Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
910/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: DESPEJO
ARRENDAMENTO
PAGAMENTO
DEPÓSITO DA RENDA
SUB-ARRENDAMENTO
MORA
Data do Acordão: 05/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.039.º; 1041.º; 1048.º DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 64.º, N.º 1, A) DO RAU;
Sumário: 1. Constituindo o domicílio do locatário, à data do vencimento, o lugar supletivo do pagamento da renda, a possibilidade legal do afastamento deste regime, quer por acordo das partes, quer pelos usos, não significa que estes possam derrogar a estipulação das partes, na hipótese de essa ter sido a via encontrada pelas mesmas para se subtraírem aquele local, ou, dito de outro modo, não integra um uso que altere esse regime, a pratica seguida pelo senhorio de mandar receber a renda em casa do inquilino.
2. Não reagindo a autora, no articulado da resposta à contestação, notificada desta e do documento de depósito da renda, impugnando a exactidão do respectivo valor, considera-se extinta a obrigação do pagamento da renda, caducando, consequentemente, o direito da autora á resolução do contrato, com o fundamento na falta do seu pagamento.

3. Não tendo o réu demonstrado a autorização da autora para o subarrendamento, empréstimo ou cessão da posição jurídica, ou a sua comunicação aquela de um eventual trespasse ou cessão da exploração de estabelecimento, porque permitidos sem dependência da autorização do senhorio, não se verificam quaisquer factos impeditivos do direito à resolução do contrato exercitado pela autora.

4. Demonstrando-se ser imputável ao réu a mora na contraprestação do pagamento da renda, e não tendo a acção procedido com fundamento na falta do pagamento da renda, caberá à autora o levantamento da totalidade da quantia depositada, incluindo da indemnização de 50 %, que aquele era exigível para a fazer cessar.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A... propôs a presente acção declarativa, com processo sumário, contra B..., ambos residentes na Rua Nª Senhora das Dores, Boa Vista, em Leiria, pedindo que, na sua procedência, se declare resolvido o contrato de arrendamento e que o réu seja condenado a despejar, imediatamente, o imóvel arrendado, devendo o réu ou quem o ocupar deixá-lo, livre e desocupado, condenando-se ainda o mesmo a pagar à autora as rendas vencidas, relativas aos meses de Maio, Junho, Julho e Agosto de 2003, inclusive, no montante de 1.521,56 €, e as vincendas, até efectivo despejo, e bem assim como os respectivos juros, à taxa legal, desde a data do vencimento de cada uma das rendas em dívida e até efectivo pagamento, alegando, para o efeito, e, em síntese, que é usufrutuária do prédio urbano infradiscriminado, dado de arrendamento ao réu, pelo falecido marido da autora, para o exercício da actividade de serralharia, por contrato particular escrito, celebrado em 1 de Janeiro de 1990, pelo prazo de um ano, renovável por iguais períodos de tempo, segundo a renda mensal de 380,39 €, a pagar até ao oitavo dia do mês a que dissesse respeito.
Porém, o réu não pagou as rendas referentes aos meses de Maio, Junho, Julho e Agosto de 2003, no total de 1.521,56 €.
Por outro lado, desde há cerca de dois anos que o réu deixou de exercer, no local, a actividade de serralharia, cedendo ou emprestando o imóvel arrendado à sociedade “C...”, que aí tem exercido a actividade de comércio geral a retalho, vendendo adubos, rações, tecidos, brinquedos, entre outros produtos, e onde explora até um pequeno café, sem o consentimento da autora.
Na contestação, o réu alega que, em Maio de 2003, a autora dirigiu-se às instalações da sociedade “C...”, para receber a renda, tendo-lhe o réu e sócio-gerente daquela pedido para reparar o telhado, por chover dentro do locado, mas ausentando-se a autora sem receber a renda que lhe foi oferecida, dizendo-lhe que, daí em diante, só o faria se ele a pagasse em sua casa, pelo que o réu jamais a pagou, o que fez agora, através do depósito das rendas em dívida, acrescido de 50% de indemnização legal.
Acresce que, continua o réu, foi com autorização e consentimento do falecido marido da autora, que aquele constituiu uma sociedade, para diversificar a actividade no interior do locado, como aconteceu com as sociedades “D...”, “E...” e “C...”, que já tiveram no locado a sua sede, de todas o réu sendo sócio, como era do conhecimento da autora, desde 1993, sem qualquer oposição desta.
Finalmente, também foi com o consentimento e autorização do falecido marido da autora que o réu passou a exercer outras actividades, no locado, para além da serralharia, que continua a explorar.
Na resposta à contestação, a autora alega que o local acordado para o pagamento das rendas era a residência do senhorio, sendo que o falecido marido da autora ou ela, só quando o réu estava em atraso com esse pagamento, é que deslocavam ao locado para as receber.
Que só soube da existência das sociedades “D...” e “E...”, quando foi notificada da contestação, e que a “C...” exercia a sua actividade, no locado, em 16 de Julho de 2003.
A sentença julgou a presente acção, parcialmente, procedente por provada e, em consequência, decretou a resolução do contrato de arrendamento e condenou o réu a despejar, imediatamente, o imóvel arrendado, devendo o mesmo ou quem o ocupa, deixá-lo, livre e desocupado, e nesse estado o entregar à autora, absolvendo o réu do demais peticionado, mas reconhecendo-lhe o direito ao levantamento, e a fazer sua, a quantia de 808,32 €, depositada à ordem do Tribunal, relativa à indemnização a que alude o artigo 1041º, do Código Civil.
Desta sentença, autora e réu interpuseram recurso de apelação, o deste principal e o daquela subordinado, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A AUTORA:

1ª - É matéria assente que a renda em vigor à data do depósito era de 380,39 € por mês.
2ª - O recorrido efectuou o depósito das rendas em falta à razão de 323,33 € por mês.
3ª - Nos termos do artigo 1048º do CC, o direito à resolução do contrato de arrendamento por falta do pagamento das rendas apenas caduca se, até à contestação, o locatário pagar ou depositar a soma devida e respectiva indemnização.
4ª - O recorrido apenas depositou parte das rendas em falta, tendo ficado por depositar a quantia de 42,36 €, não se encontrando por isso depositadas as rendas em falta.
5ª - Não caducou o direito do recorrente à resolução do contrato e, por conseguinte, deveria ter sido decretado o despejo imediato.
6ª - Tendo ficado acordado que o local de pagamento das rendas era a residência do senhorio, e tendo ficado provado que tem sido sempre o senhorio quem ia ao locado receber as respectivas rendas, tal facto não permite concluir a revogação da obrigação do inquilino de pagar as rendas em casa do senhorio; tal facto pode justificar-se pela eventualidade de o réu deixar de cumprir pontualmente a sua obrigação.
7ª - Na decisão recorrida não se fez correcta interpretação e aplicação do disposto no artigo 1048º do CC e artigo 64º, nº 1, a) do RAU.

O RÉU:

1ª - O local do pagamento da renda não é obrigatoriamente a morada do senhorio.
2a- Nem o facto de se ter convencionado por escrito que tal local é a morada do senhorio significa que as partes não possam mudar esse local, por acordo.
3a- Sobretudo quando é o próprio senhorio a prescindir desse beneficio e a dirigir-se ao locado para receber a renda, fazendo-o habitualmente.
4a- Já que a lei considera violação de dever contido na alínea a) do n° 1 do artigo 64º do RAU se o pagamento da renda não for efectuado no local próprio.
5a- Ora local próprio deve entender-se, no caso presente, o locado.
6a- O mesmo artigo na alínea f) apenas considera fundamento de despejo... a cedência da posição contratual... nos casos em que ela seja ilícita.
7a- A transmissão de estabelecimento comercial acompanhada do direito ao arrendamento, seja por trespasse, por doação, por sucessão ou por outra forma legítima de transmissão, não constitui acto ilícito.
8a- A constituição de uma sociedade à qual se transmite, in totum, esse estabelecimento é, pois acto que não viola o disposto na alínea f) do n°1 do artigo 64° do RAU.
9a- A invocação de que no local se passou a exercer actividade diferente da contratada constitui prova a fazer pelo autor da acção de despejo.
10a- De facto tal exercício é causa de pedir ou fundamento de pedido de despejo (art° 342 n°1 do CC).
11a- Todavia a autora não logrou o seu propósito: de facto uma coisa é garantir que se não exerce aquela actividade porque se tenha constatado esse facto, outra diferente é admitir-se que se " não vai dentro do locado" ou que tal actividade pode estar a ser executada " lá para trás", ou que se não vê o inquilino " enfarruscado", "sujo" ou que se "não ouvem ruídos".
12a- Tanto mais que se fez prova de que, embora a procura de artigos de serralheiro encomendados por medida, tenha rareado, ainda se pratica essa actividade no local, ainda lá estão as máquinas necessárias a funcionar e ainda se vêem materiais necessários a tal exercício.
13a.- Por outro lado a venda de ferragens deve ser considerada actividade conexa com a de serralharia (embora as tarefas sejam agora menos, parece correcto afirmar-se que a instalação de produtos em ferro mesmo que executados por outras grandes empresas, as afinações, os acabamentos, a instalação constituem actos próprios de serralheiro que o réu ainda leva a cabo).
14a.- Parece, por isso que se não verifica a violação da alínea b) do n°1 do referido artigo, v.g. comentário a esta alínea, Aragão Seia, com referência a vários acórdão e à doutrina do Prof. Antunes Varela, in Rev. dos Tribunais e Dr. Lobo Xavier in Rev. Leg. Jur..
15o- Violou, assim, a douta decisão de que ora se recorre o disposto nas mencionadas alíneas do artigo 64° do RAU e ainda existe erro notório na apreciação da prova que deveria ter conduzido à absolvição do réu e não à sua condenação - artigos 668° n° 1, d), 1a parte, 690°-A, n°s 1 e 2 e sendo outrossim a decisão também nesse aspecto modificável por recurso ao artigo 712° do CPC, b), do n° 1.
A autora apresentou contra-alegações, concluindo no sentido da improcedência do recurso interposto pelo réu.

*

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objecto de ambos os recursos, considerando que o «thema decidendum» dos mesmos é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I - A questão da alteração da decisão sobre a matéria de facto.
II – A questão do lugar do pagamento da renda.
III – A questão da caducidade do direito à resolução do contrato.

I

DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Defende o réu que existe erro notório na apreciação da prova que deveria ter conduzido à absolvição e não à sua condenação.
Porém, o réu limita-se a invocar a discordância entre a prova que ficou consagrada e aquela que foi produzida em audiência, sem indicar, explicitamente, quais os concretos pontos da matéria de facto que considera, incorrectamente, julgados, e qual o preciso sentido de orientação que os mesmos deveriam ter conhecido, nos termos do estipulado pelo artigo 690º-A, nºs 1, a) e b) e 2, do CPC, muito embora refira os concretos meios probatórios constantes da gravação, isto é, os depoimentos em que se funda e que imporiam, na sua óptica, decisão diversa da recorrida, em relação aqueles pontos não concretizados da matéria de facto, sendo certo que do teor das respectivas conclusões alegatórias, interligadas com o corpo das mesmas não é, apesar de tudo, possível considerar quais os pontos concretos da base instrutória que aquele pretende ver alterados e o correspondente sentido de orientação que defende.
Assim sendo, atendendo ao normativo legal acabado de mencionar, inexiste fundamento legal para determinar a pretendida alteração sobre a decisão da matéria de facto.
Como assim, este Tribunal da Relação entende que se devem considerar como demonstrados os seguintes factos:
A autora é usufrutuária do prédio urbano, composto de casa de rés do chão amplo para comércio, sito em Boa Vista, concelho de Leiria, a confrontar do Norte com Domingos de Jesus, a Nascente com a autora, a Sul com Carlos dos Santos Silva e a Poente com Estrada Nacional, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 287º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria, sob o nº 58 397 – A).
A autora e o seu falecido marido José Ferreira, ao doarem o supra referido imóvel, reservaram para si o usufruto, até à morte do último – B).
José Ferreira faleceu, a 8 de Abril de 2003 – C).
O referido usufruto está, definitivamente, registado a favor da autora – D).
Por contrato de 1 de Outubro de 1990, o falecido marido da autora deu o prédio, a que se alude em A), de arrendamento ao réu, para o exercício da actividade de serralharia – E).
O prazo de tal contrato de arrendamento foi de um ano, com inicio em 1 de Outubro de 1990, sendo renovável, por iguais períodos de tempo, se não fosse denunciado por uma das partes dentro dos trâmites legais – F).
A renda, actualmente, em vigor é de 380,39 e deve ser paga, até ao oitavo dia do mês a que respeitar, sendo certo que, nos termos de tal contrato, devia a mesma ser paga no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito e na residência do senhorio ou a quem ele indicar – G).
Actualmente, no locado, exerce a sua actividade de comércio geral a retalho, a sociedade “C...”, de que o réu é sócio-gerente, vendendo aí adubos, rações, brinquedos, ferragens e alimentos para cães e gatos, explorando ainda aí um pequeno café/bar de aldeia – H).
Antes da sociedade “C...”, também, exerceram as suas actividades, no locado, as sociedades “D...” e “E...”, de que o réu era, também, sócio – I).
Em 6 de Outubro de 2003, o réu depositou, na CGD, à ordem destes autos, a quantia de 2.748,30, €, correspondente às rendas do locado dos meses de Maio a Setembro de 2003, acrescidas de 50% - J).
O réu deixou de exercer no locado, desde há cerca de dois anos, a actividade de serralharia – 1º.
A autora, desde 16 de Julho de 2003, tem em seu poder o documento junto a folhas 33 dos autos, de onde resulta que quem exercia, à ocasião, o comércio no locado era “C...” – 2º.
A autora e o seu falecido marido sempre passaram os recibos da renda de tal locado, em nome do réu – 4º.
O réu passou, em Abril de 2003, em seu próprio nome, a declaração de retenção na fonte do IRS, respeitante às rendas do locado do ano de 2002 – 5º.
Tem sido sempre a autora e, anteriormente, era o seu falecido marido quem ia ao locado receber as respectivas rendas – 7º.
Em Maio de 2003, quando a autora se dirigiu ao locado para receber a respectiva renda, o réu pediu-lhe para reparar o telhado, dado chover no seu interior – 8º.
A autora enervou-se e exaltou-se tanto com o pedido do réu que se foi embora a barafustar e nem sequer levou consigo a renda que o réu lhe ofereceu em pagamento – 9º.
Daí em diante, a autora nunca mais apareceu no locado para receber as rendas do mesmo –10º.

II

DO LUGAR DO PAGAMENTO DA RENDA

Dispõe o artigo 1039º, nº 1, do Código Civil (CC), que ”o pagamento de renda ou aluguer deve ser efectuado no último dia de vigência do contrato ou do período a que respeita, e no domicílio do locatário à data do vencimento, se as partes ou os usos não fixarem outro regime”.
Com efeito, resulta da prova produzida que, nos termos contratuais celebrados entre as partes, a renda devia ser paga, no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito e na residência do senhorio ou a quem ele indicar.
Porém, sem embargo do clausulado contratual, também ficou demonstrado que era sempre a autora e, anteriormente, o seu falecido marido quem se deslocava ao locado, onde recebia as respectivas rendas, até que, em Maio de 2003, quando a autora se dirigiu ao arrendado, para o efeito, o réu pediu-lhe para reparar o telhado, dado chover no seu interior, facto este que a exaltou, a ponto de nem sequer levar consigo a renda que o réu lhe ofereceu em pagamento, e jamais aquela, daí em diante, ter aparecido no locado para receber as rendas do mesmo.
Assim sendo, considerando que as partes acordaram, por escrito, que a renda seria paga, na residência do senhorio ou a quem ele indicar, também é um facto incontroverso que, desde sempre, até Maio de 2003, era este quem se deslocava ao locado, onde recebia as respectivas rendas.
Contudo, não obstante, não é adequado argumentar que a estipulação contratual cedeu o seu espaço a um regime ditado pelos usos que as próprias partes estabeleceram pela sua pratica continuada, considerando letra morta o acordo firmado por escrito.
Com efeito, a este propósito, dispondo o artigo 1039º, nº 1, do CC, sobre o lugar do pagamento da renda, ou seja, o domicílio do locatário, à data do vencimento, consagrou a possibilidade do afastamento desse regime supletivo, quer por acordo das partes, quer pelos usos, mas não que estes possam derrogar a estipulação das partes, na hipótese de essa ter sido a via encontrada pelas mesmas para se subtraírem aquele regime, ou, dito de outro modo, não integra um uso que altere esse regime a pratica seguida pelo senhorio de mandar receber a renda, em casa do inquilino RP, de 9-10-97, CJ, Ano XXII, T4, 217; RE, de 14-12-78, BMJ nº 285, 384; RP, de 12-10-77, BMJ nº 272, 250; RC, de 3-4-68, JR, 14º, 287; e RT, 87º, 125..
Ora, sendo obrigação do locatário proceder ao pagamento da renda, contratualmente, estipulada, no momento e lugar próprios, como decorre do preceituado pelos artigos 1038º, a), do CC, e 64º, nº 1, a), do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), não tendo o réu pago à autora as rendas do locado, relativas aos meses de Maio a Setembro de 2003, constituiu-se em mora, sendo-lhe imputável essa falta de pagamento, no tempo e lugar próprios, porquanto lhe cabia a prova da ausência de culpa, que não elidiu, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 804º, nº 2, 805º, nºs 1 e 2, a), 798º, 799º e 342º, nº 2, todos do CC.
E só quanto tal suceda, isto é, quando o arrendatário, sem culpa sua, não puder efectuar, pontualmente, a prestação ou não a puder realizar, por motivo relativo à pessoa do senhorio ou quando este se encontre em mora, pode depositar as rendas, sendo o depósito, sempre, facultativo, em conformidade com o estatuído pelos artigos 1048º, do CC, e 22º, nºs 1 e 2, do RAU.
Porém, não se verificando, na hipótese em apreço, os pressupostos da consignação em depósito, a que alude o artigo 841º, do CC, pese embora a invocação pelo réu da «mora creditoris», aliás, não demonstrada, sendo antes o réu que se constituiu em mora, podia evitar a resolução do contrato e fazer cessar a mora, pagando ou depositando as somas devidas e a correspondente indemnização de 50%, até à contestação da acção de despejo que tenha por fundamento a falta de pagamento da renda, nos termos das disposições combinadas dos artigos 1048º e 1041º, do CC, e 22º, nº 2, do RAU.
Diz a autora que não caducou o seu direito à resolução do contrato, uma vez que o réu apenas depositou parte das rendas em falta, tendo ficado por depositar a quantia de 42,36 €, não se encontrando, por isso, depositadas as rendas em falta, razão pela qual deveria ter sido decretado o despejo imediato.
Da alínea J) dos “factos assentes”, consta que “em 6 de Outubro de 2003, o réu depositou na CGD à ordem destes autos, a quantia de 2.748,30, €, correspondente às rendas do locado dos meses de Maio a Setembro de 2003, acrescidas de 50% “.
Ora, sendo a renda mensal em vigor de 380,39 €, as somas em dívida correspondentes a cinco meses, acrescidas da indemnização de 50%, atingiram o valor de 2852.92€ (380,39 x 5 = 1901,95 x 50% = 950.97 + 1901,95 = 2852.92 €), enquanto que a quantia depositada foi, apenas, de 2.748,30 €, ou seja, inferior em 104,62 € ao quantitativo da renda em vigor (2852.92 - 2.748,30 = 104,62).
Assim sendo, ficaram por depositar, não 42,36 €, como diz a autora, mas antes 104,62 €.
De todo o modo, independentemente da exactidão material daquele montante, a autora, na resposta à contestação, notificada desta e bem assim como do documento de depósito, na Caixa Geral de Depósitos, não impugnou o respectivo valor, em conformidade com o preceituado pelos artigos 24º, nº 2 e 26, nº 2, 2ª parte, do RAU.
E, não reagindo a autora, no articulado da resposta à contestação, quanto à exactidão do referido valor, considera-se extinta a obrigação do pagamento da renda, nos termos das disposições concertadas dos artigos 26º, nº 2, 2ª parte, do RAU, 1026º, nº 1 e 490º, nºs 1 e 2, do CPC, caducando, consequentemente, o direito da autora á resolução do contrato de arrendamento, com fundamento na falta de pagamento da renda.

III

DA UTILIZAÇÃO CONVENCIONAL DO LOCADO

Sustenta o réu que a transmissão de estabelecimento comercial, acompanhada do direito ao arrendamento, seja por trespasse, doação, sucessão ou outra forma legítima de transmissão, não constitui acto ilícito e, portanto, não viola o disposto na alínea f), do n°1, do artigo 64°, do RAU.
Revertendo ao caso em apreço, importa reter que, destinando-se o arrendado, convencionalmente, ao exercício da actividade de serralharia do réu, este deixou de nele a desempenhar, desde há cerca de dois anos, encontrando-se o mesmo, actualmente, afecto ao comércio geral a retalho, a cargo da sociedade “C...”, de que o réu é sócio-gerente, aí se vendendo agora adubos, rações, brinquedos, ferragens e alimentos para cães e gatos, e explorando um pequeno café/bar de aldeia.
Aliás, antes da referida sociedade “C...” que, no presente, o explora, já exerceram actividades no locado as sociedades “D...” e “E...”, de que o réu era, igualmente, sócio.
Com efeito, o senhorio pode resolver o contrato, atento o disposto pelo artigo 64º, nº 1, b), do RAU, “se o arrendatário usar ou consentir que outrem use o prédio arrendado para fim ou ramo de negócio diverso daqueles a que se destina”.
Este fundamento de resolução relaciona-se com a obrigação imposta ao arrendatário de “não aplicar a coisa a fim diverso daqueles a que ela se destina”, atento o estipulado pelos artigos 1038º, c) e 1027º, do CC, e 3º, do RAU.
Assim sendo, a afectação do locado para actividade económica, totalmente, diversa da estipulada, constitui fundamento legal de resolução do contrato de arrendamento, sendo certo, igualmente, que a violação da convenção de fim do contrato, tanto ocorre, no caso de se usar o prédio para fim ou ramo de negócio, totalmente, diferente do acordado, como no caso de, mantendo a afectação do prédio para esse fim ou ramo de negócio, se lhe aditar o uso para outros fins, quer estes sejam acessórios, quer secundários, quer sejam tão importantes como o convencionado Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 1997, 600., como o réu defende nas suas alegações, muito embora sem os indispensáveis factos de suporte que tenham ficado provados.
O que é inequívoco, face à prova produzida, é que o réu não só deixou de afectar o locado para fim ou ramo de negócio de serralharia a que, convencionalmente, se destinava, como vem consentindo que a sociedade “C...”, de que o réu é sócio-gerente, exerça no prédio uma actividade negocial, totalmente, distinta da contratada, como, no passado, outras sociedade, de que o réu era sócio, o fizeram.
Assim sendo e, consequentemente, o réu deu, também, causa a outro fundamento de resolução do contrato, a que se reporta o artigo 64º, nº 1, f), do RAU, isto é, “subarrendar ou emprestar, total ou parcialmente, o prédio arrendado, ou ceder a sua posição contratual, nos casos em que estes actos são ilícitos, inválidos por falta de forma ou ineficazes em relação ao senhorio, salvo o disposto no artigo 1049º do Código Civil”.
Com efeito, independentemente do título em como a sociedade “C...”, há cerca de dois anos, exerce no locado actividade económica, totalmente, distinta da convencionada, que não ficou provado, o réu estava constituído na obrigação de “não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o autorizar”, devendo, de todo o modo, “comunicar ao locador, dentro de quinze dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada”, nos termos do preceituado pelo artigo 1038º, f) e g), do CC, respectivamente.
Ora, não tendo o réu demonstrado a autorização da autora para o subarrendamento, empréstimo ou cessão da posição jurídica, ou a sua comunicação aquela de um eventual trespasse ou cessão da exploração de estabelecimento, porque permitidos sem dependência da autorização do senhorio, face ao teor das respostas negativas aos pontos 11º a 15º, inclusive, da base instrutória, não se verificam, outrossim, quaisquer factos impeditivos do direito à resolução do contrato exercitado pela autora.
E, consistindo num acto ilícito o gozo do locado, pela sociedade “C...”, não comunicado ao senhorio que o não autorizou, é susceptível de fundamentar a acção de resolução do contrato de arrendamento.

*

Contudo, considerando que se demonstrou que é imputável ao réu a mora na contraprestação do pagamento da renda, não tendo, porém, a acção procedido, com fundamento na falta do pagamento da renda, caberá à autora o levantamento da totalidade da quantia depositada, incluindo da indemnização de 50 %, que aquele era exigível para a fazer cessar, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1041º, nº 1, 1048º, do CC, e 27º do RAU, que se encontra documentada a folhas 25 RL, de 3-10-96, CJ, Ano XXI, T4, 114..

Improcedem, pois, as conclusões constantes das alegações do réu, procedendo, porém, em parte, as da autora.

CONCLUSÕES:

I - Constituindo o domicílio do locatário, à data do vencimento, o lugar supletivo do pagamento da renda, a possibilidade legal do afastamento deste regime, quer por acordo das partes, quer pelos usos, não significa que estes possam derrogar a estipulação das partes, na hipótese de essa ter sido a via encontrada pelas mesmas para se subtraírem aquele local, ou, dito de outro modo, não integra um uso que altere esse regime, a pratica seguida pelo senhorio de mandar receber a renda em casa do inquilino.
II – Não reagindo a autora, no articulado da resposta à contestação, notificada desta e do documento de depósito da renda, impugnando a exactidão do respectivo valor, considera-se extinta a obrigação do pagamento da renda, caducando, consequentemente, o direito da autora á resolução do contrato, com o fundamento na falta do seu pagamento.
III - Não tendo o réu demonstrado a autorização da autora para o subarrendamento, empréstimo ou cessão da posição jurídica, ou a sua comunicação aquela de um eventual trespasse ou cessão da exploração de estabelecimento, porque permitidos sem dependência da autorização do senhorio, não se verificam quaisquer factos impeditivos do direito à resolução do contrato exercitado pela autora.
IV – Demonstrando-se ser imputável ao réu a mora na contraprestação do pagamento da renda, e não tendo a acção procedido com fundamento na falta do pagamento da renda, caberá à autora o levantamento da totalidade da quantia depositada, incluindo da indemnização de 50 %, que aquele era exigível para a fazer cessar.

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar, parcialmente, procedente a apelação da autora e improcedente a apelação do réu e, em consequência, por considerarem imputável ao réu a mora no pagamento da renda, facultam à autora o levantamento da totalidade da quantia depositada, incluindo da indemnização de 50 %, confirmando, no mais, a douta sentença recorrida.
Custas a cargo da autora e do réu, na proporção de ¼ e de ¾, respectivamente.