Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3949/12.4TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Data do Acordão: 01/21/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – 4.º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 8.º/3 E 2 DA CRP E REGULAMENTO CE N.º 44/2001
Legislação Comunitária: REGULAMENTO CE N.º 44/2001
Legislação Estrangeira: CONVENÇÃO DE BRUXELAS E ARTIGOS 2º E 5º/1 A) DA CONVENÇÃO DE LUGANO
Sumário: 1 - As questões de competência internacional, em matéria civil e comercial, entre pessoas domiciliadas no território dum Estado-Membro (ou dum Estado contratante, no caso da Convenção de Lugano), têm a sua solução, na generalidade dos casos, não no nosso Direito/Regime Interno mas no Direito Comunitário (Regulamento CE n.º 44/2001) e no Direito Internacional Público Convencional (Convenção de Bruxelas e Convenção de Lugano).

2 – Uma vez que tal Regulamento Comunitário e Convenções Internacionais prevalecem (cfr. art. 8.º/3 e 2 da CRP), dentro do seu âmbito material e espacial de aplicação, sobre o regime interno, significando tal aplicação prevalente que, se as regras comunitárias ou convencionais forem aplicáveis, não há lugar e fundamento para a aplicação do nosso direito comum (e que não se mantém uma aplicação de princípio do nosso direito comum, apenas excluído aqui ou ali pelas regras comunitárias ou convencionais).

3 - Assim, a um litígio que tem subjacente um contrato de prestação de serviços (mandato) ocorrido/“executado” em Portugal, entre 2002 e 2012, entre um português (mandatário), domiciliado em Portugal, e um dinamarquês, domiciliado na Suíça – dizendo respeito a pretensão deduzida ao efectivo cumprimento da obrigação de pagamento da retribuição em tal contrato de prestação de serviços – é exclusivamente aplicável, para apurar da competência internacional, a Convenção de Lugano.

4 - Convenção de Lugano que estabelece o critério geral de competência – a orientação clássica da competência dos tribunais do domicílio do réu (art. 2.º) – em termos “concorrentes”, prevendo também outros critérios especiais de competência (art 3.º/1), admitindo assim que pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante possam ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado contratante.

5 - Um desses critérios especiais é o do art. 5.º/1 a), que estebelece como critério de competência o lugar onde a obrigação em questão foi ou deva ser cumprida; acresecentando ainda, relativamente à venda de bens e à prestação de serviços, uma definição autónoma do lugar do cumprimento das obrigações contratuais; razão porque, em face de tal competência especial e de tal definição autónoma, são os nossos tribunais internacionalmente competentes para conhecer do litígio referido em III.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A... , advogado, com residência na Av.ª (...), em Viseu, intentou execução para pagamento de quantia certa – € 125.000,00 de capital, € 3.350,00 de juros vencidos e juros vincendos – contra B... , também advogado e que identificou como residente na mesma Av.ª (...), em Viseu.

Citado o executado (ao que se refere na sua residência na Suíça) e tendo o agente de execução procedido a várias diligências de penhora, designadamente à penhora dum crédito do executado, notificando o seu devedor, C..., com domicílio em (...), Espanha, veio este, recebida tal notificação, suscitar a nulidade da mesma.

Neste encadeamento, conclusos os autos, foi proferido despacho a mandar o exequente pronunciar-se sobre a competência internacional, após o que foi proferida decisão a julgar os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para a presente execução.

Inconformado com tal decisão, interpôs o exequente o presente recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue os tribunais portugueses internacionalmente competentes e que mande prosseguir a presente execução.

Não foi apresentada qualquer resposta.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de Facto

1 – No campo do requerimento executivo destinado aos factos o exequente alegou o seguinte:

O Exequente é Advogado e faz da advocacia a sua profissão exclusiva e lucrativa (…).

Foi nesse pressuposto, e com a finalidade do exercício profissional pelo Exequente, que o Executado, em Fevereiro de 2002 o contactou, designadamente no sentido de lhe prestar os serviços jurídicos necessários a toda a sua actividade em Portugal, propondo acções judiciais, acompanhado processos judiciais e outros, acompanhando-o e apoiando-o juridicamente em todos os seus investimentos e negócios (…)

E assim, desde aquela data, o Exequente fez, dando entrada de competentes acções judiciais, em diversos Tribunais Judiciais, acompanhando-o em todos os negócios e situações que exigiam a sua intervenção, analisando e redigindo contratos, peças jurídicas, intervindo nos mais diversos negócios do executado e em tudo em que este solicitava a sua intervenção. Isto desde a data atrás referida até meados de Novembro de 2012.

Acontece porém que, desde 2004, que o Executado, não obstante o trabalho e a intervenção do Exequente, nada pagou a este, seja a título de reembolso de despesas, seja a título de pagamento de honorários ou entrega de provisões.

Em 4 de Janeiro de 2012, após incontáveis tentativas, por correio electrónico, telemóvel e sms, para pagamento de vários pedidos de provisões solicitadas, pelo Exequente ao Executado, por conta de despesas, efectivamente dispendidas, e honorários, ainda devidos, em reunião pessoal entre ambos que teve lugar em Heiden, na Suíça, o Executado elaborou e ambos, Executado e Exequente, assinaram o documento com a designação de “Memo of Gentlemen’s Understanding”, “Memorando de Acordo de Cavalheiros”, com reconhecimento da assinatura do Executado, devedor, e que ora se junta como documento n.º 1 que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais, cuja tradução igualmente se junta como documento n.º 2, a qual igualmente aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais.

O Executado comprometeu-se assim a efectuar o pagamento do montante de 125.000,00 € por despesas, efectivamente, suportadas e serviços, efectivamente, prestados, até aquela data, pelo Exequente, sendo que 25.000,00 € seriam liquidados até final de Janeiro, início de Fevereiro de 2012 e o remanescente, pelo montante de 100.000,00 €, até à conclusão do processo que corre termos com o n.º 2652/10.4TBVIS do 3º Juízo Cível de Viseu e/ ou no decurso do supra referido "Projecto Chaves".

Por seu lado, o Exequente comprometeu-se a entregar, tão breve quanto possível, ao Executado cópias de documentação relevante, o que, de facto, o Exequente fez, pessoalmente e em mãos, na data da assinatura daquele Memorando (04.01.2012).

O Exequente aguardou até 27 de Setembro de 2012 pelo pagamento do montante de 25.000,00 €, o qual, até esta data, não foi efectuado. Na verdade, o Executado nada liquidou ao Exequente, fosse a que título fosse, mesmo após o "Projecto Chaves" ter sido, no decurso deste ano, definitivamente encerrado por total incapacidade e inércia do Executado ao longo destes 3 (três) últimos anos.

Naquela mesma data (27.09.2012), e após inúmeras tentativas de contacto com o Executado, o Exequente enviou aquele, Executado, a carta cuja cópia se junta como documento n.º 3, e aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais, e cuja tradução igualmente se junta como documento n.º 4 e igualmente aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais, e a que o executado não respondeu nem sequer comentou.

Tal como resulta daquele documento, deve assim o Executado ao Exequente, por ainda não ter pago, a quantia de € 125.000,00 €, cujo pagamento o Exequente ora expressamente reclama.

Por força da actividade que o Executado desenvolve no nosso País, o mesmo estabeleceu como seu domicílio, em Portugal, a morada que se indica neste requerimento executivo e igualmente consta do título executivo (Memorando), sendo este o papel profissional que o Executado utiliza no seu giro profissional, pelo que este é o tribunal competente para a presente acção nos termos do disposto no artigo 94, n.º 1, do CPC.

Nos termos do disposto no artigo 46, n.º 1, al. c), do C.P.C., a declaração, assinada pelo devedor, ora Executado, e inserida no Memorando que se junta como documento n.º 1, é título executivo.

2 – O “título” dado à execução está redigido em inglês e terá sido lavrado, como do mesmo consta, em “Heiden, 4/1-2012”.  

3 - Para se concluir e decidir pela incompetência internacional, expenderam-se, em termos factuais e de direito, os seguintes elementos, raciocínios e argumentos na decisão recorrida:

“ (…)

Veio A... instaurar execução contra B..., cidadão dinamarquês (…).

O executado reside habitualmente na Suíça.

O executado não tem bens em Portugal.

O título executivo é um documento particular de reconhecimento de dívida, celebrado na Suíça, a que subjaz a falta de pagamento de honorários e despesas devidas pelos serviços jurídicos prestados pelo exequente ao executado, também no âmbito de processos judiciais que correm termos nos tribunais portugueses.

Coloca-se a questão da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer e julgar a presente execução.

“A competência internacional designa a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras.” –Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, revista e actualizada, pag. 198.

De acordo com o disposto no artigo 61º do C.P.C. “Os tribunais portugueses têm competência internacional quando se verifique alguma das circunstâncias mencionadas no artigo 65º.”

Os factores de atribuição da competência internacional estão elencados neste art. 65º do C.P.C. Poder-se-á entender que a versão deste artigo aplicável ao presente caso é a anterior à modificação operada pela Lei nº52/2008 de 28/8, a qual se aplicaria apenas às comarcas piloto referidas no nº1 do art. 171º desta lei, entre as quais não consta a comarca de Viseu.

Assim, os tribunais portugueses serão competentes quando ocorra qualquer uma das circunstâncias previstas no nº1 deste artigo (de a) a d), isto para além dos casos em que os tribunais são exclusivamente competentes de acordo com o disposto no art. 65º-A.

Não existe, contudo, nenhuma norma que, especificamente, determine a competência internacional no que às execuções diz respeito. Daí que não seja despiciendo averiguar se os critérios definidores da atribuição da competência internacional aos tribunais portugueses do artigo 65º são aplicáveis às acções executivas e, em particular, aquelas em que o executado não tem bens situados em território nacional.

Nesta matéria, defende Anselmo de Castro in A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3ª edição, pag. 66 a 68 que é inadequada a aplicação directa, subsidiária ou por analogia das regras contidas no art. 65º à acção executiva, já que conduziria a resultados de nulo efeito prático. Assim, conclui que se deverá “reconhecer competência internacional aos tribunais portugueses sempre e só quando a execução deva correr sobre bens sitos em Portugal.” No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in Acção Executiva Singular, pag. 124-125, colocando o acento tónico no principio da territorialidade. Com efeito, se cada Estado tem o monopólio das medidas coactivas efectuadas no seu território, então é necessário que exista um factor de conexão que permita aos tribunais nacionais realizarem coactivamente a prestação exequenda. Convoca o nº3 do art. 94º do C.P.C. para sustentar que, de facto, a competência internacional dos tribunais portugueses tem que resultar de um factor atributivo de competência que permita a viabilidade da execução.

No nosso caso, o executado é cidadão dinamarquês, reside na Suíça e não tem bens penhoráveis em Portugal, conforme reconhece o exequente. Não existe, portanto, qualquer factor de conexão com a jurisdição portuguesa que permita que a execução venha a atingir a sua finalidade, ou seja, a realização coactiva da prestação do executado (pagamento da quantia exequenda). Logo o tribunal é internacionalmente incompetente.

A questão é mais simples para quem entenda que se aplica a actual redacção do art. 65º (introduzida pela Lei nº52/2008). Neste caso são só dois os factos de conexão: o da alínea b) e o da alínea d) do nº1 desse artigo.

O factor de conexão da alínea b) remete para as regras de competência territorial interna. Se de acordo com estas regras, a execução devesse ser proposta em Portugal, os tribunais portugueses serão territorialmente competentes. No caso, o executado é uma pessoa singular e a execução destina-se ao pagamento de quantia certa. De acordo com o disposto no nº1 e 2 do art. 94º do C.P.C., é competente para a execução o tribunal do domicílio do executado. Este, como já se disse, reside na Suíça, sendo que não tem bens em Portugal, o que inviabiliza a aplicação do disposto nº3 do art. 94º. Logo, a execução, de acordo com as regras de competência territorial interna, não poderia ser proposta em Portugal. Não se verifica, portanto, o factor de conexão previsto na al. b) do art. 65º.

O factor de conexão da alínea d) que estabelece a competência internacional dos tribunais portugueses quando a única possibilidade de tornar efectivo o direito seja através de acção proposta em Portugal, desde que exista entre o objecto do litígio e a ordem portuguesa um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real. No nosso caso, este factor não se verifica já que, uma vez que o executado não tem bens em Portugal, a execução proposta não é o único, nem o melhor meio, de o exequente cobrar o seu crédito.

Concluímos, portanto, que os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para a presente execução, pois não existe qualquer factor de conexão que lhes atribua tal competência.

A incompetência em razão da nacionalidade é uma excepção dilatória que determina a absolvição da instância (art. 288º, nº1, al. a) e 494º, al. a) do C.P.C.)

Nesta conformidade, e pelo exposto, o tribunal decide:

- Julgar o tribunal internacionalmente incompetente para apreciar e julgar a presente execução.

- Absolver o executado da instância.

(…) “


*

III – Fundamentação de Direito

Está tão só em causa na presente apelação, como resulta do relatório inicial, a questão da competência internacional; questão em que, antecipando a conclusão, assiste razão ao exequente/apelante, embora por razões jurídicas bem diversas daquelas que invoca.

Efectivamente, a solução do caso – da questão da competência internacional – não está, ao contrário do invocado na decisão recorrida e na alegação recursiva, nas normas do nosso CPC respeitantes à competência internacional.

Hoje em dia – e o “hoje em dia” já se iniciou em 01/07/1992, com a entrada em vigor em Portugal das Convenções de Bruxelas e de Lugano – a generalidade das questões de competência internacional, em matéria civil e comercial[1], entre pessoas domiciliadas no território dum Estado-Membro (ou dum Estado contratante, no caso da Convenção de Lugano), encontram a sua solução não no nosso Direito/Regime Interno mas no Direito Comunitário (Regulamento CE n.º 44/2001, normalmente designado como Regulamento em matéria civil e comercial ou somente Regulamento Bruxelas 1[2]) e no Direito Internacional Público Convencional (Convenção de Bruxelas[3] e Convenção de Lugano[4])[5].

Expliquemo-nos:

Hoje em dia, perante um problema de competência internacional, a primeira questão, a primeira tarefa a enfrentar, é a de determinar qual o direito aplicável à resolução da questão da competência internacional; dito de outro modo, a primeira tarefa a enfrentar é a de determinar se são aplicáveis normas de direito comunitário ou convencional, uma vez que, em caso afirmativo, tais normas prevalecem em relação às normas do nosso CPC respeitantes à competência internacional.

Efectivamente, é pacífico que as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial; assim como é pacífico que os regulamentos, sendo direito comunitário, têm aplicação directa nos Estados-Membros (nos termos do actual art. 288.º do Tratado); prevalecendo ambos – convenções e regulamentos – dentro do seu âmbito material e espacial de aplicação, sobre o regime interno, como decorre da norma constitucional de recepção (art. 8.º/3 e 2 da CRP), de que resulta a superioridade hierárquica do regulamento comunitário sobre a lei ordinária e a prevalência das convenções (de Bruxelas e Lugano) sobre o direito interno.

Significando tal aplicação prevalente que, se as regras comunitárias ou convencionais forem aplicáveis, não há lugar e fundamento para a aplicação do nosso direito comum (a menos que as regras comunitárias ou convencionais admitam a sua aplicação, e, ainda aí, sempre com os limites por elas impostos); e não que se mantém uma aplicação de princípio do nosso direito comum, apenas excluído aqui ou ali pelas regras comunitárias ou convencionais.

Evidentemente – é um pressuposto dum problema de competência internacional – temos que estar perante um litígio emergente de relações transnacionais; ou seja, é necessário que o objecto do litígio apresente, pelo menos, um elemento de estraneidade juridicamente relevante (caso contrário, não se suscitará um problema de competência internacional), no que o domicílio de uma das partes fora do Estado do foro constitui um elemento de estraneidade particularmente relevante.

É este, admite-se[6], o caso do litígio dos autos/recurso: o executado reside na Suíça e o título particular dado à execução terá sido outorgado também na Suíça.

Litígio que, segundo o alegado pelo exequente/recorrente, tem subjacente um contrato de prestação de serviços (mandato) ocorrido/“executado” em Portugal, entre 2002 e 2012, entre um português (mandatário), domiciliado em Portugal, e um dinamarquês, domiciliado na Suíça; dizendo respeito a pretensão deduzida ao efectivo cumprimento da obrigação de pagamento da retribuição em tal contrato de prestação de serviços.

Sendo assim, sendo estes os termos do litígio, tendo as partes domicílio em dois diferentes Estados contratantes da Convenção de Lugano (Portugal e Suíça) e não sendo o executado a ter domicílio num Estado Membro da União Europeia (mas sim na Suíça), é ao caso aplicável a Convenção de Lugano[7], o mesmo é dizer, a questão da incompetência internacional deve ser resolvida no quadro regulador de tal Convenção de Lugano; e apenas em tal quadro, uma vez que a aplicabilidade de tal Convenção afecta/preclude sempre a aplicação do Código de Processo Civil[8].
Convenção de Lugano que estabelece como critério geral de competência (art. 2º) a orientação clássica da competência dos tribunais do domicílio do réu, o que, no caso, sendo o executado domiciliado na Suíça, parece implicar serem os Tribunais Suíços os internacionalmente competentes para julgar o presente litígio.

Sucede, porém, que não se fica por aqui – por tal critério geral de competência – a Convenção de Lugano, prevendo também critérios especiais de competência, admitindo (cfr. art 3.º/1) que as pessoas domiciliadas no território de um Estado contratante (no caso, o executado) possam ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado contratante “por força das regras enunciadas nas secções II a VI do presente título”.

O que significa que a competência (do domicílio do réu) que do artigo 2.° da Convenção de Lugano resulta não é exclusiva, mas concorrente com a de outros tribunais; competência esta – de outros tribunais – que, insiste-se, encontra o seu único fundamento na Convenção de Lugano (e não em qualquer regra do CPC), designadamente, nos critérios especiais de competência estabelecidos na Secção 2 do Título II da Convenção.

E é justamente dum destes critérios especiais que resulta a competência internacional dos tribunais portugueses para o presente litígio.

Efectivamente, entre tais critérios especiais, estabelece-se, no art. 5.º/1 a) da Convenção de Lugano, como critério de competência o lugar onde a obrigação em questão foi ou deva ser cumprida.

“Entendeu-se que o foro do lugar do cumprimento da obrigação não só está bem colocado para a condução do processo como também é aquele que, em regra, apresenta a conexão mais estreita com o litígio. Uma vez que oferece ao autor um alternativa ao foro do domicílio do réu, esse critério de competência contribui para um equilíbrio entre os interesses do autor e os do réu[9]. Sendo a “obrigação relevante para o estabelecimento da competência a que serve de base à acção judicial. Tratando-se de uma pretensão de cumprimento de uma obrigação, serão competentes os tribunais do Estado onde a obrigação deve ser cumprida; tratando-se duma pretensão indemnizatória por incumprimento da obrigação, serão competentes os tribunais do Estado onde a obrigação deveria ter sido cumprida. (…). Se a obrigação já foi cumprida é competente o tribunal do lugar do cumprimento efectivo, mesmo que não corresponda ao lugar onde a obrigação devia ser cumprida (…)[10].

Lugar do cumprimento da obrigação que, em princípio, é determinado segundo as “normas de conflitos” do foro (no nosso caso, art. 25.º e ss. do C. Civil), mas em que, relativamente à venda de bens e à prestação de serviços, a convenção introduz uma definição autónoma do lugar do cumprimento das obrigações contratuais; dispondo no art. 5.º/1/b) da Convenção de Lugano[11]:

“ (…) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:

— no caso da venda de bens, o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,

— no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;

O que significa que, na venda de bens, só releva o lugar de cumprimento da obrigação de entrega e, na prestação de serviços, o lugar do cumprimento da obrigação do prestador de serviços; sendo irrelevante o lugar do pagamento do preço dos bens ou dos serviços, mesmo que o pedido se fundamente nessa obrigação.

Enfim, concluindo, estando-se nos autos/recurso perante um litígio emergente dum contrato de “prestação de serviços” – conceito que deve ser interpretado de acordo com o art. 5.º/1 da Convenção de Roma (sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais), abrangendo a realização em benefício da outra parte, de uma actividade não subordinada de qualquer natureza, incluindo a actividade realizada no interesse de outrem – decorre de tal competência especial, estabelecida no art. 5.º/1/b) da Convenção de Lugano, que uma pessoa domiciliada na Suíça pode ser demandada noutro Estado vinculado, desde que esse outro Estado seja aquele onde os serviços foram ou devem ser prestados.

É justamente o caso de Portugal, Estado vinculado onde os serviços invocados pelo exequente[12] foram prestados ao executado; Estado que por esta razão – e não pelas invocadas pelo apelante (cfr. indicação das normas jurídicas violadas) na alegação recursiva – é internacionalmente competente para o presente litígio[13].


*

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que se substitui por decisão em que se declara o tribunal internacionalmente competente e em que se ordena que a execução prossiga os seus termos.

Sem custas.


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Coimbra, 21/01/2014

 (Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

(Emídio Santos)



[1] Estão excluídas as matérias referidas no art. 1.º/2 quer do Regulamento Bruxelas quer das Convenções de Bruxelas e Lugano.

[2] Regulamento de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, entrado em vigor em 01/03/2002; que substituiu, com excepção para a Dinamarca, a Convenção de Bruxelas de 1968.

[3] Convenção relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, assinada em 27 de Setembro de 1968; ratificada por todos os então Estados-membros (nos termos do seu artigo 62.º) e entrada, em vigor em 1 de Fevereiro de 1973; alterada por diversas convenções de adesão e entrada em vigor em Portugal, em 01/07/1992 (após as devidas ratificações e depósito), pela Convenção de San Sebastian de 1989; substituída, com a ressalva da Dinamarca, pelo referido Regulamento Bruxelas 1.

[4] Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, de 16 de Setembro de 1988, que alarga a aplicação das disposições da Convenção de Bruxelas de 1968 a alguns Estados membros da Associação Europeia de Comércio Livre; em vigor em Portugal desde 01/07/92, na Dinamarca desde 01/03/1996 e na Suíça desde 01/01/1992.

[5] De tal maneira que a reforma processual de 2003 (DL 38/2003, de 08-03) – porventura para chamar a atenção para a limitada aplicação do CPC – alterou o corpo dos art. 65.º e 65.º-A do CPC, passando a incluir, antes da expressão “competência dos tribunais portugueses”, a seguinte enunciação: “sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais”.
[6] Dizemos “admite-se”, uma vez que o executado, embora dado como residente em Viseu, foi, segundo se diz, citado no seu domicílio na Suíça.

[7] Convenção de Lugano, de 16 de Setembro de 1988, relativa, como já se referiu, à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, celebrada entre os Estados-Membros da Comunidade Europeia e os Estados da EFTA; que alarga a aplicação das disposições da Convenção de Bruxelas de 1968 a alguns Estados membros da Associação Europeia de Comércio Livre (hoje, além dos Estados comunitários, a Islândia, a Noruega e a Suíça); que se aplica, em matéria de competência, quando o demandado se encontra domiciliado no território dum Estado contratante que não seja membro das Comunidades Europeias; que foi objecto de publicação oficial em 1991, vinculando o Estado Português desde 1-7-1992 (cfr. Resolução da AR n.º 33/91, de 30/10; ratificada pelo Dec. PR n.º 51/91, da mesma data; e com depósito do instrumento de ratificação em 14/04/92); e que vigora assim na nossa ordem interna desde 1-7-1992.

[8] Cfr, R. M. Ramos, in RLJ, ano 130º, p. 176 e ss, maxime, p. 181, a propósito da Convenção de Bruxelas (com idêntico conteúdo à de Lugano e que apenas se separava desta – também designada, justamente por tal razão, por “Convenção Paralela de Lugano” – nas partes contratantes).

[9] Luís de Lima Pinheiro, DIP, Vol. III, pág. 81, a propósito da Regulamento de Bruxelas 1; Regulamento de Bruxelas 1, Convenção de Bruxelas e Convenção de Lugano que têm normas de competência exactamente iguais; aliás, até os preceitos de tais instrumentos legais são os mesmos em todos eles: arts. 2.º, 3.º e 5.º.
[10] Luís de Lima Pinheiro, obra e local citados, pág. 82/3.
[11] Disposição exactamente igual ao art. 5.º/1/b) do Regulamento Bruxelas 1 (com a diferença, naturalmente, de, em vez de “Estado vinculado”, se aludir a “Estado-Membro”).
[12] Munido dum documento particular, assinado pelo executado, de reconhecimento de obrigação pecuniária.

[13] Litígio que, embora de natureza executiva, não tem por base uma “decisão” com o sentido e entendimento dado pelo art. 32.º da Convenção de Lugano, sendo-lhe assim inaplicável o que na Convenção se dispõe nos art. 33.º e ss. Litígio em que a sua eventual inutilidade prática – decorrente de não se encontrarem bens penhoráveis em Portugal – não releva para a questão da competência internacional à luz da direito aplicável (Convenção de Lugano).