Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
621/06.8TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
SINAL
CASO JULGADO
Data do Acordão: 01/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.497, 498, 671, 673 DO CPC, 1251, 1287, 1305, 1543, 1548 DO CC.
Sumário: I – Proposta acção declarativa em que os autores pedem que o tribunal declare que a favor do seu prédio ( dominante) e sobre o prédio dos réus ( serviente) existe uma servidão de passagem, de pé e carro, por usucapião, não constitui excepção ou autoridade de caso julgado a anterior acção de reivindicação instaurada pelos autores contra os réus em que pediram o reconhecimento do direito de propriedade sobre uma faixa de terreno ( que na nova acção dizem ser o leito da servidão), mas julgada improcedente.

II - Para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião torna-se imprescindível a existência de sinais visíveis e permanentes reveladores do seu exercício, como, por exemplo, um caminho, uma porta ou portal de comunicação entre os prédios, não exigindo o requisito da permanência a continuação no tempo dos mesmos sinais ou das mesmas obras, admitindo-se a sua substituição ou transformação.

Decisão Texto Integral:             Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. A... e mulher, B...., C.... e Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de D...., representada pela A. C...., instauraram, no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, a presente acção, sob a forma de processo sumário, contra E.... e F.... e mulher, G..., todos melhor identificados nos autos, pedindo ao tribunal que declare que o prédio propriedade da 1ª Ré (artigo 000......º-U, da freguesia ......) está onerado com uma servidão de passagem a pé e de carro a favor dos prédios dos AA. (artigos 111......º e 222......º-U, da freguesia da ......), adquirida por usucapião, com início na Rua X...... e em direcção a norte, com cerca de 2,50 metros de largura e 10 metros de comprimento) (a) e condene os RR. a respeitarem este direito de servidão de passagem (b), a retirar e a absterem-se de recolocar quaisquer objectos ou materiais no lugar da servidão (corredor), desde o passeio da Rua X...... até à parte descoberta do prédio dos AA. (artigo 111......º) (c) e a pagar aos AA., a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 20/dia até total desocupação da entrada do logradouro dos AA. (d).

Alegaram, em síntese, que são donos de dois prédios urbanos, com logradouro, um com os artigos matriciais n.ºs 111......º e 333.....º e outro com o artigo matricial n.º 222......º, sitos na freguesia ......, concelho da Guarda, registados na Conservatória do Registo Predial da Guarda, respectivamente, sob os n.ºs 4444 e 5555; a 1ª Ré é dona de um prédio contíguo, inscrito na matriz sob o artigo 000......º, sendo os 2ºs RR. arrendatários do mesmo prédio, onde têm instalado um restaurante; os AA., para acederem ao logradouro dos seus prédios e às respectivas casas, têm como única entrada um corredor, com início na Rua X...... em direcção a norte, com uma largura de 2,50 metros e um comprimento de cerca de 10 metros, propriedade da 1ª Ré (conforme definido em anterior acção judicial), que constitui a única entrada para os prédios dos AA. e através da qual têm acedido aos seus prédios há mais de 30 anos, quer a pé, quer com os seus veículos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém até meados de 2002, continuadamente, convictos de estarem a exercer um direito próprio; a partir de Junho de 2002 os RR. passaram a não permitir aos AA. que acedessem aos seus prédios de automóvel, estacionando os seus veículos no referido corredor, dificultando, inclusive, a passagem a pé para os mesmos prédios, o que os tem transtornado e aborrecido.

Os RR. contestaram, invocando a ilegitimidade activa da A. herança, por estar desacompanhada dos demais herdeiros. Aceitando a propriedade dos prédios e reconhecendo o direito de servidão de passagem a pé, impugnaram que os AA. tenham direito de passarem de automóvel, porquanto fizeram-no por mera tolerância e favor dos RR.. Concluíram pela improcedência da acção e pediram a condenação dos AA. como litigantes de má-fé.

H.... e mulher, I..., aquele filho do falecido D......, tendo tido conhecimento da excepção de ilegitimidade da herança, como forma de a suprirem (agora com intervenção de todos os herdeiros), intervieram nos autos, assumindo a posição de AA. e ratificando o processado.

Após registo da acção, foi proferido despacho saneador, no qual se declarou a regularidade da instância. Seleccionada a matéria de facto, não se verificaram reclamações.

Procedeu-se a julgamento, no decurso do qual, por razões técnicas, não ficaram registados os depoimentos produzidos na sessão de 13.11.2007, após o que foi proferida sentença, que julgou a acção procedente.

Os RR., inconformados, interpuseram recurso da sentença, pedindo a anulação do julgamento por omissão da gravação da prova.

Este Tribunal da Relação, face à referida falha de registo dos depoimentos, por decisão de 15.7.2008, anulou o julgamento (e a sentença) e determinou a repetição do julgamento relativamente aos depoimentos que não ficaram gravados.

Cumprido o determinado, foi depois proferida nova decisão da matéria de facto e a sentença final, que julgou a acção totalmente procedente, declarando que o prédio propriedade da 1ª Ré (identificado na al. c) dos factos provados) está onerado com uma servidão de passagem, a pé e de carro, a favor dos prédios dos AA. (identificados nas alíneas a) e b) dos factos provados), adquirida por usucapião, com início na Rua X...... e em direcção a norte, com cerca de 2,50 metros de largura e 10 metros de comprimento, e condenando os RR. a respeitarem este direito de servidão de passagem, a retirarem e a absterem-se de recolocar quaisquer objectos ou materiais no lugar da servidão (corredor), desde o passeio da Rua X...... e até à parte descoberta do prédio dos AA. (artigo 111......º) e a pagarem, aos AA. e ao tribunal, na proporção de ½ para cada, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 20/dia até total desocupação da entrada do logradouro dos AA. (corredor).

Desta sentença apelaram os RR., formulando as seguintes conclusões:

1ª - Face à prova produzida e devidamente documentada (gravada):

- a resposta ao quesito 1º da base instrutória deveria ser a de que após, aproximadamente, 1986, o autor A...., para tanto pedindo prévia autorização ao réu F......, por vezes, passava de automóvel no corredor referido em h) e i);

- a resposta ao quesito 2º da base instrutória deveria ser a de que nas décadas de 1970 e 1980 existiu no prédio referido em a) um armazém afecto a uma tipografia;

- a resposta ao quesito 3º da base instrutória deveria ser a de que de que após, aproximadamente, 1986, o autor A...., para tanto pedindo prévia autorização ao réu F......, por vezes, passava de automóvel no corredor referido em h) e i);

- os quesitos 4º e 5º da base instrutória deveriam ser considerados como não provados;

- a resposta ao quesito 7º da base instrutória deveria ser a de que o réu marido tinha diariamente, e durante quase todo o dia, a sua viatura estacionada no dito corredor, além de ali ter arrumadas grades de bebidas e vasos com flores;

- a resposta ao quesito 8º da base instrutória deveria ser a de que o autor A......, por vezes, e apenas após 1986, pedia autorização ao réu F...... para passar no dito corredor com o seu automóvel; então, este retirava a sua viatura, assim permitindo ao autor A...... que passasse com a sua viatura;

2ª - Correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda o Proc. n.º 300/ 03.8 TBGRD, cuja sentença (e Acórdão confirmativo) se encontram juntos ao presente processo, no qual figuravam como autores A......, B......, C...... e HERANÇA POR ÓBITO DE D...... (também aqui autores) e, como réus, F...... e esposa G.... (também aqui réus);

3ª - Pediam os AA. na dita acção que, uma vez julgada provada e procedente, e entre outras coisas, fossem os RR. condenados a respeitar no todo a propriedade dos AA. -arts. 111......º e 222......º, urbanos, da freguesia ......, Guarda; fossem os RR. condenados a não perturbarem a posse integral dos prédios dos AA.; fossem os RR. condenados a abster-se de colocar quaisquer objectos ou materiais no logradouro desde o passeio da Rua X...... até às partes cobertas dos dois prédios dos AA.;

4ª - Na sentença proferida na dita acção (confirmada integralmente pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.6.2004, e já transitada em julgado) escreveu-se o seguinte: «Analisando os factos assentes constata-se, no entanto, que se provou que tal parcela de terreno faz parte integrante do prédio referido na al. C) dos factos assentes - cfr. als. g), h), i), k), l), m) e n) dos factos provados. Tal prédio, nos termos do artigo 7º do Código do Registo Predial, presume-se propriedade de E..., titular inscrita no registo predial (cfr. al. C) dos factos assentes). Não obstante isso, analisando os factos assentes, constata-se que sobre o mesmo existe uma servidão de passagem a favor do prédio dos autores.»;

5ª - Mais se escreveu em tal sentença que «(…) analisando uma vez mais os factos assentes, constata-se que o corredor em discussão é a única entrada existente, a pé e de automóvel, para o prédio dos autores (cfr. al. F) dos factos assentes). Constata-se, no entanto, também, que os réus, desde Maio de 1976, utilizam o referido corredor como fazendo parte do arrendado, ali colocando mercadorias utilizadas no exercício do seu comércio, ali estacionando a sua viatura, ali plantando e tratando plantas, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém e continuamente, convictos de estarem a exercer um direito que lhes pertence (cfr. al. l) dos factos assentes), e, por outro lado, que os autores, sempre que pretendiam entrar/sair de viatura para/do seu logradouro pediam (e pedem) ao réu que lho permitisse, nomeadamente retirando a sua viatura primeiro. Deste modo, determinando-se o conteúdo da servidão pela posse do respectivo titular, conclui-se que a posse dos autores manifesta-se através do exercício de um direito de passagem a pé através do corredor em causa e para acederem ao seu prédio, ao qual acresceram actos de mera tolerância dos réus, como possuidores em nome alheio (artigo 1253º7ª) do Código Civil), permitindo, por vezes, o acesso de viaturas ao prédios dos autores (1253º/b) do Código Civil). De tais actos de mera tolerância não resultou o animus dos autores, não havendo elementos para concluir que tenham adquirido o direito de servidão de passagem de automóvel por usucapião sobre tal prédio – cfr. artigos 1287º e ss. do Código Civil»;

6ª – O caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão; a eficácia de caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada; excluída está, desde logo, a situação contraditória, como, além disso, está igualmente afastado todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada;

7ª - Do que resulta, acredita-se, a impossibilidade jurídica de a sentença revidenda propor decisão diversa da consubstanciada na sentença (e acórdão confirmativo, já transitados em julgado) proferida no sobredito Proc. n.º 300/ 03.8 TBGRD;

8ª - Não estando excluída a possibilidade de imposição de servidões de passagem sobre os prédios urbanos, tais servidões, quando baseadas, como é o caso, na posse conducente à usucapião, sempre têm de se revelar de modo inequívoco, por sinais visíveis e permanentes existentes em ambos os prédios ou, pelo menos, no prédio onerado que confirmem ou atestem o uso em favor do prédio beneficiário;

9ª - No caso dos autos nenhum sinal visível e permanente se vislumbra no enunciado fáctico que permita, através de posse usucapível exercida pelos AA., a génese da almejada servidão de passagem em benefício dos prédios urbanos destes, pelo que inviabilizada se mostra a declaração da constituição de uma servidão de passagem em benefício dos referidos prédios dos AA., com fundamento em usucapião;

10ª - Acresce que da situação descrita na factualidade provada facilmente se constata que tendo os prédios - de que são donos os AA. e o de que é dona a 1ª Ré - pertencido ao mesmo proprietário antes de serem vendidos a diferentes pessoas, a passagem através de um deles pelo possuidor do prédio adjacente teve na sua origem a simples conveniência ou facilidade adveniente dessa circunstância, sem que com isso se buscasse qualquer consolidação de uma específica e segura relação possessória a favor do respectivo utilizador;

11ª - O substrato fáctico natural, a causa de pedir mais conforme a esta última realidade, seria a que se manifestaria na destinação do pai de família, desde que tivesse ocorrido implantação de sinais de serventia no momento da separação do domínio, nos termos do art.º 1549 do CC;

12ª - No caso vertente, os autores não fazem nenhuma referência ao animus da posse, elemento subjectivo conatural à sua existência, pelo que também por aqui a acção não poderia obter êxito;

13ª - A sentença revidenda violou, entre outras, as normas dos art.ºs 264º/1; 467º/1, d); 497º; 498º; 659º; 660º; 671º; 673º e 675º, CPC; e art.ºs 1251º; 1287º; 1293º/a); 1547º/1; e 1548º, do CC.

Os AA. contra-alegaram sustentando a improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do CPC), pelo que, primeiro, importa ponderar da possibilidade de alterar a decisão sobre a matéria de facto, depois, se existe caso julgado e, por último, concluindo-se em sentido contrário ao propugnado, se estão preenchidos os requisitos conducentes à pretendida constituição de servidão de passagem a pé e de carro por usucapião.


*

II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

a) Mostra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial da Guarda (ap. 04/000000) em nome de A......, casado sob o regime de comunhão geral de bens com B......, e de D..., casado sob o regime de comunhão geral de bens com C...... , a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua X......, na freguesia ......, na Guarda, com a área coberta de 99 m2 e descoberta de 200 m2, composto de rés-do-chão e 1º andar, com logradouro, que confronta de norte e nascente com .... e de sul e poente com herdeiros de ....., inscrito na matriz predial respectiva em seus nomes sob o artigo 111......º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 4444/000000, por compra que fizeram a ..... e esposa, ...... (A)

b) Mostra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial da Guarda (ap. 04/000000) em nome de A......, casado sob o regime de comunhão geral de bens com B......, e de D..., casado sob o regime de comunhão geral de bens com C...... , a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua X......, na freguesia ......, na Guarda, com a área coberta de 44 m2, composto de rés-do-chão, que confronta de norte, sul, nascente e poente com ..., inscrito na matriz predial respectiva em seus nomes sob o artigo 222......º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 5555/000000, por compra que fizeram a .... e esposa, ..... (B)

c) Mostra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial da Guarda (ap. 09/130291) em nome de J...., casada com L..., a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua X......, na freguesia ......, na Guarda, com a área coberta de 84 m2 e descoberta de 51 m2, composto de rés-do-chão e 1º andar, com logradouro, que confronta de norte e nascente com J...., de sul com a Rua X...... e de poente com ....., inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 000......º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1513/130291, por sucessão deferida em partilha extrajudicial por morte de ...., que foi casada com ...... (C)

d) Por escritura pública de compra e venda, outorgada no dia 07.02.2003, no Cartório Notarial da Guarda, J..., casada com L...., representada por procurador e devidamente autorizada pelo seu marido, declarou que vendia a E......, a qual declarou comprar àquela, pelo preço de € 57 361,76, o prédio urbano referido em II. 1. c). (D)

e) Os RR. F...... e G...... são arrendatários do prédio referido em II. 1. c), onde têm instalado, ao nível do rés-do-chão, o restaurante “ Y...”. (E)

f) O prédio referido em II. 1. a) confronta actualmente a norte com BB... e a sul com os RR. e a rua. (F)

g) O prédio referido em II. 1. b) confronta actualmente a norte e a poente com os AA., a sul com os RR. e a nascente com AA... (G)

  h) Para acesso ao logradouro e às casas existentes nos prédios referidos em II. 1. a) e b) existe um corredor, com início na Rua X......, em direcção a norte, com cerca de 10 metros de comprimento e cerca de 2,50 metros de largura. (H)

i) Tal corredor é o único espaço que os AA. podem utilizar, a pé, para acederem, através da Rua X......, aos prédios referidos em II. 1. a) e b), os quais não possuem qualquer outro acesso para a via pública. (I)

j) O corredor referido em II. 1. h) e i) encontra-se definido pelo muro do lado poente e pela parede da casa referida em II. 1. c) a nascente. (J)

k) Os AA., por si e antecessores no direito, através dos seus arrendatários, familiares e visitas, há mais de 30 anos, que utilizam o dito corredor, por aí passando a pé para acederem aos prédios referidos em II. 1. a) e b). (K)

l) Correu termos neste Juízo, sob o n.º 300/03.8TBGRD uma acção sumária, instaurada pelos aqui AA. contra os aqui 2ºs RR., na qual os AA. pretendiam, além do mais, ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre o referido corredor, acção esta que foi julgada totalmente improcedente (cfr. documentos de fls. 20 a 31 e 67 a 100, cujo teor se dá aqui por reproduzido). (L)

m) O tribunal, além do mais, julgou provado nessa sentença que:

- Os AA., para acederem às casas e ao logradouro dos prédios referidos em II. 1. a) e b), têm que atravessar um corredor com início na Rua X......, em direcção a norte, com cerca de 2,50 metros de largura e com 10 metros de comprimento;

- Tal corredor é a única entrada existente, a pé e de automóvel, para os referidos prédios;

- Os RR. têm estacionado os seus veículos automóveis no início do corredor, impedindo os AA. de aceder aos prédios referidos em II. 1. a) e b) e deles sair com os seus automóveis;

- A parte inicial do corredor faz parte do logradouro do prédio referido em II. 1. c);

- Os RR., desde Maio de 1976, utilizam o referido corredor como fazendo parte do arrendado, ali colocando mercadorias utilizadas no exercício do seu comércio, ali estacionando a sua viatura, ali plantando e tratando plantas, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém e continuadamente, convictos de estarem a exercer um direito que lhes pertence;

- Os AA., sempre que pretendiam entrar/sair de viatura para/do seu logradouro pediam (e pedem) ao R. que lho permitissem, nomeadamente retirando a sua viatura primeiro. (M)

n) Os AA., por si e antecessores no direito, através dos seus arrendatários, familiares e visitas, durante mais de 30 anos e até Junho de 2002, utilizaram o corredor referido em II. 1. h) e i), por aí passando de automóvel para acederem aos prédios referidos em II. 1. a) e b). (resposta ao quesito 1º)

o) Nas décadas de 1970 e 1980 existiu no prédio referido em II. 1. a) um armazém afecto a uma tipografia, onde os fornecedores e donos do estabelecimento acediam com os seus automóveis. (resposta ao quesito 2º)

p) O A. A...... desde o ano de 1985 e até ao ano de 2002 utilizou tal corredor, por ele passando com a sua viatura. (resposta ao quesito 3º)

q) O que sempre fizeram, sem interrupções, à vista de toda a gente. (4º)

r) Sem oposição de ninguém, nomeadamente dos RR. e antecessores no seu direito e até Junho de 2002. (5º)

s) Entre os AA. e os RR. havia boas relações de amizade, que se mantiveram até ao momento em que estes impediram aqueles de passarem de automóvel pelo corredor, tendo o A. A...... chegado a entregar as chaves do seu carro aos RR. para que estes, quando pretendessem sair com a sua viatura, retirassem previamente a do A.. (resposta ao quesito 6º)

t) Os RR. colocavam as suas viaturas no corredor, retirando-as quando os AA. precisavam de entrar e sair com as suas. (resposta ao quesito 7º)

u) Os AA., quando precisavam de passar de automóvel pelo corredor, pediam aos 2ºs RR. para retirarem os veículos aí estacionados. (resposta ao quesito 8º)

v) Actualmente e desde Junho de 2002, os AA. não conseguem entrar nem sair com veículos para os prédios referidos em II. 1. a) e b), pois os RR. estacionam todo o dia os veículos nesse corredor. (9º)

w) Muitas vezes dificultam até o acesso a pé, sempre que os AA. trazem consigo compras, ou mesmo quando são visitados pelos seus familiares, nomeadamente filhos e netos, que não conseguem entrar com o carrinho de bebé. (11º)

x) Aborrecem-nos com discussões várias. (13º)

y) O A. A...... é doente. (resposta ao quesito 14º)

            2. Como é sabido, a alteração, pela Relação, da decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto, só pode verificar-se se ocorrer alguma das situações (excepcionais) contempladas no n.º 1 do art.º 712º do CPC (na redacção anterior à introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24.8 e aplicável ao caso vertente) e que são as seguintes: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados (n.º 2 do referido art.º).

No nosso direito processual civil acha-se consagrado o princípio da livre apreciação da prova, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova de facto jurídico, qualquer formalidade especial, pois neste caso esta não pode ser dispensada (art.º 655º do CPC).

O princípio da prova livre (por contraposição à prova legal: prova por documentos, por confissão e por presunções judiciais) vigora no domínio da prova pericial (ou por arbitramento) (art.º 389º CC), da prova por inspecção (art.º 391º CC) e da prova por testemunhas (art.º 396º CC), sendo a prova apreciada pelo juiz segundo a sua experiência, a sua prudência, o seu bom senso, com inteira liberdade, sem estar vinculado ou adstrito a quaisquer regras, medidas ou critérios legais.[1]

Aquele princípio situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.[2]

As provas são apreciadas livremente, sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que geram realmente no espírito do julgador acerca da existência do facto[3], sendo que, nos termos do art.º 396º do CC, a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal.

Daí que a Relação só possa alterar a decisão sobre a matéria de facto e anular a decisão, excepcionalmente, nas situações acima descritas.

Na verdade, na sequência do alargamento dos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto, por parte da Relação, tem a jurisprudência convergido em determinados parâmetros de intervenção:

- Considerado, desde logo, o preâmbulo do DL 39/95, de 15.02, o recurso não pode visar a obtenção de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, mas tão só obviar a erros ou incorrecções eventualmente cometidas pelo julgador[4].

- Depois, não pode o tribunal da Relação pôr em causa regras basilares do nosso sistema jurídico, maxime, os referidos princípios da livre apreciação da prova e da imediação, sendo inequívoco que o tribunal de 1ª instância encontra-se em melhores condições para apreciar os depoimentos prestados em audiência.

- O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância, a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo.[5]

- O que não obsta, necessariamente, à apreciação crítica da fundamentação da decisão de 1.ª instância, não bastando uma argumentação alicerçada em mero poder de autoridade.

3. Depois de se proceder à audição integral dos depoimentos constantes do registo-áudio (“cassetes/fitas magnéticas” n.ºs 3 e 4 e “CD” contendo, respectivamente, os depoimentos das testemunhas arroladas pelos RR. e das indicadas pelos AA.), entendemos que não se justifica qualquer alteração à resposta aos quesitos aludidos pelos apelantes, sendo que, no caso em apreço, o Mm.º Juiz fundamentou devidamente essa resposta, conjugando os vários depoimentos e analisando criticamente as provas produzidas, especificando os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, como impõe o art.º 653º, n.º 2 do CPC.

Os apelantes, baseando-se, apenas, nos depoimentos das testemunhas por si arroladas, impugnaram a decisão da matéria de facto, por considerarem “incorrectamente julgados os pontos da matéria de facto que se plasmaram nas respostas dadas aos quesitos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 7º e 8º da base instrutória”.

Embora este tribunal da Relação pudesse, pura e simplesmente, aderir à fundamentação apresentada pelo tribunal recorrido, por adequada, correcta e completa, tendo em conta a materialidade controvertida e a que se considerou provada, decide-se, no entanto, deixar aqui consignadas algumas notas adicionais relativas aos depoimentos das testemunhas indicadas pelos apelantes, por elucidativas da insubsistência da perspectiva trazida em sede de recurso.

Ouvidos os depoimentos, afigura-se-nos por demais evidente o alinhamento das ditas testemunhas pela posição (e “interesse”) dos RR., já que as mesmas, sobretudo as três primeiras, quiseram fazer crer o seu conhecimento directo e preciso de toda a factualidade que bem sabiam interessar à “tese” defendida pelos RR. e não tiveram o menor pejo em querer transmitir a sua (pretensa) ignorância ou desconhecimento de outros factos, com inegável proximidade temporal e espacial com os que afirmaram conhecer, relativos, designadamente, à actuação do A. A...... e antepossuidores dos prédios urbanos em causa, circunstância de per si suficiente para o juízo emitido pelo Mm.º juiz na decisão de fls. 425 e seguintes.

Aí se afirma que a testemunha M.....revelou alguma parcialidade no seu depoimento, afirmando ter conhecimento de alguns factos e ocultando conhecimento de outros (quando deveria ter idêntico conhecimento)” (fls. 429).

De resto, ao ser questionada pelo Exmo. Mandatário dos AA. e, por último, pelo Mm.º juiz, evidenciaram-se ainda contradições e tergiversações neste depoimento – por exemplo, depois de afirmar que o A. A...... “pedia autorização” aos 2ºs RR. para passar com a sua viatura pelo “corredor”/“passagem”, disse, depois, na sequência de questão formulada pelo Exmo. Mandatário dos AA. [“se era por favor ou se era por amizade que davam as chaves um ao outro (…) para ter e para tirar” as viaturas, no local, e segundo as respectivas conveniências], que “o problema era deles” e que “(…) se era por obrigação ou se era por devoção (?!) que o Sr. F...... o fazia, não sei!” (sic).

A pergunta do Mm.º juiz, disse, quanto a esta matéria, “tem a impressão de que era um favor que o Sr. F.... lhe fazia” (sic), mas, confrontado com alguma factualidade confirmada pelas testemunhas indicadas pelos AA., foi então notório o desvanecer das “certezas” aparentemente reveladas na primeira parte do depoimento…

É assim inteiramente correcto tudo quando consta a fls. 429 a respeito da valoração deste depoimento.

Relativamente à testemunha O..... também se confirma o supra referido, nomeadamente, quando o mesmo diz que “nunca lá viu carro nenhum, a não ser o Mercedes e o Datsun”/“só lá viu dois carros” (veículos propriedade dos 2ºs RR. e familiares), apenas via “entrar ou sair” o veículo do A. A...... e ”o Sr. A...... só lá punha o carro de vez em quando”.

Respondendo a perguntas do Mm.º juiz disse, designadamente, “o Sr. F...... é que fazia o favor de passar o carro do Sr. A...... lá para trás (…) acha que o Sr. F...... é que fazia o favor”, para depois afirmar “não saber explicar” a razão de ser da actuação de uns e outros. Confrontado com o que havia sido dito pelas testemunhas indicadas pelos AA. a respeito da circulação e estacionamento de veículos no local, não afastou o seu inicial tom peremptório, tendo afirmado, por exemplo, “é mentira (…) não ia lá camioneta nenhuma descarregar nada!”.

 A testemunha N.... prestou um depoimento idêntico ao do O... e foi com alguma “dificuldade” que veio a reconhecer que o A. A...... colocava a viatura no pátio/logradouro situado junto à sua residência…

E a testemunha P...., se bem que não tenha colocado em causa a prova produzida pelas testemunhas arroladas pelos AA. em relação à actuação do A. A...... ao longo dos anos, contudo, na parte final do seu depoimento, questionada pelo Mm.º juiz, também não “escondeu” a sua parcialidade, confirmando-se inteiramente o que consta da fundamentação da decisão da matéria de facto, a fls. 430.

Concluindo, estes depoimentos, dada a sua incongruência e/ou irrelevância, não afastam ou põem em crise a prova de sentido contrário produzida pelos AA., referida e analisada criticamente (e confrontada e conjugada com as demais provas), a fls. 426 e seguintes (despacho que merece a nossa inteira adesão e cujo teor se dá aqui por reproduzido), e que esta Relação não deixou de verificar e confirmar (inclusive, quanto à sua verosimilhança e credibilidade) através da audição de todos os depoimentos e da análise dos documentos relevantes juntos aos autos (v.g., a fls. 32), sendo que os recorrentes nem sequer se deram ao trabalho de estabelecer o necessário confronto dos meios de prova produzidos por cada uma das partes, limitando-se a afirmar a bondade dos respectivos elementos e ignorando tudo o mais…

Improcedendo as conclusões de recurso, mantém-se o julgamento de facto feito pela 1ª instância.

            4. Baseando-se nalguns excertos da fundamentação da sentença aludida em II. 1. m) - onde se refere, designadamente: “Deste modo, determinando-se o conteúdo da servidão pela posse do respectivo titular, conclui-se que a posse dos autores manifesta-se através do exercício de um direito de passagem a pé através do corredor em causa e para acederem ao seu prédio, ao qual acresceram actos de mera tolerância dos réus (…) permitindo, por vezes, o acesso de viaturas ao prédio dos autores (…). De tais actos de mera tolerância não resultou o ´animus` dos autores, não havendo elementos para concluir que tenham adquirido o direito de servidão de passagem de automóvel por usucapião sobre tal prédio (…)”. (…) “Não tendo os autores logrado provar que fossem proprietários de tal parcela de terreno, a qual se provou que pertence ao prédio gozado pelos réus, não tendo sido feita prova da prática de qualquer facto ilícito pelos réus, violador do seu direito de propriedade, falecendo os pressupostos da acção de reivindicação, nos termos do art.º 1311º/1 do Código Civil, impõe-se julgar improcedente a acção” (fls. 30) -, os RR. consideram que se impõe “às partes e ao tribunal o respeito pela autoridade do caso julgado formado em acção anterior”.

Em sede de recurso e relativamente a essa parte da sentença que, segundo os recorrentes, envolveria “excesso de pronúncia” do tribunal recorrido, esta Relação, por acórdão de 15.6.2004, concluiu pela inexistência do apontado vício, nos seguintes termos: “A eventual existência de uma servidão de passagem a favor dos AA. não constitui objecto do processo e a referência que na sentença é feita a essa questão apenas se justifica como explicação possível para o trânsito que pela parcela de terreno em litígio os A.A. fazem de e para os seus urbanos. Sob pena de efectiva nulidade da sentença por excesso de pronúncia, a interpretação da alusão àquela questão só pode ser a de que, tendo-se provado a passagem dos AA. pelo”corredor” em litígio, se não provou a “animus” de proprietários.[6] Assim delimitada a abordagem feita à dita questão da servidão de passagem, não se verifica a invocada causa de nulidade da sentença ” (fls. 92).

A excepção de caso julgado consiste na alegação de que a acção proposta já está decidida por sentença com trânsito em julgado – a causa é a repetição de outra anterior, já arrumada por sentença transitada em julgado.

Suscitada a excepção, o tribunal tem de verificar se procede, isto é, se existe realmente sentença com trânsito em julgado proferida sobre o mérito da causa anterior perfeitamente idêntica àquela em que a excepção se deduz e, se apurada a existência de caso julgado (material ou substancial, i. é, que projecta a sua força e os seus efeitos para fora do processo em que foi proferido - art.º 671º, n.º 1 do CPC), o juiz deverá emitir este juízo ou proferir este julgamento: o litígio já está decidido por sentença que sou obrigado a respeitar, visto haver transitado em julgado; em homenagem a essa sentença, atenta a força e autoridade de que ela goza, abstenho-me de apreciar de novo o mérito da causa.[7]

A dita excepção tem por finalidade evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art.º 497º, n.º 2 do CPC).

Compulsados os elementos disponíveis, conclui-se que os AA. interpuseram nova acção, já não de revindicação alegando ser proprietários do “corredor” em questão, mas agora declarativa de condenação, alegando terem uma servidão de passagem a pé e de automóvel sobre o prédio dos RR., pelo que são diferentes os pedidos deduzidos em cada uma das acções.

Na presente acção, o tribunal recorrido concluiu que “os autores adquiriram a posse de servidão de passagem (a pé e de automóvel) com a prática reiterada, com publicidade, de actos correspondentes ao exercício do direito – acedendo a pé e de automóvel ao longo dos anos para os seus prédio, através do prédio da primeira ré”, enquanto que na anterior se decidiu julgar improcedente a pretensão de ver judicialmente reconhecida a titularidade do direito de propriedade sobre a faixa de terreno em discussão e a consequente restituição.

Assim e tendo presentes o conceito e os requisitos do caso julgado segundo a lei civil adjectiva (art.ºs 497º e 498º do CPC), nomeadamente a exigência de que para haver identidade de pedido importa que numa e noutra causa se pretenda obter o mesmo efeito jurídico (n.º 3 do cit. art.º 498º) – é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado -, dúvidas não restam quanto à inexistência de caso julgado enquanto excepção dilatória (art.º 494º, alínea i) do CPC).

Se porventura se equacionar a autoridade de caso julgado formado em acção anterior, como os RR. pretendem ao afirmar que a mesma questão já foi deduzida num outro processo e nele apreciada e julgada por decisão que não admite reclamação ou recurso ordinário (art.º 677º do CPC), a resposta não poderá ser diversa, desde logo em face da posição assumida (a final) por esta Relação no acórdão supra referido.

Sabemos que a excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado.

Pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito enquanto que a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito - o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida. A excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior; na autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada.[8]

A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (art.º 673º do CPC).

Os limites do caso julgado são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentença, que tem autoridade para qualquer processo futuro mas na exacta correspondência com o seu conteúdo, não obstando a que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu (cfr. art.ºs 671º, n.º 1 e 673º do CPC).[9]

Pelo exposto e sem prejuízo do entendimento corrente de que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado[10], verificando-se que naquela acção nada ficou decidido quanto à eventual existência da servidão de passagem que se analisa e discute neste processo e que, de resto, o “excesso” cometido pela 1ª instância, a que os recorrentes se agarram para sustentar a sua “tese”, foi depois eliminado pela 2ª (e derradeira) instância, não vemos o menor fundamento para a invocada autoridade de caso julgado, concluindo-se, assim, pela total insubsistência da dita posição dos RR..[11]

            5. Os AA., na qualidade de proprietários de prédios encravados, ou seja, prédios (rústicos ou urbanos) que por todos os seus lados confinam com outros prédios[12], invocaram a constituição de uma servidão de passagem a pé e de carro por usucapião e pediram a condenação dos demandados a reconhecerem a sua constituição.

 Da matéria dada como provada, resulta inequívoca a existência de uma servidão de passagem a pé, constituída sobre a área descoberta/logradouro do prédio dito em II. 1. c) e d), onerando-o, a favor dos prédios dos AA. e que foi reconhecida e aceite pelos RR. (II. 1. alíneas h) a k)).

Porém, os AA., além da servidão de passagem a pé, arrogam-se o direito a uma servidão de passagem de carro, que os RR. contestam, permanecendo assim a questão de saber se o mesmo prédio se encontra onerado com uma servidão de passagem para veículos motorizados, a favor dos prédios dos AA., constituída, também, por usucapião.
6. O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem” (art.º 1305º do Código Civil).[13],

A natureza absoluta dos direitos reais depreende-se da exclusividade reconhecida neste artigo ao proprietário, o qual vale como afirmação de que tais direitos são “jura excluendi omnes alios”; porém, isso não implica que o sistema não introduza cláusulas de limitação a esse poderes, além do mais, as decorrentes das chamadas relações de vizinhança, também subjacentes à matéria das servidões prediais.[14]

A servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia), sendo certo que o dono do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão (art.ºs 1543º e 1568º, n.º 1).

O direito de servidão (predial) é um ius in re aliena, um direito real de gozo limitado (menor) - o encargo (sobre o prédio onerado/serviente) é imposto em proveito de outro prédio pertencente a dono diferente (prédio dominante), verificando-se assim uma restrição ou limitação ao conteúdo do direito de propriedade sobre o prédio onerado.[15]

Podem ser objecto de servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante (art.º 1544º).

Definindo, assim, o conteúdo da servidão, a lei consagra a sua natureza atípica; a servidão não está submetida a uma estrutura típica, podendo revestir-se das características mais diversas, dentro dos limites da lei, ou seja, a lei sempre exige que a utilidade proporcionada pela servidão seja gozada pelo seu titular através do prédio dominante.[16]
            As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família. As servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos (art.º 1547º).

            As servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião, i. é, são incompatíveis com tal forma de constituição as servidões que não se revelem por sinais visíveis e permanentes (art.ºs 1293º, a) e 1548º), sendo por demais conhecidas as razões determinantes desta limitação constitutiva.[17]

Para que seja aparente, não basta que a servidão se revele por obras ou sinais exteriores, sendo necessário que, além de visíveis (sendo a visibilidade destinada a garantir a não clandestinidade), os sinais[18] reveladores da servidão sejam permanentes – para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião torna-se imprescindível a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício, como, por exemplo, um caminho ou uma porta ou portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente, entendendo-se ainda que o requisito da permanência não exige a continuação no tempo dos mesmos sinais ou das mesmas obras, admitindo-se a sua substituição ou transformação.[19]

7. Na situação em análise importa verificar a eventual constituição de uma servidão de passagem de carro (e/ou veículo automóvel) por via possessória, através de actos possessórios – com base na posse e pelo decurso do tempo, consolida-se ou converte-se em definitiva uma situação real de carácter provisório.

A posse, segundo a Lei Portuguesa, é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art.º 1251º).

A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição [da lei] em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião (art.º 1287º).

A verificação da usucapião depende de dois elementos: a posse e o decurso de certo período de tempo, variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa. Para conduzir à usucapião, a posse tem sempre de revestir duas características: ser pública e pacífica. Os restantes caracteres (boa ou má fé, titulada ou não) influem apenas no prazo (cfr., nomeadamente, art.ºs 1258º a 1262º e 1294º a 1300º).

A posse tem como elementos constitutivos o corpus (elemento material) e o animus (elemento subjectivo), consistindo o primeiro no domínio de facto sobre a coisa, com o exercício de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade física desse exercício, e o segundo na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto[20].

8. O prédio dito em II. 1. c) é composto de rés-do-chão e 1º andar, com logradouro, numa relação de complementaridade, designando-se o conjunto de prédio urbano (art.º 204º, n.º 2).

A presente acção surge porque os RR. consideram que os AA. não gozam de servidão de passagem de carro sobre o logradouro do referido prédio urbano daqueles e em benefício dos seus prédios.

Face à realidade configurada na acção e ao que ficou apurado, pensamos, salvo o devido respeito por entendimento em contrário, que os AA. alegaram factos susceptíveis de demonstrar a constituição da dita servidão por usucapião e, efectuado o julgamento, a realidade comprovada permite acolher a pretensão deduzida em juízo, tal como ficou decidido na sentença sob censura.

Da factualidade atrás referida decorre que para acesso ao logradouro e às casas existentes nos prédios referidos em II. 1. alíneas a) e b) existe um corredor/caminho/troço de terreno com início na Rua X......, em direcção a norte, com cerca de 10 metros de comprimento e 2,50 metros de largura, único espaço que os AA. podem utilizar, a pé, para acederem, através da Rua X......, aos seus mencionados prédios (sem qualquer outro acesso para a via pública) e que se encontra definido/delimitado pelo muro do lado poente e pela parede da casa referida em II. 1. c) a nascente (cfr. II. 1. alíneas h), i) e j)).

Ficou também demonstrado que os AA., por si e antecessores no direito, através dos seus arrendatários, familiares e visitas, há mais de 30 anos, que utilizam o dito corredor, por aí passando a pé para acederem aos prédios referidos em II. 1. a) e b) (II. 1. k)) e, ainda, designadamente, que os AA., por si e antecessores no direito, através dos seus arrendatários, familiares e visitas, durante mais de 30 anos e até Junho de 2002, utilizaram o dito corredor/caminho, por aí passando de automóvel para acederem aos prédios referidos em II. 1. a) e b), o que sempre fizeram, sem interrupções, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, nomeadamente dos RR. e antecessores no seu direito e até Junho de 2002 (cfr. II. 1. n), q) e r)).

Por outro lado, sabemos também que na acção sumária n.º 300/03.8TBGRD, julgada totalmente improcedente, os AA. invocaram e pretendiam ver reconhecido o seu (pretenso) direito de propriedade sobre o referido corredor. Na respectiva sentença o tribunal, além do mais, julgou provado que tal corredor é a única entrada existente, a pé e de automóvel, para os referidos prédios dos AA.; que a parte inicial do corredor faz parte do logradouro do prédio referido em II. 1. c) e que os AA., sempre que pretendiam entrar/sair de viatura para/do seu logradouro pediam (e pedem) aos RR. que o permitissem, nomeadamente retirando a sua viatura primeiro (cfr. II. 1. l) e m)).

            Perante este quadro fáctico e a perspectiva vertida na petição inicial, nomeadamente, sob os itens art.º 17º e 29º a 34º (cujo teor se dá aqui por reproduzido) e o acervo conclusivo da alegação dos recorrentes, afigura-se-nos inteiramente correcta a resposta que ao presente caso veio a ser dada pelo tribunal recorrido, bem como a fundamentação que a suporta, mormente quando se diz que os AA. têm actuado convencidos de estarem a agir como beneficiários do direito (resultando da acção anteriormente intentada que eles, pela situação factual, até se arrogavam proprietários de tal acesso – o que não conseguiram provar); não resultou provado que tivessem acedido de automóvel durante mais de 30 anos por mera tolerância dos réus ou antecessores no direito (facto impeditivo do direito dos autores, cujo ónus da prova competia aos réus); não resultou provado que possuam o acesso em nome de outrem; os autores adquiriram a posse do direito de servidão de passagem (a pé e de automóvel) com a prática reiterada, com publicidade, de actos correspondentes ao exercício do direito – acedendo a pé e de automóvel ao longo dos anos para os seus prédios, através do prédio da primeira ré; em suma, porque os autores acederam durante mais de 20 anos através do prédio da primeira ré aos seus prédios, a pé e de automóvel, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, ´constituíram´, efectivamente, ´sobre o prédio pertencente à primeira ré e a favor dos seus prédios uma servidão de passagem por usucapião´, a qual se revela com sinais visíveis e permanentes.

Relativamente à problemática da visibilidade ou ostensividade do encargo e a permanência dos sinais que o revelam, dúvidas não podem restar de que o corredor ou caminho supra assinalado, na sua configuração (e delimitação) e no contexto da utilização que desde há muito lhe é dada (não obstante as transformações certamente introduzidas ao longo dos anos, sobretudo, no respectivo piso/pavimento) evidencia sinais serventuais visíveis e permanentes nos logradouros dos prédios dominante e serviente, não se tratando de simples “obras” destinadas à funcionalidade ou conforto dos prédios onde se integram e indiferentes à servidão de passagem, sinais esses cuja “leitura” em nada contraria a existência do corredor que se discute, antes reflectindo um caminho de um prédio, para o exterior, através de outro - sinais que, portanto, evidenciam externamente a relação entre os dois prédios, isto é, em que a servidão, aqui, de passagem é por eles denunciada.[21]

            Por último, no que concerne à questão de se ter ou não provado o “animus” no exercício do direito que se quer ver reconhecido[22], ainda que se propendesse para concluir que os AA. não o haviam demonstrado (conclusão que, pelo já exposto, não se retira; ademais, reafirma-se, vemos alegados factos suficientes no articulado inicial tendo em vista o efeito jurídico pretendido alcançar, inclusive no tocante àquele requisito), sempre haveria que levar em conta a presunção ilidível de posse em nome próprio por parte daqueles que exercem o poder de facto (art.º 1252º, n.º 2) e que não foi ilidida pelos RR., tal como lhes competia, nomeadamente através da prova de que aqueles actos materiais (de passagem) pelo seu prédio para o prédio dos AA. são/foram praticados devido a tolerância sua ou que os últimos não efectuam/efectuavam tal passagem assumindo-se como se, na verdade, beneficiassem de um direito que ali lhes permite passar, sendo certo que quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (art.º 350º, n.º 1).[23]

            Por conseguinte, fundando-se o pedido dos AA. na constituição da invocada servidão de passagem pela via da prescrição aquisitiva e tendo estes logrado demonstrar os requisitos da sua constituição, soçobram ou ficam prejudicadas as demais conclusões do recurso.

            A sentença proferida pelo Mm.º juiz a quo nenhuma censura merece, pelo que deverá ser mantida.


*

            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
      Custas pelos apelantes.


[1] Cfr., de entre vários, acórdão do STJ de 30.12.1977, in BMJ, 271º, 185.
[2] Vide J. Lebre de Freitas, e outros, CPC Anotado, Volume 2, Coimbra Editora, 2001, pág. 635.
[3] Vide Antunes Varela, e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 455 e, designadamente, acórdãos da RL de 20.4.1989 e de 19.11.1998, in CJ, XIV, 2, 143 e CJ, XXIII, 5, 97, respectivamente.

[4] Refere-se no preâmbulo do referido diploma: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”.

[5] Vide Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, pág. 266.

Refere o mesmo autor: “Além do mais, todos sabem que por muito esforço que possa ser feito na racionalização do processo decisório aquando da motivação da matéria de facto sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos. (...) Carecendo o Tribunal da Relação destes elementos coadjuvantes e necessários para que a justiça se faça, correm-se sérios riscos de a injustiça material advir da segunda decisão sobre a matéria de facto (ibidem, pág. 267).

Cfr. ainda, entre outros, os acórdãos do STJ de 20.9.2005-processo 05A2007 e da RC de 13.01.2009-processo 4966/04.3TBLRA, publicados no “site” da dgsi, onde se pode ler: «De salientar (...) que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade. Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (...)”..
                                                                                                                                                                                   
[6] Sublinhado nosso.
[7] Vide, entre outros, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 1985, págs. 86 e segs.; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 138 e segs. e Antunes Varela, e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 692 e segs..
[8] Vide Lebre de Freitas, ob. e vol. cit., pág. 325; Teixeira de Sousa, O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, in BMJ 325º, págs. 49 e seguintes.
[9] Vide, ainda, Teixeira de Sousa, Sobre o Problema dos Limites Objectivos do Caso Julgado, in RDES, XXIV, 1997, págs. 309 e seguintes.
[10] Vide Antunes Varela, ob. cit., pág. 696 e seguinte.
[11] Cfr. ainda, versando caso com alguma similitude, o acórdão do STJ de 26.01.1994, in BMJ 433º, 515.
[12] E no caso vertente trata-se de um prédio absolutamente encravado, porquanto não tem comunicação directa com a via pública e só pode consegui-la através de outros prédios particulares (cfr. II. 1. alínea i)).
[13] Diploma a que pertencem as demais disposições a citar sem menção da origem.

[14] Cfr., v.g., art.ºs 1367º, 1349º, n.º 1, 1550º…
[15] Vide  P. Lima e A. Varela, CC Anotado, III, 2ª edição, 1987, págs. 613 e seguintes.

[16] Vide M. Tavarela Lobo, Mudança e Alteração de Servidão, págs. 12 e 13.

[17] Vide, entre outros, P. Lima e A. Varela, ob. e vol. cit., pág. 629, que referem, designadamente: “(…) continua a entender-se que se torna as mais das vezes difícil distinguir entre as servidões não aparentes e os actos de mera tolerância, consentidos «jure familiaritatis», que não reflectem uma relação possessória capaz de conduzir à usucapião (cfr. D., 41, 2, 41). Admitir a usucapião como título aquisitivo deste tipo de servidões, não obstante a equivocidade congénita dos actos reveladores do seu exercício, teria o grave inconveniente de dificultar, em vez de estimular, as boas relações de vizinhança, pelo fundado receio que assaltaria as pessoas de verem convertidas em situações ´jurídicas´ de carácter irremovível situações de facto, assentes sobre actos de mera ´condescendência´ ou ´obsequiosidade´. (…) No mesmo sentido milita ainda a circunstância de, não havendo sinais ´visíveis´ e ´permanentes´ reveladores da servidão, sendo esta porventura exercida só clandestinamente, a atitude passiva do proprietário pode ser apenas devida à ignorância da prática dos actos constitutivos da servidão".             
[18] Entendendo-se por “sinaltudo aquilo que possa conduzir à revelação de qualquer coisa ou facto, principalmente indícios que revelem a existência de obras destinadas a facilitar ou tornar possível a servidãoPires de Lima, Lições de Direito Civil (Direitos Reais), 4ª edição, 1958, pág. 324.
[19] Vide, entre outros, P. Lima e A. Varela, ob. e vol. cit., pág. 630 e, nomeadamente, os acórdãos do STJ de 13.01.2004-processo 03A4066 (publicado no “site” da dgsi) e da RC de 02.11.1988 e 06.12.2005, in CJ, XIII, 5, 65 e XXX, 5, 24, respectivamente, contendo este último aresto um apontamento histórico sobre a problemática das servidões prediais e propugnando que o funcionamento da proibição contida no art.º 1548º perde a sua razão de ser quando a situação possessória for conhecida e até reconhecida como tal pelos proprietários do prédio serviente – considera-se em tais situações também as servidões não aparentes podem ser adquiridas por usucapião, não se aplicando o disposto no art.º 1548º, n.º 1, numa interpretação restritiva deste preceito, entendimento que se afigura defensável.

[20] O nosso legislador não aceitou a concepção objectiva da posse, consagrada em alguns códigos estrangeiros, segundo a qual a posse sobre uma coisa se adquire pela mera obtenção do poder de facto. Segundo a nossa lei, é necessário algo mais, ou seja, é preciso que haja, da parte do detentor, a intenção (animus) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa, e não um mero poder de facto sobre ela.
   Se é certo que se trata de uma afirmação conceitualmente rigorosa, contudo, não tem uma relevante utilidade prática, uma vez que, estabelecendo a lei uma presunção destinada a facilitar a prova do animus (art.º 1252º, n.º 2), não existe significativa diferença (no plano prático) entre o nosso sistema, teoricamente subjectivista, e os que consagram a concepção objectiva – cfr., neste sentido, acórdão da RC de 15.4.2008, in CJ, XXXIII, 2, 26.
[21] Vide, a propósito, o acórdão do STJ de 14.01.1998, in BMJ 473º, 484, que impressiva e avisadamente refere que se os tribunais estivessem à espera de elementos perfeitos e completos, talvez não se passasse, ainda hoje, do velho ´non liquet´ em praticamente todos os casos
[22] Como se referiu, o instituto da posse envolve ou pressupõe o “corpus”, i. é, a utilização da disponibilidade fáctica ou empírica de uma coisa, bem como o “animus possidendi”, ou seja, a intenção de exercer o direito real que o “corpus” indicia..

[23]  No sentido de poderem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa, veja-se jurisprudência obrigatória fixada por acórdão do STJ de 14.5.1996, in DR - II Série, de 24.6.1996.

      Cfr. ainda, de entre vários, os acórdãos do STJ de 09.01.1997 e 27.5.1999, da RC de 18-01-2005- processo 3625/04 e da RE de 06.11.2008, in CJ-STJ, V, 1, 37 e VII, 2, 123; “site” da dgsi e CJ, XXXIII, 5, 243, respectivamente.