Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1707/10.0T3AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
MENOR ENTRE 14 E 18 ANOS
MENOR CONFIADO PARA EDUCAÇÃO OU ASSISTÊNCIA
Data do Acordão: 05/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA (JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE AVEIRO - JUIZ 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 172.º, N.º 1, DO CP
Sumário: I - A situação de o menor entre 14 e 18 anos estar “confiado” ao agente “para educação ou assistência”, prevista no n.º 1 do artigo 172.º do CP, também pode resultar de uma relação de facto, ainda que de curta duração.

II - Encontrando-se a menor de 14 anos regularmente institucionalizada em determinado Lar de Infância, por força de medida de promoção e protecção de acolhimento institucional que lhe foi aplicada, e tendo essa instituição autorizado a mesma a deslocar-se, nas férias de Páscoa, a casa de sua avó e tios, pessoas a cujos cuidados ficou entregue, deverá entender-se estar verificada, nesse período, a referida situação, de a menor àqueles estar confiada para educação ou assistência.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
                                                                                                                                            
I. Relatório:                                                                                     
            No âmbito do processo comum (tribunal colectivo) n.º 1707/10.3T3AVR  que corre termos na Comarca do Baixo Vouga, Aveiro – Juízo de Média Instância Criminal – Juiz 1, em 30/8/2013, foi proferido Acórdão, cujo DISPOSITIVO é o seguinte :
            “Decisão:
            11. Pelo exposto, decide-se absolver o arguido A... da prática de:
            – dois crimes de abuso sexual de menor dependente, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b) e 179.º, al. b) do Código Penal; e
            – dois crimes de abuso sexual de menor dependente, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 2, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b) e 179.º, al. b) do Código Penal, que lhe eram imputados.
Sem custas.
Satisfazendo o solicitado, comunique à Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais a presente decisão.
Proceda ao depósito do acórdão (artigo 372.º, n.º 5 do Código de Processo Penal).
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Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 30/9/2013, o Ministério Público, defendendo que o arguido não deve ser absolvido, mas sim condenado pela prática de 4 crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, alíneas a) e b), 179.º, al. b), do Código Penal, ou, caso assim se não entenda, pela prática de 4 crimes de actos sexuais com adolescentes, p. e p. pelo artigo 173.º, do mesmo Código, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:               
1. Salvaguardando-se sempre o devido respeito, entende-se que o Tribunal a quo errou no enquadramento jurídico dos factos provados.
2. Efectivamente, e ao contrário do considerado pelo tribunal a quo, quando a menor D..., nascida a 19/3/1996, confiada à instituição “ K..”, em (...), foi passar as férias da Páscoa, que decorriam desde o dia 31 de março a 4 de Abril de 2010, junto do agregado familiar da avó materna, do qual o arguido, seu tio, fazia parte integrante, foram transferidos de facto para estes as responsabilidades de cuidado e assistência inerentes à instituição e conformados às características daquela estadia, designadamente os deveres de zelarem pelo seu bem-estar físico e psíquico durante esse período.
3. Entendendo-se como o tribunal a quo, tal implica aceitar que, nesses casos, há uma espécie de “vacatio” em que, em termos de facto, ninguém é responsável pela menor:
- não o é a instituição, porque objectivamente a menor não está sob o seu domínio fáctico;
- não o é a família que a acolha, porque não lhe está confiada legalmente a sua educação e assistência.
4. É deixar de fora da tutela penal situações gravíssimas como a dos autos!
5. Pois, se é verdade que nos crimes de abuso sexual de menor dependente se visa proteger o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual, ligado à ideia de que a liberdade e autodeterminação sexual de menores entre 14 e 18 anos confiados a outrem para educação e assistência se encontra em princípio carecida de uma protecção particular, pergunta-se:
- Em que é que essa protecção deixa de estar carecida quando a menor, institucionalizada, é autorizada a passar fins-de-semana ou férias escolares em determinado agregado familiar, como foi o caso?
6. Pois não é quando está mais fragilizada e vulnerável? Quando, por carecer de afectos e aceitação, pode ser levada a “aceitar” e a “calar” comportamentos ilícitos de algum dos elementos do agregado que passou a, temporariamente, integrar?! Sobretudo quando esses são os únicos laços familiares, como era o caso, que ainda lhe era dado preservar e manter?!
7. Há ou não, nestes casos, de forma que cremos manifesta, uma especial relação de dependência entre o agente e a vítima?!
Há ou não a percepção por parte do agente de que a menor lhe está confiada de facto e de que quem detém formalmente a sua responsabilidade está “à distância”, sabendo assim facilitada a sua actuação?
Há ou não a percepção por parte da menor de que tem de agradar às pessoas que a recebem, para que continuem a ser autorizadas essas saídas da instituição que a acolhe e aquelas a continuem a querer receber?!
8. Entender-se como o tribunal a quo é retirar, de forma inaceitável, da tutela penal casos gritantes, como aquele de que os autos cuidam, e ainda muitos outros em que menores estejam fácticamente a cargo de outrem – que não a pessoa/instituição a quem estejam legalmente confiados -, sobre o qual recaia inegavelmente um especial dever de protecção, conformado às concretas características de que a estadia ou permanência da menor consigo se revista (fim-de-semana, férias, etc.).
9. Aliás, o próprio tribunal deu como provado que a D... foi para casa da avó materna, ficando aos seus cuidados e dos tios (facto provado n.º 5) e ainda que o arguido sabia que a menor se encontrava institucionalizada e que naqueles dias estava aos seus cuidados e da avó (facto provado n.º 35).
10. Motivos pelos quais se impunha que o tribunal tivesse concluído que a conduta do arguido, plasmada nos Factos Provados, constituía a prática de quatro crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b), 179.º, al. b), do Código Penal, pelos quais o deveria ter condenado.
11. Mas ainda que assim não tivesse entendido, sempre o tribunal a quo deveria ter considerado que o arguido cometeu o crime de actos sexuais com adolescentes, p. e p. pelo artigo 173.º, do Código Penal, hipótese que equacionou mas que acabou por, a final, afastar.
12. Pois se é certo que deu o tribunal a quo como provado, e bem, porque admitido pela própria D... em audiência de julgamento, que esta já havia tido, antes dos factos ocorridos com o arguido, relações sexuais com um colega,
13. já se não entende que, daí e sem mais, tenha concluído, como concluiu, que está afastada a sua inexperiência sexual para efeitos da aplicação desta norma!
14. O facto de a D..., com 14 anos de idade, ter tido, anteriormente, relações sexuais com alguém da sua idade (um colega), transforma-a, sem mais e necessariamente, numa menor “experiente” para lhe ser negada a protecção da citada norma quando é abusada, mais tarde, por alguém como o arguido, homem de 51 anos de idade e pai de família?!
15. A “experiência sexual” tem que abarcar uma série de conhecimentos, teóricos e práticos, que permitam à vítima, por exemplo, identificar/diagnosticar um processo de sedução em curso para o poder deter ou para poder resistir e, dessa forma, impedir o resultado último que com ele o agente visa (acto sexual de relevo/relações sexuais)?!
16. Mas nem o tribunal cuidou de apurar qual o grau de experiência ou de educação e maturidade sexual da menor D..., tendo-se bastado com aquela simples afirmação (relações sexuais anteriores com um colega…)!
17. Nem, sob o ponto de vista da sua experiência de vida, tendo em conta a sua conhecida idade e a sua origem social, humilde e desprovida, que conduziu, aliás, à sua institucionalização, a poderia considerar, como considerou, uma adolescente experiente, capaz de resistir à sedução do tio, na casa e na cama deste!
18. Razões pelas quais também aqui o Tribunal deveria ter, em última análise, condenado o arguido pela prática do crime de actos sexuais com adolescentes, p. e p. pelo artigo 173.º, do Código Penal, por se encontrarem preenchidos todos os seus elementos constitutivos!
19. Ao decidir como no Acórdão, violou, assim, o Tribunal a quo o disposto nos artigos 172.º, n.º 1, e/ou 173.º, do Código Penal.
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            O recurso, em 30/10/2013, foi admitido.
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            O arguido não respondeu ao recurso.
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            Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 20/12/2013, emitiu douto parecer em que acompanhou os argumentos avançados no recurso, salientando, em resumo, o seguinte:
1) “a expressão «que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência», consignada no artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, tem um conteúdo essencialmente fáctico e não dependente de qualquer decisão institucional”;
            2) “é que este (conceito) e a punição que o mesmo sustenta advém, ao fim e ao cabo, da especial proximidade e dependência que o menor tem relativamente ao agressor”;
            3) “o recorrido aproveitou-se da guarda da menor para a levar a praticar consigo os actos de cariz sexual que os factos provados demonstram”;                                      
            Mais considerou que a matéria de facto dada como provada impede que se afaste, liminarmente, a inexperiência sexual.
            Na sequência, concluiu que o arguido deve ser condenado pelo crime de abuso sexual de menor dependente na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, com execução suspensa por igual período, em conjugação com a obrigação de, nesse período, não ter, nem procurar ter, contactos com a referida D....
Foi cumprido, de seguida, o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Prosseguiram, então, os autos e, colhidos os vistos, teve lugar a conferência prevista na lei, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Decisão Recorrida:
“(…)
I. RELATÓRIO
1. O Ministério Público deduziu acusação (fls. 137 a 144), em processo comum e perante o Tribunal Coletivo, contra
A..., filho de (...) e de (...), natural de (...), (...), nascido em 18 de setembro de 1958, casado, titular do bilhete de identidade n.º (...), desempregado, residente na Rua (...), (...);
imputando-lhe a prática de:
– dois crimes de abuso sexual de menor dependente, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b) e 179.º, al. b) do Código Penal;
– dois crimes de abuso sexual de menor dependente, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 2, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b) e 179.º, al. b) do Código Penal.
2. A acusação foi recebida nos seus precisos termos (fls. 174 e 175).
3. O arguido não contestou.
4. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.
II. SANEAMENTO
5. O Tribunal é competente.
A instância mantém-se válida e regular, não existindo ou sobrevindo qualquer questão prévia, nulidade ou exceção que cumpra apreciar e que obste à apreciação do mérito da causa.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
6. Factos provados
Instruída e discutida a causa, com relevo para a decisão, mostram-se provados apenas os seguintes factos:
A
1) O arguido nasceu no dia 18 de setembro de 1958, sendo casado, como era à data dos factos que infra se descrevem, com B..., sendo irmã de C..., mão da menor D...;
2) D... nasceu no dia 19 de março de 1996, sendo filha de G... e de C..., tendo como avós:
– paternos, H...; e
– maternos, I...a e J..;
3) À data dos factos que infra se descrevem, a D... encontrava-se a viver no K..”, em (...), em virtude de medida de promoção e proteção de acolhimento institucional que lhe fora aplicada;
4) Por ocasião das férias da Páscoa, a pedido da avó materna da menor, a D... foi autorizada a passar um período situado entre os dias 31 de março e 4 de abril de 2010 junto do agregado familiar da avó materna, a residir em (...), (...), na (...);
5) Assim, nesse enquadramento, a D... foi para casa da avó materna, ficando aos seus cuidados e dos tios;
6) Nessa habitação residem:
– a avó, dormindo num quarto só dela;
– o arguido juntamente com a sua esposa, B... e uma filha de ambos chamada
L..., ao tempo com 23 meses de idade, dormindo todos num quarto;
– M... (tio da menor) e a sua esposa, N...
Batista (tia e madrinha da menor D...), dormindo noutro quarto;
– O..., ao tempo com 25-26 anos, tio da menor, dormindo noutro quarto; e
– P..., filho daquele M... e N... (primo da menor D... e ao tempo com 12 anos), dormindo na sala;

7) Na primeira noite, de 31 para 1 de abril de 2010, a D... dormiu com a avó;
8) A partir daquela noite e nas restantes até regressar à instituição, a menor D... passou a dormir no mesmo quarto que o arguido, juntamente com a esposa desta, a tia da menor B..., e o filho de ambos;
9) A menor D... dormia na mesma cama que o arguido, a esposa deste e a prima dela, a L...;
10) Na noite do dia 1 para o dia 2 de abril de 2010, o arguido, aproveitando-se do facto da menor D... se encontrar junto a si e da sua esposa se encontrar a dormir, apalpou o corpo da menor, designadamente a zona vaginal da menor;
11) Inicialmente, o arguido começou a apalpar a menor, nomeadamente a sua zona vaginal, por cima do pijama desta;
12) Depois, o arguido introduziu a mão por baixo da roupa da menor e apalpou a zona vaginal da menor, sem, no entanto, introduzir a mão ou os dedos na vagina;
13) Além disso, o arguido pegou na mão da menor D... e, pretendendo que a mesma tocasse o seu pénis, conduziu-o a ele;
14) Todavia, porque a D... manifestou resistência a tal, o arguido desistiu do referido propósito;
15) Na noite seguinte, isto é, na noite do dia 2 para o dia 3 de abril de 2010, o arguido, aproveitando-se novamente do facto da menor D... se encontrar junto a si e da sua esposa se encontrar a dormir, apalpou o corpo da menor, designadamente os seios e zona vaginal da menor;
16) Inicialmente, o arguido começou a apalmar a menor, nomeadamente a sua zona vaginal e dos seios, por cima do pijama desta;
17) Depois, o arguido introduziu a mão por baixo da roupa da menor e apalpou a zona vaginal da menor, sem, no entanto, introduzir a mão ou os dedos na vagina;
18) Além disso, o arguido apalpou os seios da menor por cima do sutiã que a mesma usava;
19) Na noite de 3 para 4 de abril de 2010, o arguido, aproveitando-se novamente do facto da menor D... se encontrar junto a si e da sua esposa se encontrar a dormir, apalpou o corpo da menor, designadamente os seios e zona vaginal da menor;
20) Inicialmente, o arguido começou a apalmar a menor, nomeadamente a sua zona vaginal e dos seios, por cima do pijama desta;
21) Depois, o arguido introduziu a mão por baixo da roupa da menor e apalpou a zona vaginal da menor, sem, no entanto, introduzir a mão ou os dedos na vagina;
22) Além disso, o arguido apalpou os seios da menor por cima do sutiã que a mesma usava;
23) No dia 4 de abril de 2010, a hora concretamente não apurada da tarde, mas por volta das 15.00 horas, o arguido conduziu a menor até um barracão existente nas redondezas da habitação descrita em 4);
24) Ali chegados, o arguido pediu à D... que se despisse, o que esta fez;
25) De seguida, o arguido colocou a menor deitada em cima de umas paletes com esferovite, virada para si, pôs o pénis para fora das calças e deitou-se sobre ela;
26) Ato contínuo, o arguido encostou o pénis à vulva da D..., procurando, sem conseguir, introduzi-lo na vagina da menor;
27) Entretanto, a menor D... pedia ao arguido para parar;
28) Todavia, o arguido prosseguiu na sua atuação descrita em 26);
29) Ao fim de algumas tentativas e sempre sem lograr introduzir o pénis na vagina da menor, o arguido levantou-se, assim como a menor e, depois de se comporem, foram para casa, pedindo o arguido à D... que não contasse o sucedido a ninguém;
30) Nas ocasiões referidas em 10) a 23), a D... nada disse ou falou;
31) Em qualquer das ocasiões referidas em 10) a 29) e sem prejuízo do descrito em 13), 14) e
27), a D... manifestou qualquer tipo de resistência face à conduta do arguido;
32) Antes dos factos descritos em 10) a 29), a D... já havia mantido relações sexuais de cópula com um jovem;
33) O arguido tinha perfeito conhecimento da idade da D... e da relação de afinidade que entre os dois existia;
34) O arguido atuou visando e conseguindo satisfazer os seus instintos e intentos libidinosos, o que representou, quis e conseguiu, sabendo ainda que assim agindo atentava contra o desenvolvimento da menor, ofendendo o seu sentimento de pudor e vergonha;
35) Sabia ainda o arguido que a menor se encontrava institucionalizada e que, naqueles dias 31 de março a 4 de abril de 2010, estava aos cuidados da avó e tios;
36) Não obstante isso, atuou do modo descrito;
37) O arguido atuou livre, voluntária e conscientemente, ciente que a sua conduta era reprovável, proibida e punida por lei;
38) O arguido é o primogénito de três descendentes, sendo oriundo de uma família de condição socioeconómica humilde: o pai, já falecido, era operário fabril e a mãe doméstica;
39) Após a conclusão do 4.º ano de escolaridade, aos 14 anos de idade, abandonou o sistema escolar, ingressando no mercado de trabalho, como servente da construção civil, por forma a ajudar à sobrevivência económica familiar;
40) Durante a sua infância e adolescência, o arguido refere não ter beneficiado de actividades de ocupação dos seus tempos livres e de convívio, aproveitando todos os momentos para ajudar os pais, em trabalhos agrícolas com vista à subsistência familiar;
41) Integrou, até aos 43 anos de idade, o agregado familiar parental, constituído pelos progenitores e os 2 irmãos mais novos, tendo-o abandonando para coabitar com a namorada (contava 26 anos), com quem, após sete anos de vida em comum, veio a contrair matrimónio, sendo a sua actual cônjuge;
42) Nos últimos 25 anos, o arguido manteve a mesma atividade laboral e patronal, trabalhando na floresta, no corte de eucaliptos e pinheiros, numa empresa que entrou em insolvência, ficando desempregado, desde há 3 anos;
43) Desde então, o arguido subsiste economicamente com o subsídio de desemprego, tendo sido nesse âmbito que laborou na Junta de Freguesia (...), num programa de ocupação para desempregados, do Instituto do Emprego e Formação Profissional;
44) À data dos factos, o agregado familiar do arguido era constituído pelo cônjuge, assalariada rural e a filha, à data com 23 meses de idade;
45) Viviam em coabitação com outro casal (cunhados) e sobrinho, e ainda com a sogra do arguido, que é a titular da habitação;
46) A habitação é térrea, humilde, com características próprias de espaços rurais, sendo constituída por 4 quartos, uma casa de banho, uma cozinha e uma sala;
47) O espaço está distribuído para que cada casal tenha o seu quarto, dormindo sozinhos a sogra e o sobrinho do arguido, de menor idade;
48) Atualmente mantém a mesma situação familiar e habitacional, sendo também beneficiário de subsídio de desemprego, no valor de € 400;
49) Frequentou um curso de formação de Novas Oportunidades, no Centro de Formação em (...);
50) A relação do arguido com o cônjuge é descrita, pelo casal, como funcional e afetuosa, existindo satisfação conjugal;
51) O agregado familiar denota organização no seu modo de vida, não obstante verificar-se acentuada debilidade económica, nas suas vivências diárias;
52) Conta com o apoio da sua família que não acredita na sua implicação nos factos;
53) A sua rotina diária caracteriza-se pela ocupação em agricultura para subsistência familiar, e passeios pelas redondezas;
54) Nos restantes tempos livres, o arguido estabelece relações de convívio com alguns amigos e conhecidos do seu círculo laboral
55) A sua atual situação jurídico-penal não teve qualquer repercussão no seu modo de vida, manifestando, no entanto, preocupação pela intervenção do sistema judiciário;
56) A nível social, tem uma imagem positiva, sendo desconhecidos os factos por que se encontra indiciado.
57) O arguido não tem antecedentes criminais;
7. Factos não provados
Com relevo para a boa decisão da causa, não se provaram quaisquer outros que estejam em contradição com os dados como provados.
Designadamente, não se provaram os seguintes factos:
a) Sem prejuízo do descrito em 4) e 5) dos factos provados, a menor foi confiada à avó materna, à tia B... e ao arguido durante o período em que ficou na habitação da avó;
b) Nas circunstâncias referidas em 10) a 14) dos factos provados, o arguido apalpou os seios da D...;
c) Nas circunstâncias referidas em 10) a 14) dos factos provados, a D... pediu ao arguido que parasse, mas o mesmo prosseguiu com tais atos, ao que a mesma não mais reagiu por estar com medo e confusa;
d) Nas circunstâncias descritas em 15) a 18) dos factos provados, o arguido baixou as suas próprias cuecas e calças do pijama e, agarrando a mão da D..., forçou-a a tocar-lhe no pénis;
e) Ato contínuo, o arguido baixou as calças do pijama e as cuecas da D..., agarrou-a contra o seu corpo, tocando com o seu pénis na zona vaginal da menor;
f) A D..., nas circunstâncias descritas em 15) a 18) e d) e e) dos factos provados pediu ao arguido que parasse e debateu-se por forma a afastar-se do mesmo, mas permanecendo o arguido em tal atitude, a D..., com medo e confusa, não lhe opôs mais resistência;
g) Nas circunstâncias descritas em 19) a 22) dos factos provados, o arguido baixou as suas calças de pijama e cuecas, ficando com a sua zona genital desnudada;
h) Além disso, nas circunstâncias descritas em 19) a 22) dos factos provados, o arguido
baixou as calças de pijama e as cuecas da D... e encostou-se a ela, agarrando-a de frente para si e forçando-a a afastar as pernas;
i) Depois, sempre no circunstancialismo referido em 19) a 22) dos factos provados, o arguido encostou o seu pénis ereto à vagina da ofendida, aí o introduzindo parcialmente, realizando nessa posição os movimentos próprios da cópula, sem no entanto ejacular;
j) A D..., mais uma vez, pediu ao arguido que pusesse termo a tais atos, mas o mesmo prosseguiu com tal conduta, não obstante tais pedidos e a tentativa daquela para o afastar e evitar aquela situação;
k) A D..., sempre com medo, acabou por não oferecer mais resistência ao arguido;
l) Na tarde do dia 4 de abril de 2010, o arguido disse à D... para o acompanhar num passeio pelas redondezas;
m) Nas circunstâncias referidas em 23) a 29) dos factos provados, o arguido baixou as suas calças e cuecas até à altura dos joelhos;
n) Sem prejuízo do descrito em 23) a 29) dos factos provados, nas circunstâncias aí descritas, o arguido afastou as pernas da D... e introduziu-lhe o pénis ereto na vagina da mesma;
o) Nas circunstâncias descritas em 23) a 29) dos factos provados, o arguido pediu à D... para lhe fazer sexo oral, o que a mesma recusou, não tendo o arguido insistido;
p) O arguido realizou os factos descritos em 10) a 29) dos factos provados aproveitando-se do seu ascendente sobre a D..., decorrente da descrita relação familiar e da circunstância de a mesma se encontrar temporariamente confiada ao seu cuidado, da sua mulher e da sua sogra, bem sabendo que a mesma padecia de sentimentos de rejeição familiar por se encontrar institucionalizada e afastada do seu meio materno e paterno, procurando ser aceite pelo agregado familiar da sua avó materna;
q) A D... temia opor-se aos atos do arguido e deles dar conhecimento aos seus familiares, quer por vergonha, quer por medo de ser culpabilizada pelos mesmos e, desse modo, ser rejeitada, o que o arguido bem sabia;
r) O arguido sabia que a D... se opunha aos atos praticados pelo arguido;
s) Nas circunstâncias descritas em 10) a 22) dos factos provados, a D..., não obstante não querer deixar o arguido praticar aqueles atos, não reagiu de forma mais ativa para se lhes opor por ter receio da reação da sua tia, a esposa do arguido B..., assim como da reação dos demais membros daquele agregado familiar, sentindo-se envergonhada e temendo que a culpassem pelo sucedido;
8. Motivação
Α. Mesmo antes de nos abalançarmos na motivação da factualidade provada e não provada, importa fazer dois esclarecimentos.
O primeiro, a sinalizar que a audiência de discussão e julgamento decorreu com o registo da prova (declarações do arguido e depoimento das testemunhas) em sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do tribunal.
Esta circunstância, permitindo uma ulterior reprodução desses meios de prova e um efectivo controlo do modo como o Tribunal formou a sua convicção, deve, nesta fase do processo, revestir-se de alguma utilidade, nomeadamente dispensando o relato detalhado das declarações, depoimentos e esclarecimentos prestados.
O segundo, para afirmar que, em termos genéricos, o Tribunal fundou a sua convicção considerando as declarações do arguido, o depoimento das testemunhas, a prova pericial e documental, analisando todos os elementos probatórios ao dispor do Tribunal em confronto entre si e de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador (artigo 127.º do Código de Processo Penal).
Concretizemos.
Β. Factos provados.
Β.α. Factualidade descrita em 1) a 9) dos factos provados.
Esta matéria não foi objeto de controvérsia no âmbito do presente processo, dela fazendo referência — direta ou indireta — o arguido (cujas declarações nesta parte, coincidiram com as da menor D...), a própria D..., E... (técnica superior de serviço social que trabalhava na instituição onde a menor se encontrava acolhida), F... (colega da menor D... que, como melhor se verá, despoletou o processo) e C... (avó da menor e nora do arguido).
Em conjugação com estes elementos de prova, o Tribunal atendeu ainda à prova documental que consta dos autos, nomeadamente:
– teor de fls. 17 e 18 (assento de nascimento da menor);
– fls. 22 e 23: autorização de saída da menor da instituição; e
– fls. 25 e 26 e 63 a 74: informação social relativa à menor da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de Águeda.
Β.β. Factualidade descrita em 10) a 37) dos factos provados.
Β.β.1. Atendendo à natureza dos factos em jogo — apesar das particularidades, normalmente cometidos no recato e longe de olhares indiscretos — e considerando as posições assumidas pelos principais intervenientes (arguido e menor D...), fácil é de compreender que o Tribunal baseou a sua convicção, essencialmente, no depoimento da menor D....
a) Na verdade, a menor descreveu os factos de que foi alvo, procurando ser rigorosas quanto aos concretos factos ou condutas do arguido (o que, regra geral, só sucedia após o Tribunal, sempre com cuidado para que a pergunta nada sugestionasse, insistir para que fosse mais concreta).
O seu depoimento foi espontâneo, o que não significa que fosse agradável ou que não existisse uma boa dose de constrangimento da menor ao relatar os factos. O que bem se compreende, considerando a natureza dos factos e, ainda, as consequências que significaram para a menor, nomeadamente ao nível do afastamento com a sua família materna (avós e tios).
Importa acentuar que o Tribunal analisou com particular cuidado o depoimento da menor. É que atendendo à sua particular posição (apresentava-se como vítima de um crime sexual por parte de um familiar próximo, com toda a carga que isso implica), atendendo à natureza dos factos poderia ser marcado por uma dose excessiva de subjetivismo, no sentido de, através do processo (e em particular pelo seu depoimento), ou obter algum tipo de vingança sobre o arguido ou, até procurar justificar as suas próprias condutas (por exemplo, o nada ter dito à avó ou o não ter mudado de cama perante as, chamemos assim, aproximações sexuais do arguido).
De qualquer modo, o Tribunal considerou credível o seu depoimento.
b) Não se tente atacar o depoimento da menor dizendo que o mesmo enferma de contradições relativamente a outros momentos processuais onde prestou declarações e que nem sequer espelha o que consta da acusação.
Desde logo, importa acentuar que ao Tribunal apenas é lícito valorar as declarações prestadas em sede de audiência de julgamento e aquelas que foram prestadas para memória futura e que foram ouvidas. As demais, nomeadamente as prestadas em inquérito, não podem ser valoradas (acentuando-se que nenhum dos sujeitos processuais sequer requereu que as mesmas fossem lidas em audiência).
De todo o modo, é certo que entre as declarações para memória futura prestadas pela menor D... e o seu depoimento em audiência existem algumas discrepâncias.
Todavia, deve anotar-se que, apesar de algumas discrepâncias, existe coincidência em grande parte dos aspetos referidos num e noutro momento, havendo apenas divergências num ou noutro ponto que o Tribunal considerou normal, atendendo a que, entretanto já decorreu algum tempo.
Em todo o caso, onde existia divergência, o Tribunal optou pela versão apresentada em audiência, porquanto aí procurou o Tribunal esclarecer — até com pormenor — todos os aspectos atinentes ao relacionamento sexual havido entre a menor e o seu tio, o arguido e, além disso, há mais garantias de se exercer cabalmente o contraditório (entendendo-se este também como uma forma de se atingir a verdade material).
c) Não se argumente, também, que, afinal, tendo o arguido negado a prática dos factos, a prova produzida em relação a estes factos se cinge à “palavra de uma contra o outro”, não sendo lícito ao Tribunal, até para respeitar o princípio in dubio pro reo, valorar mais o depoimento da menor em detrimento das declarações do arguido.
Não se duvide, de facto, que o Tribunal não daria mais crédito à menor em detrimento do arguido se apenas fosse uma questão de haver “a palavra de um contra o outro”. Só que o caso dos autos não basta analisar “a palavra de um e de outro”, mas olhar todo o circunstancialismo à volta no sentido de testar “uma e outra”, no sentido de procurar saber qual delas corresponde à verdade.
Ora, neste quadro, não só não há praticamente elementos que corroborem (ainda que indiretamente) as declarações do arguido, como os que existem apontam no sentido de conferir credibilidade ao depoimento da D....
e) Assim, importa tomar em consideração as circunstâncias em que a menor apontou o arguido como tendo praticado os referidos factos: não no contexto de uma acusação ou perseguição em relação a ele (note-se que analisando os depoimentos de E... e F... com o teor de fls. 23 e 24, fica claro que a questão do abuso sexual se despoletou em vésperas da menor voltar a casa da avó e tios), sendo que a menor não havia manifestado qualquer “repulsa” ou “insatisfação” com tais práticas (delas não deu nota na instituição e só falou à sua colega F... a título de confidência, quase se podendo dizer que ficou pouco satisfeita quando esta foi contar à técnica o que ouvira).
Depois, foi notório — resulta inequivocamente dos depoimentos de E... e F... — que não foi à menor D... que os comportamentos do arguido chocaram, mas à F... que se insurgiu contra a possibilidade da menor voltar a casa do arguido depois do que a D... lhe havia contado.
Por fim, se há e havia alguém a perder com este processo, essa pessoa é a D..., já que, devido ao seu processo de crescimento e socialização (onde é notório algum abandono familiar e a necessidade da menor procurar vinculações afetivas significativas para ela, sendo certo que se foi acolhida foi porque nem na família alargada [o mesmo é dizer a avó e os tios] existiam condições mínimas para a acolher e garantir-lhe um harmonioso desenvolvimento e crescimento) era naquele “pedaço da sua família” que ela estava a construir as suas vinculações afetivas mais forte.
Ora, este processo — que, manifestamente, a menor não desejou — poderia resultar (como efetivamente resultou) no corte de relações entre aquela parte da família (praticamente a única com quem a menor mantinha alguns contactos e relações) e a menor. E de tudo isto a menor tinha consciência, mas não obstante isso, depôs nos termos que se referem.
f) Acresce que, dando credibilidade às declarações da menor, temos a perícia à sua personalidade, dela se destacando que não apresenta traços que conduzam a estar a mentir numa situação destas. Bem pelo contrário.
Β.β.2. Em face do que foi dito, torna-se também patente que, além das declarações da menor, o Tribunal valorou os depoimentos de E... (técnica que ao tempo dos factos trabalhava na instituição onde a menor se encontrava acolhida) e de F... (colega da menor), uma e outra merecendo a credibilidade do Tribunal, procurando ser objetivas quanto aos factos de que tiveram direto conhecimento.
Os seus depoimentos, como já se disse, foram essenciais para enquadrar o modo como o presente processo foi despoletado e, nesse quadro, apreciar da credibilidade do depoimento da menor.
Β.β.3. Em face dos dados dos autos, pouco relevo assumiu o relatório médico-legal que consta de fls. 62 a 66, considerando a data em que foi realizado e, ainda a data dos factos (para além dos próprios factos).
Β.β.4. O arguido, como já dissemos, negou a prática dos factos.
Pelas razões que, de certo modo, fomos adiantando, as suas declarações não mereceram a credibilidade do Tribunal.
Desde logo, bem se compreende que tenha negado os factos, visando exculpar-se dos mesmos e da censura que a sua prática necessariamente acarreta.
Depois, mesmo a conduta da menor face aos “avanços” do arguido é compreensível e não dá, por si, maior credibilidade ao arguido ou, em sentido inverso, tira credibilidade à menor. Como manifestou a F... ao tempo do inquérito e cujas declarações foram lidas, a menor até terá manifestado algum “prazer”, a que acresce a necessidade de criar ou manter vinculações afetivas junto daquele agregado, conduz a que a menor não se tivesse queixado antes e menos ainda que o fizesse à sua avó ou às suas tias (com quem disse, tinha mais proximidade).
Β.γ. Factualidade descrita em 38) a 57) dos factos provados.
Aqui, o Tribunal atendeu ao relatório social (elaborado por técnico com especiais habilitações e conhecimentos, dando-se ainda conta que seguiu metodologias e foi buscar elementos a fontes que parecem adequados e aptos a revelar a factualidade que se descreve) que consta de fls. 228 a 230 e de fls. 364 a 366.
Quanto ao antecedentes criminais, o Tribunal atendeu ao certificado do registo criminal que consta de fls. 55 e de fls. 360.
Γ. Passemos, agora, aos factos não provados.
Γ.α. Factualidade descrita em a) dos factos não provados.
Trata-se, aqui, essencialmente, de questão de terminologia: a menor foi entregue aos seus familiares, ficando aos seus cuidados, tal como se mostra provado em 4) e 5) dos factos provados. Ao invés, não foi confiada aos seus familiares no sentido de lhes ser conferidos direitos, poderes e faculdades similares às responsabilidades parentais ou em substituição destas.
Isso, este tipo de confiança não se provou, dela inexiste prova.
Γ.β. Factualidade descrita em b) a s) dos factos provados.
Esta factualidade exprime a versão dos factos tal qual consta da acusação.
Ora, nas suas declarações a menor não foi tão longe, inexistindo prova sobre o que aqui se espelha.
IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
i. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
9. A acusação imputa ainda ao arguido a prática de:
– dois crimes de abuso sexual de menor dependente, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b) e 179.º, al. b) do Código Penal; e
– dois crimes de abuso sexual de menor dependente, previsto e punido pelos artigos 171.º, n.º 2, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b) e 179.º, al. b) do Código Penal.
Da simples redação das normas acabadas de referir torna-se claro que o ponto de partida para apurarmos se o arguido deve ser condenado é o artigo 171.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Penal (são deste diploma legal as normas doravante citadas sem menção da sua proveniência).
Será, portanto, por aqui que se iniciará a nossa análise.
10. Pode ler-se no artigo 171.º, n.º 1 que “quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos”, pena que é agravada para pena de prisão de 3 a 10 anos se “o ato sexual de relevo consistir na cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos” (artigo 171.º, n.º 2).
Com a presente incriminação, tutela-se a liberdade e a autodeterminação sexual associado ao livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, de modo que se poderá mesmo falar na proteção de um bem jurídico complexo denominado de desenvolvimento sem entraves da identidade sexual do menor (neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal – Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2012, págs. 711 e 712; em sentido muito próximo, falando na “liberdade de autodeterminação da criança”, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 473). Trata-se, portanto, de proteger a autodeterminação sexual “não face a condutas que representem a extorsão de contatos sexuais por forma coativa ou análoga”, “mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coação, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade, em particular na esfera sexual” (Jorge de Figueiredo Dias, Comentário cit. – I, pág. 834).
Justamente por isso se considera que o crime descrito no artigo 171.º do Código Penal na versão apontada ― o de abuso sexual de criança ― é um crime de perigo abstrato na medida em que a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, do menor ou o dano correspondente podem vir a não ter lugar, sem que com isto a integração pela conduta do tipo objetivo de ilícito fique afastada” (Jorge de Figueiredo Dias, Comentário cit. – I, pág. 835), de modo que a verificação do perigo não é elemento do tipo, mas apenas motivo ou ratio legis que conduziu o legislador à incriminação.
Pode, sem grande esforço interpretativo, dizer-se que o crime previsto no n.º 1 do artigo 171.º funciona como crime matricial ou tipo fundamental relativamente às demais condutas tipificadas nos n.ºs 2 a 4 desse mesmo artigo.
Consequentemente, será o mesmo bem jurídico tutelado — ainda que a lei reaja de modo diverso consoante a modalidade agressiva do agente — a saber: liberdade e a autodeterminação sexual associado ao livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, de modo que se poderá mesmo falar na proteção de um bem jurídico complexo, denominado de desenvolvimento sem entraves da identidade sexual do menor.
11. Resulta da redação legal que se o agente do crime pode ser qualquer pessoa (independentemente da idade ― desde que maior de 16 anos ― relação de parentesco com a vítima ou sexo), a vítima é sempre uma criança ou jovem com idade inferior a 14 anos, de qualquer sexo, sendo de todo irrelevante que seja ou não iniciada sexualmente, tenha ou não capacidade de discernimento do ato sexual em que se envolveu, ou que tenha uma parte ativa (mesmo a iniciativa) ou puramente passiva.
12. Da redação do tipo legal ― e desde já voltando a nossa atenção para o caso sub iudice ― mostra-se que se pune a prática de ato sexual de relevo com menor de 14 anos.
a) Ato sexual é aquele que, “de um ponto de vista predominantemente objetivo, assume uma natureza, um conteúdo ou significado diretamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de autodeterminação sexual de quem o sofre ou pratica”, sendo irrelevante “o motivo da atuação do agente”, não assumindo relevo típico a intenção libidinosa com que o agente atua, antes sendo indispensável que o ato seja suscetível de “ser reconhecido por um observador como possuindo uma conotação sexual” (isto considerando o circunstancialismo de lugar, de tempo, de condições que o rodeia), não sendo necessário que a vítima o reconheça como sexualmente significativo” (Jorge de Figueiredo Dias, Comentário cit. – I, pág. 719).
Todavia, o ato sexual que assume importância típica é o “de relevo”, assim se excluindo os atos considerados insignificantes ou bagatelares, apenas se considerando os atos que representam um entrave com importância para o desenvolvimento da personalidade do menor na esfera da sexualidade.
E aqui, convém não esquecer que coisa diversa do ato sexual de relevo é o ato que revela uma mera importunação sexual (artigo 170.º e, relativamente a menores, a alínea a) do n.º 3 do artigo 171.º).
b) Do confronto entre o n.º 1 e o n.º 2 do artigo 171.º, verifica-se que o ato sexual de relevo não abrange aquelas condutas que impliquem a “penetração” do agente na vítima, qualquer que seja a sua modalidade (designadamente a penetração do órgão sexual masculino na vagina, no ânus ou na boca do menor ― cópula, coito anal ou coito oral ― ou a penetração na vagina ou no ânus do menor com objetos). Ou, rectius, estas condutas são modalidades especialmente agressivas de atos sexuais de relevo que merecem, por parte do legislador, uma punição agravada.
A lei fala, como modalidades particularmente agressivas, na cópula, coito anal e coito oral ou a introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos.
Do modo como se mostra redigida a lei, é patente que o menor de 14 anos que relativamente à cópula, ao coito anal ou coito oral, se tem em vista a ideia de “penetração”, isto é, de introdução do órgão sexual masculino no ânus ou na boca do menor. E relativamente a objetos ou partes do corpo, a penetração-introdução terá de fazer-se, necessariamente, no ânus ou na vagina do menor.
Assim, exclui-se da incriminação nos termos do n.º 2 do artigo 171.º a introdução, por parte do menor, do pénis na vagina, no ânus ou na boca do agente do crime. Tal situação ficará abrangida pelo conceito de ato sexual de relevo.
Também se tratará de ato sexual de relevo e não coito oral (e, por isso, abrangido pelo n.º 1 do artigo 171.º) aquelas situações em que o menor, vítima do crime, pratica sexo oral com uma mulher.
13. Cabe, ainda, dizer que o crime em apreço é doloso, isto é, necessário se torna que o agente represente todos os elementos do tipo objetivo acima descrito e atue, ao menos conformado com a sua realização.
14. Feitas estas observações, cremos bem que nenhuma dúvida subsiste de que o arguido incorreu na prática de atos sexuais de relevo, todos tipificados no n.º 1 do artigo 171.º, não tendo realizado atos de cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos.
Na verdade, mostra-se que o arguido, em três ocasiões diferentes, apalpou o corpo da menor, designadamente a zona vaginal da menor, introduzindo-lhe a mão por baixo da roupa da menor, sem, no entanto, introduzir a mão ou os dedos na vagina (sendo que numa das ocasiões procurou que a menor manipulasse o seu pénis e duas ocasiões apalpou também os seios à menor).
Acresce que, numa outra ocasião, deitou-se sobre a menor encostou o pénis à vulva, procurando introduzir-lhe o pénis na vagina, mas sem o conseguir (anotando-se aqui, como deixamos escrito, que não chega a haver cópula vaginal, já que esta supõe que o agente penetre efetivamente na vagina, não sendo de considerar cópula, para este efeito, a chamada “cópula vestibular”).
15. A acusação entende que o arguido cometeu crimes de abuso sexual de menor dependente, remetendo-nos, assim, para o artigo 172.º, n.º 1.
Diz-se, então, no artigo 172.º, n.º 1 que “quem praticar ou levar a praticar ato descrito nos n.º 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a menor entre 14 e 18 anos que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”.
Entende-se que o bem protegido aqui é, “tal como no abuso sexual de crianças, o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, ligado aqui à ideia de que a liberdade e autodeterminação sexual de menores entre 14 e 18 anos, confiados a outrem para educação ou assistência, se encontra em princípio carecida de uma proteção particular” (Maria João Antunes, Comentário Conimbricense do Código Penal – Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2012, pág. 846).
Dum lado, esta norma - juntamente com outras: cfr. os artigos 171.º, 172.º, 173.º, 174.º, 175.º, 176.º e 177.º, n.º 5 e n.º - acentua que o legislador terá considerado diferentes graus de desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, pelo que a sua liberdade e autodeterminação sexual merece uma tutela diferenciada consoante a idade.
Consequentemente, compreende-se que a tutela à liberdade e autodeterminação sexual do menor entre os 14 e os 16 anos de idade seja diferenciada relativamente ao menor de 14 anos, exigindo-se algo mais que a mera prática de atos sexuais de relevo (em sentido amplo, abarcando a cópula, coito anal e oral e introdução vaginal ou oral de partes do corpo ou objetos): uma especial relação de dependência existente entre o agente e a vítima - o agente está, ver-se-á melhor a que título, investido de um especial dever - verificada pelo facto de esta ser confiada ao agente para educação ou assistência (o que pode favorecer a atuação do agente e restringir as possibilidades de ulterior denúncia dos factos) (neste sentido, Maria João Antunes, Comentário cit. – I, pág. 846).
16. Agente do crime é, apenas, a pessoa a quem o menor entre os 14 e os 18 anos tenha sido confiado para educação ou assistência, seja homem ou mulher. Trata-se, assim, de um crime específico.
Vítima é o menor entre os 14 e os 18 anos de idade que tenha sido confiado para educação ou assistência ao agente.
Note-se, pois, que o tipo objetivo exige que o menor entre os 14 e os 18 anos tenha sido confiado ao agente para educação ou assistência, “o que põe em relevo a já mencionada relação de dependência pessoal que fundamenta de forma autónoma a criminalização dos comportamentos previstos no artigo 173.º” (Maria João Antunes, Comentário cit. – I, pág. 848).
“Encontra-se nesta relação de dependência o menor entre 14 e 18 anos de idade que tenha sido confiado ao agente para educação ou assistência por força de lei - v. g., aos progenitores no exercício das responsabilidades parentais (artigos 1878.º, 1901.º e 1911.º do Código Civil) - ou de decisão judicial - v. g., a terceira pessoa ou a adotante (artigos 1903.º, 1907.º, 1915.º, 1986.º e 1997.º do Código Civil); e encontra-se ainda nesta relação o menor entre 14 e 18 anos de idade que tenha sido confiado de facto ao agente para educação ou assistência - v. g., a um terceiro, familiar ou não, na ausência dos progenitores (artigo. 1907° do Código Civil) (Maria João Antunes, Comentário cit. – I, págs. 848 e 849; no mesmo sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2012, www.dgsi.pt; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11.09.2012, www.dgsi.pt, aí se afirmando que há “confiança do menor quando alguém, por força de ato ou negocio jurídico, seja encarregado das satisfação das necessidades, educativas ou não do menor, em termos genéricos comparáveis aos das responsabilidades parentais, ou fique de facto investido de tal encargo”).
Assim, a lei apenas tem em vista aquelas situações em que, por força da lei, decisão judicial ou situação de facto (nomeadamente por força de negócio jurídico), o agente tenha sido encarregado, em termos globais e de forma individualizada, da educação e assistência do menor entre os 14 e 18 anos de idade. O que significa que, por exemplo, a exclusão do professor do âmbito dos agentes do crime, muito embora tenha uma participação ativa na educação do menor (neste sentido, Maria João Antunes, Comentário cit. – I, pág. 849; em sentido diverso, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 478, afirmando que o artigo 172.º “’inclui a confiança a pais, tutores, familiares, professores, educadores, médicos, enfermeiros, sacerdotes, assistentes sociais e todas aquelas pessoas a quem o menor possa ser entregue para educação ou assistência médica ou social, desde que não haja internamento do menor”, de tal modo que, “por exemplo, comete o crime o agente que é treinador de natação do menor de 15 anos”).
17. A conduta proibida pela lei é a prática de ato sexual de relevo, cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos.
Estes conceitos foram já analisados (cfr. supra 28.).
18. Trata-se de crime doloso e, por isso, o agente deve representar todos os elementos do tipo objetivo (nomeadamente a idade do menor e que o mesmo lhe havia sido confiado para assistência ou educação) e agir visando a realização dos atos sexuais de relevo (aqui em sentido amplo, abarcando as condutas penetrativas referidas na lei).
19. Voltando a nossa atenção para os factos, importa apurar se o arguido incorreu na prática do crime de abuso sexual de menor dependente.
Como vimos, a lei impõe que a vítima tenha sido entregue ou confiada para educação ou assistência e, considerando os factos provados, tal não se demonstrou.
À data dos factos, a menor encontrava-se institucionalizada, a viver no K..”, em (...), por força de medida de promoção e proteção de acolhimento institucional que lhe foi aplicada. Era, pois, à instituição e aos seus responsáveis a quem a menor estava confiada para assistência e educação, e não aos seus tios, designadamente, não estava confiada ao arguido.
É certo que a instituição autorizou a menor a deslocar-se a casa da avó e tios nas férias da Páscoa do ano de 2010, mais se demonstrando nos factos provados que, nesse período, ficou aos cuidados da avó materna e dos tios.
Contudo, a lei criminaliza a conduta da prática de atos sexuais de relevo quando praticada por menor com idade compreendida entre os 14 e os 18 anos se o agente do crime tiver sobre a vítima uma posição especial em termos de se poder afirmar que foi encarregado, em termos globais e de forma individualizada, da educação e assistência do menor, em termos similares ou próximos do exercício das responsabilidades parentais.
Não assim, portanto, quando o menor é confiado para passar um fim-de-semana com uns tios e, nesse período temporal, o tio a quem o menor foi “confiado” pratica com ele atos sexuais de relevo, porque ele continua a não estar encarregado da educação do menor em termos globais.
Ora, no fundo foi o que aconteceu no caso dos autos: a instituição que tinha sobre si a responsabilidade de prestar assistência e educação à menor D..., permitiu que a mesma fosse passar uns dias com os tios e a avó materna sem que, com isso, se “transmitisse” o conjunto de responsabilidades que permitiam afirmar que continuava a ser aquela instituição a responsabilidade de, em termos globais, educar a menor; durante esses dias, o arguido - numa atitude que não deixa de merecer censura e repugnância moral (então se olharmos o facto de ter praticado atos na mesma cama onde estava deitada a esposa, sabendo que a menor D... era, já de si, carenciada de especial cuidado porquanto se encontrava institucionalizada) - com ela praticou atos sexuais de relevo.
É certo que se esperava que o arguido se comportasse de outro modo, designadamente que, com as suas condutas, exemplos, conselhos, que o convívio entre a menor e os seus familiares de sangue fosse um fator de crescimento e desenvolvimento harmonioso da menor D.... E não foi isso que aconteceu (embora com contornos fácticos diferentes daqueles que se lograram provar nos presentes autos - nomeadamente porque ali se provou que a menor vivia desde os 8 meses de idade com o arguido e se encontrava à guarda e cuidados dele e da sua esposa, coarguida nesse processo e mãe da menor - pode ver-se com interesse o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2012, www.dgsi.pt).
Contudo, à luz da lei, tais factos não constituem crime e, por isso, por eles o arguido não pode ser condenado.
Não há, assim, o cometimento do crime de abuso sexual de menor dependente.
20. Poderia, ainda, colocar-se o problema do arguido ter incorrido na prática do crime de atos sexuais com adolescentes, previsto e punido pelo artigo 173.º.
Diz-se em tal norma o seguinte:
“1 – Quem, sendo maior, praticar ato sexual de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que ele seja por este praticado com outrem, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
2 – Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito oral, coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
Com a presente incriminação tem-se em vista a tutela do “livre desenvolvimento da vida sexual do adolescente de 14 a 16 anos, de qualquer sexo, face a processos proibidos de sedução conducentes à prática de atos sexuais de relevo” (Jorge de Figueiredo Dias e Maria João Antunes, Comentário Conimbricense do Código Penal – Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2012, pág. 858).
21. O agente do crime pode ser qualquer pessoa, desde que seja maior, de qualquer sexo. Vítima, apenas o menor entre 14 e 16 anos de idade, qualquer que seja o seu sexo.
22. A conduta proibida é a prática de atos sexuais de relevo (n.º 1) ou cópula, coito anal, coito oral, introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos (n.º 2) no exato sentido que lhe foi assinalado supra (cfr. 12.).
Acresce que o agente atua “abusando da inexperiência” da vítima, entendida esta como a “exploração pelo agente da falta de experiência de vida do adolescente e, nomeadamente, da falta de conhecimento básico sobre a vida sexual”, devendo o julgador, para “apurar a inexperiência” ter em conta “o nível de maturidade, a condição psíquica e o grau educacional da vítima”, sendo que “na sociedade da informação do início do século XXI, só muito excecionalmente, em meios muito fechados, se pode configurar essa inexperiência do adolescente” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 481; em sentido algo diferente, colocando a tónica no vencer da resistência da vítima, pode ver-se Jorge de Figueiredo Dias e Maria João Antunes, Comentário cit. – I, pág. 861, para quem abusar da inexperiência da vítima será “seduzir sexualmente”, isto é, “explorar a (ou aproveitar-se da) inexperiência da vítima e consequentemente a menor força da resistência que, por isso, terá diante do ato lesivo do bem jurídico”).
Desta ordem de considerações, resulta que estará afastada a inexperiência do adolescente quando o mesmo já tenha tido experiências sexuais (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário cit., pág. 481; contra, Jorge de Figueiredo Dias e Maria João Antunes, Comentário cit. – I, pág. 861, admitindo a possibilidade de existir inexperiência naquelas situações em que a vítima dispõe de conhecimentos da vida sexual ou mesmo se anteriormente já teve experiências sexuais porque “a inexperiência liga-se à sedução, não necessariamente ao resultado desta”).
23. Este é um crime doloso, onde o agente tem de representar a idade da vítima e agir com a vontade de realizar as condutas típicas.
24. Também por aqui se deve dizer que o arguido não incorreu na prática do crime de atos sexuais com adolescentes.
Com efeito, como ressalta dos factos provados, a menor D... já havia tido, antes destes com o arguido, relações sexuais com um colega e, por isso, não se vê que o arguido tenha abusado da sua inexperiência.
ii. DAS CUSTAS PROCESSUAIS
25. Resulta dos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, que o arguido é condenado nas custas do processo se for condenado em 1.ª instância, sendo a condenação individual e o respectivo quantitativo fixado de acordo com o Regulamento das Custas Processuais.
No caso dos autos, sendo o arguido absolvido, não será condenado em custas.
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III. Apreciação do Recurso:
O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.
Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
A questão a conhecer é a seguinte:
- Saber se os factos dados como provados devem ser qualificados como crimes de abuso sexual de menor dependente, ou, em última análise, como actos sexuais com adolescentes, devendo, em consequência, ser o arguido condenado em conformidade.
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            Vejamos.
Relativamente à prática do crime de abuso sexual de menor dependente, relembre-se o que consta do acórdão recorrido:
“19. Voltando a nossa atenção para os factos, importa apurar se o arguido incorreu na prática do crime de abuso sexual de menor dependente.
Como vimos, a lei impõe que a vítima tenha sido entregue ou confiada para educação ou assistência e, considerando os factos provados, tal não se demonstrou.
À data dos factos, a menor encontrava-se institucionalizada, a viver no K..”, em (...), por força de medida de promoção e proteção de acolhimento institucional que lhe foi aplicada. Era, pois, à instituição e aos seus responsáveis a quem a menor estava confiada para assistência e educação, e não aos seus tios, designadamente, não estava confiada ao arguido.
É certo que a instituição autorizou a menor a deslocar-se a casa da avó e tios nas férias da Páscoa do ano de 2010, mais se demonstrando nos factos provados que, nesse período, ficou aos cuidados da avó materna e dos tios.
Contudo, a lei criminaliza a conduta da prática de atos sexuais de relevo quando praticada por menor com idade compreendida entre os 14 e os 18 anos se o agente do crime tiver sobre a vítima uma posição especial em termos de se poder afirmar que foi encarregado, em termos globais e de forma individualizada, da educação e assistência do menor, em termos similares ou próximos do exercício das responsabilidades parentais.
Não assim, portanto, quando o menor é confiado para passar um fim-de-semana com uns tios e, nesse período temporal, o tio a quem o menor foi “confiado” pratica com ele atos sexuais de relevo, porque ele continua a não estar encarregado da educação do menor em termos globais.
Ora, no fundo foi o que aconteceu no caso dos autos: a instituição que tinha sobre si a responsabilidade de prestar assistência e educação à menor D... permitiu que a mesma fosse passar uns dias com os tios e a avó materna sem que, com isso, se “transmitisse” o conjunto de responsabilidades que permitiam afirmar que continuava a ser aquela instituição a responsabilidade de, em termos globais, educar a menor; durante esses dias, o arguido — numa atitude que não deixa de merecer censura e repugnância moral (então se olharmos o facto de ter praticado atos na mesma cama onde estava deitada a esposa, sabendo que a menor D... era, já de si, carenciada de especial cuidado porquanto se encontrava institucionalizada) — com ela praticou atos sexuais de relevo.
É certo que se esperava que o arguido se comportasse de outro modo, designadamente que, com as suas condutas, exemplos, conselhos, que o convívio entre a menor e os seus familiares de sangue fosse um fator de crescimento e desenvolvimento harmonioso da menor D.... E não foi isso que aconteceu (embora com contornos fácticos diferentes daqueles que se lograram provar nos presentes autos ― nomeadamente porque ali se provou que a menor vivia desde os 8 meses de idade com o arguido e se encontrava à guarda e cuidados dele e da sua esposa, coarguida nesse processo e mãe da menor ― pode ver-se com interesse o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2012, www.dgsi.pt).
Contudo, à luz da lei, tais factos não constituem crime e, por isso, por eles o arguido não pode ser condenado.
Não há, assim, o cometimento do crime de abuso sexual de menor dependente.”
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            O recorrente defende, em resumo, queno momento em que a D... foi autorizada a passar aquele período de férias no agregado familiar da avó materna, de que o tio/arguido fazia parte integrante, para estes transitaram naturalmente, de facto, os deveres ou responsabilidades de facto de velarem pelo bem-estar, genericamente, da menor durante esse período”, motivo pelo qual o arguido deve ser condenado pela prática de 4 crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b), 179.º, al. b), todos do Código Penal.
            O artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, estabelece o seguinte:
            “1 – Quem praticar ou levar a praticar acto descrito nos n.ºs 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a menor entre 14 e 18 anos que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
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Salvo o devido respeito a todos aqueles que defendem a argumentação que consta do acórdão recorrido ou a ela semelhante (ver Acórdão do TRE, de 11/9/2012, processo n.º 214/09.8JAPTM.E1, relatado pelo Exmo. Desembargador Sérgio Corvacho, in www.dgsi.pt), a situação de o menor entre 14 e 18 anos estar «confiado» ao agente «para educação ou assistência» pode, efectivamente, resultar de uma relação de facto, ainda que de curta duração – ver, neste sentido, Maria João Antunes, em Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, página 556, e Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código Penal, 2ª edição actualizada, página 541.
A lei não distingue situações. Limita-se a usar a expressão “confiado para educação ou assistência”, sem se referir, até, em particular, a responsabilidades parentais, embora se conceda que este conceito assume especial relevo.
O que está em causa é uma especial proximidade e dependência do menor em relação às pessoas a quem, momentaneamente, fica confiado.
“Confiar” significa, para o caso, “entregar-se, descansar em alguém”.
Revertendo ao nosso caso, a menor encontrava-se institucionalizada, a viver no K..”, em (...), por força de medida de promoção e protecção de acolhimento institucional que lhe foi aplicada.
Sem dúvida que era tal instituição que estava obrigada a prestar a respectiva assistência e educação.
Acontece que a referida instituição autorizou a menor a deslocar-se a casa da avó e tios nas férias da Páscoa do ano de 2010, mais se demonstrando nos factos provados que, nesse período, confiou-a à avó materna e aos tios, isto é, aquela ficou colocada aos cuidados destes.
Ora, a partir do momento em que uma instituição dá autorização à saída de um menor, assente, sem dúvida, num juízo de idoneidade sobre as pessoas com quem ele vai ficar, durante algum tempo, ocorre, necessariamente, uma transferência de todos os deveres e responsabilidades inerentes à estadia daquele.
Outra interpretação levaria a que, num certo período, a menor deixasse de ter alguém que se responsabilizasse por ela, o que seria, no mínimo, estranho, já que, eventualmente, ficaria sem assistência.
            Certamente que não é esse o objectivo da Lei.
Acontece que está demonstrada, de modo inequívoco, uma especial relação de proximidade e de dependência entre a menor e o arguido.
Só assim se compreende que tenham dormido na mesma cama e que se tenham deslocado a um barracão, nas circunstâncias descritas.
Por consequência, é de concluir que o arguido incorreu na prática de quatro crimes de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b), 179.º, al. b), todos do Código Penal.
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Impõe-se, agora, determinar a medida concreta da pena, já que as considerações feitas no acórdão recorrido a propósito do crime ora em causa, sem prejuízo da divergência acabada de expor, são mais do que suficientes.
Como dispõe o artigo 40º, nº 1, do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. As finalidades das penas, na previsão, na aplicação e na execução, são assim na filosofia da lei penal vigente a protecção de bens jurídicos e a integração do agente do crime nos valores sociais afectados.
Na protecção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).
As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.
No caso concreto a finalidade de tutela e protecção de bens jurídicos há-de constituir o motivo fundamento da escolha do modelo e da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afectados.
Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser em cada caso prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Quanto à medida da pena, em suma, e como já ensinava Beleza dos Santos, «a tranquilidade pública só deverá considerar-se convenientemente restabelecida quando a pena for um justo castigo, um adequado meio de intimidação e um conveniente processo de regeneração do delinquente» (R.L.J., 78, 26).
             De acordo com o direito vigente, o Tribunal deve partir da teoria da união, a qual exige se chegue a uma relação equilibrada dos diferentes fins de pena.
A pena deve determinar-se de modo a que garanta a função retributiva, esta equacionada com o ilícito em si e a culpabilidade, sem pressuposto, limite último, e seja possível, pelo menos, o cumprimento também da revisão ressocializadorada da própria pena com respeito ao próprio arguido, a exemplo, deste modo, o fim da prevenção especial. Além disso, a defesa do Ordenamento Jurídico exige, por último, que a pena se determine de tal modo que possa alcançar um efeito sócio-pedagógico na comunidade, que sirva ela de exemplo, de contra-motivo à prática de idênticos ilícitos pelos demais indivíduos.            Foi para fazer ou atingir a possível concordância dos fins das penas no caso concreto, que se desenvolveu na Jurisprudência a teoria da margem da liberdade, teoria segundo a qual a pena adequada à culpabilidade não é uma medida exacta.
A pena concreta é, pois, fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa) determinada em função da culpa, intervindo os outros fins das penas - prevenção geral e prevenção especial - dentro daqueles limites (cfr. Claus Roxin, in Culpabilidad Y Prevencion en Derecho Penal, pág. 4-113).
            Assim, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, no caso concreto (art. 71º, n.º 1, do C. P.), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.º 2), designadamente: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; a conduta anterior e posterior ao facto; a falta de preparação para manter conduta lícita, manifestada no facto; as condições pessoais do agente e a sua situação económica.
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            No caso em apreço, o grau de ilicitude é de média gravidade, o arguido agiu com dolo directo, não ficaram demonstradas consequências negativas, ao nível físico e psíquico em D... (hoje com 18 anos de idade), o arguido não interiorizou o desvalor da sua conduta e é pessoa integrada familiar e socialmente, sendo certo que não apresenta antecedentes criminais. Além disso, os factos ocorreram há mais de 4 anos e, desde então, nada consta em desabono do ora recorrente.
            Sopesados que estão todos os critérios e factores legais de determinação da concreta medida da pena, consideramos adequadas as seguintes penas parcelares:
- Factos ocorridos:
a) na noite do dia 1 para o dia 2 de Abril de 2010 – 2 anos de prisão;
b) na noite do dia 2 para o dia 3 de Abril de 2010 – 2 anos de prisão;
c) na noite do dia 3 para o dia 4 de Abril de 2010 -  2 anos de prisão;
d) no dia 4 de Abril de 2010 – 3 de prisão.
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 Nos termos do artigo 77.º, do Código Penal, há que alcançar uma pena única.
O critério da medida da pena resultante do cúmulo jurídico tem consagração legal na parte final do nº 1, do artigo 77.º. do Código Penal, na parte em que dispõe que “na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, o que não significa que esta norma esgote na sua totalidade os factores a ponderar.
Como é consabido, a pena única resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares pressupõe o recurso às exigências de prevenção, geral e especial, e também ela encontra limite na medida da culpa.
Simplesmente, a determinação desta pena única, porque se trata de uma pena referida a uma multiplicidade de factos temporalmente encadeados (próximos ou afastados), exige a adopção de um critério complementar, consubstanciado na ponderação conjunta dos factos e da personalidade do agente (posto que aqueles poderão ou não afirmar-se como um reflexo desta).
Claro que a gravidade relativa de cada um dos factos criminalmente relevantes deve ser considerada na determinação da correspondente pena parcelar, sendo, ainda, certo que, em sede de cúmulo jurídico de penas, o que essencialmente releva é a visão de conjunto.
 A visão individual de cada facto deve esbater-se perante a visão de conjunto, pois só esta permitirá correlacionar os factos entre si em ordem à verificação de uma verdadeira tendência criminosa do agente ou de uma mera pluriocasionalidade, a primeira afirmando-se como verdadeiro reflexo de uma personalidade que optou decididamente pela senda do crime e a segunda a reflectir essencialmente uma resposta conjuntural a condições de vida mais adversas, a um circunstancialismo mais propício ao cometimento dos crimes, ou a qualquer outro estímulo exógeno que não permite afirmar os factos como produto da natureza intrínseca do arguido, isto é, da sua personalidade.
Assim, para a determinação da pena unitária, num primeiro momento, há que encontrar a moldura do concurso segundo os ditames do artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal.
No caso vertente todas as penas em concurso são penas de prisão efectiva, estabelecendo-se a moldura do concurso entre um mínimo de 3 anos de prisão, correspondente à mais elevada das penas concretamente aplicadas, e um máximo de 9 anos de prisão, correspondente à soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Determinada esta moldura, há que encontrar, portanto, a pena única, o que pressupõe a mencionada visão de conjunto relativamente aos factos praticados, em interacção com a personalidade do agente.
Pois bem, é-nos dado verificar que os factos praticados surgem como algo esporádico na vida do arguido. Não estamos perante uma tendência intrínseca do arguido para a prática de crimes, antes no domínio da pluriocasionalidade, decorrente de circunstâncias próprias de um determinado momento.
Aqui chegados, devemos levar em consideração nesta matéria o critério seguido pelo STJ, através do qual se opera uma compressão das penas que, em regra, varia entre 1/3 e 1/6 da pena inicial, sempre sujeito a uma correcção final em função do número de penas a considerar, da sua gravidade relativa e daquilo que se oferece como ajustado no caso concreto, face à imagem do conjunto dos factos e à personalidade do delinquente (Cfr. Ac. do STJ de 18/06/2009, proc. nº 558/06.0TALSD.P1.S1, disponível para consulta em www.dgsi.pt/jstj), ainda que em casos mais graves, de grande intensidade de culpa, essa compressão se possa limitar a uma fracção entre metade e dois terços das penas (cfr. Ac. do STJ de 16/11/2011, proc. nº 150/08.5JBLSB).
Tudo isto pesa na concretização da pena única e aponta para os 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão como sua medida ajustada.
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Aqui chegados, importa considerar que o actual artigo 50.º, do Código Penal, estabelece que o tribunal decretará a suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições de sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Encontramo-nos face a um poder-dever, sendo certo que a suspensão da execução da pena de prisão é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico.
A suspensão da execução da pena «une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença penal ao chamamento, pela ameaça de executar no futuro a pena, à própria vontade do condenado para reintegrar-se na sociedade». É uma pena, porque oriunda de condenação produtora de antecedentes criminais. É uma medida de correcção, enquanto busca, a reparação do delito ou «prestações socialmente úteis». Aproxima-se das medidas de ajuda social, se no domínio respectivo se desenham instruções que «afectam o comportamento futuro do condenado». E tem uma coloração sócio-pedagógica activa, pelo «estímulo ao condenado para que seja ele mesmo quem com as suas próprias forças possa durante o regime de prova reintegrar-se na sociedade» (Jescheck, Tratado, versão espanhola, vol. II, págs. 1152 e 1153).
Ora, a suspensão da execução de uma pena só tem razão de ser, quando for possível fazer um juízo de prognose favorável ao arguido.
Como tem vindo a ser entendido pelos nossos tribunais superiores, “na suspensão da execução da pena de prisão, não são as considerações sobre a culpa do agente que devem ser tomadas em conta, mas antes juízos prognósticos sobre o desempenho da sua personalidade perante as condições de vida, o seu comportamento e bem assim as circunstâncias de facto que permitam ao julgador fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas”, conforme Acórdão do STJ, de 25/6/2003, CJ, Acs. do STJ, ano XXI, tomo II, pág. 21.
Todavia, a suspensão da execução da pena não deverá ser utilizada pelo julgador se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
Na realidade, o valor da socialização em liberdade tem que estar balizado por exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, de acordo com o que defende Figueiredo Dias, Direito Penal Português, pág. 344.
Pois bem, o arguido, pessoa integrada socialmente, desde as datas dos factos em causa nos presentes autos, não procurou outros contactos com D... que, hoje, é já adulta.
Sublinhe-se que, a nível social, o arguido tem uma imagem positiva, sendo desconhecidos os factos relativos aos presentes autos (facto provado n.º 56).
Tudo aponta, pois, para um juízo de prognose favorável
            Entendemos, portanto, que se justifica a suspensão da execução da pena, sendo certo que esta, tendo em consideração o disposto no n.º 3, do artigo 53.º, do Código Penal, tem de ser acompanhada de regime de prova, impondo-se, ainda, ao arguido, nos termos do artigo 52.º, do Código Penal, a obrigação de, durante o respectivo período, não ter, nem procurar ter, quaisquer contactos com D....       
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IV – DECISÃO:
Nestes termos, acordam os Juízes que constituem esta 5ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso, indo, em consequência, o arguido, A..., condenado, pela prática de quatro crimes de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, 172.º, n.º 1, 177.º, n.º 1, als. a) e b), 179.º, al. b), todos do Código Penal, nas penas parcelares 2 anos de prisão, 2 anos de prisão, 2 anos de prisão, 3 anos de prisão (correspondentes, respectivamente, a cada uma das datas atrás referidas), o que dá origem, ao abrigo do disposto no artigo 77.º, do Código Penal, à pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução é suspensa por igual período, com sujeição a regime de prova, assente em plano individual de readaptação a elaborar e executar pelo serviço do Instituto de Reinserção Social (IRS) da área da residência do arguido, com homologação e sob a orientação do Tribunal, em conformidade com o preceituado nos artigos 53.º e 54.º, ambos do Código Penal, e 494.º, do Código de Processo Penal, impondo-se, ainda, ao arguido a obrigação de, ao longo do referido período, não ter, nem procurar ter, quaisquer contactos com D....
Sem tributação.
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Coimbra, 21 de Maio de 2014
                                 
 (José Eduardo Martins - relator)

 (Maria José Nogueira - adjunta)