos que bem andou o Mmº Juiz ao considerar inaplicável a sanção de admoestação (artigo 51º, n°1 do Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas) e ao considerar adequada a coima de €3.500,00, sendo certo que a contra-ordenação relativa à falta de licença para rejeição de águas residuais é punida por uma coima que oscila entre € 2.493.99 e €2.493.489,49.

7° - Em face do exposto, somos de entender que sempre teria o Mmº Juiz que condenar a arguida pela prática da aludida contra-ordenação e aplicar a coima de €3.500,00, não se tendo verificado violação de qualquer princípio ou preceito legal ou a existência de qualquer irregularidade ou nulidade».

            4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, a fls. 551, no sentido de que o recurso não merece provimento, opinando que:

« (…) Não há no processo de contra-ordenação recurso da matéria de facto nos termos do n.º 3 do artigo 412° do CPP.

A matéria de facto é suficiente para a decisão de condenação, por não estarem ausentes da mesma os factos que integram o conceito de descarga (de águas residuais).

Não há motivo para aplicar à Recorrente uma admoestação, em detrimento da aplicação da coima.

É nosso parecer que o recurso deve improceder»

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

Além disso, há que dizer que o presente recurso é restrito à matéria de direito, visto o disposto nos artigos. 75º, n.º 1 e 41º, n.º 1, ambos do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado (alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro - RGCO), salvo verificação de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do CPP (sabemos que só o processamento e julgamento conjunto de crimes e contra-ordenações, previsto no art. 78º do RGCO, permite o conhecimento pela 2.ª instância, em sede de recurso, da matéria de facto).

 Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, as questões a decidir consistem em saber:

             - se estão perfectibilizados os requisitos objectivos e subjectivos da contra-ordenação p. e p. pelos artigos pelos artigos 36º a 40º e 86º, nº 1, al. v) e nº 2, al. c), do Decreto-Lei nº 46/94 de 22 de Fevereiro;

- se a coima aplicada à arguida pela prática da contra-ordenação p. e p. pelos artigos 36º a 40º e 86º, nº 1, al. v) e nº 2, al. c), do Decreto-Lei nº 46/94, de 22 de Fevereiro, se deve também manter ou deve ser antes substituída pela sanção da admoestação.

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1. No dia 6 de Dezembro de 2006, a Recorrente foi alvo de uma inspecção por parte da Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território.

2. A Recorrente é uma sociedade que se dedica ao fabrico de alimentos compostos para animais e à exploração de agricultura e pecuária.

3. A Recorrente é titular da licença sanitária da 1.ªclasse (licença para explorar pocilgas, para criação e engorda de suínos), com o n.º …, emitida em Outubro de 1983, pela Câmara Municipal de Alcobaça.

4. A Recorrente é titular de licença de descarga de águas residuais n.º …, emitida em Julho de 2001, pela Direcção Regional do Ambiente e do Ordenamento do Território, Lisboa e Vale do Tejo, válida por dois anos.

5. No âmbito da actividade da Recorrente são produzidas águas residuais.

6. Existe nesta exploração um sistema de tratamento (ETAR), de águas residuais produzidas, com três lagoas para onde são dirigidos os resíduos, de forma faseada.

7. Numa primeira fase os resíduos, sólidos e líquidos são separados, e estes últimos encaminhados para a primeira lagoa, onde ficam depositados com vista à perda de elementos que os compõem, passando posteriormente à segunda lagoa, onde ficam retidos por algum tempo e a final saem para a terceira lagoa, onde desaparecem por evaporação.
8. Na exploração da Recorrente foram produzidos durante o ano de 2005, diversos resíduos hospitalares, nomeadamente do Grupo III – “Resíduos hospitalares de risco biológico” que corresponde aos sacos colectores de fluidos orgânicos (sémen) e respectivos sistemas, e equipamentos utilizados na administração de soros e medicamentos, com excepção do grupo IV e do Grupo IV “resíduos hospitalares específicos” que corresponde aos materiais e cortantes e perfurantes: agulhas, cateteres e todo o material invasivo, ambos resultantes da prestação de cuidados de saúde a animais (agulhas usadas no tratamento de animais e cateteres de inseminação artificial).

9. A Recorrente não apresentou no acto da inspecção nem remeteu o mapa de registo dos Resíduos Hospitalares produzidos em 2005 à Direcção Geral de Saúde, até ao dia 31 de Janeiro de 2006.

10. A recorrente efectuou em 16 de Julho de 2007 um pedido de renovação da sua licença de descarga de águas residuais.

11. Em 06 de Dezembro de 2006 a T…, tratamento de resíduos hospitalares, Lda. deslocou-se às instalações da Recorrente, e efectuou os seguintes serviços: colocação de equipamento; recolha pontual e contentor de 60 litros; grupo IV; Uso múltiplo.

12. A Recorrente foi condenada por uma contra-ordenação p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 19.º a 35.º e 86.º, n.º 1, al. z) e n.º 2, al. a) do DL n.º 46/94, de 22 de Fevereiro e uma contra-ordenação p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 90.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 7 e artigo 86.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a) do Dl n.º 46/94 de 22 de Fevereiro, na coima única de €1000,00. 

13. Em 2007, declarou o resultado líquido de exercício de -31 394,25 Euros referente a actividade de 2006».

            2.2. Inexistindo factos não provados, o tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

            «O tribunal estribou a sua convicção probatória sobre os factos vindos de descrever na análise conjugada, à luz dos princípios da lógica e das pertinentes regras da experiência comum, no auto de notícia elaborado pela autoridade administrativa (cf. fls 4 e 5); no relatório de inspecção 2273/2006, de fls 14 a 19, que faz parte integrante do auto de notícia; bem como, nos documentos de fls 6 a 8, 12, 13 e 75 a 78, na impugnação judicial da decisão da Inspecção Geral do Ambiente e Ordenamento do Território, que contém confissão parcial dos factos (factos 6 e 7) constante de fls. 154 a 163 e quanto aos antecedentes contra-ordenacionais no documento de fls. 193 a 195. Atentei na cópia da declaração de IRC de fls 73».

            3. APRECIAÇÃO DE DIREITO

            3.1. No caso concreto que ora se analisa, já aqui o deixámos escrito, o recurso é restrito à matéria de direito, nos termos do artigo 75º do RGCO (Regime Geral das Contra-Ordenações).

Todavia, de harmonia com o disposto no artigo 410º, n.º 1, do CPP, ex vi do artigo 74.º, n.º 4 do mesmo RGCO, “sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”, razão pela qual poderá este Tribunal conhecer oficiosamente os vícios enumerados nas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410º, mas tão só quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum.

De facto, tem-se entendido que neste tipo de processo é admissível a revista alargada (da matéria de facto) decorrente da aplicação do regime do artigo 410.º do CPP.

3.2. Vícios do artigo 410º do CPP (ex vi do artigo 74º/4 do RGCO)

3.2.1. Com este pano de fundo, analisemos mais concretamente a sentença recorrida, à luz dos vícios de conhecimento oficioso previstos no artigo 410º do CPP.

            Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova, ocorrem respectivamente quando:

a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;

b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º n.º 2 a) CPP;

c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida - Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740; e ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

Como bem acentua o Supremo Tribunal de Justiça, o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena (entre outros, cf. Acórdão de 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678 - 3.ª Secção, em www.dgsi.pt;  Acórdão de 05-09-2007, Proc. n.º 2078/07 - 3.ª Secção e Acórdão de 14-11-2007, Proc. n.º 3249/07 - 3.ª Secção, sumariados em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -Secções Criminais).

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).

3.2.2. A recorrente não pode, neste caso, impugnar a decisão de 1ª instância sob o ponto de vista factual, não havendo assim qualquer justificação legal para que tenha indicado, a fls 239 da sua motivação de recurso, «os pontos de facto incorrectamente julgados”, «em obediência ao estatuído no artigo 412º do CPP».

Repete-se: apenas se pode conhecer, nesta instância, os vícios do artigo 410º/2 do CPP se os mesmos decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Ora, acontece que, lida a sentença recorrida, não vislumbramos nela qualquer vício do artigo 410º/2 [nomeadamente o previsto – e subentendido nas alegações de recurso - na alínea a)] do CPP, na medida em que não existe qualquer problema na matéria dada como provada pelo tribunal recorrido – ela vale por si e nada se deixou de apurar, apenas discordando a recorrente da conclusão jurídica que o julgador retirou de tais factos, entendendo que aqueles factos provados não poderiam ter conduzido a uma condenação pois falecem os pressupostos objectivos do tipo de ilícito contra-ordenacional em discussão.

O que a recorrente impugna é a decisão de direito, entendendo que a matéria de facto dada como provada é insuficiente para proferir uma sua condenação quanto à alegada prática da contra-ordenação prevista no art. 86°, n.° 1, al.v) do Decreto-Lei 46/94 de 22.02, por dela não constar que se tenha dado como provado que tenha efectuado qualquer descarga de resíduos tratados, não sendo necessário qualquer licença para fazer circular as águas residuais pelas lagoas que compõem a ETAR, apenas se entendendo como necessária tal licença se as águas dessa última lagoa fossem retiradas para domínio público ou privado.

E sobre esse aspecto nos debruçaremos de seguida, assente que não se verifica a existência dos vícios enunciados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o que equivale a dizer que estão assentes os factos supra descritos em II. 2.1.

            3.3. DA PERFECTIBILIZAÇÃO DA CONTRA-ORDENAÇÃO p. e p. pelos artigos 36º a 40º e 86º, n.º 1, alínea v) e n.º 2, alínea c) do DL 46/94 de 22/2

3.3.1. A rápida industrialização, o aumento desordenado dos aglomerados urbanos, a alteração radical dos processos de exploração agrícola, a ramificação das infra-estruturas de transportes, tudo prosseguindo numa perspectiva economicista, puseram os homens, os Estados e a comunidade internacional perante a evidência de que os recursos naturais não são inesgotáveis, e que o desenvolvimento e o progresso dependem tanto de uma forte e moderna indústria como, por exemplo, da pureza da água e das margens dos rios, combatendo-se as atitudes das empresas que, a fim de poupar nos custos de produção, lançam efluentes, resíduos e detritos da sua laboração.
É um dado adquirido a consciencialização do “ambiente” como valor a preservar, e, por isso a defender – tal valor vai-se derramando, aos poucos, por toda a malha do tecido jurídico-social.

Através do Decreto-Lei n.º 46/94, de 22/2, pretendeu-se rever, actualizar, e unificar o regime legal da utilização do domínio hídrico, sob jurisdição do Instituto da Água.

O Decreto-Lei n.º 46/94, de 22 de Fevereiro, foi revogado pelo art. 98.º da Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro, mantendo-se, contudo em vigor, até à publicação do DL n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, sem embargo, desde logo, da aplicação imediata do disposto no art. 97.º n.º 3 a 7 da referida Lei, no que respeita ao regime das contra-ordenações, nomeadamente aos limites mínimo e máximo das coimas aplicáveis[1].

Em 29 de Agosto de 2006, foi publicada a Lei n.º 50/2006 (Lei Quadro das Contra-Ordenações Ambientais), que estabeleceu uma disposição transitória (art. 77.º) no respeitante à aplicação das coimas e respectivos valores, só aplicáveis a partir da publicação do referido DL n.º 226-A/2007, diploma que procedeu à classificação das contra-ordenações aí tipificadas.

Perante a data da autuação/inspecção, é aplicável o diploma de 1994.

Estamos no campo contra-ordenacional.

E na verdade, poucos sectores como o do ambiente se adaptam melhor às características do ilícito de mera ordenação social, já que, em princípio, no inquinamento do ambiente, não estão em causa tanto valores éticos indispensáveis para a subsistência da sociedade, e antes sim a perturbação duma ordem social, que na visão do Estado, proporciona maior bem-estar às pessoas.
«Isto não significa, porém, que as lesões do ambiente não possam assumir tal gravidade que atinjam "valores de justiça" com forte componente ética ao lado de valores de progresso. Que portanto as lesões do ambiente não possam figurar no âmbito do chamado ilícito criminal de justiça e que portanto o ambiente enquanto tal, não possa configurar um bem jurídico-penal de incidência eminentemente colectiva. Aliás, a elevação do ambiente enquanto tal a bem jurídico-penal será fruto duma evolução da sensibilidade do Estado para a questão, pressionado ou não pelas exigências que a população for fazendo. Cremos que estamos a ponto de dar esse passo fundamental, porque como adiante se verá, a reforma do Código Penal inclui um crime ecológico em sentido estrito» (José Souto de Moura, Tutela Penal e Contra-Ordenacional em matéria de ambiente).

O art. 86° do diploma de 1994 procede ao elenco de uma série de acções que tipifica como contra-ordenação, uma das quais, a prevista no seu n.° 1, alínea v), vem assim definida: «Descarga de resíduos e efluentes sem a respectiva licença ou descarga de resíduos e efluentes em local diferente do demarcado pelos organismos competentes».

Leones Dantas, no seu artigo «Contra-Ordenações Ambientais – Descargas de Águas Residuais», na Revista do Ministério Público, n.º 87 (Julho/Setembro de 2001), pp. 93 e sgs, defende que se punem aqui «descargas não licenciadas, seja por falta de licença, seja por caducidade de uma licença previamente existente».

Quer dizer: a perfectibilização da conduta típica basta-se, na situação que aqui importa ter presente, com a descarga de resíduos e efluentes sem a respectiva licença, independentemente de ter havido dano ambiental concreto e específico (a perfectibilização da conduta típica basta-se, na situação que aqui importa ter presente, com a descarga de resíduos e efluentes sem a respectiva licença, em parte alguma se exigindo ainda que essa descarga origine poluição – cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 16/3/2005, Procº 1158/2004-3).

Do artigo 3º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 46/94, decorre que carece de título de utilização, qualquer que seja a natureza e personalidade jurídica do utilizador, a rejeição de águas residuais.

Por sua vez, o art. 36.º n.º. 2, do mesmo diploma, dispõe que “a rejeição de águas residuais na água e no solo está sujeita à obtenção de licença...”; e o seu n.º. 3 dispõe que “a licença referida no número anterior tem por finalidade o sistema público ou particular de eliminação de águas residuais na água e no solo”.

Diga-se ainda que o art. 65.º n.º 1 do DL n.º 236/98, de 01/08 dispõe que “a emissão ou descarga de águas residuais na água e no solo por uma instalação carece de uma autorização prévia, adiante designada por licença...”.

Assim, decorre dos mencionados preceitos, que para o preenchimento dos elementos típicos da referida contra-ordenação é tão só necessário a descarga de resíduos e efluentes sem a necessária licença.

A licença, sabemo-lo, é um acto administrativo que permite a alguém a prática de um acto ou o exercício de uma actividade relativamente proibida.

Os actos ou actividades são apenas relativamente proibidos porquanto a lei admite que a actividade proibida seja exercida nos casos ou pelas pessoas que a Administração admita (Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, TI, pág. 459 e 460. 10º edição, citado no Acórdão da Relação de Évora de 22 de Abril de 2008, no Pº 233/08-1).

É, de facto, a licença que define as condições em que o acto pode ser praticado.

No âmbito do ordenamento jurídico português o regime fundamental das descargas de águas residuais encontrava-se, ao tempo dos factos, consagrado no referido Decreto-lei n.º 46/94, de 22 de Fevereiro, diploma este que enquadrava com o Decreto-lei n.º 236/98, de 1 de Agosto, e com o Decreto-lei n.º 152/97, de 19 de Julho, este último relativo ao regime de descargas de águas residuais urbanas.

O dito diploma de 1998 prescreve parâmetros qualitativos relativos à água, integrando igualmente importantes disposições sobre águas residuais.

«O licenciamento das descargas de águas residuais na água e no solo e o consequente recurso aos mecanismos das licenças (e das concessões) permite à administração gerir e disciplinar a gestão dos recursos naturais de água e solo, assegurando-se, por essa via e desde logo, que as referidas descargas só venham a ser efectuadas em locais pré-determinados e de acordo com condições preestabelecidas, tendo em vista uma utilização racional destes componentes ambientais naturais, bem como a defesa e preservação da sua qualidade.

O licenciamento para a utilização de tais recursos é não mais do que um poder-dever concedido à administração que permite ainda tomar em consideração as condições especiais do meio receptor, impondo, caso a caso, a satisfação de parâmetros de descarga mais adequados. Do mesmo passo, permite prevenir o exercício de actividades poluentes daqueles agentes que se não conformem ou que violem os condicionalismos impostos, tendo em vista, não apenas a preservação da qualidade do ambiente, mas também a efectivação do princípio da responsabilidade ou do poluidor pagador, a que se refere o art. 27.º, da Lei de Bases do Ambiente.

O espalhamento no solo de efluentes líquidos resulta a nosso ver de um acto de emissão, rejeição ou descarga de águas residuais industriais.

Na verdade, o espalhamento tem o sentido de dispersão, derramamento. E essa dispersão ou derramamento resulta do facto de não terem sido tomadas as medidas adequadas para obstar a tal emissão no solo. Com efeito é consabido que dos resíduos sólidos extraídos das suiniculturas – nomeadamente dos dejectos dos animais e restos de comida – resultam efluentes provenientes das escorrências» (cfr. Acórdão da Relação de Évora acima citado).

3.3.2. Diga-se ainda que neste campo contra-ordenacional (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 15 de Fevereiro de 1995, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, Tomo II, págs. 134 e ss), o julgador que julga em 1.ª instância a impugnação judicial de autoridade administrativa que aplicou uma coima não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto dessa decisão.

O que releva e interessa é que em qualquer das situações o Tribunal não proceda à alteração substancial dos factos constantes da acusação, sob pena de cerceamento das garantias de defesa do arguido.

O Juiz que julga em 1.ª instância a impugnação judicial da autoridade administrativa não está absolutamente vinculado aos factos que constam do texto dessa decisão.

Mesmo no recurso da decisão judicial que for lavrada, o Tribunal da Relação pode alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida - art.º 75.º, n.º 2, al. a).

Essa faculdade de não estarem os tribunais de 1.ª e de 2.ª instância absolutamente vinculados ao texto da acusação no processo de contra-ordenação tem justificação no facto de não se estar perante um processo criminal, mas de mera ordenação social e de a entidade que aplica a coima ser administrativa, não especialmente vocacionada para as especificidades do direito penal.

Procura-se, assim, que as entidades judiciais que venham a tomar conta do caso possam mais facilmente atingir a verdade material.

Refere a arguida que pela entidade administrativa apenas lhe é imputado o facto de produzir águas residuais, não se falando em descargas. Nesse sentido, tem razão a recorrente [note-se o elenco dos factos provados de fls 93-94: embora na fundamentação jurídica se refira que «a arguida detinha na sua propriedade uma descarga de águas residuais sem para isso estar devidamente licenciada» (fls 96), a verdade é que dos factos tal não consta rigorosamente].

Contudo, e atento o que atrás se expôs, poderia o juiz «a quo» lançar mão de factos novos para a sua sentença.

A questão de fundo é saber se retirou conclusões de forma acertada face ao que depois deixou apurado nos factos 6 e 7.

3.3.3. Ora, a arguida, enquanto proprietária das instalações de suinicultura, estava obrigada a obter os devidos licenciamentos para o exercício da referida actividade de rejeição de águas residuais, bem como a realizar todas as obras que se mostrassem necessárias a essa obrigação.

Pergunta-se: a factualidade dada como provada permite dizer que a arguida faz descargas de águas residuais?

A sentença recorrida aduz os seguintes argumentos em prol da existência da contra-ordenação:

«Ora, é facto assente que a Recorrente construiu a ETAR, para onde vão as águas residuais na sua actividade, todavia, também está assente que, para a rejeição das referidas águas residuais, ainda que tenham por finalidade um sistema particular de eliminação de águas residuais na água e no solo, é necessária uma licença – cfr. artigo 36.º, n.º 3 do DL 46/94 de 22 de Fevereiro.

A descarga de resíduos e efluentes sem a respectiva licença consubstancia a contra-ordenação prevista na al. v) do n.º 1 do artigo 86.º do mesmo diploma legal.

Assiste razão à Recorrente quando afirma que na decisão da autoridade administrativa apenas lhe é imputado o facto de produzir águas residuais, o que só por si, não constitui contra-ordenação. Todavia, na sua defesa, a Recorrente afirma que, nunca rejeitou águas residuais e efluentes para o domínio público e nem tem essa necessidade, uma vez que, está munida de três lagoas, por si construídas, onde procede à eliminação desses resíduos.

Daqui se extrai que, de facto, a Recorrente não rejeita as referidas águas residuais para um sistema público de rejeição de águas, mas sim, para um sistema particular; todavia, como já vimos antes, também para a rejeição de águas em sistema particular é necessária a licença.

Pelo que se conclui que cometeu a Recorrente a contra-ordenação de que vem acusada.

Embora, da decisão da Inspecção-Geral apenas conste que a Recorrente produz águas residuais, o que é certo é que, a própria Recorrente confessa na sua defesa que possui um sistema particular (constituído por três lagoas) para onde rejeita as águas, o que tal como vimos consubstancia a contra-ordenação de que vem acusada, se não dispuser de licença para tal, pelo que se conclui pela prática da contra-ordenação de que foi acusada».

Já a recorrente assenta a sua tese nos seguintes argumentos:

· «A arguida não efectuou, nem efectua, qualquer descarga de resíduos tratados para o domínio público;

· A ETAR da arguida, devidamente licenciada, é composta por três lagoas, destinadas a receber os resíduos líquidos produzidos, sendo as duas primeiras obrigatórias e a terceira de carácter facultativo.

· Os resíduos, após terem sido tratados em nas duas primeiras Lagoas, ficam depositados na terceira, onde acabam por desaparecer pelo efeito da evaporação, não sendo necessário procederá sua descarga.

· A terceira lagoa tem capacidade em muito superior à efectivamente utilizada pela arguida, nunca atingindo o seu limite máximo de águas, sendo que ai se encontra diversas comunidades de animais.

· Apenas é imputada à recorrente o facto de produzir águas residuais, sendo certo que as licenças previstas na lei, no âmbito do Decreto-Lei n.º 46/94 de 22 de Fevereiro, são tipificadas, existindo necessidade de requerer a respectiva licença quando se procede à descarga de águas para os solos ou para cursos de água.

· A recorrente não efectuou qualquer descarga, uma vez que não retira, das lagoas, os resíduos, mantendo-se aqueles ali para efeitos de evaporação, estando por isso fora do âmbito da lei supra referida».

QUID IURIS?

3.3.4. Vejamos.

Cotejando o artigo 86º, n.º 1, alínea v) do já citado DL 46/94, verificamos que ele visa a descarga de resíduos e efluentes sem a respectiva licença ou descarga de resíduos e efluentes em local diferente do demarcado pelos organismos competentes – previnem-se e punem-se descargas não licenciadas ou efectuadas fora do local previsto.

Em termos de bem jurídico em causa, tem-se em vista que a administração, através dos órgãos para tal competentes, deve exercer um controlo acerca das descargas que são efectuadas e onde o são.

Ora, será que a arguida fez descargas que justificasse a obtenção da licença pressuposta no artigo 36º do diploma de 1994?

Tal normativo prescreve, repete-se, que a rejeição de águas residuais na água e no solo está sujeita à obtenção de licença, tendo tal licença por finalidade o sistema público ou particular de eliminação de águas residuais – definidas estas como sendo aquelas que são objecto de um processo de utilização, seja ele de tipo industrial ou doméstico - na água e no solo.

A arguida possui um sistema particular de águas residuais consistente no seguinte:

· Existe nesta exploração um sistema de tratamento (ETAR), de águas residuais produzidas, com três lagoas para onde são dirigidos os resíduos, de forma faseada.

· Numa primeira fase os resíduos, sólidos e líquidos são separados, e estes últimos encaminhados para a primeira lagoa, onde ficam depositados com vista à perda de elementos que os compõem, passando posteriormente à segunda lagoa, onde ficam retidos por algum tempo e a final saem para a terceira lagoa, onde desaparecem por evaporação.

No entanto, não se deu como provado que tenha feito descargas ilegais no solo ou na água que lhe é alheia.

Ou seja, lança as águas residuais para uma lagoa particular e depois para uma segunda lagoa – logo, lança água para água, mas sempre sua…

Entendo, na linha do opinado por Leones Dantas, que «todas as utilizações de água subjacentes a descargas de águas residuais carecem de controlo administrativo, que é materializado num título de utilização – a licença».

O diploma de 1994 pressupõe a existência de uma descarga, situação fáctica essa que é base da contra-ordenação visada na alínea g) do artigo 86º/1.

Note-se que a contra-ordenação prevista no n.º 2 do artigo 49º do Decreto-Lei n.º 74/90, de 7 de Março, não exigia que houvesse uma efectiva descarga de águas residuais poluentes, bastando que uma unidade poluidora laborasse sem as necessárias licenças.

3.3.5. Aqui chegados, só há que dar veemente razão à recorrente.

Esta empresa teve já uma licença de descarga de águas residuais – ponto n.º 4 – que lhe permitia a descarga no meio natural da água que deriva do processo de depuração do esgoto e que define igualmente os parâmetros de qualidade dessa descarga (tal licença estava caducada na data da inspecção).

Esta licença refere-se à descarga no meio natural – solo, linhas de água ou correntes de água – e nada tem a ver com o lançamento do esgoto nas lagoas onde se processa a respectiva depuração.

Essa descarga, ou seja, o lançamento do esgoto produzido na ETAR, não está sujeito a qualquer licenciamento específico, já que o que releva em termos ambientais é a descarga no meio natural, carecendo igualmente de qualquer fundamento falar-se em licenciamento da produção de esgoto.

           Na lógica das coisas, as lagoas deverão ser impermeabilizadas, não podendo permitir a saída de esgoto para o solo onde foram construídas, o que, a acontecer, corresponde a uma descarga não licenciada no meio natural de esgoto não tratado.

Daqui deriva a inviabilidade de se dar como provado que a água que entra no sistema das lagoas se evapora, o que é manifestamente impossível, atento o volume de esgoto produzido por este tipo de explorações.

Basta atentar na necessidade de evaporação de um volume de água correspondente à produção diária de esgoto e pensar nas temperaturas médias durante uma grande parte do ano, o que impede a evaporação de um volume significativo de água.

Há que ter em conta que mesmo que a exploração deixasse de ter animais durante vários dias, muito tempo seria necessário para que o esgoto que se encontrasse na última lagoa se evaporasse integralmente.

            A não haver água a ser lançada no meio natural e a sair da última lagoa, o mais certo é as lagoas não estarem impermeabilizadas e o esgoto se estar a infiltrar no solo, ou existir alguma ligação clandestina para a ribeira mais próxima por onde são feitas ilegalmente as descargas.

Contudo, tal não consta da factualidade dada como provada, nem sequer do auto de notícia que inaugura estes autos.

Repete-se: a licença de descarga de águas residuais visa a descarga de águas no meio natural, não existindo legalmente qualquer fundamento para falar em licença para descarga de águas numa ETAR individual ou num sistema colectivo de tratamento e muito menos numa licença de produção de esgotos.

A norma do n.º 3 do artigo 36.º do DL 46/94 de 22/2 tem de ser lida no contexto do artigo em que se insere.

Repare-se que este número remete para o anterior e a verdade é que o licenciamento de descargas subjacente a este diploma se refere à descarga final no meio natural e não ao lançamento mesmo em canalizações que integram um sistema colectivo.

Tal era muito usual no Sistema Integrado do Vale do Ave, onde a ligação ao sistema era feita com base numa autorização da entidade gestora, não existindo aí, nessa ligação, qualquer licença de descarga de águas residuais a emitir pelos serviços competente do Ministério do Ambiente.

Não há, pois, deste modo qualquer autonomização de uma licença para o lançamento de esgoto não tratado numa ETAR individual, e, muito menos, para punir a falta dessa licença pela alínea v) do n.º1 do artigo 86.º do Decreto-Lei n.º 46/94.

           Só haveria justificação para esta condenação contra-ordenacional se se desse como provado – O QUE NÃO FOI O CASO - que as lagoas não estão impermeabilizadas e que a empresa está a lançar no meio natural (o solo onde as lagoas foram construídas) o esgoto que se infiltra antes de se completar o processo de tratamento.

Esta conduta, que pressupõe que a evaporação do esgoto não existe e que esse se infiltra no solo, não se integra no processo de tratamento licenciado, porque esse pressupõe a presença do esgoto nas lagoas durante o tempo necessário ao seu tratamento e eliminação da agressividade para o ambiente do mesmo, só sendo possível com a completa impermeabilização daquelas lagoas.

           Num cenário destes, parece-nos manifesta a falta de fundamento da imputação à empresa da contra-ordenação da alínea v) do n.º 1 do artigo 86.º.

          

3.3.6. O que aqui existe é uma notória falta de esclarecimento por parte dos serviços do Ministério do Ambiente de várias questões essenciais[2]:

· Em primeiro lugar, a impermeabilidade de todas as lagoas referidas na licença de que a empresa é titular - só assim se pode demonstrar a falta de fundamento da impossível evaporação do esgoto.

· Em segundo lugar, a possibilidade de as lagoas fazerem a retenção do esgoto produzido durante todo o período de tempo necessário ao processo natural da sua depuração, o que depende desta duração, que qualquer engenheiro do ambiente sabe calcular, e da quantidade de animais existentes na exploração, o que permite determinar o volume médio diário de esgoto produzido.

· Em caso limite também é pericialmente possível demonstrar a infiltração de esgoto no solo, através da análise do mesmo e vezes dos caudais subterrâneos da zona.

3.3.7. Em conclusão, diremos que a licença prevista no artigo 38º do diploma de 1994 não serve para o lançamento de águas em ETAR individual mas para o solo natural ou águas naturais, fora do contexto particular de uma empresa – ou seja, o lançamento de águas residuais numa ETAR não pode significar uma descarga em meio natural, para efeitos de perfectibilização da contra-ordenação em causa (existe um sistema particular de eliminação de águas – e disso não se duvida pois não estamos perante um sistema público, a funcionar permanentemente sob a responsabilidade de uma autarquia local ou de uma entidade concessionária - mas não se apurou que tivesse havido qualquer descarga que justifique a necessidade da licença em causa).

Não se pode, assim, concordar com o entendimento do MP, sobretudo de 2ª instância – para ele, estamos perante uma situação de «descarga» pressuposto da contra-ordenação em causa, «naturalmente porque, embora se trate de uma descarga, digamos, controlada, não deixa de ser uma descarga, no sentido de um descarregamento, uma evacuação, um desfazer-se de algo, ainda que para um sistema particular/próprio de eliminação das referidas águas» (cf. visto do PGA nesta Relação).

Para o MP, tal descarga sem licença é punida: a infracção não está a jusante da ETAR, mas, sim, a montante, ou melhor, está na própria utilização da ETAR, enquanto sistema, não devidamente licenciado, de eliminação das águas residuais da exploração da Recorrente.

Como é óbvio, discordamos frontalmente esta teoria que desvirtua totalmente a teleologia do diploma em causa.

Leones Dantas, no artigo já aqui referido, deixa escrito o seguinte:

«Importa, contudo, que se tenha presente que a utilização em si só é licenciada autonomamente quando ocorrem descargas de águas residuais no meio natural, o que tem relevo nas situações em que há reutilização integral da água utilizada, onde não existirá esta obrigação de licenciamento de descargas, porque estas de facto não existem».

E a nossa situação equivale a esta, como é bem de ver…

E se assim é, só há que fazer proceder este recurso, revogando-se a decisão de 1ª instância na parte em que condenou a arguida pela prática da contra-ordenação p. e p. pelos artigos 36º a 40º e 86º, nº 1, al. v) e nº 2, al. c), do Decreto-Lei nº 46/94, de 22 de Fevereiro, que lhe foi também imputada pela autoridade administrativa, absolvendo-a dela[3].

3.3.7. Face ao exposto, fica prejudicada a apreciação dos outros fundamentos do recurso, atinentes à escolha e medida da coima.

                                                          

            III – DISPOSITIVO

           

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso, revogando parcialmente a sentença de 1ª instância e absolvendo a arguida da contra-ordenação p. e p. pelos artigos 36º a 40º e 86º, nº 1, al. v) e nº 2, al. c), do Decreto-Lei nº 46/94, de 22 de Fevereiro. que lhe foi também aí imputada.

Sem custas.


Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


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(Paulo Guerra)


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(Barreto do Carmo)


[1] Três diplomas se foram sucedendo no tempo neste jaez:
- o Dec-Lei n.º 70/90, de 2 de Março, que define o regime de bens do domínio público hídrico do Estado incluindo a respectiva administração e utilização;
- o Dec-Lei n.º 74/90, de 7 de Março, que estabelece critérios e normas de qualidade com a finalidade de proteger, preservar e melhorar a água em função dos seus principais usos;
- o Dec-Lei n.º 46/94, de 22 de Fevereiro, que actualiza e unifica o regime jurídico da utilização do domínio hídrico, sob jurisdição do Instituto da Água (INAG).
Note-se que o Decreto-Lei n.º 46/94, de 22 de Fevereiro não revogou o Decreto-Lei n.º 74/90 de 7/3 - tal diploma visa as situações futuras, não atingindo as utilizações da água já existentes à data da sua entrada em vigor e sujeitas aos regimes jurídicos das leis anteriores.
[2] Sendo até possível cogitar-se, caso houvesse ilicitude, a existência de uma clara falta de consciência de ilicitude, por parte da arguida, no que à necessidade de licença para este sistema de lagoas dizia respeito.
[3] Estando em paz social esta situação na medida em que provou que a arguida já detém hoje a licença em causa para o caso de fazer as descargas no meio natural (facto 10).