Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
367/12.8TXCBR-O.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: CUMPRIMENTO DE REMANESCENTE DE PENA DE PRISÃO PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Data do Acordão: 11/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 43.º, N.º 1 DO CP; ART.º 2.º DA CRP
Sumário: I – O regime previsto no n.º 1 do art.º 43.º do CP não se aplica ao cumprimento da pena de prisão remanescente após revogação da liberdade condicional.

II – Tal regime não viola o princípio da proteção da confiança, ínsito no art.º 2.º da CRP.

Decisão Texto Integral:





I - RELATÓRIO

FC, encontra-se no Estabelecimento Prisional de (...) , desde 12 de setembro de2020, em cumprimento da pena de prisão residual de 2 anos e 9 dias de prisão, resultante da revogação da liberdade condicional – no âmbito do processo nº 759/11.0TACTB por sucessão de penas por crimes de tráfico de estupefaciente agravado, posse de arma proibida, condução de veículo sem habilitação e condução de veículo em estado de embriaguez.

Até ingressar no Estabelecimento Prisional para o cumprimento da aludida pena residual, o condenado cumpriu a pena de prisão imposta no âmbito do processo nº 968/15.2T9CTB, em regime de permanência na habitação.


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Alegando ter organizado a sua vida pessoal e profissional e cumprido em regime de permanência na habitação a pena aplicada no processo 968/15.2T9CTB, tendo interiorizado devidamente as consequências dos seus atos, requereu que lhe fosse concedida a possibilidade de cumprir o remanescente da pena (aplicada no âmbito do processo nº 759/11.0TACTB) em regime de permanência na habitação.

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Por despacho de 11-09-2020 (despacho recorrido), com fundamento em que a pena corresponde ao remanescente de uma pena de prisão, resultante de revogação da liberdade condicional, não se enquadrando em nenhuma das situações elencadas no art. 43º, nº 1, do Código Penal - foi indeferido o requerimento.

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Inconformado com tal decisão, dela recorre o condenado, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

O presente recurso incide sobre a Douta decisão do Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, datada de 11 de Setembro de 2020, que indefere o pedido de cumprimento da pena residual de 2 anos e 9 dias do processo nº 759/11.0TACTB em regime de permanência na habitação.

O Douto Tribunal baseou a sua decisão na ausência de fundamento legal, “na medida em que tal período de tempo correspondente ao remanescente de uma pena de prisão, resultante de revogação da liberdade condicional, não se enquadrando em nenhuma das situações elencadas no art. 43º/1 do Código Penal”.

Efetivamente, está em causa o cumprimento do remanescente de uma pena, com duração superior a 2 anos, situação que não tem enquadramento no referido preceito legal.

Mas, a situação do Arguido reveste contornos especiais, carecendo de uma análise cuidada.

Efetivamente, o Arguido encontrava-se em liberdade condicional quando foi acusado de ter praticado um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, tendo sido condenado, no âmbito do processo nº 968/15.2T9CTB, na pena de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação.

E, por conseguinte, a liberdade condicional de que o Arguido beneficiava foi revogada, ficando por cumprir 2 anos e 9 dias de pena de prisão.

Sucede que, durante o tempo em que o Arguido cumpriu a pena de prisão em regime de permanência na habitação, conseguiu organizar a sua vida pessoal e profissional, estando a trabalhar desde 18 de Outubro de 2018 na empresa “ A... , Lda.” com a categoria de armador de ferro de 1ª, cumprindo as suas funções com rigor e perfeição, de forma assídua, pontual, mantendo um bom relacionamento com os colegas e entidade patronal.

Ademais, o Arguido arrendou uma casa, onde residia com a companheira, um dos filhos e os seus pais, vindo a cumprir com o pagamento da pensão de alimentos ao outro filho que reside com a mãe.

No fundo, o Arguido tinha conseguido reorganizar a sua vida, pelo que era de grande importância que lhe fosse permitido cumprir o remanescente da pena em regime de permanência na habitação.

Mas tal não aconteceu, e o Arguido já foi conduzido ao estabelecimento prisional.

A questão que se coloca é avaliar as consequências que resultaram do facto de o Arguido ter sido novamente sujeito ao regime de reclusão dentro de um estabelecimento prisional, o que provocará na sua vida um retrocesso social, pessoal e profissional claramente escusável.

O Arguido reconhece que tem de cumprir a pena de prisão que resulta da revogação da liberdade condicional, mas o que sempre pediu foi a possibilidade de o fazer em regime de permanência na habitação.

O que por si só, demonstra a vontade que o arguido tem em levar uma vida consentânea com o Direito.

Atualmente, o Arguido não é consumidor de qualquer tipo de produto estupefaciente, está arrependido e interiorizou devidamente as consequências dos seus atos, estando convicto de que não voltará a cometer qualquer tipo de ilícito; sendo possível formar um juízo de prognose favorável sobre a conduta futura do Arguido.

Por outro lado, importa alegar que, nas circunstâncias atuais, o Arguido sente bastante receio de no estabelecimento prisional vir a ocorrer um surto de contaminação pelo coronavírus SARS-CoV-2, receio que é bastante legítimo, pois é evidente que estamos a iniciar a segunda vaga da pandemia causada pelo referido vírus, sendo do conhecimento público as medidas aprovadas pelo atual Governo para reduzir o número de reclusos nos estabelecimentos prisionais.

Posto isto, entende o Arguido/Recorrente que a decisão proferida pelo Tribunal a quo é contraproducente, pois provocará um retrocesso de anos na sua vida pessoal, familiar e profissional.

Termos em que e nos melhores de direito deve ser dado provimento ao presente recurso, e, por via dele, ser alterada a decisão recorrida e, em consequência, ser autorizado que o Arguido cumpra o remanescente da pena em regime de permanência na habitação.


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Respondeu o digno Magistrado do Mº Pº junto do tribunal recorrido, alegando em síntese:

A lei não prevê situações de cumprimento de pena residual por revogação da liberdade condicional em permanência na habitação.

Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus.

Apenas recorrendo a uma decisão normativa de efeito aditivo seria possível atingir o desiderato do recorrente, fazendo apelo v.g. ao princípio constitucional da igualdade.

Porém tal decisão, apenas poderia ser propugnada num quadro de activismo judiciário, corrente alheia ao nosso pensamento jurídico.

Parece-nos assim mandatória a aplicação da lei tal como ela é, não cabendo ao julgador senão, como bem fez o Mº Juiz a quo, recusar soluções não acolhidas pelo legislador.


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Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.

Corridos vistos, após conferência, cumpre decidir.


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II – FUNDAMENTAÇÃO

A questão colocada no recurso consiste em apurar se o regime previsto no nº 1 do art. 43º do C. Penal se aplica ao cumprimento da pena de prisão remanescente após revogação da liberdade condicional.

Além de não previsto o regime de permanência em habitação para pena de prisão remanescente da revogação da liberdade condicional, faltaria sempre, no caso, o pressuposto de aplicação de qualquer das alíneas do invocado nº1 do art. 43º do C. Penal: uma “pena de prisão não superior a 2 anos”.

Decidir o cumprimento de determinada pena de prisão em regime de permanência em habitação constitui uma realidade diferente daquela em que, como no caso dos autos, no âmbito do cumprimento de determinada pena de prisão, em reclusão, foi concedida ao condenado a liberdade condicional que depois veio a ser revogada. Tanto mais que a liberdade condicional foi revogada, por violação culposa dos deveres inerentes, após exercício do contraditório, em decisão fundamentada que o recorrente teve, aliás, oportunidade de impugnar perante este Tribunal da Relação, como sucedeu no caso, conforme certidão junta.

Nem se diga que tal interpretação viola princípios de ordem constitucional, designadamente os princípios da igualdade ou da tutela da confiança, com o fundamento implícito na fundamentação do recurso de que, sendo o Estado o titular do jus puniendi, o cumprimento do remanescente da pena em reclusão violaria as expectativas criadas pelo cumprimento da pena aplicada por um crime mais recente, no âmbito do processo 968/15.2T9CTB em regime de permanência em habitação.
Com efeito, o princípio da proteção da confiança, ínsito no artigo 2º da CRP, prende-se, nas palavras de Gomes Canotilho, «com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e a previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos» (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6.ª edição, Coimbra, p. 257). No mesmo sentido, Paulo Mota Pinto, in O Tribunal Constitucional e a Crise. Ensaios Críticos, Coimbra, 2014, p. 164. Ou, como decidido no Acórdão nº 128/2009 do Tribunal Constitucional: «Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa».

Ora, no caso, a lei nunca previu o cumprimento do remanescente da 1ª pena (aplicada no âmbito do processo nº 759/11.0TACTB) em regime de permanência em habitação, nunca podendo, por isso, o condenado ter criado tal expetativa.

Por outro lado, no caso, quando praticou o crime da última condenação (processo nº 759/11.0TACTB), o condenado não tinha terminado o cumprimento da 1ª pena. Não podendo deixar de saber das obrigações inerentes à condenação anterior e concessão subsequente da liberdade condicional, além das consequências da eventual revogação e do remanescente da pena que tinha para cumprir.

Acresce que o regime de permanência em habitação de determinada pena de prisão, prevista e decretada ab initio, constitui uma realidade diferente daquela em que, no âmbito do cumprimento de pena em reclusão, foi concedida a liberdade condicional ao condenado, esta foi revogada.

Quer porque se trata, apenas, do remanescente de uma pena já parcialmente cumprida em reclusão quer porque a revogação da suspensão apenas foi decretada após a verificação, ope judice, de uma atuação culposa do condenado de violadora dos deveres da liberdade condicional – prática de novo crime durante o período da liberdade condicional - em decisão fundamentada, após exercício do contraditório, que o recorrente impugnou em via de recurso.

Aliás na decisão que revogou a liberdade condicional – cfr. certidão junta aos autos – foi ponderada a condenação no processo nº 759/11.0TACTB, ali referenciada.

Os invocados efeitos da pandemia causada pelo Covid 19, foram valorados pelo legislador com a concessão de perdão de penas - nº 1, do artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril segundo o qual “São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.

Pressuposto que não se verifica nem relativamente à pena originária nem relativamente ao remanescente que faltava cumprir após a revogação da liberdade condicional – para além de a sua verificação não constituir objeto de apreciação pela decisão recorrida em, por consequência, do recurso.

Assim, em conclusão, não colhe a argumentação aduzida no recurso, impondo-se a sua improcedência.

III - DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos decide-se negar provimento ao recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida. -

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.

Coimbra, 18 de novembro de 2020

Acórdão elaborado em processador de texto, revisto e assinado eletronicamente.

Belmiro Andrade (relator)

Luís Ramos (adjunto)