Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2105/16.7T8CTB-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: EXECUÇÃO PARA ENTREGA DE COISA CERTA
OBRAS ARTÍSTICAS DE EXEMPLARES ÚNICOS
QUE SE ENCONTRAM INUTILIZADAS
IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA PARA A ENTREGA
CONVOLAÇÃO EM EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 827.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 1.º, 1; 2.º, 1, G); 9.º, 3; 56.º, 1 E 67.º DO CDADC
ARTIGOS 729.º, G); 626.º, 3; 766.º, 3; 861.º, 1 E 867.º, 1, DO CPC
Sumário: I – Numa execução para entrega de coisa certa que tem por objecto obras artísticas que correspondem a exemplares únicos, a circunstância dessas obras serem encontradas mas se encontrarem vandalizadas, inutilizadas e desvalorizadas, implica que se esteja na presença de uma impossibilidade física e/ou jurídica absoluta para a entrega a que se reporta o art 867º/1 CPC, legitimando a convolação da execução, em execução para quantia certa.

II - Com este entendimento, não se está a aplicar a referida norma por analogia a situações nela não comtempladas, antes se está, a montante dessa aplicação, a ter como análogo ao desaparecimento das obras, a sua inutilização como obra artística.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I - AA, interpôs execução contra o Município ...,  destinando-se a mesma à entrega de coisa certa e ao pagamento de quantia certa,  referindo, no que aquela finalidade respeita, que o executado foi condenado a restituir-lhe determinadas obras de arte, conforme sentença que deu à execução, e que o não fez, requerendo, por isso, que se proceda à diligência para entrega das mesmas e que essa entrega seja realizada com a presença  de perito, que identificou.

A Executada não procedeu voluntariamente à entrega.

A diligência teve lugar no dia 3/3/2022, com a entrega das obras em causa, e com a presença do indicado perito – o qual se fez acompanhar por fotógrafo -  e de técnica de conservação e restauro por parte do Município executado, tendo sido acordado no final da diligência que, no prazo de 10 dias, «enviariam um relatório pericial escrito e fotográfico, o qual passaria a fazer parte da diligência».

Apenas foi entregue relatório pelo perito indicado pela exequente, relatório esse  que foi notificado às partes, dele constando, entre o mais, e como conclusão final, que «o que foi entregue à A. não eram, nesse dia, obras de arte mas sim um conjunto de materiais que outrora fizeram parte de uma obra de arte».

A executada, que não deduziu embargos à execução,  por requerimento dirigido ao Exmo Agente de Execução, nos termos da al b) do nº 5 do art 139º CPC, entendeu ilegal o relatório elaborado, alegando que não foi informada da realização da perícia, nem teve oportunidade de designar um perito, que tal perícia não foi fundamentada nem enquadrada processualmente, e que no referido relatório os factos relatados pelo perito são manifestamente parciais e não correspondem à verdade, pugnando pela ilegalidade da perícia e do seu desentranhamento dos autos. 

O Exmo AE, destacando que a executada teve conhecimento de que a exequente requerera a presença de um perito e que teve oportunidade de ser acompanhada igualmente por perito, veio a decidir a 27/5/2022, que, «face ao exposto, nos termos do art 719º/1, 766º/1 e 861º/1 CPC e em complemento ao auto de diligência de entrega de bens móveis datado de 3/3/2022, os bens entregues à exequente, conforme melhor resulta do mencionado relatório junto aos autos pelo perito, não correspondem ao estado dos bens determinados no processo declarativo, pelo que se decide que estes não têm qualquer valor comercial».

Veio, então, a exequente requerer que a presente execução para entrega de coisa certa fosse convertida em execução para pagamento da quantia de € 333.142,00, por ser este o valor das obras de arte que lhe deveriam ter sido ser entregues, a que acrescem juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data do trânsito em julgado da sentença dada à execução até integral pagamento.

Alegou que o que lhe foi entregue em execução da sentença não foram as obras de arte nela identificadas, mas apenas «restos daquilo que em tempo seriam obras de arte» e que constituem «um conjunto de materiais mutilados e degradados que no passado integraram obras de arte, que estão completamente desvirtuadas, irremediavelmente irrecuperáveis e sem qualquer valor comercial»..

Notificado o Município, solicitou o mesmo o indeferimento da pretensão,  referindo que antes de ter sido citado nestes autos enviou à exequente um oficio  solicitando-lhe a recolha urgente dos objectos indicados na sentença, ou a sua permissão ou disponibilização para o Município os recolher e transportar, não tendo a exequente diligenciado para que os bens lhe pudessem ser restituídos pelo executado, lembrando ainda que foi a exequente quem acomodou e consentiu o acondicionamento daqueles nas instalações municipais, e não ter resultado provado na acção declarativa a realização de contrato de depósito entre as partes, como nessa sentença foi assinalado,  entendendo que, em qualquer caso, e consoante jurisprudência «quase unânime», só seria possível a conversão da execução se os bens não tivessem sido encontrados, ou tivessem desaparecido ou sido destruídos, requerendo a condenação da exequente como litigante de má fé.

           

Foi então proferida decisão que indeferiu a conversão da presente ação executiva em execução com vista ao pagamento coercivo da indemnização que a exequente lhe considera devida, tendo ainda julgado improcedente o pedido da sua condenação como litigante de má fé.

II – É desta decisão que a exequente recorre, tendo concluído as respectivas alagações, nos seguintes termos:

 1 – A Sentença em execução visava a restituição de obras de arte à sua Autora, Exequente e ora Recorrente.

2 – As obras a restituir eram: “A Moura Vestida I”, com o valor de 35.000€; “A Moura Vestida II”, com o valor de 35.000€; “A Moura Vestida III”, com o valor de 35.000€; “A Manta - Versão Mude”, com o valor de 88.142€; “A Manta – Versão Idanha”, com o valor de 100.000€; “A Manta – Versão Egerton”, com o valor de 25.000€; a  “Guardian Angels”, com o valor de 15.000€.

Todos os valores foram e estão determinados na Sentença a Executar.

3 – Todas estas obras pertencem à categoria de Artes Plásticas, eram originais, como tal eram peças únicas.

 4 – As obras, protegidas pelos direitos de Autor, conferem ao seu Autor o Direito de assegurar a sua genuinidade e integridade, opondo-se a qualquer destruição, mutilação, deformação, ou outra modificação. (Artº 56 do CDADC).

5 – Os direitos conferidos por lei e enumerados no nº anterior têm eficácia erga omnes e são inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis.

6 – O Direito ao respeito pela integridade das obras protegidas pelo Direito de Autor é um direito absoluto.

 7 – O Direito ao respeito pela integridade da obra de arte e a proibição de realização de actos de modificação, alteração, deformação, mutilação ou destruição projectam-se sobre a obra em si mesma considerada – o seu “Corpus Mysticum.

8 – Nas obras de arte e nomeadamente as obras plásticas (Artº 2 do CDADC - obras de desenho, tapeçaria, pintura, cerâmica, azulejo…) como as da Autora ora recorrente, são expressão da sua personalidade; as obras são a exteriorização da criação intelectual.

 9 – Nas obras de arte, como as dos autos, onde só existe um exemplar único de cada obra, a identificação entre “Corpus Mysticum” e o “Corpus Mechanicun”, que por isso são incindiveis, fazem com que o tratamento seja distinto de outras obras (como por exemplo um livro com edição de 5.000 exemplares) pois que os danos causados directamente no exemplar único pressupõe uma lesão do direito de respeito à integridade da obra.

 10 - Tratando-se de originais de obras, únicos, se essas obras sofrerem deformações e mutilações traduzidas em falta de elementos constituintes das obras está-se diante de atentados contra aquelas que são prejuízos para os direitos e interesses do Autor das obras.

11 – Se os danos verificados nas obras de Arte, caso dos autos em que existe identificação entre o Corpus Mysticum e o Corpus Mechanicun, se revelam como deformações, mutilações e outros e de tal modo que já nem sequer é possível o restauro das obras então é definitivo que se perdeu o Corpus Mysticum e até o Mechanicun e com isso as obras de arte “qua tale” deixaram de existir pois o que existe e foi entregue não foram as obras de arte, a restituir conforme à sentença em execução, mas antes restos de materiais que algum dia integraram o Corpus Mechanicun dessas obras e mesmo aí constata-se que faltam muitos dos materiais que compunham esse Corpus Mechanicun e ainda muitos deles completamente degradados conforme o relatado na Perícia.

12 - Considerando o que são obras de arte em seus originais, como bens irrepetíveis, únicos, em que existe absoluta identificação e incindibilidade entre o Corpus Mysticum e o Corpus Mechanicun (caso das obras em causa nestes autos), as obras de arte que, conforme à sentença, deveriam ser entregues à Autora não o foram pelo facto de que já não existiam dado que o que existia já não era de forma alguma a projecção/criação conforme à personalidade da Autora; mas mais, o que foi entregue são restos de materiais que em tempos integraram os suportes, os “Corpus Mechanicun” das obras (que também enquanto projecções das criações também já não existiam), porque o “Corpus Mysticum” já não existia, ou seja, a identificação entre o “Corpus Mysticum” e o “Corpus Mechanicun”, típico das obras de arte, ao momento da entrega, já não existia e por isso as obras de arte “qua tale” já não existiam.

13 – Para além das obras já não existirem, o que foi entregue, que não foram obras de arte, não tem qualquer valor comercial, ou seja, já não existe sequer a possibilidade da Autora/Recorrente poder retirar qualquer vantagem económica de uma exploração dessas obras o que, sob um ponto de vista económico, é o objecto fundamental da protecção legal conforme ao Artº 67, nº 1 e 2 do CDADC.

 14 – Não existindo as obras, e por isso não tendo sido entregues, existe o direito à conversão da execução nos termos definidos no Artº 867, nº1 do C.P.C. pois que aquela disposição legal se destina a que se possa converter uma execução para entrega de coisa certa em execução em valor económico quando a coisa não for encontrada ou já não exista.

 Não foram apresentadas contra-alegações.

III – Os factos a ter em consideração para a decisão do presente recurso emergem do acima relatado, a que há que adicionar o seguinte:

Na sentença que constitui titulo executivo, o Município ..., R. nessa acção, foi condenado a restituir àaí A., aqui exequente, AA, as obras de arte denominadas “Moura Vestida I”, “Moura Vestida II”, “Moura Vestida III”, “A Manta – Versão MUDE”, “A Manta – Versão IDANHA”, “A Manta – Versão EGERTON” e “Guardian Algels”, assim como a pagar à A.  a quantia de 5.000,00, a titulo de indemnização por danos de natureza não patrimonial, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde a data da presente sentença até integral pagamento.

No auto de entrega de coisa certa consta que os bens se encontravam no Centro  Cultural ... e no Estaleiro Municipal.  

No Centro Cultural ... foram localizadas e entregues as seguintes peças:

-“A Manta MUDE, incompleta, com vários danos, nomeadamente quatro adufes separados da obra e faltando seis adufes da obra.

O Perito, no relatório que apresentou, entre o mais, refere, que «aquilo que foi entregue  à A. não é sequer a “obra” na sua forma original, é um conjunto de elementos que integraram, no passado, uma obra, que já não existe, porque esta se encontra com várias mutilações e diversos danos. Assim, é impossível restaurar a obra de arte para o seu estado original, tendo a obra de arte perdido todo o seu valor comercial.

- “A Manta Versão IDANHA”, completa, com vários danos.

O Perito no relatório que apresentou, refere, entre o mais, que a obra foi entregue irremediavelmente irrecuperável. Esta obra estava completamente danificada, com vários adufes arranhados e raspados, outros manchados em outros ainda, com bolor. O que foram entregues a A. foram um conjunto de materiais completamente degradados, em suma, não foram entregues obras de arte, foram entregues restos de materiais que em tempos pertenceram a uma obra de arte

- A Manta Versão EGERTON”, completa, com vários danos.

 O Perito, no relatório, refere, entre o mais, que todos os adufes que integram esta obra estão danificados, um inteiramente desfigurado, dois com a pele deformada, e os restantes arranhados, raspados e endentados. Esta obra não é recuperável. Está irremediavelmente irrecuperável, o que foram entregues a A. foram um conjunto de materiais completamente degradados.

- “Guardian Angels, incompleta, com vários danos, estando em falta um dos anjos em fainça, as flores de papel de seda e as fitas de cetim.

O Perito refere no relatório que apresentou, que a obra foi entregue  completamente mutilada, toda a obra de arte perdeu todo o seu valor comercial.

Nos Estaleiros do Município foram entregues as seguintes obras:

 - “Moura Vestida I, incompleta, com vários danos, estando em falta toda a parte de tecidos.

 O Perito refere no seu relatório, entre o mais, que a obra foi entregue mutilada e, como tal, já não existe.

-Moura Vestida II”, incompleta, com vários danos, estando em falta a cinta interior, designada por “vestido”.

O Perito no seu relatório refere, entre o mais, que a obra foi entregue mutilada e adulterada - no topo do vestido têxtil foram acrescentados uns nagalhos de nylon azul que estavam a segurar as rendas de algodão e as fitas de cetim entrançadas. O que foi entregue à A. foram um conjunto de materiais completamente degradados.

- “Moura Vestida II, completa, com vários danos.  

O Perito no seu relatório refere que a obra foi entregue mutilada e completamente degradada e como tal, já não existe.

IV – O objecto do presente recurso, tal como resulta do confronto entre as conclusões das alegações e a decisão recorrida, consiste em saber se na situação concreta das obras de arte a entregar, a circunstância de terem sido entregues mas mutiladas e degradadas, implica que as mesmas se considerem inexistentes para o efeito do disposto no art   867º/1 CPC.

Enquadremos a questão.

Dispõe o art 827º CC que «se a prestação consistir na entrega de coisa determinada, o credor tem a faculdade de requerer, em execução, que a entrega lhe seja feita».

Com o que a execução para entrega de coisa certa se constitui como execução específica.

 A entrega em causa traduz-se numa apreensão pelo tribunal,  em nome do credor exequente, da coisa que está na posse do executado, seja essa posse causal (mas em face da qual o credor tenha um direito prevalecente), seja essa posse formal, seguindo-se depois  a sua entrega ao credor [1] .

Resulta do art 626º/3 CPC (inserido nos “Efeitos da sentença” e que tem por epígrafe, “Execução da decisão judicial condenatória), que, «Na execução de decisão judicial que condene na entrega de coisa certa, feita a entrega, o executado é notificado para deduzir oposição, seguindo-se com as necessárias adaptações, o disposto nos arts 860º e seguintes».

Por sua vez, dispõe o art 867º:

«1 -Quando não seja encontrada a coisa que o exequente devia receber, este pode no mesmo processo, fazer liquidar o seu valor e o prejuízo resultante da falta da sua entrega,, observando-se o disposto nos arts 358º, 360º e 716º, com as necessárias adaptações.

2-Feita a liquidação, procede-se à penhora dos bens necessários para o pagamento da quantia apurada, seguindo-se os demais termos do processo de execução para pagamento de quantia certa».

Com o que se consente a convolação da execução para entrega de coisa em execução para pagamento, pressupondo-se a execução de créditos sucedâneos do crédito originário.

Esta convolação, como o nota Rui Pinto, «pode suceder por impossibilidade física relativa – a coisa não foi encontrada, situação prevista no nº 1 do citado art 867º - ou por impossibilidade física absoluta – a coisa foi destruída – ou por impossibilidade jurídica», que o autor em causa exemplifica com as seguintes situações: «Alienação válida pelo executado, procedência de embargo de terceiro, protesto do acto de apreensão ou acção de reivindicação com fundamento em direito oponível».

Lebre de Freitas [2]  também assinala que «não só quando a coisa não é encontrada se dá a conversão da execução. A esse é de assimilar o caso em que sobre a coisa incida direito de terceiro que, prevalecendo sobre o do exequente e com ele sendo incompatível, impeça o investimento material ou jurídico na posse».

A 1ª instância, valendo-se do Ac R G  28/11/2019 e do Ac RE 23/03/2017  [3], veio a entender  que, porque o  artigo 867º/1 do CPC é uma norma excecional e, como tal, não admite aplicação analógica, não pode ser aplicada aos casos em que a coisa objeto da “execução especifica” tenha sido apreendida e entregue ao exequente, ainda que “vandalizada, inutilizada e desvalorizada”. «Esta conversão da execução para entrega de coisa certa na liquidação do seu valor e do prejuízo resultante da falta de entrega, nos termos do artigo 867º do Código de Processo Civil, só é possível quando a coisa objeto da entrega não for encontrada, mas já não quando tendo sido encontrada e entregue apresente danos ou deterioração».

 Referindo ainda, na esteira do primeiro dos citados acórdãos: «De facto, a possibilidade de conversão da execução para entrega de coisa certa em execução para pagamento de quantia certa prevista no referido artigo 867º n.º 1 contraria a regra geral de que não há execução sem prévio título, uma vez que é este que determina, nomeadamente, o seu fim. Estamos, por isso, perante uma norma excecional, a qual, conforme decorre do preceituado no artigo 11º do Código Civil não comporta uma aplicação analógica. De salientar, de todo o modo, que no caso da entrega da coisa danificada ou deteriorada, e ao contrário do que ocorre quando esta não é encontrada, o fim da ação executiva para entrega de coisa certa não se frustra, pois que a coisa é efetivamente encontrada e entregue. Neste caso, não há lugar à conversão da execução, não podendo o exequente receber por meio de incidente no próprio processo executivo uma indemnização decorrente dos danos causados na coisa entregue, pois que nem sequer estaria em causa uma indemnização “de perdas e danos pela falta de entrega da coisa”. Se a coisa encontrada e entregue apresentar danos ou se encontrar deteriorada tal não equivale à sua falta de entrega, sem prejuízo do exequente poder intentar ação com vista a obter a indemnização a que se achar com direito.»

Resta saber se, ao contrário do entendido na 1ª instância, relativamente a obras artísticas que sejam encontradas mas se encontrem “vandalizadas, inutilizadas e desvalorizadas”, se justifica ainda o mesmo entendimento, ou antes se deverá entender que tudo se passa como se se estivesse na presença de uma impossibilidade física e/ou jurídica absoluta para esse entrega que legitime a convolação da execução.

A assim se entender, não está em causa aplicar a norma do art 867º/1 por analogia a situações nela não comtempladas, antes está em causa, a montante da aplicação dessa norma, ter como análogo ao desaparecimento das obras a sua inutilização, o que é algo diferente.

Parece-nos ser esse o ponto de vista a adoptar na situação das obras artísticas em causa nos autos. 

Vejamos, pois.

«Consideram-se obras as criações intelectuais do domínio literário, cientifico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas, que, como tais, são protegidas nos termos deste Código, incluindo-se nessa protecção os direitos dos respectivos autores», consoante dispõe o nº 1 do art 1º do CDADC (Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos).

As referidas criações intelectuais compreendem, entre o mais, e como resulta da al g) do nº 1 do art 2º daquele Código, «obras de desenho, tapeçaria, pintura, escultura, cerâmica, azulejo, gravura, litografia e arquitectura».

Há muito que se evidencia a diferença entre a obra intelectual – corpus mysticum – e que é objecto da protecção jusautoral, com a sua exteriorização, a qual constitui apenas um suporte material – o corpus mechanicum, da obra.

Distinção que permite que o direito de autor não dependa da existência de suporte material [4].  

Não obstante, e como o salienta Oliveira Ascensão, «para além de casos expressos na lei, supomos que há obras que, por natureza, estão dependentes de uma fixação. Assim acontece com a obra cinematográfica: se se perderem todos os filmes, não há mais uma obra que possa ser utilizada. O mesmo diremos da obra fonográfica, que nasce e morre com a gravação; da obra fotográfica, embora esta não esteja dependente de negativo, da obra radiofónica, da obra televisiva e da videográfica; e ainda com a generalidade das obras de arte plásticas, como as pinturas, em que não há obra sem uma primeira encarnação».

«O Autor tem o direito exclusivo de fruir e utilizar a obra, no todo ou em parte, no que se compreendem, nomeadamente, as faculdades de a divulgar, publicar e explorar economicamente, por qualquer forma, directa ou indirectamente, nos limites da lei», sendo que, «A garantia das vantagens patrimoniais resultantes dessa exploração constitui, do ponto de vista económico, o principal objecto de protecção legal», como resulta afirmado no art 67º do CDADC.

Importa considerar também que o conjunto dos direitos pessoais de autor é integrado pelo direito de assegurar a genuinidade e integralidade da obra, como resulta do nº 3 do art 9º, e mais especificamente do nº 1 do art 56º.

O nº 3 do art 9º– preceito que se reporta ao conteúdo do direito de autor e que repete quase ipsis verbis o art 6º bis al l) da Convenção de Berna – refere que «independentemente dos direitos patrimoniais, e mesmo depois da transmissão ou extinção destes, o autor goza de direitos morais sobre a sua obra, designadamente o direito de reivindicar a sua paternidade e assegurar a sua genuinidade e integridade». 

Dispondo sobre os direitos morais – respectiva definição –, o art 56 º/1 estipula que, «independentemente dos direitos de carácter patrimonial e ainda que os tenha alienado ou onerado, o autor goza durante toda a vida do direito de reivindicar a paternidade da obra e de assegurar a genuinidade e integralidade desta, opondo-se a sua destruição, a toda e qualquer mutilação, deformação ou outra modificação  da mesma e, de um modo geral, a todo e qualquer acto que a desvirtue e possa afectar a honra e reputação do autor».  

Como salienta Luís Francisco Rebello [5], «integridade e genuinidade são conceitos que não se sobrepõem nem se equivalem». «Tendencialmente o primeiro reporta-se à estrutura da obra, o segundo ao seu espírito (aquilo a que no art 169º/3 se chama “o sentido da obra original”). Mas nem sempre é fácil a destrinça entre estes dois aspectos: a dicotomia forma/conteúdo só abstractamente é concebível, na medida em que a obra representa (como entendia Hegel) a síntese resultante da conjugação daqueles dois elementos. Isto não impede que a destruição e a mutilação devam considerar-se, basicamente, actos que atentam contra a integridade da obra, enquanto a deformação e a modificação atingem especialmente a sua genuinidade (…). Não são, porém, quaisquer mutilações ou deformações da obra que a lei proscreve, mas aquelas de que resulte a desvirtuação da obra, e nessa medida afectam a reputação do seu autor (advertindo o autor que «a referência a “honra e reputação deste” deve atender-se, exclusivamente, em relação à obra, e não in abstracto, nos termos gerais do Código Civil»).

Destaca ainda Luís Francisco Rebello [6], que o aditamento «destruição» introduzido no art 56º/1 pela Lei 114/91 de 3/9, «se reporta às obras existentes em exemplar único  ou aos manuscritos originais, e não aos suportes em geral, o que não teria sentido», ideia que  reforça [7], salientando que «a destruição» «tem de entender-se restritivamente às obras de exemplar único, aos manuscritos originais  e por disposição expressa da lei – art 173º-1 – à matriz do filme».

No mesmo sentido acentua Menezes Leitão [8], que «o direito de assegurar a genuinidade e integridade da obra visa, assim, em primeiro lugar, evitar a destruição da obra». Acrescentando: «Esta possibilidade é, no entanto, de verificação rara, dado que a obra constitui uma coisa incorpórea, só podendo a destruição normalmente abranger os suportes individualmente considerados», mas não deixa de registar haver, no entanto, «algumas particularidades no caso de obras de exemplar único, uma vez que a destruição impede naturalmente a subsistência da obra enquanto tal».

Na situação dos autos está-se na presença de exemplares únicos.

Resulta do auto de entrega e, com maior precisão, do teor do relatório do Perito com que a exequente se fez acompanhar,  de que acima se retiraram pequenos extractos  mas que aqui se dá por inteiramente reproduzido, que nenhuma das obras de arte que a executada foi condenada a entregar à exequente lhe foi efectivamente entregue, na medida em que, como por múltiplas vezes assinalado por aquele Perito e após, expresso pelo Exmo Agente de Execução, o que foi entregue à A. «não eram, nesse dia, obras de arte  mas sim um conjunto de materiais que outrora fizeram parte de uma obra de arte»;  «restos daquilo que em tempo seriam obras de arte» e que constituem «um conjunto de materiais mutilados e degradados que no passado integraram obras de arte, que estão completamente desvirtuadas, irremediavelmente irrecuperáveis e sem qualquer valor comercial».

Lembre-se que nos termos do nº 3 do art 766º CPC – disposição da penhora aplicável à entrega da coisa nos termos do nº 1 do art 861º -  o agente de execução a quem incumbe a realização da penhora (entrega) pode recorrer à ajuda de um perito em caso de avaliação que dependa de conhecimentos especializados, como era o caso.

Como o assinalou o Exmo Agente de Execução na decisão que proferiu no incidente a que deu causa a executada, esta teve conhecimento, aquando da citação para o pagamento de quantia certa, do requerimento da exequente no sentido da entrega vir a ter lugar na presença de perito que nomeou.

E, na verdade, acabou por se fazer também ela, acompanhar de perito, a «técnica de conservação e restauro» que esteve presente no auto de entrega e que também foi notificada para apresentar relatório escrito, mas que não o fez.   

Por outro lado, notificada a executada do relatório do perito, não fez qualquer reclamação.

Refira-se ainda que as considerações que a executada tece depois que foi notificada do requerimento da exequente para conversão da execução, nem sequer se mostrariam aptas a servir de fundamento de oposição – que a executada não apresentou – por não se enquadrarem no disposto no art 729º CPC, designadamente na sua al g).

  As obras que foram entregues a exequente já não são obras de arte, não tendo qualquer valor comercial.

Segundo o perito já não é possível o seu restauro.

 E sendo obras de exemplar único a sua “reconstrução” implicaria que já não se pudesse falar da mesma obra, que é sempre emanação da personalidade do seu autor.

Juridicamente, em função das particularidades das obras de arte de exemplar único, tudo se passa como se aquelas obras, tendo deixado de existir, não tivessem sido objecto de entrega.

Com o que se deve concluir pela admissibilidade da convolação da execução nos termos requeridos, mostrando-se procedente a apelação.

V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar procedente a apelação, revogar a decisão recorrida e admitir a convolação da execução para entrega de coisa certa em execução para pagamento de quantia certa.

Custas da apelação pela apelada.

                                               Coimbra, 2 de Maio de 2023

(Maria Teresa Albuquerque)

(Falcão de Magalhães)

(Pires Robalo)

(…)

 





               [1] - Rui Pinto, «Manual da Execução e Despejo», 2013, p 1046.
               [2]  - «A Ação Executiva», 5ª Ed. 2009, p. 379
               [3]  - Respectivamente, relatados por Raquel Batista Tavares e Sílvio Sousa, disponíveis em www.dgsi.pt- 
               [4] - Assim, Oliveira Ascensão, «Direito de Autor e Direitos Conexos», 1992, p 63
               [5] - «Introdução ao Direito de Autor», Vol I, p 166
               [6] - Obra referida, p 167
               [7] - P. 172 da mesma obra
               [8] - «Direito de Autor», 2011, p. 154